CIRCA DIEM nuno nunes-ferreira
Prólogo O texto que se segue a esta breve introdução, “Um paradoxo, por um dia”, foi escrito para a apresentação inédita, e única, da obra Circa Diem de Nuno Nunes Ferreira, no contexto de um projecto específico para o qual o artista concebeu e criou essa peça. Foi muito discutida a possibilidade de voltar a mostrá-la numa outra data que não a de 23 de Janeiro de um qualquer ano futuro, e com uma duração de vários dias. Por outro lado, o processo de trabalho que gerou a recolha, e a consequente selecção e organização bibliográfica, encontrava-se sediado no arquivo necessário, mas suficiente, para que a obra se desenvolvesse em tempo real na sucessão da unidade de tempo que se encerraria nessa data pré-estabelecida. Desta forma, a obra estaria sempre ligada a um acontecimento passado, podendo ser de novo mostrada, mas perdendo a sua actualidade na correspondência com o tempo real que uma outra duração temporal exige. Nunes Ferreira regressou então aos princípios que estruturam a construção do arquivo onde o tempo se torna palavra, inscrito nas páginas de publicações avulsas que procurou e que apenas interessam porque aí se encontra a menção escrita de cada unidade de tempo que se sucede através da imagem em movimento cronografada pelo dispositivo videográfico. Contudo, era necessário que a selecção, ou a montagem, das imagens do arquivo correspondesse em tempo real perante o observador. Ou seja, o dia ou o período de tempo em que o “relógio bibliográfico”, como adiante refiro, seja accionado corresponderá a esse mesmo momento – e à sua sucessão –, independentemente do espaço e do tempo onde se encontra.
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Um paradoxo, por um dia Na obra de Nuno Nunes Ferreira persiste uma prática arquivista que se desenvolve como um motor interno ao seu processo de trabalho. Se em muitas obras esse procedimento é imediatamente visível, noutras emerge como um segmento organizado e concatenado segundo outros parâmetros que a obra exige, sem ficar refém de prática arquivística mais canónica, que no seu caso em particular passa também por uma actividade respigadora que interpela a ideia de arquivo como um sistema que apenas se alimenta do registo seguinte. Se quisermos, podemos caracterizar esta actividade como nómada, no sentido em que a procura não é sempre predeterminada por um objectivo concreto, mas também não se resume à mera agregação e colecção de curiosidades. Nunes Ferreira tem uma estreita relação com a história enquanto possibilidade de reorganização do conhecimento humano em áreas muito diversas, tais como a política, as narrativas populares, as histórias e as estórias que por vezes são narradas pelas imagens, entre outras que nos desafiam a memória, o conhecimento, ou os temores da guerra e da coerção autoritária subjacentes à relação política anteriormente mencionada. Por outro lado, o artista revela uma forte determinação em alargar as suas pesquisas, construindo esquemas visuais em que aparentemente nos perdemos, sem contudo esquecermos que o tempo e a sua métrica vão definindo um olhar despudorado e muitas vezes transgressor que não se detém em abordar temas ou reactivar o significado de registos históricos que conhecemos, mas aos quais atribuímos o estatuto de objecto da memória, residente, e tantas vezes resistente, no amplo espaço mental que nomeamos vulgarmente como “o passado”. É neste contexto que a obra “Circa Diem” foi pensada e trabalhada para o evento efémero que é o EMPTY CUBE. O trabalho é exposto em dois tipos de suporte, ocupando o espaço cúbico (e efémero) e a sala da galeria Appleton Square, que acolhe o projecto. O primeiro suporte é dinâmico; o segundo é de natureza inerte e só pode ser activado através do seu manuseamento. No primeiro caso, estamos perante um dispositivo digital que se faz representar como um relógio bibliográfico, uma espécie de marcação do tempo real através da menção das suas unidades de medida escritas e inscritas na diversidade de documentos que nomeiam cada segundo, minuto, hora, e finalmente um ano, ao qual correspondem apenas duas páginas.
