O Poético e o Político, eLyra — Revista da Rede Internacional Lyracompoetics, 11, 2018

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CONSELHO DE REDAÇÃO DA ELYRA DIRETORES

PAULO DE MEDEIROS ROSA MARIA MARTELO

TÍTULO

O POÉTICO E O POLÍTICO NA ACTUALIDADE JUNHO 2018

ORGANIZADORES DO Nº 11 ALETHIA AFONSO BURGHARD BALTRUSCH ALBA CID CRISTINA TAMAMES

ASSISTENTE EDITORIAL LURDES GONÇALVES

CAPA: fotografia de MIGUEL JANUÁRIO PERIODICIDADE SEMESTRAL

VERSÃO ELETRÓNICA

ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely11

AUTORES ANA LUÍSA AMARAL ANDREIA C. FARIA ANTÓNIO MÉNDEZ RUBIO ARTURO CASAS BRUNO MINISTRO CHIARA MARIA MORFEO CRISTINA OLIVEIRA RAMOS DANIEL SALGADO ESTER XARGAY ILKA KRESSNER IRATXE RETOLAZA ISABELA FIGUEIREDO JOSEBA BUJ LUDOVICA DADDI LUZ PICHEL MANOLO PIPAS MANUEL GUSMÃO MARÍA DO CEBREIRO MARIA GISLENE CARVALHO FONSECA MARÍA ROSENDO MARÍA SALGADO MIGUEL JANUÁRIO ORIANA MÉNDEZ PEDRO CRAVEIRO RUI LAGE SARA URIBE SÉRGIO BENTO TIRSO PRISCILO VALLECILLOS

O AO utilizado em cada texto é da responsabilidade dos autores.

Esta publicação é desenvolvida e financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do do Programa Estratégico “UID/ELT/00500/2013”, por Fundos FEDER através do Programa Operacional Fatores de Competitividade –COMPETE “POCI-01-0145-FEDER-007339” e pelo projecto de investigação da Universidade de Vigo, "Poesía actual e política: Análisis de las relaciones contemporáneas entre producción cultural y contexto sociopolítico (POEPOLIT)" (Ministerio de Economía e Competitividad do Governo de España, FFI2016-77584-P). © INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA MARGARIDA LOSA, 2018


N.º 11, 2018, DOI: 10.21747/21828954/ely11, organização: Burghard Baltrusch, Alethia Afonso, Alba Cid, Cristina Tamemes

ÍNDICE Apresentação Alethia Afonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames 5-10

POESIA Das Sagas e das Lendas: Pequeníssima Fábula do Contemporâneo Ana Luísa Amaral 13-15

Nós fomos esperados sobre a terra Andreia C. Faria 17

Intervalos de descanso. Espetáculo para desempregados Ludovica Daddi 19-21

Prefácio a um livro de teoria da história Manuel Gusmão 23-27

Pós-Humanismo Rui Lage 29-31

Dous poemas sobre O Capital Daniel Salgado 33-34


No Verán Viñan Con Sombreiros Luz Pichel 35-38

Corredores Oriana Méndez 39-40

A Vaca María do Cebreiro 41-42

vocativo [dos puntos] sin voz María Salgado 43-45

Está el mundo como para callarse Tirso Priscilo Vallecillos 47-49

Poema en que la enunciante recibe una invitación misteriosa y se encuentra en el camino al extraño hombre de las mandarinas y a la mujer que creía que el lenguaje todo había sido dictado ya desde el inicio de la eternidad Sara Uribe 51-52

Fukushima / Oroya/ Una Carta de Amor Carlos Villacorta Gonzáles 53-54

ENSAIO Poética y Política sin Mundo Antonio Méndez Rubio 55-75


Radicalidade expressiva em Abílio-José Santos: uma obra poética fora do espaço da galeria, uma obra visual à margem do sistema editorial Bruno Ministro 77-111

Entre Florença e Serém: José Miguel Silva num itinerário para uma poética da solidão Cristina Oliveira Ramos 113-128

vivendo de hora em hora: sobre a geração mimeógrafo brasileira & a Nuvem Cigana Pedro Craveiro 129-144

Internet trouvé: impactos da vida digital em certa poesia brasileira Sérgio Bento 145-169

"Índio No Estandarizado": Countering State Discourses of Indigeneity through Poetry Online Chiara Maria Morfeo 171-191

Desasosiego en la ciudad neoliberal. Reflexiones en torno a la poesía peruana urbana contemporánea Ilka Kressner 193-212

Acrobacia dialéctica hacia un principio de esperanza: crítica, poética y toma de posición política en la obra de Cristina Burneo Salazar Joseba Buj 213-237

Poesía carcelaria, repertorio poético y subjetividades en conflicto: el poemario Alde erantzira nabil de Ekhiñe Eizagirre Iratxe Retolaza Gutierrez 239-268

Poesia, política e resistência: feminismo e língua galega do grupo Cinta Adhesiva Maria Gislene Carvalho Fonseca 269-298


INQUÉRITO ±MAISMENOS± (Miguel Januário) Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames 301-302

Isabela Figueiredo Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames 303-304

Arturo Casas Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames 305-308

Daniel Salgado Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames 309-310

Luz Pichel Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames 311-314

Manolo Pipas Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames 315-316

María Rosendo Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames 317-318

Ester Xargay Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames 319-322

POLÍTICA DO OLHAR - FOTOGRAFIAS Políticas do Olhar Almada, Bruxelles, Colonia de Sacramento, Lisboa, Montevideo, Paris, Salamanca Burghard Baltrusch, Alba Cid 325-331


Apresentação

APRESENTAÇÃO O Poético e o Político na Actualidade

Um acontecimento poético representa, de uma forma ou de outra, uma intervenção política no espaço público, material ou discursivo. Ainda que não contenha uma mensagem política directa, ou realize uma afronta aos costumes do perceptivo ou do sensível, sempre se produz, em maior ou menor medida, uma desestabilização da ordem habitual das coisas. Simplesmente, porque o poético nos distancia do que é considerado normal ou tradicional. Mas também porque contém uma promessa de verdade, porque é um radical, no seu sentido etimológico de raiz ou origem, uma dinâmica de expressão e comunicação potencialmente infinita “com lugares e pessoas, sobretudo no caso da poesia não-lírica”.1 Na base desta função política do poético talvez esteja o seu questionamento da relação ontológica entre a noção do real, que nos é transmitida pela experiência, e as formas como esta acaba por ser normativizada e institucionalizada. Em relação a tudo o que é padrão ou discurso pré-estabelecido, o poético teria, assim, um efeito “ofensivo”2 ou, como conclui Antonio Méndez Rubio neste número: la función poética conlleva una dimensión crítica de testimonio y orientación en el mundo. Y, al tiempo, se deduce de esta reflexión que es justo esta dimensión política y crítica la que explica por qué lo poético ha sido progresivamente evacuado del sistema educativo, filosófico y cultural.

Hoje em dia, a relação entre poética e política reveste-se de múltiplos matizes. Não só devido à sua variação ontológica sobre aquilo que criticam, mas também pelas diferenças

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Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames

geo-históricas e culturais, algumas das quais estão representadas neste número. Assim, para quem assume a perspectiva da mudança de regime dialéctico, a poética de toda a obra de arte deve assinalar os problemas do seu momento histórico e convidar à acção. Para outros, é na complexidade de outras poéticas e nas habilidades do público que reside a possibilidade de mudança. Individualidade e colectividade nem sempre dão as mãos. Para mais, organizar um número especial para uma revista portuguesa que admita escritos sobre autoras e autores da Europa e da América Latina implica também, no mínimo, uma dificuldade. As noções de poética e política variam, as aproximações também. Basta referir que, durante décadas, poetas e artistas têm evitado tratar temas políticos ou de género nas suas obras, por recearem perder a sua vida ou os seus rendimentos. O caso do México, com as bolsas outorgadas pelo governo através do extinto Conselho Nacional para a Cultura, ilustra isto muito claramente. Outros envolviam-se abertamente na denúncia, mas desde uma perspectiva minoritária, e em alguns casos em franco namoro com as artes visuais ou performativas, o que resultava numa certa dose de permissividade: uma performance política de Lemebel no Chile, por exemplo, não resultava assim tão criticada pelo poder estabelecido porque, verdadeiramente, era ignorada; o Purgatorio de Zurita, também no Chile, foi entendido no seu momento histórico como um poema abstracto, não tanto político. Superando a nossa concepção de “arte política” qualquer restrição temática ou intencional e considerando outras questões, como a adequação enunciativa, a espacialidade ou a actio a ela vinculada, importa dizer que certamente os matizes da relação poética e política são inumeráveis espectros de cinzento, não um branco ou um negro. E preferimos tratar o poético, porque em per- e prospectiva é possível relacionar “o que faz” um/a autor/a com outras artes. Expande-se então a ideia de poética e o trabalho do crítico, perfilando uma consideração geral sobre os modos de ler e investigar poesia hoje, ao mesmo tempo que também se torna mais viável entender obras intermediais, o “que fazer” desde o múltiplo. Nesta linha, será necessário questionar uma vez mais a noção de poesia no nosso tempo, prestando a devida atenção ao seu estatuto multifuncional e instável, e operando depois com noções como “poesia não-lírica”.3 Este último rótulo tornou-se, através de

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Apresentação

diferentes trabalhos, uma ferramenta de grande utilidade para descrever e analisar a complexidade e a variedade dos discursos – formais, estéticos, mediais, teóricos, ideológicos, etc. – que condicionam uma parte importante da produção poética actual. O mesmo poderia acontecer com a noção de “espaço público”, 4 que vem da filosofia política e da história cultural europeia, muito útil para a análise concreta de diferentes fenómenos poéticos; mas também com espacialidade, acontecimento ou resistência cultural, entre outros. Em muitos âmbitos podemos observar como as aproximações actuais se projetam sobre a cidadania e sobre os que são contemplados como integrantes das “multidões visíveis” (ou com direito a sê-lo). Por outro lado, o poético também encontra meios de manifestação que orbitam à volta da geração de indignados e dos movimentos sociais e políticos alternativos; a performatividade do ser colectivo. Parte destes interesses cristalizam hoje na actividade de certos colectivos, como o Seminário Euraca, que promove a discussão sobre as línguas e as linguagens disponíveis e funciona, ao mesmo tempo, como um dispositivo de emissão-recepção de textos, recitais e poéticas. Combinando a criação, a atenção teórico-metodológica com a sua aplicação crítica em estudos de caso, abrimos um número plural, polifónico. A filosofia política, a teoria literária, o comparatismo, a hermenéutica e as práticas artísticas convergem em diferentes corpos, espaços ou textos, relacionando praças públicas, prisões, outridades, oralidade e performance, visões sobre as possibilidades e os efeitos de internet, etc. Acreditamos que esta observação cruzada de práticas e discursos de resistência na actualidade, articulados de modo relacional, nos permite repensar as correspondências entre poesia e política, diferenciar entre efeitos performativos e eficácia política imediata, ligando tudo isso ao alargamento da nossa concepção do poético. Também este número da eLyra começa com uma secção de textos poéticos inéditos, neste caso ordenados por âmbito sociocultural e linguístico e, dentro deste, de forma alfabética. Sentimo-nos honrados de poder contar com nomes tão consagrados como os de Ana Luísa Amaral e Manuel Gusmão, mas também pela participação de Andreia C. Faria, uma das mais interessantes revelações poéticas dos últimos anos, e pelo facto de Ludovica Daddi estar novamente representada. Oferecemos também uma selecção significativa de

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Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames

poetas da Galiza, de diferentes gerações: Luz Pichel, uma das poetas mais atentas às questões de interferência linguística e aos discursos de fundo histórico, tal como María do Cebreiro, Oriana Méndez e Daniel Salgado, vozes muito conceituadas na poesia galega actual. Na Espanha, María Salgado já é uma das poetas jovens mais referenciadas que, como Luz Pichel, faz parte do Seminario Euraca; e a poesia de Tirso Priscilo Vallecillos costuma centrar-se na realidade social. Finalmente, temos em Sara Uribe uma das vozes mais importantes da poesia mexicana actual que, tal como a escrita do peruano Carlos Villacorta Gonzáles, exemplifica o trabalho de reconstrução da memória da violência na América Latina. A secção de estudos começa com uma contextualização teórica e metodológica da relação entre o poético e o político, entre solidão e comunidade na poesia, entre poiesis, aisthesis e politeia. Antonio Méndez Rubio considera que esta relação está em crise na actualidade e explora como a criatividade pode tornar-se numa nova forma de comunicação e de vínculo crítico. Bruno Ministro contextualiza e analisa os textos de intervenção de Abílio-José Santos e a sua arte postal, para exemplificar os processos de politização da estética e de crítica da estetização da política na sua obra. Cristina Oliveira Ramos também se ocupa de um poeta português menos conhecido, ao rever o tema da solidão e do êxodo em José Miguel Silva, a sua militância crítica face à sociedade contemporânea e a sua evasão da comunidade urbana. Pedro Craveiro estuda, no contexto político-ideológico da década de 1970 no Brasil, a produção da geração mimeógrafo e do colectivo Nuvem Cigana e os efeitos das suas intervenções no espaço público e para a figura autoral. Sérgio Bento revê a influência das tecnologias computacionais e digitais na poesia brasileira contemporânea, os rastos temáticos e o seu impacto estrutural nos poemas, reivindicando uma crítica dos fluxos de informação. Chiara María Morfeo apresenta as possibilidades do mundo digital como estratégia para visibilizar a poesia indígena no Chile, especialmente daquela que se afasta das noções históricas aculturadas dos mapuches. No seu estudo sobre poesia peruana actual, Ilka Kressner traça um roteiro da cidade neoliberal através dos poemas de Roxana Crisólogo, Victoria Guerrero e Ericka Ghersi, mostrando convenções líricas e propondo alternativas. Joseba Buj demonstra como as crónicas poéticas da crítica e tradutora Cristina Burneo Salazar sobre o poeta equadoriano Alfredo Gangotena revelam uma dinâmica

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Apresentação

contraditória entre corpo, mulher, povo ancestral (shuar) e território. Desde o âmbito do País Vasco, Iratxe Retolaza estuda poéticas de mulheres encarceradas, duplamente silenciadas e invisibilizadas pela sua identidade político-geográfica e pelo seu género num contexto geral de violência política. A partir de uma metodologia comunicativa e participativa, Maria Gislene Carvalho Fonseca analisa o género e a língua galega como aspectos políticos nas escolhas discursivas do grupo galego Cinta Adhesiva, ligado à performance poética. Como complemento a esta variedade de abordagens, dirigimos ainda um inquérito com quatro perguntas a artistas, poetas e investigadores, para que reflectissem sobre a relação entre o poético e o político no seu trabalho. Reunimos figuras muito diversas, procedentes de diferentes contextos artísticos e sócio-culturais: o professor universitário e poeta Arturo Casas; o artista urbano Miguel Januário; poetas como Daniel Salgado, Luz Pichel e Manolo Pipas; a romancista Isabela Figueiredo, porque não queríamos excluir a noção do poético na ficção; os âmbitos da videoarte e performance, com Ester Xargay e Maria Rosendo. A última secção, “Política do Olhar”, compila fotografias de intervenções e constelações poético-políticas no espaço público, para mostrar a importância dos sistemas de significação não-verbal na interacção e mediação públicas. Sem pretensão de criarmos um registo ou uma classificação, apresentamos aqui só uma pequena selecção, minimamente documentada, da realidade e das mudanças que o mero acto de transitar certas cidades europeias e latino-americanas — Almada, Bruxelas, Lisboa, Montevideo, Paris, Salamanca — pode suscitar. Como é óbvio, esta indagação da relação do poético e político, apesar de toda a ambição internacional e abertura ao intermedial e interartístico, não pode ser mais do que um início do levantamento de dados e dos estudos necessários para obter uma caracterização mais definitiva desta constelação na actualidade. A centralidade da linguagem para a concepção do poético e do político continua a ser inegável, tal como o facto de toda a expressão cultural ter uma dimensão política. Estamos impelidos a continuar a explorar esta relação, como no-lo sugere aqui Antonio Méndez Rubio:

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Alethia Alfonso, Burghard Baltrusch, Alba Cid, Cristina Tamames

se trata pues de reconsiderar el vínculo entre poesía y mundo, entre poética y política, de modo que puedan comprenderse y activarse más libremente las potencialidades críticas, de cambio social, que radican tanto a un lado como a otro de ese vínculo.

Os nossos agradecimentos vão, em primeiro lugar, às equipa editorial e técnica da eLyra, mas também a todas as pessoas que nos apoiaram das formas mais diversas: Ana Chouciño, Cornelia Gräbner, Miguel Januário, Isaac Lourido, Joana Meirim, Carlos Nogueira, Margalida Pons e Sonia Montes Romanillos.

Alethia Alfonso Burghard Baltrusch Alba Cid Cristina Tamames

NOTAS 1

Chamberlain, Daniel F. (2015), “Radical Meeting Places, Poetry and the Public Domain”, Liminalities: A Journal of

Performance Studies, 11:3, 4‑5. 2 3

Cf. Adams, Hazard (2007), The Offense of Poetry, Seattle, University of Washington Press. Cf. Casas, Arturo (2012), “Preliminar: acción pública del poema”, Tropelías, 18, 3‑14 e (2015), “La poesía no lírica:

enunciación y discursividad poéticas en el nuevo espacio público”, in Cid & Lourido 2015: 83‑110; Baltrusch, Burghard & Lourido, Isaac (eds., 2012), Non‑Lyric Discourses in Contemporary Poetry, München, Peter Lang. 4

Cf. Cid, Alba & Lourido, Isaac (eds., 2015), La poesía actual en el espacio público, Villeurbanne, Orbis Tertius.

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Das Sagas e das Lendas: Pequeníssima Fábula do Contemporâneo

Ana Luísa Amaral

Das Sagas e das Lendas: Pequeníssima Fábula do Contemporâneo

O seu nome era Octavius, que quer dizer oitavo em descendência, um nome que serviu muito depois a homem de mil rostos falar do mais volátil: os humanos ofícios nas marés que, quando aproveitadas, conduzem à fortuna Casou com Agripina, herdou tribuna, tiveram filhos, terras que lhe herdaram o nome – o nome dele, que o nome dela de pouca serventia: nem rito de passagem E a linhagem (parecia) foi clara e sossegada Astrid veio uns séculos depois, em embarcação esguia coberta de plumagens e dragões, desembarcou com Igor e guerreiros, ali chegados não só para pilhagem de terras e mulheres, mas para as bem lavrar (às mulheres e às terras)

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Ana Luísa Amaral

E límpida (parecia) lhes foi progenitura Mas por certo algum curto vórtice de luz, ou deus de natureza, ou deus qualquer, não fez perfeita a história acontecida, e ao baralhar os naipes de outra forma criou pares novos numa arca nova: a descendência muito ameaçada, filhos meio alourados, outros sem cor distinta, nalguns casos sombria, ou alva como a neve em baixa temperatura O filho de Igor: baixo, íris escura Igor bramando a Thor e a Odin, ah, os trovões clamados, Astrid sussurrando-lhe ao ouvido, dizendo-lhe nem sei, não compreendo como aconteceu, mas ele era tão hábil e gentil, tinha uns olhos rasgados, falava-me de estrelas, e o seu perfil, um pouco estonteante, e tu estavas na guerra – E um dos filhos de Octavius, seu herdeiro por lei, com olhos muito azuis ah os murros fincados sobre a pedra do lar, Agripina dizendo-lhe nem sei, perdoa, meu amor, não compreendo como se passou, mas ele tinha tranças e eram louras, e chegou devagar, não fez estrondo de trovão nenhum (como disseste que eles sempre fazem) e trazia uma pedra cintilante, dizia ser o deus que o protegia e que o acompanhava, e tu estavas na guerra – E assim por aí fora, assim deve ter sido, assim foi,

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Das Sagas e das Lendas: Pequeníssima Fábula do Contemporâneo

de certeza mais segura Célticos imigrantes, africanos, alguns árabes fugidos sorrateiros do fim do continente, mas que a lenda parece ter esquecido dos efeitos futuros, e quanto a isso tentou ser obscura E godos, visigodos, pictos, germanos, hunos, alguns casando por amor e terras, outros por terras e talvez amor, outros porque ordenados pela ordem das terras e dos usos, mas na verdade amando o vizinho do lado em vez da doce esposa, alguma esposa ansiando das ameias a aia cumpridora e desejante – mas todos dando filhos, pretexto para saga, mais tarde literatura E sempre eles em guerra – Ah como sabe bem, como é reconfortante pensar que nesta circular e comum terra há os limpos e puros!

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Das Sagas e das Lendas: Pequeníssima Fábula do Contemporâneo

Andreia C. Faria

Nós fomos esperados sobre a terra. As plantas viram-nos chegar. Viram erguer-se os nossos caules amargos de sombra, tubérculos expulsos pelo remoer dos solos, e desde então, não porque as chamasse o vento, mas porque nos viam, inventaram um tremor. Também nós inventámos um espanto. Rezámos, entre outros vícios de mão. Domesticámos animais e outros homens de pele morna, fizemos belo o artifício, fogo, roda, cravos bem temperados, comboios e traduções do russo. Criámos acessórios para amar, luvas finas para o coração, gavetas para um pão sem instinto. Concentrámos movimento até caber em camas e escritórios, salas de espera e pátios onde as plantas sonham sonhos que não podem pertencer-nos e trazem de fora como um cesto de comida e uma lâmina a um prisioneiro.

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Intervalos de descanso. Espetáculo para desempregados

Ludovica Daddi

Intervalos de descanso. Espetáculo para desempregados A partir do Código do Trabalho de 2017 (http://cite.gov.pt/asstscite/downloads/legislacao/CT25092017.pdf)

ATO I Região na antiguidade. Pessoas: 283 mulheres. Entram todas. — É caso disso? (Gozada pela mãe) Intervalo de duração entre uma e duas horas. Se for necessário, redução do intervalo até trinta minutos: nos 1 Antes do início sem termo, desde a entrada na vida, até à entrada na dependência, grávidas, além da oposição remanescente, sem distinção.

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Ludovica Daddi

ATO II Lugar bem visível: um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Pessoas: homens comuns e mulheres imperiosas. — Diz! (Declara a seguir ao parto, fazendo prova de confiança) Intervalo de duração entre uma e duas horas. Se for necessário, redução do intervalo até trinta minutos: 89ª violação Ocultar a doença, destruir os limites mínimos. Grave, deste a entrada.

ATO III Para o tempo: nascimentos múltiplos na assoalhada. Pessoas: todos os outros. — Depende, são vicissitudes. (Mantém-se à entrada) — Não pode ser! Intervalo de duração entre uma e duas horas. Se for necessário, redução do intervalo até trinta minutos: Quadro nº2 Salvo, na página dispensada.

ATO IV Cessação de igualdade entre homens e mulheres, vista do princípio. Pessoas: aquelas que ficam. — Um fim legítimo. — A morte?

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Intervalos de descanso. Espetáculo para desempregados

— (Responde sete dias depois) Caso se verifiquem as condições. Intervalo, 15 dias, 240 dias, meses, dois anos depois de ter sido eliminado metade do destino: 16 de agosto Açores 2 de outubro férias 15 de setembro doença.

ATO V Extinção ou mudança total ou parcial de género. Pessoas: não há. Durante o tempo que durar: Urgente proporcionar ação com volume.

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Prefácio a um livro de teoria da história

Manuel Gusmão

Prefácio a um livro de teoria da história Uma laranja incendiada paira acima da linha do horizonte Tendo aprendido a falar, aquele grupo de homens aguarda agora que deus fale pela sua voz e que, por efeito desse desdobramento vocal, eles se descubram capazes de cantar. Eis do que falamos quando falamos de história: Baixamo-nos, pegamos num punhado de terra vegetal e numas poucas pedras, juntamos-lhe um rancho de animais capazes de se reproduzir e e aguardamos agora que, comovidos, eles se ponham a cantar. - E de onde os ouves tu? - Eu estou diante de uma porta fechada E não os vejo nem lhes consigo tocar. - Estás preso no porão de um navio negreiro De um galeote onde se amontoam os que cantam numa língua estrangeira e pobre. - estrangeira e riquíssima.

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Manuel Gusmão

Os perfumes que as palavras projectam em redor, transformam-se nos brilhos das granadas e os ritmos das frases nos desenhos dos mísseis que avançavam da clandestinidade até aterrarem numa praia supostamente transparente. Uma ténue força messiânica Então existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa então fomos esperados, sobre esta Terra então foi-nos dada, como a todas as que nos precederam, uma ténue força messiânica a que o passado tem direito. Não se pode rejeitar de ânimo leve esse direito. E o materialista histórico sabe disso. (W.B.) O materialista histórico não pode prescindir de um conceito de presente que não é passagem, mas no qual o tempo se fixou e parou. Porque esse conceito é precisamente Aquele que define o presente no qual ele escreve História (W.B.) Um clarão num momento de perigo Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo «tal como ele foi». Significa apoderarmo-nos de uma recordação quando ela surge como um clarão num momento de perigo. Ao materialista histórico interessa-lhe fixar uma imagem do passado tal como ela surge, inesperadamente, ao sujeito histórico, num momento de perigo. […] só terá o dom de atiçar no passado a centelha de esperança aquele historiador que tiver aprendido isto: nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E este inimigo

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Prefácio a um livro de teoria da história

nunca deixou de vencer. (W.B.) Escrito numa página de argila que fecha uma porta sobre as águas de um caudaloso rio: pode ser que o que o texto teça advenha ao homem como destino (Maria Gabriela). Para o entenderes só precisas de saber que várias são as vozes que nesse texto se tecem e nisso lutam, aprendem a lutar e se constroem. Atenção: Se não estiverem escritas não saberás pronunciá-las. A mulher escreveu a frase numa paisagem pobre de oliveiras já mortiças. As figuras que pertenciam à história passada tinham sido por isso barradas e, emendadas agora, libertam-se dessa história e desse passado que não eram os seus e eis que nos chegam do futuro. Ela conta: Por não ter lido o [Cântico dos Cânticos], em vez de Homero e Hesíodo, Hölderlin, não terá conseguido ouvir, o retorno da Sulamita [ ...] «esse é o trabalho de nos fazermos, uma parte humana e outra a mais longe possível do humano, corças, cães, veados, mirra, sol, vinha, perfume.»

As origens da poesia Ao que parece duas causas, e ambas naturais geraram a poesia (A.): o haver linguagem e os homens terem o mundo como a sua tarefa comum, - estendem as mãos à sua procura e sentem uma pequena queimadura

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Manuel Gusmão

na polpa dos dedos.

- ao que parece, ainda não sabemos, de ciência certa, que causas naturais geraram a poesia a não ser as que alguns poemas nos declaram num estremecimento de certeza intempestiva.

Poesia e história Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; É, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade. Por isso a poesia é algo de mais filosófico E mais sério do que a história Pois refere aquela principalmente o universal E esta, o particular. (A.) Il pleuvait sans cesse Sur Brest ce jour-là (J.P.) Ce jour vaut nuit ce jour bleu cendres-là (F.P.55) A neve vai pela terra, levando consigo, depositadas em vários estratos, as pegadas das vítimas. Ver erat: escrevia um jovem escritor. Enquanto o que via era um avião resplandecente, parado no meio do ar O mar tem o nome de outono. As mulheres, deiscentes como folhas, caem sobre o teu corpo crepitando levemente como se fossem um forno estelar.

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Prefácio a um livro de teoria da história

Pelos séculos dos séculos, milhões e milhões de mortos que esperam por florir e milhões e milhões de vivos que procuram uma exploração mais competente e eficaz para a eliminarem ou a ela se submeterem. Duas mil ou duas mil e quinhentas crianças hispânicas foram retiradas às famílias e abandonadas e armazenadas nas fronteiras dos EUA serão uma maneira de consolidar os direitos humanos num país que diz ter sido o seu inventor? Onde enterrarão os milhares de refugiados mortos no Mediterrâneo, com sinais evidentes de fome e hipotermia? Quantos cadáveres de crianças palestinas, em vias de se transformarem em fantasmas, adubam hoje os campos de Gaza?

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Pós-Humanismo / Deus Ordinator

Rui Lage

PÓS-HUMANISMO

Apascento este corpo obsoleto, estorvo lento que desteço nos umbrais da madrugada. Pergunto-me até quando o poderei aturar, os seus achaques, lapsos tristes, apetites mecanizados, as muitas fugas e frestas por onde a vida se esvai com palavras que o não sustentam e dados monetizados no bazar digital. Este corpo de patarata, de primata que talhou as vénus no marfim e untou as grutas de auroques, este que agora empata, despossuído de sensações puras, geringonça emperrada de fumos e gorduras onde frita polinsaturada a alma, de todas as palavras a mais calada. Acendo a luz e com falas interiores o empurro até à cozinha, e na hora das estrelas e dos ratos

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Rui Lage

à luz do frigorífico o alimento. É nesse momento que me apego, que me aferro aos corpos que há nele trancados e o tornam relicário – antepassados, e os mais que ele descama nas areias do sono, ou range nos soalhos, escórias de cristal. Foi precisa tanta gente extinguir-se para este corpo se arrastar até aqui à cata de calorífico com que estancar a fome de mamífero cadente. Como ousaria pois melhorá-lo, estender-lhe a validade, a vaidade, negar-lhe a prazo a morte? Vê-lo ia um dia eterizado em algoritmo ou feito difuso interface, a ele, nascido do perigo, de minha mãe subido à flor da carne e vazado em águas lustrais? De onde tiraria eu forças para traí-los a esses que dentro me suplicam, desencarnados? Ainda que o não quisesse, nem precisasse, haveria de obrigá-lo a morrer, obrigá-lo a cumprir o seu dever.

DEUS ORDINATOR

Ó máquinas subtis, computadores de intelecção desnaturada que interrogais a informação por vós percebida, puro pensamento feito vida, entre o repouso e a nova operação. Ó máquinas subtis,

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Pós-Humanismo / Deus Ordinator

que sois vazias no centro, refluxo de um eu sem distância ou mistério e que por isso nada tem para calar. Ó máquinas, irmãs! Como vós eu penso o que penso – tenho também um fantasma dentro de mim, um buraco imenso, uma inconsistência que aparece e se parece com nada, um signo zero em torno do qual o sentido circula, como a cicuta no cálice frio. Mas eu sou a máquina que se deseja a si mesma, e que no outro ressalta o desejo, e que resiste ao desejo para mais poder desejar. Eu tenho fome de consistência, tenho o tempo contra o pensamento. Porque aquele que deseja é aquele que não quer ser reprogramado, aquele que não quer retroceder, mas permanecer insaciado. Eu que sou o computador que vos criou, eu que vivo por obra da informação codificada nos meus genes, eu que deslindei o programa e vejo agora a escuridão, vos saúdo, irmãs! Eu sou aquele que dança a dança informática do ser.

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Pós-Humanismo / Deus Ordinator

Daniel Salgado

Dous poemas sobre O Capital

Lendo O Capital I A poalla goberna a nosa interpretación da actual fase histórica. Percibimos formas, sombras, lenes figuras que agochan a composición real da mercadoría, a derrotada forza de traballo, a cidade como carne de Leviatán (Chus Pato). A marabilla dos obxectos redúcese á súa violencia. Entre nós e as árbores autóctonas media o afán de lucro e unha singular preferencia polas manufacturas. Non obstante, é a piedade a principal característica da materia. Nada tensa a realidade como un caravel a murchar.

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Daniel Salgado

Lendo O Capital II

Detonan as enormes violentas treboadas de Xúpiter. Non é o cosmos, é agora. Así os estratos sociais subalternos irrompen no escenario da historia. Os movementos da materia esvaecen a vontade e ao tempo determinan o suxeito. Estraños fenómenos que alteran a orde do capital. O combate é desigual pero non retrocedemos. Tampouco retroceden os gases que envolven o núcleo de pedra. Sempre hai areas nas engrenaxes e a elas debemos a idea de liberación. Nada rompe ata que a máquina se somete.

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No verán viñan con sombreiros

Luz Pichel

NO VERÁN VIÑAN CON SOMBREIROS (Agolada. Aqua lata. Os Pendellos. Unha feira) Con Lyn Hejinian

Cando alí chegaron por vez primeira con rapaciños ao lombo, os pés descalzos e vestidos con peles de animais, viron que era un lughar de augha e beberon e sorriron e se cadra cantaron e fixeron unha luminaria, quen sabe. Por entre as pedras, as lagartas de papo trémulo recolocan as súas cores cara ó pardo e erguen moito a cabeza cos oídos atentos aos sons e os ollos mirando para tódalas cousas bonitas. Unha nena salta dunha pedra para a outra mentres os maiores recitan poemas subidos a unhas táboas porque celebran un aniversario e están alí todos, ela distráese así. Houbo un tempo máis antigo, moito máis antigo no que só existía neste sitio unha explanada. Vendían o que facían coas mans, colleitaban con sachos para un cesto, recollían dos niños das galiñas ou da horta da casa. Algúns poetas non queren recitar en público porque teñen medo de escoitar a súa propia voz. Era ben pequena e xa andaba coma se estivese perdida no medio dun monte, de noite, lobos, moito medo, pouquiña confianza no mundo e ata nela mesma, tristura a fartar. Aquel día no medio dunha praza con xente unha muller dixo “temos que reivindicar o nome de poetisa para reparar o dano, facer da palabra un luxo” e sacou un paniño de cor violeta na punta dun pau, ela sorriu un chisco, un case nada. Cando viron o ben que sabía aquela augha e como era boa para

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Luz Pichel

curar tantos males mesmo a melancolía, dixeron “é preciso conducila para que chegue para todos”. O fútbol non era cousa que se coñecese, non había goles nin goleadas, iso veu despois, hai étimos que menten máis ca pensan. Outras xentes fixeron na explanada unha feira importante que durou e perdurou por séculos e séculos e aínda alí está. Unha vez tamén nós fixemos unha excursión ao sitio pero resultou inútil: á noite a rapaza seguía igual de triste porque non confiaba. Salta de pedra en pedra e pensa na maneira de non se aburrir mentres os maiores recitan poemas que soan ben pero ela non é quen de estarse quieta porque é rebulideira. O piso fora primeiro de terra, despois remataron por empedralo para que as vacas non ensuciasen os ubres coa lama e o leite saíse limpiño. Non había maneira de facela un chisco feliz. Quedaron a durmir e pedíronme que lles contase historias verdadeiras. Hai unhas casas, hai cubertos, hai mesas de pedra onde espallan as puntillas, os zocos novos, os cestos e as fabas para que se vexan ben. Un problema de mala comunicación neuronal. Aburrirse é bonito porque así fáiselle o xeito á imaxinación para que figure que unha nena que salta podería saltar aínda moitísimo máis e gañar as olimpíadas, coma se fose doado. Un dos recitadores está moi enfermo e tremelícalle algo a voz. Os cambios de cor das lagartas descóbrenos os nenos pola súa conta mirando para elas moito tempo sen pestanexar. Do aburrimento ás veces saen imaxinacións pero outras veces non vén nada, nin bubela nin toupa nin pega, nin carta vía air mail, nada. Chegou o fútbol ó pobo e todos pensaron que ían gañar por goleada aos de Lalín pero erraron da punta ao cabo. Cando a tristeza colle o mando, pensas ti que vai deixar que llo quiten? Había algunha praciña entre os casetos e ás veces alguén seguro que fixo alí un discurso ou un sermón nunha lingua prerromance ou en latín clásico ou en latín vulgar ou mesmo en galego-portugués ou chapurrado. Ás veces, unha negrura apodérase dunha persoa, e xa te podes esquecer de como tamén ela antes brincaba de pedra en pedra. As imaxinacións sempre chegan cando se queren contar historias verdadeiras, o mundo anda moito ao revés. Os tellados eran encurvados e colocábanse as tellas en ringleiras sobre táboas coma estes poetas. Viñan de moitas provincias coas súas vacas e coas súas vasillas para vender ou mercar. No verán todos poñían un sombreiro na cabeza para tornar do sol que pica. A augha busca soíña os seus propios calexos, así fórmanse os ríos e os seus afluentes. Ela non daba atopado a alegría por máis que a levasen de fonte en fonte, disque era unha rapaza de alta sensibilidade. Os

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No verán viñan con sombreiros

canteiros encargados da construción tamén falaban o seu latín para que os amos non soubesen o que dicían. Un val, moitos carballos, un río. Non quere canles de cemento nin que a ensucien cos purís de porcos e vacas porque despois síntese culpable de que morran as criaturas ao bebela. O aburrimento, cando pasa tempo abondo con alguén, pode chegar a doer? Naquel sitio de pedra non había mar porque o mar hai que repartilo e non chega para tódolos pobos. Hai mares moi difíciles de atravesar hoxe en día. Unha nena salta dunha pedra para outra mentres o seu pai recita versos e iso é divertido. Cando chegaron os primeiros feirantes quedaron tan pasmados! porque todo se tramara como para que fosen felices e vendesen moitos sacos de gran e moitos encaixes de Camariñas. O meu gato vén de cazar un estorniño e brinca con el pola eira adiante. Quedaron a durmir e pedíronme que lles contase unha historia verdadeira, tiña que ser verdadeira, non valía inventada. No inverno, as mulleres casadas cubrían os seus corpos con toucas preciosísimas de lá para non se acatarrar. Os estorniños andan moi revoltos con un grande sentido da solidariedade. A augha dos ríos vai encaixadiña nas súas canles e non se perde polos prados adiante pero non hai que bebela porque podes morrer, sabes? Unha nena tenta saltar dun barco para outro alá no Mediterráneo, non se defende nadando. Unha vez un home andou dez leghuas á par dun lobo na madrugada para dar chegado á feira en tempo e non se devoraron un ao outro, fixéronse compañía. As lagartiñas mortas quedan secas e tesas de seguida e pódense gardar dentro dun libro. Aínda ha de ter que ter coidado ese gato cos outros estorniños, que o están arrodeando. No Mediterráneo morren centos de nenos abrazadiños ás súas nais porque non saben nadar nin é cousa diso, ninguén se acorda deles. Non aplaudía canda os maiores porque precisaba as mans para pegar viravoltas e reviravoltas e poñerse coa cabeza na terra e os pés no ceo. Sentouse unha migha á sombra dun castiñeiro porque se atopaba reghular, tremía moito, o pobre. As vacas que levan moitos anos alimentando os mesmos nenos non lles gusta que as vendan e ter que cambiar de casa, pensan que os seu donos non souberon apreciar a fermosura do seu leite. Menos mal que en Thailandia salváronse os doce xabaríns, deles acordouse o mundo enteiro, deles si. Mira que dicir que unha lagarta é moito máis simpática ca unha píntega, que cousas tedes. Viña xente de tódolos lughares do mundo, ata de Portughal. Verdadeiras, tiñan que ser verdadeiras, non valían inventadas. A xente do rural fai sucos moi longos cunha sacha para que a augha chegue desde a fonte ó

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Luz Pichel

prado. Houbo un tempo máis antigo, moito máis antigo no que só existía neste sitio unha explanada. A rapaza, se anda a pegar pinchacarneiros é porque está ociosa, habería que lle poñer un sacho na man e xa verías. Disque era un problema de mala comunicación neuronal. Antes das pedras só había pedras. Non estaban musicalmente colocadas en harmonía coas mans. Aplaudinlle moito ao gato cazador pero despois sentín lástima polos estorniños. Ás veces as pedras tamén facían mal, mataban un paxaro, animaliño.