O segundo suporte é materializado pelos documentos que deram origem à digitalização do primeiro e que nos confrontam com a dimensão física desse ano, dividido em pastas de arquivo organizadas cronologicamente à medida exacta de um segundo. Todo este processo tem como base um estudo que Nuno Nunes Ferreira fez sobre o conceito do ciclo circadiano (do latim circa diem, que significa cerca de um dia). O ritmo ou ciclo circadiano estrutura na espécie humana comportamentos que podem ser associados ao que denominamos como relógio biológico, integrado na estrutura central do nosso cérebro (mais exactamente no hipotálamo) e que age como um sistema regulador. Mas este fenómeno encontra correspondência nos animais, nas suas migrações, e no desenvolvimento das plantas no ciclo temporal sincronizado pela presença da luz solar e a sua ausência durante a noite. Metáfora da ordem natural, e por vezes contraditória, que se estabelece entre a vigília e o sono. Entre a presença do olhar e a sua resistência à falácia e o esgotamento do corpo que cede ao devir. Nuno Nunes Ferreira aplica este modelo de forma exponencial, tendo constituído um arquivo bibliográfico onde vamos encontrar numa página de um horário de caminhos de ferro inglês a sinalização de um momento desse ano: “twelve P.M.”, ou ainda, na última página do arquivo em papel, as palavras “one second”. Esta será de facto a primeira página de um arco temporal com a amplitude cronológica de um ano, que é dissecado num movimento contínuo até ao último segundo desse ano e tem como referencial no tempo o dia exacto do projecto realizado no EMPTY CUBE: 23 de Janeiro de 2015. A métrica desta obra condensa a temporalidade justaposta a um palimpsesto textual que escreve o tempo que este projecto declara perante nós, aparentemente condensado mas paradoxalmente a decorrer em tempo real, ou consultável página a página, obrigando-nos a suportar o peso da matéria que cumprimos no tempo possível, mas também real, que a nossa corporalidade permite. João Silvério Janeiro 2015
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A peça que podemos observar na exposição da Biblioteca da FCT/UNL é muito semelhante à que foi mostrada anteriormente, mas com uma diferença substancial: esta obra não está condicionada a um determinado momento e, quando activada (na sua versão digital), vai recuperar as imagens das páginas que correspondem a esse mesmo momento através de um dispositivo informático que se presentifica como uma espécie de “Bartleby” digital que opera o arquivo, reactualizando-o imediatamente no tempo e durante um período de exposição contínuo. O arquivo analógico, em papel, mantém a sua materialidade háptica e a sua relação com o movimento do corpo, acompanhando a duração que cada um de nós necessita para virar uma página e possivelmente se deter, para além da menção à unidade temporal que cada página contém, numa ou noutra frase que pertence a esse texto. Enquanto isso, as páginas/segundo, as páginas/minuto ou as páginas/hora dobram-se incessantemente nos ecrãs, compaginando o tempo que, sendo presente, se funde por um instante com o passado que é ainda presente. De certa forma, esta peça chama-nos a atenção para o conceito de “imagem-cristal”, em que Bergson se aproximava da indiscernibilidade entre real e virtual, duas “imagens-tempo” que transitam num momento único como passado que se presentifica mas simultaneamente como presente que passa. Nesta nova versão da obra, o título Circa Diem vem recuperar essa tensão interior e subjectiva em cada um de nós, pela forma e duração como nos pensamos entre a cronologia e a fragmentação da memória que luta com a métrica do tempo e nos confronta com a factualidade da morte que se aproxima ciclo a ciclo, dia após dia. Regressemos ao arquivo impresso e ao tempo que ele exige para ser percorrido, como se nos arquivadores estivesse uma temporalidade distendida, que só depende de cada sujeito que a quer percorrer, como uma espécie de slow motion radical, de que 24 Hour Psycho, do artista Douglas Gordon, poderia ser uma referência para outros pensamentos que a obra de Nuno Nunes Ferreira reclama, tendo em conta que esta exposição se prolonga com uma outra obra intitulada “fim”, constituída pelas 80 folhas originais de todos os finais dos livros de Agatha Christie. João Silvério Março 2015
BIBLIOTECA FCT/UNL José Moura, coordenação (director) Ana Alves Pereira, coordenação Luisa Jacinto, colaboração Isabel Pereira, colaboração Violeta Pereira, produção TEXTO João Silvério REVISÃO DE TEXTO José Gabriel Flores IMAGENS Nuno Nunes-Ferreira fotografias efectuadas aquando do projecto Empty Cube apresentado no espaço APPLETON SQUARE em Lisboa na noite de 23 de janeiro de 2015. PROGRAMAÇÃO INFORMÁTICA Rogério Machado Abel Taínha VIDEO Mercês Tomaz Gomes
HORÁRIO 14 de Maio a 31 de Julho de 2015 2ª a 6ª das 09:00h às 20:00h www.biblioteca.fct.unl.pt www.nunonunes-ferreira.com www.emptycube.org