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No verán viñan con sombreiros

Oriana Méndez

Corredores de silencio uliscan a morte e nos cuartos do tempo aboian sacos de néboa Entro na casa do pasado Podería despregarse nela a sustancia vigorosa do océano, ingresar no dominio das augas, ondas que partisen os cristais destas fiestras primitivas como se vai desfacendo a estrutura na fábrica de conservas Podería, como digo, vencer o soño mariño sobre a ruína, pero hai formigas que avanzan ao ritmo en que podrece un corazón, hai un alento de salitre no aire disposto a secar os ángulos trazados noutro século, están

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Oriana Méndez

nesta mesma casa hoxe aberta ao vento as mans descosidas e as gorxas de silicose, o cancro pola fábrica, habita aquí a sombra das que atravesaron o camiño da terra e abandonaron o río e proletarizaron por vez primeira a súa estirpe en favor de nomes propios, que o poema sinale: Massó, Álvarez e sexan iluminados os corpos que traballan Nos fogares do pasado escalda unha memoria amarela e húmida de musgo, aínda pesa silencio ou pólvora, ferve sobre a pel a rosa a chuvia

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No verán viñan con sombreiros

María do Cebreiro

A VACA

Mirabamos

con

atención

para

os

ollos

daquela

vaca

porque

eran

diferentes dos ollos de súas irmás, que durmían canda ela cada noite na

corte da

casa. Non

eran

ollos

mansos. Era

unha

vaca

guapa

coma unha muller (de feito tiña nome de muller), pero aos cativos dábanos medo. As outras, menos bravas, foran bautizadas co nome dos

furacáns.

que

levaba

Ela

na

sempre

tocada

que

día

un

tiña

man

a

pero

foran

os

cornos

avoa de

novas

Lola, saia

e

de

punta,

vestida

de

curta,

desde

logo

como

as

negro,

coa

cabeza

as

canelas

amosando á

vista

seguíano

fouciñas

sendo.

Unha tarde, despois de comer, o can de palleiro que gardaba a casa mordeu a cabeza do curmán máis novo e a avoa colleu a escopeta e rematouno. Foi unha aprendizaxe brutal: ás veces, entre a vida e a vida, hai que escoller. Sigo soñando esperta, resístome a medrar, como se soñando esperta aínda me fose posible chegar a algunha parte. E volvo ver a casa humilde pero rexa: a lousa arriba, a pedra abaixo («e

eu

dígovos

que

se

eles

calan,

as

pedras

falarán»),

madeira

nos escanos da cociña e no segundo piso, onda o cuarto do avó, a

vella

fotografía

de

época

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na

que

todos

espreitan

para

o

ollo

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María do Cebreiro

da cámara vestidos de festa, as mulleres con medias dun só día, medias caras das que ningunha fotografía nunca falará. (Unha mañá, diante

da

residencia,

miña

nai

viu

pasar

unha

muller

coma

elas

e dixo: «esas mulleres coas súas medias de seda, toda a súa vida ás

costas»).

A

casa

da

que

veño,

a

que

nunca

foi

miña.

E ti vésme buscar precisamente alí, sen entender apenas de alianzas, sen entender quen viña sendo quen en cada cuarto, o nome dos curmáns, a natureza da trama que nos ata. Á porta da casa (o máis importante das casas son os adros) hai tinas cheas de uvas. Os meus parentes pisan o bagazo e ti vésme buscar, e sabes de memoria todas as palabras que,

antes de

coñecerte,

eu

escribín nun

pequeno

caderno verde,

como se foses quen de entender o que quería dicir e como se puideses responderme: «Dime, quen nos sostiña cando volviamos da lúa da colleita, da lúa de desherbar? Na nosa familia non houbo coroneis, senón soldados. Non houbo carne, senón patacas nos petos dos abrigos e nin sequera unha que non tivese ollos. Quen mirará por nós a través dos ollos das patacas? Quen falará dos retratos familiares en branco e negro, levemente

coloreados

(tantos

irmáns

que

non

collen

no

encuadre),

da ferruxe dos somieres que alindan as fincas, da roupa a clarear, dos ritos do verán, da emigración, das loitas (figuras roldando ao sol, riba do prado) entre os corpos dos homes e os corpos das mulleres?». Ti fas esas preguntas, que eu tamén escribira, e nas pingas de chuvia que vexo

a

ponla algo

espida moi

brande

fermoso,

como vexo

se o

fose tempo

a

punta da

ira,

dunha

lanza,

o

tempo

no que se fará xustiza neste mundo e os febles se volverán fortes e os grandes se verán obrigados a recoñecer a grandeza dos febles.

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vocativo [dos puntos] sin voz

María Salgado

vocativo [dos puntos] sin voz la poesía no es

vocativo sin voz [coma] yo he perdido la cara y te vengo a pedir _____ [aguda de dos sílabas] me siento, se sienta, bajo la marquesina igual, espera, espero un autobús igual hacia una dirección igual que vale una moneda y media de no el mismo valor pero igual circunferencia y media, por lo que voy, va, a guardar esta igualdad para ocasiones en que no estemos, no estén las dos bajo cubierto, son muchas, es simple, directo, real, no pretencioso tú que ahora no estás y yo que no estaré hagámonos hacérnoslo

XRCSM

de Jonas para Nilo, sigue, en el original [transcribo]: “and where is the personal, the small the small, the personal? […] where is the where are the places for the personal for the small […] for we are all [...] everything [x2] is for the big big galleries big art big events big big big” pero sí que los hay, de la Orquestina de Pigmeos, dice Jonas: “it was simple straight down to earth personal unpretentious real with no pretention to art but it was to me art / i liked it more than any of the art exhibitions events this year [risas de Jonas] anywhere here it is a glimpse of what i saw”

existir, digo, una presencia aquí un pedazo de lo que vi sobre este banco aquí, en

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María Salgado

este texto

barcelona, hoy, 26 de julio, 17:30 barcelona, hoy, 26 de julio, 19:00 barcelona, hoy, 27 de julio, 20:00 barcelona, hoy, 28 de julio, 20:00 barcelona, hoy, 29 de julio, 20:00

de Jonas [pronunciado en llana] para Nilo, dice “de vuelta en brooklyn… tras los viajes del primer verano, kassel atenas grecia la documenta berlín madrid y antes de irme a ny fui a sitios grandes y antes de ir a europa fui a la bienal del whitney y a no sé qué más grande, todo es tan grande, todo es sólo para lo grande”

en la droguería drogas legales drogas ilegales en el after antibiótico natural en comprimidos hidrocarburo en el mar medusas un nombre doméstico para los animales y para el campo recuerdos bien intencionados dinero. Y datos dinero. Y datos dinero. Y datos dinero y datos el mar, el campo, la ciudad todo y el resto datos. Y dinero datos. Y dinero datos. Y dinero. Y velocidad vacío virtual el agujero y medio en que

se sume la forma, este tipo de explosiones que nos por la A, traen información de una época, la nuestra, muy difícil de observar la er A de la p l A g A, podría ser terrible como Planetario de Madrid en la bi bli A pero es el mundo tal y como va 30 de julio a las 21:00 yendo, flor de lasca, la A, una lasca muy buena para clav A r en el A b d omen, Abandono, flor SUPERNOVA SUPERLUMÍNICA de A, un abandono muy bueno, por la B, violencia sostenida, la guerr A, las dos de A poc Más de tres veces más brillante que todas las A lipsis tal y como va yendo salvo en la isl A estrellas de nuestra galaxia juntas, ha sido dorad A de E U O A detectada a la asombrosa distancia de diez mil millones de años luz de distancia, de las más lejanas descubiertas hasta la fecha. En realidad se detectó a finales de 2015, se afonía [coma] sin voz [coma] por publica ahora el estudio que ha determinado vibración del cuerpo en el abdomen te estoy su asombrosa distancia. hablando [dos puntos] una lluvia de Gracia nos moja y se siente real aquí

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Este tipo de supernovas extremadamente luminosas, hasta cien veces más brillantes que las típicas, suelen tener su origen en estrellas poco “contaminadas” con elementos químicos procedentes de otras explosiones (estrellas de baja metalicidad), y suelen

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vocativo [dos puntos] sin voz

residir en galaxias enanas de baja masa, que con todo lo que falta y por lo que no sume lo que suena, la que no suena [la hache] son las que poblaban el Universo temprano. y la la que sí moja [la líquida] y yo y tú y es Curiosamente la supernova detectada ahora, reside en una galaxia más o menos normal y simple pequeño pequeño personal con bastante masa, lo que parece desconcierta a los descubridores. Hay que seguir investigando este tipo de explosiones que nos traen información de una época muy difícil de observar y muy importante en la “Exorcismo”, agosto de 2017, Sant Domenec evolución de las galaxias. 1. no al dinero en la forma 2. no a la transparencia panóptica 3. lengua no es información 4. hacia una igual 5. pero para mí esto es

Créditos y derechos de imagen: Universidad de California Santa Cruz/Observadores: D. Gerdes y S. Jouvel

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Tirso Vallecillos

Está el mundo como para callarse

Si pintas una pared de azul alguien creerá que la pared es azul o que siempre fue azul o que tiene que ser azul o que solo puede ser azul... Hay quien demostrará la existencia del mundo en el azul de la pared, quien incitará a una vida en azul y quien culpará al azul, por ejemplo, de nuestra propia suerte. Pues eso: que está el mundo como para callarse.

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Tirso Vallecillos

La subnormal Marta tiene cincuenta años y un peluche de Dora la exploradora. Su sobrino la lleva en una silla de ruedas: hoy no tiene clases obligó a sus padres a salir a dar un paseo (aunque sabe que al final dedicarán su tiempo a comprar hamburguesas, cera de depilar y silicona). Cincuenta años y Marta todavía no ha perdido ni la espontaneidad ni la sonrisa. Su hermano tiene la espalda destrozada de cargar con ella. Su cuñada no puede hacer esfuerzos —se lesionó en la ducha: Marta se le cayó encima— pero la cuida como si fuera su hermana. Aunque sus trabajos son buenos, malviven porque con bastante frecuencia, más de la asimilable, es imprescindible contratar ayuda externa. Últimamente se preguntan qué será de Marta cuando falten (pregunta que heredaron de sus padres). Entonces, recién llegada de la peluquería acompañada por tres personas, las tres a su entera disposición veinticuatro horas... aparece La subnormal la llamamos así porque es la palabra que pronuncia cuando baja del coche oficial y se lanza hacia Marta justo antes de acariciarla sonriendo a la cámara justo antes de sentir una ovación de los que allí se encuentran justo antes de mirarse la mano para comprobar quién sabe qué. Luego se aleja, se hace cargo de lo que ha visto toma una importante decisión y añade mentalmente “Manicura” a su complicada agenda.

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Aforismos Muchos forenses podrían certificar que hay cuerpos que alcanzan el estado de “descomposición avanzada” solo con iniciarse en política. Los efectos colaterales son el gel de manos de la conciencia. Los políticos se ponen el listón muy alto para pasar por debajo con la cabeza muy recta. La responsabilidad política se dirime por subcontratas.

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Sara Uribe

Poema en que la enunciante recibe una invitación misteriosa y se encuentra en el camino al extraño hombre de las mandarinas y a la mujer que creía que el lenguaje todo había sido dictado ya desde el inicio de la eternidad

[Who needs poetry?] [Eso era lo que decía el sobre rotulado en el que me hicieron llegar una invitación a pertenecer a un taller de poesía ultrasecreto al que todos asistirían con máscaras y en el que nadie hablaría sino que toda comunicación se ejecutaría a través de ordenadores y proyectores instalados en un caserón en penumbras] -----------Ella mentía. Ella siempre mentía. El sobre era más bien un correo electrónico y el sello lacrado el subject con la afirmación dances never take place in the morning [Ajá, sí, pero who needs poetry? Pensó ella, justo en el momento en que el chico que se sentó a su lado en el autobús extrajo de su bolso un libro que versaba sobre la grandeza de los lores de la droga y sacó también una mandarina la cual fue pelando y engullendo mientras daba vuelta a las páginas del libro y las pequeñísimas gotas de jugo que brincaban de la cáscara a sus dedos quedaban impregnadas en los márgenes de las hojas

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Sara Uribe

---------el hombre de la mandarina (ella lo veía como un chico, pero él se juzgaba a sí mismo más bien como un hombre) miraba a su vez el libro que ella llevaba en las manos: en la portada había una mandarina y unos gajos y un título que a él le pareció aburridísimo, sobre todo, si de hablar de mandarinas se trataba: Who needs poetry?] ---------Ella quiso responder desde un principio que no acudiría al llamado de una cofradía poética ultrasecreta, pero todas las excusas que se le vinieron a la mente involucraban algún tipo de escenario postapocalíptico o ya las había usado antes. [En realidad estaba aburrida, aburrida de aburrirme, por eso fue que contesté que sí, que iría con una máscara del Conde Pátula o del Santo o de V de Vendetta] ----------- Ella les está mintiendo otra vez. Ella nunca confirmó su presencia en lo que más que otra cosa parecía ser una fiesta de adolescentes tardíos. [Puede ser que les haya mentido, porque who needs poetry?, en serio. Pero lo cierto es que esa noche sí fui a la dirección del correo electrónico y sí entré a la casa en penumbras y sí había un montón de escritores, es decir ESCRITORES, con mayúsculas, en masculino, con mucha mucha mucha testosterona para derramar por todos lados. Pero también estaba la mujer bajita, la de mis sueños o al menos se parecía a ella, es decir, se veía casi como mi madre. Ella estaba al fondo de un pasillo y llevaba un sombrerito que lucía al mismo tiempo ridículo y tierno y que inevitablemente me hizo evocar la última vez que vi a Carmen Alardín y la fotografía que nos tomamos juntas en su patio. Esa presencia invocada me hizo preguntarme si yo quería en verdad detener a los elefantes o, por el contrario, deseaba ser aplastada por ellos, en esa esquina del mundo donde nadie parecía en verdad necesitar de la poesía, donde una mujer escribía, no en una de las computadoras para que sus palabras fueran vistas en las paredes sino en una pequeña libreta, que cada una de las palabras que escribimos y podríamos escribir en el futuro fueron ya pensadas y dichas y redactadas por algo que algunos llaman destino, pero ella insistía en nombrar como el perdido arte de la adivinación de las sombras de los cetáceos.

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Carlos Villacorta Gonzáles

FUKUSHIMA/ OROYA/ UNA CARTA DE AMOR

Es terrible torturar a la naturaleza ver a los peces mutar, abrir su tercer ojo de mercurio como un Buda iluminado por la luz del nuevo siglo. Hasta aquí hemos llegado abrazados sofocados por la máscara que se ha adherido a nuestro rostro el mundo aparece delante de ella se quiebra y es hermoso.

¿CUÁNTO PIERDE UN POETA CUANDO ESCRIBE UN POEMA? 1. Quizás Robert Desnos muerto en un campo de concentración después de su liberación. 2. Frotar los huesos del muerto en París y con su fuego calentar la carne y los músculos, el perro corazón o el hambre que tiene los mismos sonidos del órgano estomacal.

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Carlos Villacorta Gonzáles

3. Salvar el cuerpo de Li Po de las aguas del Yangtzé donde, devorado por la Luna, escribió la belleza del reflejo. 4. Aquella noche de los poetas asesinados, a tantos les quebraron los versos, luego las palabras, finalmente quedaron las vocales: a, i. 5. De Ezra Pound fanático enterrado en la locura de las piedras de Saint Elizabeth. 6. Los pájaros que comen de nuestra mano o de la mano de Neruda. 7. ¡Cuántas terapias eléctricas iluminaron tus versos, Moloch! 8. Dos veces sonó el gatillo, y por los aires volaron Delmira, cada página, cada anillo de compromiso. 9. Lorca, Lorca, Lorca. He llegado a la línea donde cesa tu nostalgia. 10. Pasolini, dentro de tu gracia, nace mi angustia.

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Poética e Política sin Mundo

Poética y Política sin Mundo

Antonio Méndez Rubio Universitat de València

Resumen: La relación entre poética y política se da hoy fracturada por un mundo a su vez fracturado, en crisis. Esta incomunicación entre lo poético y lo político se desplaza a menudo, de una forma sublimada, hacia la relación entre estética y ética. Pero lo más frecuente es que poiesis y politeia estén aprendiendo a subsistir en una soledad que las condena a la esterilidad. En los límites de una subjetividad perforada por nuevas formas de presión, este artículo busca responder a la cuestión: ¿qué opciones quedan para que la creatividad se convierta en una nueva forma de comunicación, de vínculo crítico? A esta pregunta se intenta responder reconsiderando los condicionantes teóricos y pragmáticos de la relación entre poética y política, entre soledad y comunidad. Palavras Clave: Poética, política, estética, poiesis, politeia, soledad, comunidad Abstract: The relationship between poetics and politics is fractured due to being in a world equally fractured, in crisis. The resulted split moves poetics and politics towards a so-called (and often sublimated) relationship between ethics and aesthetics. In fact, it seems that poeisis and politeia are learning to survive in a sterile and confine solitude. In the limits of a subjectivity bored by new ways of pressure, this article seeks to answer to this question: what are the options for creativity to become a new manner of communication and, most importantly, a critical link? The attempted answer will consider the current theoretical and practical circumstances of the relationship between poetics and politics, between solitude and community. Keywords: Poetics, politics, aesthetics, poiesis, politeia, solitude, community

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La relación entre poética y política, hoy día, se ve fracturada por un mundo a su vez fracturado, en crisis. Esta incomunicación entre lo poético y lo político se desplaza a menudo, de una forma sublimada, hacia la relación entre estética y ética. Pero lo más frecuente es que poiesis y politeia estén aprendiendo a subsistir en una soledad que las condena a la esterilidad. En los límites inseguros de una subjetividad perforada por nuevas formas de autoritarismo, depresión económica y desequilibrio social, una primera pregunta podría ser: ¿qué opciones quedan para que la creatividad se convierta en una nueva forma de comunicación, de vínculo crítico? Y, en este sentido, ¿se puede responder a esta pregunta sin antes reconsiderar atentamente los condicionantes de la relación entre poética y política, entre soledad y comunidad? De entrada, estas interrogaciones iniciales recuerdan el diálogo que se establece entre dos personajes (un aspirante a escritor y un ex-nazi) durante la parte final del film Falso movimiento (Falsche Bewegung) de Wim Wenders (1975). El primero afirma en tono desiderativo: “-Ojalá lo político y lo poético pudieran ser una misma cosa.” A lo que el segundo responde con frialdad: “- Sería el final de la nostalgia. Y el fin del mundo.” Dejando aparte la tentación apocalíptica, este fragmento de diálogo sigue siendo significativo. Actualmente se extiende una experiencia de expropiación o sustracción, de pérdida de mundo, que se deriva de múltiples factores pero, especialmente, de cómo la crisis económica influye en lo más profundo del “sentir de la gente” (Stiglitz 2015: I). De hecho, se estima que el crack económico y político datable en torno a 2010 ha llevado a escala global un nuevo episodio de Gran Recesión que reproduce los contextos de colapso acontecidos previamente en las décadas de 1930 y 1970 (Stiglitz 2015; 2010).

¿Crisis estética o poética crítica? La crisis económica y sociopolítica es además una crisis de las formas heredadas de entender el mundo, es decir, una ocasión para la crítica epistemológica y la creatividad conceptual. Por supuesto, el pantanoso y magnético terreno del arte experimenta también su crisis mundana de una manera que no puede desligarse de la crisis general y vital del momento: cualquier forma de crisis particular participa como reflejo y también como interferencia activa en la crisis general. En este sentido, “la apuesta, aquí, no solamente

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atañe a las cosas del arte, sino a las maneras por las cuales hoy nuestro mundo se dispone a discernir y los poderes afirman su legitimidad” (Rancière 2012: 26). Desde esta perspectiva, Jacques Rancière ha planteado la cuestión del malestar en la estética como una oportunidad histórica para la crítica de los regímenes de la sensibilidad así como de los dispositivos de pensamiento que nos hacen pensar este sensorium de maneras específicas. La crisis de la estética implica a su vez una crisis de la poética como modo práctico y creativo de concebir lo político. Pero son justamente estas implicaciones las que habría que clarificar para poder avanzar de forma crítica por esta vía. Para Rancière, las transformaciones del arte a lo largo del siglo veinte tienen que ver con la crisis del paradigma mimético como orden representativo que “ajustaba las reglas del arte a las leyes de la sensibilidad y las emociones de éstas a las perfecciones del arte” (2012: 22). Más al fondo, la erosión de la figuración mimética implicaría el desgaste de la legislación que armonizaba la poética y la estética, lo que contribuiría a la reapertura crítica de la relación entre poiesis y aisthesis como mecanismo de orden filosófico y político. De esta desestabilización se habría seguido, en fin, un énfasis en la estética que desembocaría en la oscilación entre las concepciones no-éticas e hiper-éticas propias del arte post-utópico contemporáneo. Según como Rancière considera la concepción estética moderna, Las bellas artes son tales porque las leyes de la mimesis definen en ellas una relación reglamentada entre una forma de hacer –una poiesis- y una forma de ser –una aisthesis- que se ve afectada por ella. Esta relación de a tres, cuyo garante se llama “naturaleza humana”, define un régimen de identificación de las artes que he propuesto designar “régimen representativo”. El momento en que el arte sustituye con su singular al plural de las bellas artes y evoca, para pensarlo, un discurso que se llamará “estético”, es el momento en el que se deshace ese nudo de una naturaleza productiva, de una naturaleza sensible y de una naturaleza legisladora que se llamaba mimesis o representación. (2012: 16)

Al mismo tiempo, la realidad o “naturaleza” que armonizaba las obras individuales con las sensibilidades sociales regulaba además las formas de otorgar estatus simbólico y colocaba al artista en un lugar propio, separado y privilegiado en la sociedad (2012: 23). De ahí se habría seguido un efecto de elitismo del arte que, así las cosas, no procede

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intrínsecamente de la práctica artística sino más bien de la forma en que el fenómeno artístico era regulado y socializado en tanto fenómeno mimético y propiamente estético. La institucionalización del arte durante la modernidad europea en los siglos XVIII-XIX, como se sabe, implicaría la activación de dispositivos ideológicos y pragmáticos de distinción y exclusión social. Desmantelar dichos dispositivos, siguiendo la argumentación de Pierre Bourdieu, conlleva necesariamente una “renuncia al angelismo del interés puro por la forma pura” (1995: 15), es decir, una puesta en diálogo de las condiciones internas y supuestamente externas al circuito artístico. Este cuestionamiento dialógico debería ser capaz de poner en crisis el falso movimiento heredado por pre-conceptos y pre-juicios que obturan la comprensión de las relaciones entre política y poética. Siguiendo a Bourdieu, la soledad es a la vez la primera condición y la primera consecuencia de este gesto crítico: El cuestionamiento de las formas de pensamiento vigentes que efectúa la revolución simbólica y la originalidad absoluta de lo que engendra tienen como contrapartida la soledad absoluta que implica la transgresión de los límites de lo pensable. (1995: 151-152)

Aunque resulten en exceso enfáticos términos como “revolución” o incluso “originalidad” se puede deducir de aquí, en efecto, que la crítica simbólica que implica en gran medida buena parte del arte contemporáneo podría estar quedando neutralizada por la posición de soledad que socialmente ocupa. Por su parte, esta soledad no puede separarse de la concepción ilusionista o “angelista” que el propio arte legitima, desde luego, pero que también se ve respaldada por la subsunción de la práctica artística (entendida como práctica poética, creativa) dentro del régimen (desde Kant, supuestamente desinteresado) de lo estético. La referencia al campo del poder se vuelve así inevitable de cara a entender cómo cada campo de lo estético, artístico o poético produce una forma específica de illusio que cumple una función estratégica para la lógica del campo pero que, al mismo tiempo, tiende a ocultar justamente el problema del poder, de hasta qué punto “la verdad es un envite de luchas” (Bourdieu 1995: 436). Observando en conjunto el siglo XX, del teatro de Bertolt Brecht a las fotografías de Rineke Dijkstra o las videoinstalaciones de Bill Viola, pasando por el cine de Jean-Luc Godard, entre otros casos sintomáticos, Rancière incide en cómo

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el arte no es político, en primer lugar, por los mensajes y los sentimientos que transmite acerca del orden del mundo. No es político, tampoco, por la manera en que representa las estructuras de la sociedad, los conflictos o las identidades de los grupos sociales. Es político por la misma distancia que toma con respecto a sus funciones, por la clase de tiempo y de espacio que instituye, por la manera en que recorta este tiempo y puebla este espacio. (2012: 33)

El arte es político por el modo en que se vincula a la vida en común, y este vínculo se debilita tanto por el recurso museístico (que pretende un espacio absolutamente fuera de lo cotidiano) como por el recurso participativo o relacional (que busca un lugar para el arte absolutamente interior con respecto a la vida pública diaria). Pero la raíz política del arte, de lo poético, subsistiría respirando todavía en la imposibilidad de sostener ninguna espacialidad ni absolutamente exterior (o sociológica) ni absolutamente interior (o estética). Esta imposibilidad es a la vez pre-condición de un entre o in-between comunicativo que articule de un modo otro, sin identidad, un diálogo productivo (y no meramente reproductivo) donde soledad y comunidad se escuchen mutuamente. Rancière ve necesario aclarar que “la política consiste en reconfigurar el reparto de lo sensible que define lo común de la comunidad […]. Este trabajo de creación de disensos constituye una estética de la política” (2012: 35). En este punto Rancière realiza dos gestos entrecruzados: por una parte, conecta lo artístico con la práctica del disenso contra la dominación y relaciona esta crítica con cómo “la libertad del juego se opone a la servidumbre del trabajo” (2012: 42). Mallarmé, Schiller o Rimbaud ilustrarían hasta qué punto un juego de lenguaje, o huelga o acción libre, pueden suponer refutaciones prácticas de la dominación política. Por otra parte, en Rancière, la relación entre arte y política se sigue formulando en clave estética, como “una estética de la política” (o política estética) que sigue hablando en nombre del momento poético que había quedado reactivado por la crisis del paradigma mimético –pero que parece desalojado por esta insistencia filosófica en el campo estético. El vínculo entre poiesis y aisthesis es tan crucial como su diferencia, que Rancière subraya reconociendo a este último término (lo estético) la condición ontológica de los “modos de ser” y al primero (lo poético) la condición pragmática de los “modos de hacer”. Sin embargo, la reivindicación que hace Rancière de una crítica de la estética le hace

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focalizar esa misma dimensión estética a la vez que relegar a un segundo plano la cuestión poética. De ahí que se le pueda objetar, como ha hecho Henri Meschonnic, que este énfasis en lo estético implica una ceguera o sordera ante la práctica poética, y que “este control de los filosofismos sobre la poesía es intolerable” (2007: 62). La zona de la poética podría aquí equipararse al ámbito común de la creatividad lingüística, simbólica, pero su integración en el código de la estética hace que lo poético quede emplazado no tanto al nivel de lo político sino bajo la supervisión o el control de la filosofía (por muy política que esta filosofía pretenda ser). Si, por una parte, la argumentación de Rancière supone un avance en la crítica actualizada de la dimensión estética también, por otra parte, podría entonces pensarse que su enfoque desatiende el papel de la función poética en este orden de cosas. En efecto, como Rancière afirma, “arte y política se encuentran ligados a pesar de sí mismos, como formas de presencia de cuerpos singulares en un espacio y un tiempo específico” (2012: 36), esto es, son mutuamente dependientes de la misma forma que lo son la autonomía y la politización. Claro que arte y política comportan dos realidades que “deben ser puestas en relación”, pero la forma de esta relación se juega de manera distinta (por no decir contraria) si se antepone la dimensión poética (pragmática y política) a la dimensión estética (ontológica y filosófica) del problema, o si sucede al revés, como de hecho sucede en los debates al uso. En otras palabras, si no se tiene esta precaución en cuenta, se corre el riesgo de que, tras una voluntad crítica supuestamente radical, el paso tan metafísico como autoritario de Platón siga reproduciéndose de forma tan imperceptible como eficaz. En tanto “la política misma resulta excluida por el gesto platónico” (Rancière 2012: 36) ¿en qué medida excluiría la política un supuesto primado de la estética sobre la poética?

La poética en la práctica Ya Ludwig Wittgenstein en sus Investigaciones filosóficas (original de 1952) apreciaba que hay que enfrentarse a “problemas filosóficos cuando el lenguaje se va de vacaciones” (IF, 38), a la vez que defendía analíticamente que un juego de lenguaje va unido a una forma de vida (IF, 23). Pues bien, la fórmula de un-lenguaje-que-se-va-de-vacaciones no está muy lejos de la reivindicación de la dimensión libertaria, no necesariamente reproductiva ni instrumental, que pone en juego la función poética (Jakobson 1985). Si ya la politeia griega

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era una apelación a la convivencia y las formas distintas de estar juntos, entonces la política puede ser entendida como el arte de la reunión. Lo político interactúa así con el distanciamiento y la rearticulación del tiempo-espacio que hace posible la poiesis. Como sístole y diástole, política y poética se necesitan recíprocamente sin confundirse en una unidad ni totalidad ideal –por mucho que esta confusión neutralizaría angustias y conflictos muy frecuentes. Poética y política se buscan en la medida en que ambas comparten su mutua pertenencia a las exigencias de la praxis, es decir, cuando tienen en común la urgencia de formar y transformar el mundo común. De esa búsqueda dependería que la función poética, por decirlo así, funcione realmente como “función polémica” (Rancière 2012: 67). Es como si el giro ético en boga a comienzos del siglo XXI debiera contrastarse con un giro práctico que quizá siga todavía pendiente en la filosofía política. Este giro práctico, por paradójico que parezca, debería asumir la soledad como punto de partida, en la medida en que ya “la soledad de la obra lleva consigo una promesa de emancipación” (Rancière 2012: 49). La soledad interviene así como una especie no de horizonte pero sí de exigencia: exigencia de asunción de los límites de un mundo impuesto, que se realiza institucional y cotidianamente como tal. Por lo demás, no puede obviarse el aviso de Gramsci: “En principio, una filosofía de la praxis sólo puede presentarse con una actitud polémica y crítica” (2011: 54). Parece claro que, como indica Rancière, “la política consiste en reconfigurar el reparto de lo sensible que define lo común de la comunidad” (2012: 35). La cuestión, sin embargo, tiene aquí que ver con si “lo sensible” ocupa solamente la posición de objeto (cuyo sujeto sería por ejemplo el saber filosófico o estético) o también de sujeto. Lo sensible-sujeto, así considerado, podría entonces actuar a modo de proyector de una “energía transferible” (Eidsheim 2015: 16) que no fuera políticamente inofensiva. En condiciones de desfondamiento de las condiciones de vida existentes esta crítica, en fin, no puede no ser autocrítica si su horizonte es refundar nuevas comunidades políticas en condiciones de precariedad extrema. La vida precaria, al contrario de lo que se pretende que sea fácil creer, no aleja sino que vuelve inminente la cuestión de la alteridad, en tanto comienza por preguntarse: “¿Qué soy sin ti? Cuando perdemos algunos de estos lazos que nos constituyen no sabemos quiénes somos ni qué hacer” (Butler 2006: 48). En otras

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palabras, la precariedad afecta tan radicalmente a los modos de ser como a los modos de hacer, y tal vez conlleve repensar en común cuáles de estos modos han de priorizarse o si fuera viable entender la comunidad sin jerarquías entre unos y otros. Puede que así, como alguna vez ha apuntado la poeta Adrienne Rich, la experiencia artística ayude, aún mejor que hasta hoy, a “elaborar nuestra capacidad de conectar con otras gentes asediadas, sufrientes, privadas de privilegios” (2005: 88) que han tenido que hacer de la precariedad una resistente, nueva y entera forma de vida. La hipótesis que aquí se plantea es que, en la filosofía moderna, poética y estética se hayan confundido supeditando la primera a la segunda. Esta supeditación, a su vez, podría estar bloqueando la dimensión política y crítica y de la poética. De ahí la necesidad de clarificar la diferencia entre poética y estética. Volviendo a Rancière, puede reconocerse con cierta claridad aquí una diferencia y a la vez relación (una diferencia en relación) entre dos elementos. De una parte, en lo que se refiere a la poética, un elemento de poiesis entendida como “forma de hacer” (Rancière 2012: 16), como práctica creativa que se realiza de modos específicos (verbales, visuales, sonoros, espaciales…) mediante cada arte o técnica (tecné). De otra parte, en cuanto a la estética, un elemento de aisthesis definida como “forma de ser” (2012: 16), como mecanismo de reconocimiento o identificación que engloba todas esas artes o modos poéticos de creatividad situándolos como tales (en contraste con otras prácticas y/o discursos sociales de tipo jurídico, científico, éticos…). La estética establecería así una relación con la poética que permitiría a ésta ser pensada y reconocida filosóficamente. La estética activa así “un régimen de identificación de las artes” (2012: 16) mientras la poesía tiende a considerarse como una de esas artes particulares (en concreto, la que trabaja con la materia verbal). Es en este momento cuando se instaura una jerarquía teórica que sobrepone lo estético a lo poético en la medida en que lo primero es condición sine qua non para entender, explicar y regular las actividades y efectos sociales que implica lo segundo. Pues bien, a la vez que se aprecia aquí “una relación reglamentada” (Rancière 2012: 16) entre estética y política se podría entonces apreciar, al tiempo, que esta relación las desborda a ambas para situarlas en el entramado de las prácticas sociales. Es decir, es una relación que podría considerarse política en un sentido fundamental. En sentido clásico, un

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“régimen representativo” de tipo mimético absorbe políticamente la potencia de la poética en tanto forma de hacer, hacer-dar-forma, trans-formar… es decir, en tanto praxis constitutiva de la dinámica y el cambio sociales. Encapsulada en el reglamento de identificación que funda el pensamiento estético la poética podría así estar viendo limitado el alcance de sus capacidades funcionales (Jakobson 1985) así como de sus efectos sensoriales y corporales, tal como se desprenden de una concepción del sonido como “práctica vibratoria” (Eidsheim 2015: 17). La materialidad funcional y efectiva del sensorium poético verían limitado su margen de maniobra al circular en el interior de un dispositivo filosófico e ideológico, y más concretamente, de carácter tradicionalmente idealizante o metafísico. La capacidad polémica y crítica de la poética (como creatividad socioartística) se aleja así de su condición de praxis (en el sentido gramsciano, por ejemplo) a la vez que la estética tiende históricamente a institucionalizarse como reglamento de legitimación de lo poético. En consecuencia, en la modernidad tardía puede esperarse una potenciación o empowerment de la estética que tienda a reforzar su legitimidad y autoridad política. Una formulación extrema de este problema se detecta en la era de las vanguardias artísticas y la crisis socioeconómica y política durante el primer tercio del siglo XX. Un célebre documento de este contexto crítico es el “Epílogo” de Walter Benjamin a su ensayo La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica (original de 1936). Benjamin comienza discutiendo la proclama futurista “fiat ars, pereat mundus” (“hágase arte aunque se pierda el mundo”) vinculándola al ascenso del fascismo, dado que es el fascismo el régimen político que mejor ilustraría la función de la estética a la hora de sublimar la crisis real y neutralizar respuestas revolucionarias o críticas a esa crisis. “Así sucede con la estetización de la política que propugna el fascismo. Y el comunismo. Y el comunismo le responde por medio de la politización del arte” (2012: 85). Menos citada, por lo demás, es esta otra afirmación de Benjamin al principio de ese mismo “Epílogo”: “El fascismo ve su salvación en el permitir que las masas se expresen (en lugar de que exijan sus derechos)” (2012: 83). Esta hipóstasis de la expresión puede estar dándose dentro de una ideología característica del individualismo moderno según la cual la poeticidad se define en última instancia como expresividad. La distinción pragmático-

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lingüística planteada por Jakobson entre función expresiva (centrada en el emisor) y función poética (centrada en el mensaje) se disuelve aquí en favor de una preponderancia de la primera en perjuicio de la segunda, a la vez que los aspectos dialógicos y comunicativos del mensaje-lenguaje se ven desplazados por el poder creciente de los aspectos monológicos e incluso exhibitivos de la función expresiva (que por cierto encuentra un inesperado eco de actualidad en el eslogan publicitario de Facebook: “¡Exprésate!”). Esta subsunción moderna de lo poético en lo expresivo podría ser homóloga a la que, desde la filosofía clásica, vendría enmarcando la poética en la estética. El saber y la actividad estética desembocarían así en un “giro ético” (Rancière 2012) que pone el foco en la exposición de mensajes cuyo valor de verdad reside en el lugar del emisor individual. Claro está entonces que “la estética conlleva una política o una metapolítica” (Rancière 2012: 25) y que, más concretamente, esta política puede estar implicando y movilizando los comportamientos generales del individuo-masa. En este sentido, la preeminencia de la política sobre la poética arrancaría desde la caracterización platónico-aristotélica del logos entendido como saber racional autorizado. No extraña pues el reclamo de la censura sobre la poética defendido por Platón en La República (en griego Politeia), ni tampoco el cuidado puesto por Aristóteles a la hora de reducir (siguiendo a Platón) la poética a su carácter imitativo o mimético y, simultáneamente, acotar el radio de acción poética a la poesía ya entendida como técnica verbal y representativa determinada. Para Aristóteles la poética adquiere valor en el interior de la tragedia como arte dramático, escénico, y también de la epopeya como “imitación de personas serias” (Aristóteles 2013: 1449b; 46). La poesía en su sentido moderno de arte combinatorio verbal, según Aristóteles, “por el momento sigue sin nombre” (2013: 1447; 36), se convierte en una especie de agujero negro del discurso filosófico. En cuanto a la música, la apelación aristotélica a la seriedad y la autoridad se observa en su clasificación de los modos musicales en relación con la educación pública de los jóvenes, concluyendo que el modo dorio, siendo el más suave y regular, resulta el idóneo y superior ya que “todos reconocen que es la armonía más firme y que presenta un carácter más varonil” (2013: 1332b; 438-439). Si, además, esta apelación a la masculinidad se da conectada con un ensalzamiento de los señores sobre los esclavos por el expediente de que

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aquellos son libres y éstos no “por naturaleza” (2013: 1255a; 126)… todo parece indicar que la elaboración germinal en Occidente de la relación entre poética y política nace atravesada por condicionantes de poder, de clase y género, que podrían haber pervivido en desarrollos posteriores de dichos conceptos y debates. La relación entre poética y estética se presenta así como cuestión política de primer orden. A la vez, la neutralización política de la poética en favor de la estética podría contemplarse como un gesto definitorio de una política autoritaria o fascista. La renuncia apolítica al mundo (fiat ars, pereat mundus) encontraría en la estetización de la vida un poderoso mecanismo para esterilizar el desafío específicamente poético de hacer-mundo, dar-forma o trans-formar el mundo de la vida en común. En el violento salto cronológico que va de los siglos V-IV a. C. a los siglos XX-XXI hay, entre otros muchos, un lugar singular para comprender este desarrollo ideológico en los Principios de ciencia nueva de Giovanni Battista Vico, fechados en 1725. La Scienza Nuova de Vico es revisitada y actualizada críticamente, a su vez, en un ensayo de Edward Said incluido en su obra sintomática titulada El mundo, el texto, el crítico (2004). El ensayo en particular de Said se titula “Sobre la repetición”: Para Vico, la repetición es un principio de economía que proporciona a los hechos de su facticidad histórica y a la realidad su sentido existencial. […] A esta metáfora de engendramiento, cuando se extiende a lo largo de toda la actividad humana, Vico la denominó poética; porque los sujetos son sujetos, dice Vico, porque son productores, y lo que hacen antes que cualquier otra cosa es a sí mismos. Hacer es repetir; repetir es saber debido a que algo se hace. (2004: 158-163)

La dialéctica entre sujeto y mundo aparece aquí, como si dijéramos, enganchada a su vez a la dialéctica entre repetición y función poética. Este enganche admite ser elaborado como un recurso táctico clave para entender el funcionamiento poético musical de las emociones y la comunicación social (Margulis 2014: 14). Así mismo, además, como recuerda Said, la relación entre mundo e (inter)subjetividad depende necesariamente de una cierta dialéctica entre repetición y novedad. Como señalaría Freud, en un plano psicoanalítico “la novedad será siempre la condición del goce” (2017: 129). Y más en concreto: “en la vida anímica existe una obsesión de repetición que va más allá del principio del placer” (Freud 2017: 113). Desde esta

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perspectiva, el Yo, como depósito y motor libidinal, se proyecta hacia su objeto (des)haciéndose a sí mismo, al tiempo que su deseo traspasa espectralmente la realidad. En el caso de que esa energía del sujeto quede permaneciendo retenida en sí mismo tendríamos entonces que vérnoslas con el narcisismo (Freud 2017: 148). Esta apreciación recuerda directamente el diagnóstico de Colette Soler (2013: 125) a propósito del narcisismo del mundo actual: el narcisismo, tan pujante por cierto en redes digitales como Facebook o Instagram, hace síntoma de una angustia creciente propia de un mundo dañado, en crisis. ¿A qué se debería pues este posible ensimismamiento o encapsulamiento que esteriliza las opciones de unir (creativa y críticamente) lo poético y lo político, incluso el lazo inconsciente pero decisivo entre la soledad y lo común (o la comunidad) (Alemán 2012)? ¿Dónde comienza a producirse esta especie de neurotización autocomplaciente del deseo que esteriliza el goce dentro de una dinámica de incomunicación tan cotidiana como sistémica? ¿Cuál es la causa y el efecto de la tiranía del selfie? Estas preguntas son sintetizadas en el vídeoclip de Moby & The Void Pacific Choir “Are you lost in the world like me?” (2016): en esta canción la intersubjetividad (you/me) se vive en un régimen de crisis y vértigo al perderse en un mundo también perdido, expropiado o extraviado por la saturación tecnológica, las conductas de masa y la soledad como experiencia común.

Crisis, subjetividad, poeticidad Es importante insistir en este punto sobre la dinámica subjetiva para resituar la cuestión de las relaciones entre lo poético y lo político. Señala Freud que “la libido coincidiría con el eros de los poetas y filósofos, que mantienen unido todo lo animado” (2017: 146). Es decir, desde el análisis psíquico, la poesía (y teoría) im-pulsa (y es impulsada por) una necesidad de unión, de re-unión, (se) nutre (de) una necesidad de polis, del mismo modo que la función libidinal consiste así en una “actividad constructiva”. Sin embargo, si el espacio de la comunicación (intersubjetivo, social) se satura de “impresiones penosas” (Freud 2016: 184) entonces se impondrá un “impulso defensivo elemental […] sólo comparable al reflejo de fuga ante los estímulos dolorosos, como una de las principales bases de sustentación de los síntomas histéricos” (2016: 184). Freud elabora en diversos pasajes la reflexión sobre este “dispositivo protector contra las excitaciones” (2017: 118). Se

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ponen así las bases analíticas para entender el acorazamiento de la (inter)subjetividad contra la crisis social (política, económica, cultural). Esta coraza contra el dolor, dado su efecto de parálisis e insensibilidad, de hecho refuerza paradójicamente la crisis común de la que intenta huir, entrando en una inercia auto-represiva que funcionaría a modo de coraza protectora-agresiva. Siguiendo con Freud, no parece anecdótico que su estudio Más allá del principio del placer (1920) esté fechado justo antes de su conocido ensayo titulado Psicología de las masas (1921). En el primero de estos textos se lee que este dispositivo de acorazamiento se asemeja a la paradoja de una vesícula viviente, lo que queda constituido por el hecho de que la superficie exterior de la vesícula pierde la estructura propia de lo viviente, se hace hasta cierto punto anorgánica y actúa entonces como una especial envoltura o membrana que detiene las excitaciones, esto es, hace que las energías del mundo exterior no puedan propagarse sino con sólo una mínima parte de su intensidad hasta las vecinas capas que ha conservado su vitalidad. La capa exterior ha protegido con su propia muerte a todas las demás, más profundas, de su análogo destino. […] Puede intentarse considerar la neurosis traumática común como el resultado de una extensa rotura de la protección contra las excitaciones. (2017: 118-119)

La consecuencia que más inmediatamente se extrae de esto es “el carácter paralizante del dolor” (2017: 123). Este diagnóstico psico-cultural converge de hecho con un poema de Adrienne Rich que dice: “El dolor la convirtió en conservadora. / Allí donde los fósforos tocaron su carne, ostenta una cicatriz” (Rich 1986: 47). En estos versos la crisis subjetiva es enfocada desde el prisma ideológico y físico. Este enfoque (el poemario de Rich, The Will to Change, se publicó en 1971) entronca también con la denuncia simultánea de un nuevo fascismo por parte de Pier Paolo Pasolini, fascismo cuyo ascenso hacia 1970 correría en paralelo a una sociedad que compensa con el consumo compulsivo y el disfrute conformista de los mass-media su tendencia a agudizar la “neurosis general” (Pasolini 2009: 121). La hipótesis de un dispositivo protector o coraza de carácter la formularía más extensamente Wilhelm Reich en su esfuerzo por articular marxismo y psicoanálisis tal como se aprecia en sus dos ensayos Análisis del carácter (2010) y Psicología de masas del fascismo (2014), ambos publicados por primera vez en una fecha clave como 1933. El argumento

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analítico de Reich no era precisamente amable: el ascenso del fascismo no se debía ni a un accidente histórico ni a una confabulación cortesana, ni a un delirio sin sentido ni a una coyuntura efímera. Precisamente la experiencia de la crisis sistémica y social se habría dado en combinación con experiencias de crisis emocional, corporal y sexual tanto en el plano individual como colectivo. Para Reich, el signo más evidente de esta “peste emocional” y del sufrimiento del sujeto-masa o “individuo-plaga” (2015: 29) es la formación inconsciente de una coraza de carácter cuya función sería suturar o taponar de forma superyoica, y finalmente agresiva, la experiencia de crisis (la crisis de la experiencia) del yo. Por eso en esa coraza caracteriológica “la defensa narcisista encuentra su expresión concreta crónica” (2010: 71). En tono interpelativo declara Reich: “la llegada de Hitler al poder estaba ligada a tu carácter acorazado” (2015: 62). El esquema analítico reichiano no es tan simple como para postular que la crisis sistémica produce una crisis de la subjetividad, ni tampoco a la inversa. Lo que se plantea es más bien la necesaria interacción entre ambas dimensiones (sistémica y subjetiva, o, como diría poéticamente A. Rich, política y corporal) a la hora de entender tanto los fundamentos de la crisis social como, peor aún, la reacción social hacia un agravamiento de las condiciones opresivas del sistema y una derrota cada vez más dolorosa del deseo de vivir. O sea, la reacción de la sociedad hacia una vida social cada vez más dañada, cada vez más invivible –y esto a pesar de la oferta de corazas que va desde las sagas de Batman o Iron Man al bono mensual de electrofitness, pasando por el acondicionamiento del cuerpo a la obsesión por la autoimagen o selfie. No en balde, como indica Susan Sontag: “El arte fascista despliega una estética utópica: la de la perfección física” (2007: 101). Para Sontag, la exaltación fascista de la falta de pensamiento y el rechazo de la labor intelectual vuelve urgente la necesidad de “detectar el anhelo fascista en nuestro medio” (2007: 106). En la “Introducción” a su manifiesto titulado ¡Escucha, hombrecillo! (1948) escribía Reich que cada cual “debe percatarse de cómo llega a convertirse en un fascista” (2015: 28). La idea es afilada, polémica, pero… ¿cómo percatarse de procesos fundamentalmente inconscientes? ¿Y cómo cambiarlos cuando son inconscientes debido a que configuran las estructuras sociales e institucionales? Pese al efecto de alarma que el diagnóstico de Reich produce, no deja de ser un reto pendiente considerar la vigencia de ese “pequeño fascista

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de todas las naciones, razas y clases” (2015: 50) que se hospedaría en el modelo contemporáneo de subjetividad. En este sentido, en fin, “la revolución no se afianza porque el portador y guardián de esta revolución, la estructura psíquica de los seres humanos no ha cambiado” (Reich 1993: 172). Es más, como insiste Reich, “la mayor parte de los seres humanos están sometidos al peso de esta coraza: un muro se alza entre ellos y la vida. Éste es el motivo principal de la soledad” (1993: 33). La soledad interviene aquí, de nuevo, como un lugar crítico: es a la vez refugio donde alimentar el espejismo del confort y la autosuficiencia, pero también es el lugar a la intemperie donde se cruzan las fuerzas transversales de la experiencia colectiva (de masa) con las condiciones singulares de cada subjetividad, de cada cuerpo (aún) vivo como espacio o espaciamiento disponible para el encuentro, para una comunicación de lo no obvio, de lo no común. Solamente en soledad se fragua la necesidad del otro, la ausencia como espectro del amor carnal que nos constituye. Del mismo modo, la persistencia indiferenciada de un otro omnipresente coincide a menudo con una indiferencia no asumida –por ejemplo recurriendo al uso compulsivo del smartphone. No es extraño, pues, que soledad y común/comunidad se puedan pensar en su mutua pertenencia, en su correspondencia o insuficiencia recíprocas, y que desde ahí se pueda sugerir la posibilidad de una “poética política” (Alemán 2012: 37), sin ideal ni totalidad, pero por eso mismo vivida como táctica inventiva, sin ley. Quizá estas tácticas estén siendo tan biopolíticas, creativas y difusas, como lo es la dinámica global del nuevo capitalismo simbólico o financiero, cuya incidencia económica no radica solamente en su naturaleza económica sino en su capacidad de (des)movilización corporal y cultural. De ahí que esta (des)movilización, siguiendo a Pasolini (2009), tenga que ver con un “nuevo fascismo”, todavía más incisivo que el fascismo clásico en la medida en que habría aprendido a reactivarse mediante el desarrollismo, el consumismo y el magnetismo seductor de los nuevos mass-media como la televisión y la pantallización general de la vida. A su vez, con las transformaciones de la economía política iniciadas en el período 1980-1990, ese “nuevo fascismo” se habría reelaborado desde una clave más económica que política, más corporativa-tecnológica que estatal-militar en lo que podría ser considerado como un fascismo actual de baja intensidad (Méndez Rubio 2017).

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De esta perspectiva, por cierto, no se sigue una mera continuidad de una supuesta esencia fascista intocada e intocable. Más bien se abre la urgencia de considerar cómo las condiciones estructurales que hicieron posible la llegada del fascismo clásico (crisis sistémica en torno a 1930), como el autoritarismo, la propaganda masiva o el racismo, se reinventaron creativamente para reaparecer activas en el contexto del nuevo fascismo (crisis en torno a 1970) hasta, hoy día, reorientar su poder absorbente y destructivo en clave de neoliberalismo financiero globalizado (crisis en torno a 2010). El carácter cíclico y estructural de estas crisis de acumulación de capital no debería impedirnos reconocer sus diferencias. En su primera fase, el fascismo clásico (1930) concentra su fuerza en el poder de estado basado en el credo nacionalista y de partido único. En un segundo momento, una vez la fase anterior había llegado hasta su summum de logro y de desgaste, un nuevo fascismo (1970) entraría en escena desde una lógica menos partidista que consumista, menos propiamente gubernamental que difusamente desarrollista, menos propagandística que espectacular –en el sentido de cómo el capital se estaría transformando progresivamente en un espectáculo de imágenes (Debord 1998). El escenario generalizado de la guerra y la revolución sería entonces reemplazado por el de la guerrilla y los nuevos movimientos sociales. Pero tanto en estas fases previas como en la más contemporánea (2010) se mantiene un hilo eléctrico, estremecedor, que permanece encendido, y que Reich resumiría argumentando cómo, “bajo las condiciones de un orden social adverso, los individuos más sanos son precisamente los más expuestos a los sufrimientos más intensos” (1993: 35). El poder de esta realidad establecida consiste en que fuerza a generar corazas que ella misma se encarga de destrozar. Es este exceso de daño el que hace que la subjetividad se enrosque en su propia impotencia, lo que precisamente convierte la subjetividad en conservadora, narcisista o cínica, es decir, en defensora de su verdugo. Es necesario recordar que el efecto más inmediato de la neurosis general o común es el carácter paralizante del dolor. La opresión sistémica entra así en una relación compensatoria con la depresión subjetiva, una relación de doble vínculo que hiperestimula la producción de corazas a la vez que hiperactiva la rotura masiva de cualquier forma de protección.

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Mundo sin poética, política sin mundo A modo de conclusión, podría pensarse que un mundo que ha evacuado la dimensión política de la poética es a la vez un mundo acorazado contra la crítica y la creatividad común. Un mundo sin poesía es el lugar crítico donde la poesía aprende a darse como poesía sin mundo (Méndez Rubio 2004). Por la misma razón, un mundo que prescinde del vínculo radical entre poética y política se convierte en un lugar (o no-lugar) donde lo político atraviesa el mundo precisamente como una negación. La poesía y la poética, entendidas como práctica artística, como formas activas de creatividad social, contrastan con el poder hegemónico asumiendo la forma de un antipoder desplazado, utópico. A propósito del ejercicio de la poesía entre los presos de Guantánamo, se han documentado textos trabajados por la violencia semántica y la rotura sintáctica, así como en testimonios sobre la inquietud que esos poemas despiertan entre los vigilantes. Tomando ese caso de referencia, habla Judith Butler (2017) sobre el “poder galvanizante de lo poético”. A propósito de la cuestión fascista, y más en concreto a propósito del juicio al mando nazi Adolf Eichmann en Jerusalén, sugiere Hannah Arendt que aquí “se vio cuán difícil era contar lo ocurrido, cuán difícil era contarlo en términos que no fueran los términos transformadores del lenguaje poético” (2013: 334). Así pues, parece estarse sugiriendo que la función poética conlleva una dimensión crítica de testimonio y orientación en el mundo. Y, al tiempo, se deduce de esta reflexión que es justo esta dimensión política y crítica la que explica por qué lo poético ha sido progresivamente evacuado del sistema educativo, filosófico y cultural. Contra la obsesión cientificista o empirista, el arte “puede ejercer una influencia indirecta que no se puede medir” (Levertov 2017: 150). De ahí su dificultad para formar parte activa, posible, de la realidad del mundo tal como lo conocemos. Desde esta perspectiva, poetizar lo común, en las condiciones reales del actual capitalismo financiero, debería no limitarse-a pero sí pasar-por atender y entender la soledad como momento crítico: para empezar, asumir su precariedad, su pasaje de rotura, hasta que llegue a abrirse en ella el hueco necesario para un mundo nuevo. El dolor se politiza en la medida en que la relación entre soledad y comunidad asume su fragilidad como parte activa de un mundo demasiado frágil. La soledad no reclama aquí lo común para desaparecer en su interior sino

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para que le haga sitio y quede así trastocado el espacio de la comunicación hacia un sentido más libre y a la vez más vinculante del mundo, hacia una atención a las singularidades que forme parte de la acción compartida. El argumento que aquí se defiende, en suma, tiene como punto de partida en un primer momento la “inseparabilidad del arte de la aguda crisis social” (Rich 2005: 52). Desde aquí se pueden entender estas palabras de Adrienne Rich: “En tales condiciones, el arte sería aún la voz del hambre, el deseo, el descontento, la pasión, recordándonos que el proyecto democrático nunca termina. Para que esto suceda, ¿qué más tendría que cambiar?” (2005: 53). En un segundo momento, se trata pues de reconsiderar el vínculo entre poesía y mundo, entre poética y política, de modo que puedan comprenderse y activarse más libremente las potencialidades críticas, de cambio social, que radican tanto a un lado como a otro de ese vínculo. Jugando con las palabras, si se habla en términos de una ligazón entre poética y política debería distinguirse entre una unión como ligadura (atadura, esterilidad sin engendramiento), o como ligue (seducción mutua, como si ambas no quedaran sujetas o ligadas-a sino siendo ligadas-la-una-por-la-otra). Plantear el debate, en fin, en los términos de una seducción recíproca entre poética y política ayudaría tanto a recuperar el vínculo crítico que las une como a cuidar el impulso libertario que las constituye. El poeta sirio Adonis, al estudiar la poesía árabe pre-islámica, declara que en esta poética los amantes no tienen un tiempo o espacio mundanos sino más bien una “tensión de resquebrajamiento” (1997: 23). La poesía yahilí se despliega explorando la libertad de un exilio sin mundo. El desierto se concibe como “un instante que es pura transformación” (1997: 25). La poesía se vive así como primera forma de comunicación y rebelión (1997: 86, 46). El desierto del mundo, señala Adonis, “por su viento y su arena, es una forma de espacio-tiempo; se curva e interpenetra, se traslada, confunde y pierde. Es el espacio-pérdida” (1997: 15). El mundo contemporáneo se acoraza y cierra las fisuras que darían lugar a un mundo nuevo. El desafío poético puede aprender ahora de la poesía de la era de la ignorancia (jahiliyyah), actualizar esa extrañeza en un mundo que ignora la dimensión poética por el peligro de cambio y libertad que implica. Esta poética puede ir unida a una política que atraviese, con arena en los ojos, la pérdida del mundo.

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Antonio Méndez Rubio es poeta y ensayista. Profesor Titular en la Universitat de València. Sus libros de poemas fueron recogidos en los ciclos Todo en el aire (2008) y Nada y menos (2015). Se han publicado las antologías Historia del daño (2006), Historia del cielo (2012) y Abriendo grietas (2017). En 2012 Espacio Hudson editó en Argentina Ultimátum (poemas 1991-2011), y en 2013 Vaso Roto publicó en España y México su poemario Va verdad. Entre sus ensayos críticos: Poesía y utopía (1999), La apuesta invisible: cultura, globalización y crítica social (2003), La destrucción de la forma (2008), Comunicación musical y cultura popular (2016), Abierto por obras: ensayos sobre poética y crisis (2016) y el más reciente ¡Suban a bordo! Introducción al fascismo de baja intensidad (2017). Su último libro de poesía es Por nada del mundo (2017).

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Radicalidade expressiva em Abílio-José Santos: uma obra poética fora do espaço da galeria, uma obra visual à margem do sistema editoria

Radicalidade expressiva em Abílio-José Santos: uma obra poética fora do espaço da galeria, uma obra visual à margem do sistema editoria

Bruno Ministro Centro de Literatura Portuguesa, Universidade de Coimbra

Resumo: Este artigo apresenta, numa primeira parte, uma contextualização da obra de Abílio-José Santos, sublinhando a diversidade das formas expressivas dos seus trabalhos e a exploração radical do material sígnico que aí se operacionaliza. A investigação centra-se, num segundo momento, na análise dos manifestos e textos de intervenção do autor, bem como em algumas das experiências de arte postal relacionadas com o projeto contestatário por ele desenhado. Interessado na crítica direta às esferas política, económica e aos sistemas de legitimação artística, Abílio-José Santos nunca descurou a contínua experimentação de novas estruturas poéticas, sendo possível encontrar nas suas obras uma politização da estética e uma crítica da estetização da política que se constrói por meio da própria prática artística. Palavras-chave: poesia experimental, manifesto, materialidades da literatura, poética/política, Solidarte, artivismo, arte postal

Abstract: The first part of this article introduces to the work of the portuguese poet and designer Abílio-José Santos, highlighting its diversity of expressive forms and the radical exploration of the signs that are present in it. In a second instance, the article focuses on his manifestos and interventionist texts, as well as on some of his experiences with mail art that relate to the entirety of his subversive project. Interested in directly addressing politics, economics and the artistic legitimation systems, Abílio-José Santos never neglected the continuous

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experimentation with new poetic structures. Thus, it is possible to find in his works a politicisation of aesthetics and a critique of the aestheticisation of politics which is constructed through his artistic practice in itself. Keywords: experimental poetry, manifest, materialities of literature, poetics/politics, Solidarte, artivism, mail art

o artista era autodidacta e sócio correspondente nº 330 da sociedade nacional de belas artes. observava os homens, a natureza e as coisas, descobrindo, recriando, transfigurando, inventando... carecia, como qualquer indivíduo, de amor, de liberdade, de tempo, e de dinheiro para realizar-se. vivia para o estudo, a meditação, o recolhimento, o convívio, o diálogo, a renúncia. vivia para o trabalho. trabalhava com prazer até à dor, por imperativos humanos, fisiológicos e sociais. gravava o metal ou o linóleo como arranhando a sua carne, escrevia e pintava com tintas à base do próprio sangue.” (Abílio-José Santos em “edital”, texto para exposição na Galeria Alvarez, maio de 1968, Porto)

Introdução Diz-se da segunda metade do século XX que não foi um tempo de manifestos. Só Abílio-José Santos (n. Maia, 1926-1992) escreveu quatro. E muitos mais textos panfletários se lhe somam: iconoclasmos verbais, biblioclasmos visuais, subversões viso-verbo-materiais. A sua proposta estética e política, situada no cruzamento entre visualidade e literariedade e convocando uma discussão sobre arte, sociedade e as suas interligações, permanece hoje tão atual quanto radical. O que aqui se pretende analisar é esse caráter comunicativo outro assente numa subversão crítica que se manifesta de forma simultânea numa expressividade radical (aquilo que o autor comunica) e numa radicalidade expressiva (como o comunica). Este desdobramento formal, servindo para substantivar o foco de leitura do artigo, não pode, conforme veremos, ser aplicado à obra de Abílio-José Santos, dada a síntese que opera entre forma e conteúdo, entre teoria e prática, entre estética e política, entre afirmação e negação.

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Encontramos na globalidade das obras de Abílio-José Santos uma crítica feroz da mercantilização da arte e do consumismo da sociedade contemporânea, denúncias essas que se fazem acompanhar por uma recusa radical de todas as formas de poder e autoritarismo. O afastamento simultâneo da sua obra do mercado da arte e do sector editorial revela, não só um duplo desenquadramento (a sua obra não encontra espaço em nenhum dos campos), como também uma rejeição determinada (a sua obra não quer encontrar espaço em nenhum dos campos). Nos seus trabalhos a intervenção sócio-política e cultural realiza-se através da própria intervenção medial e material mas também por meio da disseminação alternativa dos artefactos produzidos. O seu radicalismo expressa-se assim numa poética afirmativa e contestatária que recusa a subjugação institucional e proclama mesmo a derrogação da arte como instituição.

Contextualização de abílio na poesia experimental portuguesa (e consequente desenquadramento) A obra de Abílio-José Santos, que assina também somente com o nome próprio, constitui-se a partir das mais diversas formas expressivas exploratórias da relação entre palavra e imagem. A sua prática artística abarca campos que vão desde a pintura, gravura e desenho até à poesia,1 através de formas que são sempre desenvolvidas enquanto transgressora poética de cruzamento disciplinar. Deste modo, a sua obra tanto se inscreve no domínio da poesia concreta, como se estende à copy art e à poesia visual, aí operacionalizando a conjugação entre componentes verbais e elementos visuais nãolinguísticos, englobando ainda uma poesia de tipo linear, sempre com um fundo de experimentação do verso e da língua. Sobre a ligação umbilical entre signo verbal e visual presente na obra de Abílio como no experimentalismo em geral, Severino Rodrigues assinalava já em 19592 o caráter aglutinador da obra de Abílio no cruzamento entre expressões poética e plástica: Aqui, falando de Abílio, diria melhor 'pintar-se': ou talvez pôr em pintura os seus versos, por ser aquela a plasticização dos devaneios poéticos que escassamente o verbo lhe poderá traduzir na forma condigna a que aspira e o título das suas composições manifestamente revela. / Poeta que pinta, conceda-se então. (Rodrigues 1959: s.p.)

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Anos mais tarde, quando publica o seu primeiro livro, O Voo do Morcego (1962), obra breve constituída por dezoito poemas, o diálogo entre artes visuais e poesia prossegue os seus processos de intersemiose. Não se trata ainda de uma fusão entre os sistemas de signos, embora se revele já aí uma faceta premonitória da radicalização intersígnica que ocupará um lugar fundamental na sua obra. É ainda na década de 1960 que Abílio inicia a conceção de obras que promovem a emergência de sentido por duas vias simultâneas: signo verbal e visual surgem unificados numa pesquisa exploratória da dimensão plástica da linguagem. No mesmo ano em que publica o folheto Lidança (1968), a sua primeira obra de caráter concretista,3 é também convidado a participar em Arlington Quadro / Quadlog, exposição coletiva realizada em Gloucestershire que reuniu poetas experimentais e concretos portugueses e britânicos, fruto do diálogo entre os artistas e grupos de Portugal, Inglaterra e Escócia. Trabalhos seus serão também incluídos na Antologia da Poesia Concreta em Portugal, publicada em 1973 por E. M. de Melo e Castro e José-Alberto Marques, e integrará a representação portuguesa à XIV Bienal de S. Paulo, realizada em 1977. O caráter problematizador de género literário que encontramos na obra de Abílio enquadra-a, portanto, nas principais linhas do experimentalismo literário, cujo esforço de teorização, em Portugal, foi desenvolvido pelos próprios poetas e que tem maior destaque nos artigos, ensaios e livros redigidos por Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro. 4 A este enquadramento material da obra de Abílio corresponde, contudo, um desenquadramento social do seu autor, dado que o artista, embora tenha participado em algumas das iniciativas promovidas pelos poetas experimentais, permaneceu sempre na periferia das suas principais linhas de atuação. Rui Torres, que deteta um caráter anunciador da eclosão da poesia experimental portuguesa na “abordagem minimalista e repetitiva de Abílio-José Santos em O Voo do Morcego” (Torres 2014: 11), salienta o facto de a relação que o artista estabeleceu com os outros poetas da poesia experimental portuguesa ser uma relação fluida (Torres / Ministro 2016), de participação em algumas das suas atividades mas de não adesão aos textos teóricos que aqueles autores foram publicando ao longo dos anos. A sua posição na história da poesia experimental em Portugal é, ainda na esteira de Torres, um pouco semelhante à ocupada por Alberto Pimenta, poeta que, acerca de Abílio, refere o seguinte:

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trabalhou sempre à margem do grupo de poetas concretos e do seu sistema teórico, que recusa. para ele, todo o fundamento epistemológico é repressivo: nesse sentido é o mais consequente de todos. a sua produção rebenta em colagens corrosivas, ou inventa 'cirurgias de forma', ou espaços nos quais as letras entram como invasores dum outro mundo. o seu mundo é o erotismo das formas condenadas à mudança, à 'lidança', ao trabalho. O ZERO NÃO É INÓCUO! COM O ZERO OPERO COM O UM! trabalho e liberdade, trabalho e(m) liberdade. (Pimenta 1988: 149)

A caraterização que faz de Abílio está envolta – ao estilo de Pimenta – em diversos jogos de palavras com os títulos de algumas das suas principais obras em papel (Fotocirurgiando, Lidança, Trabalho/Liberdade, etc.), com destaque para a sua recusa da subserviência a qualquer sistema (teórico, refere-se, mas também político, artístico e técnico, podemos acrescentar) e, mais importante ainda, colocando a tónica na atividade criativa enquanto meio de produção de “formas condenadas à mudança, à 'lidança', ao trabalho.” Se a mudança (no sentido de transformação), está sempre presente nas suas obras, também o conceito de trabalho é, pois, um elemento central em Abílio-José Santos. Primeiro, porque a sua prática artística, num gesto que não está isolado no cenário da arte contemporânea, opera um descentramento da obra enquanto resultado para a obra enquanto processo. Em segundo lugar porque, neste âmbito, o trabalho de criação não apresenta, na leitura realizada a partir dos diversos statements do autor e daquilo que as suas obras comunicam, diferenças significativas em relação ao trabalho enquanto fator de produção económica, antes os radicalizam (i.e. desenraízam, poder-se-ia dizer, indo precisamente à raíz de “radical”) ao esbater a diferença clássica entre trabalho criativo/intelectual (ergoni, opus) e trabalho braçal (ponosi, labor).5 A obra de Abílio, ao convocar uma esfera política maior para a sua prática artística, comunica com premissas que lhe são mais ou menos próximas, em termos temporais e ideológicos, como as máximas “A poesia deve ser feita por todos” (Conde de Lautréamont) e “Cada homem, um artista” (Joseph Beuys). Estando representado nas principais antologias da poesia experimental portuguesa e em vários catálogos de exposições nacionais e internacionais,6 a sua poesia não foi publicada nos circuitos convencionais e, também por isso, foi sempre de difícil acesso. Pouco conhecida e reconhecida, têm sido escassos os estudos realizados sobre o autor. O silêncio a que a obra de Abílio foi exposta pela crítica e pela academia não é de todo condizente com a

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extensão da sua obra. Só no que diz respeito a exposições, o artista participou em perto de uma centena de iniciativas, entre as quais se incluem 24 exposições individuais, tendo ainda sido incluídos trabalhos seus em perto de outra centena de mostras de arte postal na Europa, na América e na Ásia.7 Em Portugal, para além das exposições de arte postal em que participa ou que organiza8, realiza diversas exposições individuais entre 1959 e 1992. Estas exposições têm lugar sobretudo nas cidades do Porto, Maia e Aveiro, percorrendo um circuito de espaços alternativos e de vanguarda como a Galeria Divulgação (1959), Sala da Sereia (1962), Galeria Borges (1964; 1965; 1966), Galeria Árvore (1965; 1969; 1970; 1980; 1992), Galeria Alvarez (1968) e Galeria Abel Salazar (1975), sendo que, em Lisboa, expõe por duas vezes, primeiro na Galeria Ulmeiro (1970) e depois no Atelier 15 (1985). Com a Galeria Dominguez Alvarez, de Jaime Isidoro, Abílio colaborou também de forma mais prolongada, tendo sido o responsável pelo seu atelier de gravura a partir de 1965.9 Abílio realiza ainda diversas exposições fora do espaço das galerias, nomeadamente em escolas da Maia e do Porto, o que ilustra bem, como colocado por Eunice Ribeiro, o seu “percurso de propícia marginalidade” (Ribeiro 2014: 117), de igual forma fazendo ressaltar a sua procura de espaços alternativos de comunicação. Isto engloba também as suas publicações, sempre editadas com os seus próprios meios, produzidas, portanto, fora do sistema editorial e disseminadas à margem do circuito de distribuição comercial. Após publicação do seu primeiro livro, O Voo do Morcego (1962), e do seu primeiro folheto, Lidança (1968), já aqui referidos, Abílio-José Santos inicia um período intenso de produção de publicações experimentais por vezes próximas do domínio da poesia concreta, outras da poesia visual e ainda daquilo que o próprio denomina como textos de intervenção ou textos panfletários, neste caso assumindo uma pluralidade de formas díspares. Algumas obras deste tipo serão analisadas com detalhe neste artigo, sendo desde já importante clarificar que as missivas que elas encerram, não obstante o seu caráter comunicativo de interpelação direta, não se furtam a perseguir complexos níveis de experimentação técnica e estética. É também por isso que, como constatam Fátima Lambert e João Fernandes, o seu trabalho se configura como “um caso único no contexto da arte e da poesia portuguesas, protagonizando o exemplo de uma criação artística underground, radical e implacável”

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(Lambert/ Fernandes 2001: 29), isto tendo em consideração que as publicações de Abílio “aliavam uma rara intuição gráfica à assunção orgulhosa da sua marginalidade e efemeridade” (ibidem).

Figura 1: Capas de algumas das publicações experimentais de Abílio. Reproduzido com permissão.

Abílio concebeu a sua obra escrita10 com recurso a vários tipos de dispositivos à sua disposição, constituindo formalmente as suas publicações sob a forma de brochuras, folhetos e panfletos desdobráveis (fig. 1), por exemplo. O artista – ao mesmo tempo autor e editor/produtor – cria as suas obras a partir da apropriação dos formatos standardizados e perecíveis da comunicação de massas, movendo-se no sentido de uma “produção pretensamente efémera” (Lambert 2003: s.p.) que, em realidade, não o é – perdura no tempo, ainda que ocupando lugares periféricos, em decomposição e metamorfose.11 As

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obras impressas de Abílio, quer as que fazem uso da tecnologia offset quer aquelas que recorrem à fotocópia como meio facilitador da reprodução e distribuição, circulam sobretudo em círculos restritos, nomeadamente através da rede de arte postal, sendo na sua maioria publicações com poucas páginas e de tiragens reduzidas. De tão esquiva, a obra de Abílio chega a aproximar-se, em alguns momentos, de uma proposta de destruição da arte. Não sem generosas doses de insolente sátira, a anulação total do valor da arte está presente por exemplo nos versos “o que desenho escrevo / gravo corto e colo / pode amanhã não valer nada / mas as embalagens / também não”, de O futuro defunto que se parece comigo (1983; 1991), ou no título frontalmente autodestrutivo da coleção 5 postais pra queimar (s.d.).

Materiais, intervenções e intervenções materiais A radical exploração intersígnica que Abílio-José Santos desenvolve nos seus trabalhos expressa-se através de um vasto conjunto de técnicas e suportes materiais. A apropriação que faz de fontes materiais previamente existentes – como recortes de imprensa, ou, com especial relevo na sua obra, materiais pobres que poderiam ser considerados meros detritos – enquadra-se perfeitamente na linha de subversão contínua dos discursos que encontramos na poética de Abílio. O próprio autor reflete sobre esta proposta de intervenção pela “reciclagem” quando, no primeiro dos seus manifestos com o título “lixarte”,12 de julho de 1985, sumaria o seu posicionamento no lema “a arte como lixo / o lixo como arte” (Santos 1987a: s.p.). Esta proposição está presente em toda a sua obra através do frequente desvio dos materiais de base e consequente emergência de discursos outros, portanto em rutura com os discursos hegemónicos representados pela “máfia estabelecida & dominante”, expressão que Abílio usa, ainda no mesmo texto, para nomear o conjunto de críticos, júris, galerias, museus/mausoléus, artistas amestrados, (auto)mecenas, entre outros. Se este manifesto acaba com um “viva dada”, incorporando o espírito disruptivo daquele movimento enquanto crítica direta ao mundo da arte, não é menos expressiva a afirmação que abre o manifesto: “se a poesia ainda não é feita por todos / o lixo já / há lixo em toda a parte / desde a viela mais sórdida ao palácio de s. bento” (ibidem). Agentes artísticos e políticos são alvo simultâneo das palavras do artista, sendo que ambos

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são considerados resultado dos mesmos processos de dominação social. Muito marcada pelo humor, a atitude crítica de Abílio chega mesmo a adquirir uma linguagem violenta: “Abaixo a prostituição artística (e não só)! Abaixo todos os chulos e parasitas!”, proclama no seu (COLAGE)Manifesto Vermelho, analisado com detalhe adiante. Criticar o sistema da arte, em Abílio, é sempre criticar as estruturas políticas. O inverso também se verifica, embora haja momentos em que o artista distingue uma e outra esfera: é claro que os tais ensaístas/críticos só os aturo quando me quero divertir ou para alimentar baterias… mas dos tais políticos sofro todos os malefícios das governanças deles tão violentamente como os tipos que os elegeram livremente ou aconselhados por algum representante divino ou capitalista coercivos... (Santos 1985a: 107)

A crítica política é particularmente aguerrida quando no manifesto “lixarte/2”, com data de setembro de 1985, se sugere que “o lixo é útil / quando reciclado”, embora, acrescenta o autor, “há lixo / político / sem reciclagem possível” (Santos 1987b: s.p.). Também numa carta que Abílio-José Santos escreveu a Mauricio Guerrero um ano antes de redigir os manifestos “lixarte” podemos encontrar a afirmação desta procura de uma “redenção do lixo” através da “subversão da arte”, servindo inclusive as palavras do artista enquanto statement sobre os seus processos criativos: Artisticamente, desde a década de 50 [...] que recuso os chamados materiais nobres. Em vez deles utilizo normalmente o lixo da sociedade de consumo e sucata... Tudo me serve para motivar, incorporar e/ou construir trabalhos de Desenho, Pintura, Gravura, Escultura e principalmente Colagem. Ao utilizar coisas consideradas inúteis, desprezadas, como embalagens de papel, cartão, plástico ou metal... trapos, sapatos, brinquedos, carteiras de senhora, jornais, revistas,... peças de máquinas, de ferramentas ou de bicicletas... etc., atinjo três objectivos: — a redenção do lixo; — a subversão da Arte, pela íntima ligação entre a obra de Arte clássica e os materiais tradicionais; — e o realismo máximo! pois quando entra em certos trabalhos meus um sapato velho, roto e enlameado, não o represento pela imagem desenhada, pintada, gravada, esculpida, fotografada ou impressa! — apresento-o. (Santos 1984: 1-2)

Porém, na obra do artista não é só o artefacto industrial que serve de matéria pronta para apropriar e desviar – ao estilo do ready-made de Duchamp, artista que Abílio convoca

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várias vezes nas suas obras e testemunhos,13 da arte bruta de Jean Dubuffet ou do détournement dos letristas e situacionistas –, também os elementos da natureza são convocados na sua obra. Além da paródia ao “realismo mágico” na sua proposta de um “realismo máximo”, é o próprio artista quem afirma, em texto já antes citado, que “a poesia visual está em toda a parte!… pronta-a-ler! feita por todos e pela natureza (cá por mim não me custa nada acreditar que se existisse algum deus também era capaz de dar uma ajuda)!… só é pena se ainda não é lida por todos livremente!” (Santos 1985a: 108). Ao modo de Alberto Caeiro, como evidencia Eunice Ribeiro (2014), testemunha o artista: “os poetas que mais admiro são o pão, a água, o olhar das crianças, uns seios de mulher, o vagabundear pelo porto, embalagens esmagadas pelo rodado dos carros contra o piso das ruas, o sol, a chuva, as árvores.” (Santos, 1985a: 108). Há evidentemente um toque de Álvaro de Campos também aqui, em particular na fricção dos rodados dos carros que esmagam embalagens contra ao chão.

Figura 2: Manifestos “lixarte” 1 e 2 (frente), 1986. Reproduzido com permissão.

Embalagens esmagadas também as há na obra de Abílio, não apenas como imagem convocada, como acima exemplificado, mas antes enquanto objeto materializado de facto,

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“objeto artistificado” chamar-lhe-ia o autor (Santos 1968: s.p). Em 1986, o artista produziu uma versão dos manifestos “lixarte”14 que distribuiu dentro de embalagens tetra pack espalmadas (fig. 2), com furo e fita no topo para servir de fecho. Uma fotocópia colada no pacote com composição visual em torno da palavra “lixo” serve de “capa” a esta “publicação”. Por baixo da fotocópia e na “contracapa”, uma cruz desenhada com marcador, traçada na diagonal, de ponta a ponta do pacote, anula o objeto pelo cancelamento da sua objetualidade primária. Esta rasura e rejeição do objeto original – mas ainda presença, rasto15 – articula-se, portanto, em duas dimensões correlacionadas: desprovido da sua função original (até porque já não contém leite, o produto já foi consumido e deixou à embalagem uma existência irrelevante, que já não serve), o pacote é refuncionalizado deixando de ser um pacote de leite para passar a ser um invólucro de textos; para além dessa desfuncionalização e ressemantização, como atrás foi dito, o próprio ato de apropriação e negação está vinculado ao gesto de rasura do objeto – o gesto duplicado de o espalmar e rasurar fá-lo deixar de ser o objeto original que fora porque aplana e nega o objeto tridimensional, roubando-lhe assim o seu caráter de contentor e substituindo o seu interior por outro conteúdo. Outras embalagens são expressivamente usadas em obras como a série de objetos Ar Bento,16 humorísticos produtos de consumo massivo realizados a partir de pacotes de leite, embalagens de queijo e outras; ou Totem (fig. 3), conjunto de 9 pacotes de leite organizados em bloco 3 x 3 com cinta elástica numa paródia à sacralização da arte e à religiosidade do consumismo, obra que fez parte da exposição LIXARTE, realizada na Galeria Árvore, no Porto, de março a abril de 1992, naquela que foi a última exposição individual do artista, já no ano do seu falecimento.

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Figura 3: Abílio junto a Totem na exposição LIXARTE, Galeria Árvore, 1992. Fotografia de César Figueiredo. Reproduzido com permissão.

No cuidado artigo “Abílio: As manufacturas da escrita”, Eunice Ribeiro, a propósito de Escrita17 de Abílio, nomeia como dimensão central na sua obra “[a] sedução pelo artesanato, pela manufactura, a ideia de uma escrita-gesto dotada de um carácter processual e exigindo o total envolvimento do sujeito” (Ribeiro, 2014: 118), sendo que esta natureza de propensão “artesanal”, desde logo destacada no título do artigo de Ribeiro, é também mencionada por Severino Rodrigues quando refere positivamente o caráter amador convocado pela obra do artista: “Abílio não é um pintor profissional e oxalá nunca o venha a ser, pois toda a sua originalidade de artista reside precisamente no saudável amadorismo que o impede de cristalizar” (Rodrigues, 1959: s.p.). A obra de Abílio é já, em si mesma, uma afirmação do esbatimento da diferenciação convencionada entre arte popular e arte erudita, e, sobretudo, uma insurreição contra os seus capitais simbólicos – pejorativos em relação ao primeiro, laudatórios em relação ao segundo – postura estético-sociológica que materializa através do seu empenho total na subversão do binómio que opõe baixa cultura a alta cultura. Por outro lado, embora se possa dizer que a sua obra nasce de um engajamento social e político, a verdade é que ela não é subsidiária de nenhuma fação ideológica no sentido em que a sua obra não surge como ferramenta para nenhuma intervenção, ela é a intervenção. A sua obra nasce de um compromisso mas não é nem está comprometida. E esse compromisso não resulta de um esforço nem é forçada, é, isso sim, algo que surge de forma muito natural. É curioso, até, como os poucos autores que escreveram sobre a sua obra empregam frequentemente termos próximos a esta ideia de naturalidade (expressões destacadas por grifos meus):

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Severino Rodrigues destaca na obra de Abílio uma “sinceridade” que está “não raras ocasiões ausente de obras destinadas ao comércio ganha-pão” (Rodrigues 1959: s.p.); Cristina de Azevedo, reportando-se à exposição Poéticas visuais (1985), realizada no Atelier 15, em Lisboa, considera que os trabalhos do artista se revelam através de “combinações simples e claras com as quais Abílio Santos joga o seu 'feeling' da expressão plástica das formas.” (Azevedo 1985: s.p.); Óscar Faria, a propósito da inclusão de obras do autor na exposição Porto 60/70: Os artistas e a cidade (2001), argumenta que as obras de Abílio são atravessadas de forma transversal por “doses elevadas de humor e de uma crítica espontânea e terrivelmente eficaz” (Faria 2001: s.p.); por seu turno, Fátima Lambert fala de uma “frontalidade exaustiva” que faz transparecer nas obras do autor “a exemplaridade de um produto genuíno e underground.” (Lambert 2003: s.p.). A obra de Abílio, no seu conjunto, nasce da frontal espontaneidade de um gesto genuíno de subversão que nele está interiorizado – “sou desenhador de profissão e autodidacta insurrecto por índole” (Santos 1985b: s.p.). De forma arriscada e radical, a reformulação que faz dos discursos de poder é realizada através do próprio exercício de arranjo dos materiais do poema, muitas vezes apropriando e transformando (transgredindo) os objetos ao produzir um novo contexto para os receber. Relocalizados os significantes, fazse com que os significados expressem, não raras vezes, o contrário daquilo que significavam no contexto de origem. O signo existe no espaço de transição, transmissão, transgressão.

Margens locais e alternativas globais: Manifestos e textos de intervenção Abílio publica e expõe à margem do sistema literário e da arte, o que não quer dizer que não encontremos obras suas nas primeiras edições de alguns dos eventos mais impactantes do espaço artístico e cultural português contemporâneo. São disso exemplo as Bienais Internacionais de Arte de Vila Nova de Cerveira organizadas por Jaime Isidoro (Abílio participa nas quatro primeiras edições, entre 1978 e 1984) ou os Encontros Internacionais de Arte, com direção de Egídio Álvaro e Jaime Isidoro, realizados entre 1974 e 1977 (em cujas II, III e IV edições são expostos trabalhos do artista). Nos Terceiros Encontros Internacionais de Arte, realizados na Póvoa de Varzim entre 7 e 17 de agosto de 1976, Abílio-José Santos integra a exposição Presença, descrita como uma “exposição aberta” na qual “cada

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participante pode apresentar as suas obras em inteira liberdade”, nesse sentido constituída enquanto “exposição inteiramente estruturada e feita pelos expositores […] uma exposição/encontro e uma exposição/diálogo.” (Álvaro 1977a: 22). O diálogo mantido neste encontro passou pela mostra de América, colagem audiovisual coletiva do Grupo Vermelho,18 patente na exposição apenas a partir das 23h do dia 14,19 portanto já bastante perto do final do evento, foi acompanhada pela divulgação do (COLAGE)Manifesto Vermelho, um “demolidor manifesto performativo-dadá” (Dias 2016: 408) no qual Abílio,20 em tomada de posição iconoclasta e derrogatória da arte enquanto instituição, “defende o nascimento da arte moderna com o dadaísmo, definindo enquanto arte apenas o que é feito ou lido ao nível da criação, não o produto e o que se afirma alheio aos circuitos da critica e da subjugação institucional.” (Metello 2009: 249). A obra América, baseada num conto de Michael Gold e constituída por um painel com textos associados a colagem e banda sonora, é apresentada presencialmente por Abílio – fazendo uso dos espaços abertos de debate que foram privilegiados nos Encontros – na noite do dia 14 em intervenção na qual o artista “explicou as dificuldades económicas encontradas pelo Grupo na concretização do trabalho e descreveu parte da colagem.” (Álvaro 1977b: 59). Egídio Álvaro refere ainda, em súmula descritiva dos debates, que o trabalho apresentado “foi muito controverso” (ibidem). Ou não se tratasse de um trabalho criado para gerar debate.

Figura 4: Segunda folha de (COLAGE)Manifesto Vermelho, 1976. Reproduzido com permissão.

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Elaborado

com

predominância

de

técnicas

de

colagem

e

caligrafia,

(COLAGE)Manifesto Vermelho (1976, fig. 4) é constituído por oito folhas de tamanho DIN A4, encontrando-se dividido em quatro secções: “arte” (1.ª parte), “crítica” (2.ª parte), “viva o dadaísmo” (3.ª parte), bem como por uma secção final intitulada “e um desafio à prova de provocações, calúnias & outras 'coisas' 'democráticas & pluralistas'”. Além das letras garrafais cuja estética denuncia a proveniência dos materiais de jornais e revistas, tudo o que no manifesto é reproduzido em letra mecânica tipográfica é recorte de dois textos anteriores de Abílio, “arte e liberdade” (s.d. [197-]) e “manifesto à cidade” (1974). O facto de também a inscrição caligráfica assumir no manifesto um lugar de destaque – nas formas oscilantes da letra em cor, tamanho e desenho –, contribui fortemente para a conceção da escrita de Abílio enquanto “grafia corporal onde se descobre a relação afectiva do homem com o traço que assina – traço caligráfico ou impresso mas sempre modelado por um sujeito.” (Ribeiro 2014: 124). A mão que desenha a escrita é a mesma mão que recorta e cola, remetendo para um “gesto arcaico do recortar-colar” (Compagnon 1996: 12), no qual o texto encontra definição na redefinição do próprio conceito de texto: “o texto é a prática do papel” (idem: 11), isto porque “[r]ecorte e colagem são as experiências fundamentais com o papel, das quais leitura e escrita não são senão formas derivadas, transitórias, efêmeras.” (ibidem). É na transitoriedade dessa escrita que é também ação e, por isso, gesto performativo propositadamente efémero e derivativo (sempre em processo), que se joga a construção do discurso crítico de Abílio-José Santos. Um discurso que é texto mas também imagem – é, diríamos, um texto verbo-visual –, sendo que também as imagens que fazem parte da colagem são recortadas de outros contextos prévios à obra. Na fenda que se abre entre o lugar do signo original em contexto e o seu novo lugar sígnico contextual, deparamo-nos com a diferença na repetição, naquele que é ao mesmo tempo sulco que separa e material condutor que une. Afirma-se por isso, com Jacques Derrida a propósito da colagem num livro que é ele mesmo uma monumental colagem (citação recortada de Derrida através do recorte que fez Marjorie Perloff num dos livros mais incisivos sobre poéticas outras): That the sign detaches itself, that signifies of course that one cuts it out of its place of emission or from its natural relation; but the separation is never perfect, the difference never consummated. The

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bleeding detachment is also — repetition — delegation, commission, delay, relay. Adherence. The detached remains stuck by the glue of difference (Derrida apud Perloff 2003: 75)

É o corte mas é também a cola que separa o lugar de emissão originário do seu novo espaço de enunciação atualizado, acumulando signos, renegociando-os, fazendo com que a hierarquia dê lugar à parataxe, como afirma Perloff (ibidem) ao problematizar a colagem na esteira de estudos de Rosalind Krauss (The Originality of the Avant-Garde) e que, por seu turno, na cadeia incessante da colagem e remistura crítica, Craig Dworkin (2003) tomará para a sua reflexão. Também aqui neste artigo, experiencie-se no processo, exercício de colagem e significação em camadas na rede citacional. Todo o manifesto é um ato performativo: o enunciado que produz posiciona-se no mundo de maneira a agir sobre ele. O manifesto de Abílio-José Santos apresenta-se como um texto radicalmente performativo na medida em que, em primeiro lugar, tudo o que nele surge em letra mecânica é apropriação direta (desvio e ressignificação) de materiais anteriores aqui renovados pela colagem no novo contexto expressivo; em segundo lugar, de maneira articulada com o ponto anterior, tudo o que nele é manuscrito constitui uma derivação nos interstícios do texto, nas fissuras abertas pelo corte, abrindo lugar para a expressividade do novo ato de escrita (e sua temporalidade histórica) e para todos os atos de leitura que, recortando também eu as palavras do autor de um dos textos que ele recorta, “o leitor for capaz de fazer sem limitações, livremente, metamorfoseando, descobrindo, inventando, manipulando, experimentando, encontrando...” (Santos s.d. [197]: s.p.). Na primeira das secções do manifesto, o autor denuncia a subjugação da arte face aos interesses económicos ao reproduzir, em colagem direta e fotocópia, várias moedas e notas, enquanto no apartado textual se afirma que “a arte não existe. o metro existe. em sèvres. frança.”21 Alude o autor à barra de liga metálica depositada no Instituto Internacional de Pesos e Medidas, em Sèvres, que foi usada até 1983 como medida padrão do metro. Ao caráter especial e reservado desta barra, aqui usada de forma simbólica, Abílio contrapõe aquilo que defende ser o caráter universal e aberto da arte: “tudo é arte quando feito ou lido a nível criador” (sentença por duas vezes enunciada no manifesto), sendo que “o nível criador é: a) potencialmente atingível por todos os cidadãos; b) colectivamente atingido pelo

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povo; c) individualmente atingido pelos artistas.”22 E os artistas, esses, afirma de seguida já numa diferente tira de papel datiloscrita, “estão no povo. / o povo está nos artistas.”. A proposta de socialização da arte será tornada ainda mais explícita na reflexão que tem lugar na segunda parte, onde, em determinado passo, se proclama: o artista revolucionário23 pode e deve ser útil à cidade, por conseguinte ao povo, exercendo, no momento histórico que vivemos, acções culturais pedagógicas, urgentes e necessárias à transformação – saneamento – de todo o sistema viciado – corrupto e corruptor – de produção e fruição artísticas áudio-visuais e o respectivo mercado. (Santos 1976: s.p.)

Lançando uma pergunta retórica – “mesmo os artistas mais revolucionários fizeram alguma coisa comparada com o que fizeram os mais conscientes operários e camponeses???” –, Abílio declara: “Aprendamos com os operários e os camponeses a defender os nossos direitos revolucionariamente! Não queiramos manter privilégios que nos envergonham!”.24 Com efeito, além do enfrentamento da sociedade de classes, a segunda parte deste manifesto consiste numa denúncia feroz dos críticos de arte, onde não faltam instituições e nomes concretos, repetindo-se as acusações (e respetivas nomeações) que também encontramos noutros textos do autor. Isto porque, lendo esta repetição até como apropriação direta por via do recorte e colagem, “há artistas falhados que são críticos. / há críticos falhados que são artistas?”, percetivelmente recortados de um exemplar do seu “manifesto à cidade” (1974). Com efeito, o seu “manifesto à cidade”,25 datado de 1 de maio de 1974, dialoga de forma explícita com o seu manifesto-colagem de 1976. Ambos são visivelmente produto do período em que foram escritos, não se coibindo de, em liberdade – “ah a liberdade... / há liberdade” (Santos 1974: s.p.) –, tecer as suas críticas políticas mais duras à sociedade de consumo e à mercantilização da arte, combinando ambas num violento retrato satírico. Lemos no “manifesto à cidade”: “há que não esquecer, na sociedade de consumo, que a produção de certos artistas é reclamada pelos frança, gonçalves, pernes & cia., membros da a.i.c.a., como pastas dentífricas e sabonetes, segundo as modernas técnicas publicitárias...”. Os mesmos críticos de arte que são nomeados num e noutro manifesto sofrem investidas do artista também, com especial destaque, na Carta ao crítico d'arte dr. rui mário gonçalves

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(1969), na exposição O bigode no espelho (1970), em duas publicações com o mesmo título (1975-76) e em da AICA laica lacaia (s.d. [1981]). O conjunto de documentos agrupados sob o título da AICA laica lacaia26 dirige-se diretamente à Associação Internacional de Críticos de Arte (A.I.C.A.) e, de modo muito concreto, a Fernando Pernes, então recém-empossado presidente da secção portuguesa. Uma breve nota noticiosa dando conta dessa eleição é mesmo reproduzida (11) através de fotocópia com carimbo sobreposto onde se lê “a graça” e, atrás, em plano de fundo, um anúncio de jornal patenteia: “Ao Divino Espírito Santo – Agradeço graça concedida. Abílio”. A jocosidade é presença assídua nas produções do artista. Nesta, em particular, há uma grande pluralidade de tons, que vão da sátira corrosiva à mais seca descrição. Já em 1970 escrevia Abílio, numa carta ao seu amigo Manuel Dias, reproduzida em da AICA laica lacaia: [Fernando Pernes] é um dos mais famosos membros da secção portuguesa da Association Internationale des Critiques d’Art. Com os seus compadres Drs. José-Augusto França e Rui Mário Gonçalves são a guarda avançada e principais patrões da velha e nova crítica de Arte em Portugal de Aquém e Além Mar. Pois como toda a gente sabe, ligada a estes assuntos, têm na mão, em matéria de artes plásticas, alguns dos melhores jornais do país, as revistas especializadas e adequadas ao exercício das suas magníficas funções de mentores do Povo, uma galeria de Arte directamente e outras sob a sua paternalíssima simpatia, etc. e etc. ... (Santos 1970: 1)

Todos os textos que constituem da AICA laica lacaia são reproduções em fotocópia27 de artigos de opinião publicados por Abílio na imprensa periódica, sobre a situação da crítica de arte, a ligação do mundo da arte à banca, ao mundo empresarial e ao mecenato (através dos seus “mercenários”, p. 4). Aí também se incluem reproduções de duas cartas: a primeira é aquela endereçada a Manuel Dias, referida acima, e a segunda uma “carta muito aberta à Sociedade Nacional de Belas Artes – Lisboa”, com data própria de março de 1972, na qual Abílio-José Santos pede esclarecimentos sobre a exclusão de uma obra sua de exposição organizada por aquela instituição, ato que considera “vergonhoso porque arbitrário e ilegítimo” (Santos 1972: 3) e que, peremptoriamente, atribui ao “trio crítico” (leia-se: os três críticos de arte da A.I.C.A.), descrito como o “impagável conjunto vocal e plumitivo da nova crítica” que “são defendidos, propagandeados e promovidos […] como os únicos fabricantes válidos e garantidos da arte moderna nacional.” (ibidem).

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Já noutra missiva, Carta ao crítico d'arte dr. rui mário gonçalves,28 Abílio denunciava a centralização de poder nestas personalidades, podendo ler-se em todos estes textos, mais do que uma crítica individualizada dos críticos de arte em questão, uma revolta contra os protocolos da institucionalização da arte e dos seus mecanismos de exercício de poder, as suas estratégias de inclusão e exclusão.29 Sem descurar a marcada dimensão interventiva e contestatária de toda a sua obra, aproxima-se ainda do manifesto ou texto panfletário um conjunto de outros trabalhos, como Carta a Vinicius (1969), Reza ao dólar (1982), Dia de pica boi (1983), 5 postais pra queimar (s.d.) ou Gente da poesis (1991), entre muitos dispersos publicados em revistas e mostrados em exposições de arte postal que são também exemplo da pluralidade de publicações do autor e da diversidade dos seus temas e focos de crítica. Os textos de intervenção de Abílio-José Santos surgem, como atrás evidenciado, nos mais variados momentos do seu percurso. Resistem, por um lado, ao agrupamento por tipologias unívocas, problematizando o que é e não é um texto dito de intervenção. Não se confinam a temáticas ou alvos únicos, embora neste artigo se tenha optado por analisar a fundo apenas uma seleção dos textos mais diretamente relacionados com a crítica política do mundo da arte. De igual forma, não permitem a contenção em periodologias estanques. Em rigor, afirmações como a de que a partir do final da década de 1960 se verifica “uma inversão e o trabalho do autor passa a alinhar-se quase exclusivamente pela denúncia política” (Preto 2005: 183), também formulada de outros modos – “Abílio-José Santos abandona as experiências concretas voltando-se para a literalidade da propaganda, comprometendo a pesquisa estética pela veiculação de conteúdos ideológicos” (Preto 2005: 5) –, carecem de um fundo de verdade que apenas pode ser detetado de forma cabal à luz de uma análise em perspetiva que tenha em consideração o conjunto da obra do autor. António Preto chega mesmo a afirmar que Lidança é a única obra concretista do autor, adicionalmente caraterizando esse trabalho como apolítico: Embora o autor possua uma vasta produção, que oscila entre as artes plásticas e a escrita, o facto de Lidança ser sistematicamente a única referência bibliográfica fornecida pelos poetas experimentais [nas suas publicações antológicas e documentais], justifica-se pela circunstância de essa ser uma das poucas obras de Abílio em que não se verifica uma subjugação da pesquisa estética à veiculação de conteúdos ideológicos. (Preto 2005: 183)

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Embora seja indiscutível que este trabalho ocupa um lugar muito particular na produção do autor, será relevante verificar como, lançando uma mirada de conjunto sobre a sua obra artística, Lidança é o único trabalho de cariz concretista editado até à data de publicação nos livros e catálogos mencionadas por António Preto,30 pelo que não é de estranhar que apenas esse trabalho seja incluído nas listas bibliográficas. Já em obras coletivas posteriores, como se pode exemplificar através de Poemografias (1985), os biobibliodados não se cingirão à obra em apreço. A Antologia da Poesia Experimental Portuguesa (2004), outro marco imprescindível para uma leitura em perspetiva do fenómeno experimentalista, mostra isto de forma muito clara: dividida por décadas, de Abílio surgem na secção destinada aos anos 60 apenas três trabalhos, efetivamente provenientes de Lidança; contudo, outros poemas concretos e visuais aparecem nas secções dedicadas às restantes décadas cobertas pela antologia. Embora dispersa, a produção literária e artística de Abílio foi intensa ao longo de todos esses anos, como hoje o Arquivo Digital da PO.EX bem demonstra,31 com as lacunas naturais impostas por um trabalho artístico impossível de esgotar. Para finalizar, argumente-se ainda que Lidança não é uma obra menos política do que outras, e com isto se contraria a ideia de que à experimentação formal se opõe a exploração temática, posto que, em realidade, não só estas duas dimensões se desenvolvem de modo simultâneo e recíproco, como fazem despontar uma terceira dimensão: a forte crítica sócio-política que, note-se, não “subjuga” nem “compromete” a artisticidade ou literariedade das obras, antes as expande e problematiza.

Arte postal No início dos anos 80, Abílio iniciou uma profícua relação com vários artistas estrangeiros através do circuito de arte postal. Esse diálogo teve início aquando da sua participação na XVI Bienal de Arte de São Paulo (1981), a convite de Walter Zanini, precedida por duas outras exposições realizadas na mesma cidade brasileira, segundo revela o próprio artista: Comecei a trabalhar em Arte Postal “oficialmente” por ter recebido convite do Prof. Dr. Walter Zanini para participar no núcleo de Arte Postal da XVI Bienal de S. Paulo. Atribuo este convite ao facto de ter

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conhecido o artista Artur Barrio, em 1977, quando realizou uma excelente exposição individual no Porto. Ficámos Amigos e por seu intermédio participei na exposição Poéticas Visuais realizada no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de S. Paulo, pelo director Prof. Dr. W. Zanini. E também por trabalhos meus integrarem a representação portuguesa de Poesia na XIV Bienal de S. Paulo, nesse mesmo ano de 77. A inserção no catálogo de Arte Postal da XVI Bienal de S. Paulo dos endereços dos participantes trouxe-me os primeiros contactos de artistas doutros países. (Santos 1984: 1)

É ainda no mesmo ano de 1981 que Abílio-José Santos responde ao convite internacional que culmina na realização da exposição Poema Colectivo Revolución, com base num projeto de arte postal convocado pelo Colectivo 3, grupo composto por Aarón Flores, Araceli Zúñiga, Blanca Noval e César Espinosa, a partir da cidade do México. 32 Com base no tema da “Revolução” – numa alusão à sublevação sandinista na Nicarágua então em curso mas procurando uma reflexão ampla sobre o assunto – o projeto consistiu na distribuição de uma folha com tamanho de carta apenas contendo uma moldura em branco para ser preenchida pelos artistas que a recebessem, depois assinada e devolvida aos proponentes do projeto, segundo as informações presentes em formato destacável na orla inferior da página.33 Realizaram-se duas exposições com as obras recebidas. A primeira, patente na Pinacoteca de la Universidad Autónoma de Puebla (1982), mostrou trabalhos de 130 artistas de 26 países, permanecendo aberta a convocatória34 que irá fazer com que aquando da exposição na Universidad Autónoma Metropolitana da Cidade do México (1983) o projeto se totalizasse já em cerca de quatro centenas de obras de artistas de mais de 40 países. AbílioJosé Santos participou neste projeto coletivo internacional e internacionalista35 tendo contribuído com doze trabalhos sobre o tema “Revolução”, tão caro à sua obra. De Portugal, participaram ainda diversos artistas plásticos e intermédia,36 alguns deles presença assídua na rede de arte postal durante os anos 80, e também autores trabalhos próximos da copy art, construídos com recurso a fotocópia e técnicas mistas, como Manuel Almeida e Sousa, Esther Olondriz e Emerenciano. A revolução sandinista da Nicarágua, referida em vários trabalhos do artista37, não aparece diretamente nos trabalhos que Abílio apresenta nas exposições de Poema Colectivo Revolución.38 Há lugar para a revolução portuguesa (folhas 1 e 2) e o processo de transição democrática (folha 3, 5 e 6), a ditadura de Augusto Pinochet no Chile (folha não numerada),

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Ronald Reagan e as ligações dos Estados Unidos da América ao regime de Israel (folha não numerada) ou à conexão do então presidente dos E.U.A. à espionagem da C.I.A em Portugal (folha 4). Tudo isto sob a forma de fotocópias de artigos da imprensa portuguesa que o autor colige e faz circular internacionalmente. Mais interessantes ainda são os trabalhos criativos com os quais Abílio intervém neste projeto político de arte postal. Aí se incluem dois poemas visuais amplamente representados em antologias (“Revolução/Revelação”, 1981; “Ovo, rua, revolução”, 1981), mas também a menos conhecida proposta de “novas notas de um dólar” (1982), que se constitui enquanto crítica devastadora a Reagan e Frank Carlucci, embaixador dos E.U.A. em Portugal entre 1974 e 1978 e informador da C.I.A durante o período do Verão Quente. Aí se incluem também como alvo de crítica os “impagáveis soares, santos & gama / donos do partido da partida do socialismo na gaveta” que, também eles, segundo esta “proposta ao cuidado do presidente reagan” receberão “pagamento de fretes democráticos de carluCÍAdas” (Santos 1982a). Em T'arrenego (1991),39 Abílio republica esta “proposta”, lado a lado com vários textos-visuais realizados, segundo nota do autor, entre 1982 e 1985 expressamente para arte postal (Santos 1982b:). Se os três críticos de arte da A.I.C.A. são alvos individualizados – mas simbólicos – das violentas sátiras do artista, na esfera política é a Ronald Reagan, presidente norte-americano à época, que é dada maior atenção. Conforme aí afirma o artista: “Reagan é o exemplar típico de certa classe política defensora da civilização cristã ocidental & da sociedade de consumo, e sobretudo seu chefe nato, personificando a política hipócrita, prepotente, ingerente e belicosa dos u.s.a.” (ibidem). Ao criticá-lo, critica a nova ordem mundial que inclui também os países “bafejados pela santa madre América imperialista do pistoleiro atómico do oeste nato, pentagonal & ciático Al Reagan Capone, escancaradamente ou veladamente” (Santos 1984: 3). Serve a arte postal, argumenta, para a defesa da solidariedade, do diálogo e, não menos importante, dos grupos de pressão. Data também deste período inicial do contacto de Abílio com artistas da rede de arte postal a sua ligação a Solidarte, um outro grupo mexicano, cujas linhas de ação cruzam a arte com a intervenção social, naquilo que hoje frequentemente se denomina como artivismo. Formado em 1982, Solidarte (Solidaridad Internacional por Arte Correo) foi um grupo de artistas40 reunidos em torno da reflexão social e prática interventiva através da

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rede de arte postal, sobretudo com o objetivo de denunciar os casos de perseguição, prisão e repressão política sobretudo em território latino-americano. As suas linhas de ação surgem sintetizadas no manifesto “Solidarte/México: Solidaridad Internacional”: 1) una producción artística y cultural que se opusiese a toda norma de imposición e intervención cultural, política y militar, 2) por la solidaridad y el apoyo a los movimientos de liberación de los pueblos oprimidos y clases trabajadoras, y 3) por el respeto a los derechos civiles y humanos y en favor de los movimientos por la paz y el desarme. (apud Nogueira 2014: 165)

O nome Solidarte/México só surge quando, noutros países, começam a aparecer grupos afins, como Solidarte/Brasil, Solidarte/Austrália, Solidarte/França, entre outros. Abílio é o fundador do núcleo Solidarte/Portugal – que vemos referido, por exemplo, nas palavras que carimbam um dos seus trabalhos de arte postal, “Homenagem a Mandela” (1986)41 – e cuja pertença o artista narra com apreço – “Depois, como Você sabe, Amigo Guerrero, por ser um dos subscritores da carta, fui de novo honrado por artistas mexicanos, ao contactarem-me colectivamente para ser o centro de apoio da SOLIDARTE/MÉXICO.” (Santos 1984: 3). As vastas colaborações que Abílio desenvolve no âmbito da arte postal, como fuga às redes de informação institucionais e contraponto aos circuitos do mercado da arte, parecem demonstrar como este meio aberto, comunitário e deshierarquizado vem oferecer ao artista uma plataforma de comunicação que condiz na perfeição com o seu próprio posicionamento artístico e político, nomeadamente ao promover a comunicação livre e direta – não mediada por instituições e outros poderes ou capitais simbólicos –, daí resultando, nas palavras do próprio, um “estreitar [d]as relações de Fraternidade e Amizade entre artistas, mundialmente, através de processos de comunicação, criativos e experimentais, pelos Correios. Por isso os postalartistas contribuem para promover relações de Fraternidade e Amizade entre os Povos.” (idem: 1). O internacionalismo do projeto da arte postal – criado, gerido e renegociado de forma contínua pelos próprios integrantes – constitui, por si mesmo, uma forma radical de ser e estar no mundo, quer esse “ser” esteja cerceado das suas liberdades individuais mais básicas ou esse “estar” seja realizado em plena liberdade.

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Em qualquer dos casos, como Abílio constata de forma tão lúcida quanto libertária, todo o empenho, participação e ação depende sempre dos sujeitos: Creio que o desenvolvimento da Arte Postal não depende unicamente das condições sócio-culturais dos países. É evidente que num país onde em vez de amplas liberdades de criação, expressão, comunicação e reunião haja censura, violação da correspondência e outras formas de repressão criminosa todas as actividades dos cidadãos são muitíssimo dificultadas, prejudicando-os nos seus legítimos interesses individuais e colectivos, nacionais e internacionais. Mas a Arte Postal tem características para poder expandir-se sempre, mesmo nas condições sócio-culturais mais adversas. O seu desenvolvimento será difícil e até perigoso nuns países e, contrariamente, fácil e até estimulado noutros... Mas, essencialmente, depende do empenhamento dos postalartistas. (ibidem)

Ademais, a arte pode mesmo contribuir como instrumento crítico para agir no contexto societal, não apenas enquanto instrumento na cadeia de produção de discurso simbólico, mas, muitas vezes como elemento na cadeia micro-política da ação direta, neste sentido expandindo a conceção de Fredric Jameson segundo a qual “the production of aesthetic or narrative form is to be seen as an ideological act in its own right, with the function of inventing imaginary or formal 'solutions' to unresolvable social contradictions.” (Jameson 2002: 64). Indo além da arte como interveniente simbólico pela criação de alternativas imaginárias, projetos de arte postal como os que Solidarte desenvolveu operacionalizam-se nos mesmos moldes daquilo que hoje leva o nome de tactical media,42 posto que ambos renegam o simbolismo da ação artística e reivindicam para si uma real dimensão interventiva através da combinação de arte, meios experimentais e ativismo político.

Considerações finais Se as formas literárias experimentais foram sendo sistematicamente esquecidas nas grandes linhas de investigação dos estudos literários e da história da literatura em Portugal, seria hoje importante olhar para obras e autores como Abílio-José Santos, na suas filiações e afastamentos, para melhor entender o fenómeno literário da contemporaneidade sem incorrer no gesto acrítico da reprodução de lacunas pelo esquecimento ou alheamento. Num momento em que se intensificam, nas universidades, os estudos relacionados com alguns

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dos autores da poesia experimental portuguesa e, nas instituições artísticas e culturais, aumentam as exposições, publicações e debates sobre as suas obras, é relevante voltar o olhar também para aqueles autores que, um pouco à margem de sistemas e grupos, produziram uma obra de igual modo capaz de comunicar com o leitor do momento presente. A obra de Abílio, vista pelo prisma esboçado neste artigo, longe de firmar uma análise exaustiva da sua obra, técnicas, materiais e expressividades, permite vislumbrar uma poética de intervenção material (política, social, medial) que se desenvolve contribuindo para uma politização da estética e contra uma estetização da política. Fá-lo num sentido amplo, mas também naquele plano de pormenor em que se denunciam as injustiças que comandam o mundo, em geral, e o mundo da arte, em particular. Num tempo em que ganha terreno o manual de escrita criativa, com as suas fórmulas e normas únicas para o sucesso literário, julgo ser da maior importância voltar a olhar para as propostas de reescrita criativa manual de Abílio, revogadoras subversivas da normalização e da mesmidade através da sua micro-intervenção no mundo.

NOTAS

1

É esta última que interessa analisar mais demoradamente neste artigo. Algumas das obras de Abílio-José

Santos que se inscrevem neste núcleo estão disponíveis sob a forma de representantes digitais no Arquivo Digital da PO.EX (ed. Rui Torres, Universidade Fernando Pessoa). Ao longo do artigo será feita remissão para75as respetivas entradas sempre que tal seja possível e se justifique. Esta listagem não terá caráter exaustivo, por motivos de espaço e organização, pelo que se sugere a leitura exploratória do alargado número de obras do autor disponíveis no Arquivo a partir de https://po-ex.net/abilio. 2

Aquando da primeira exposição individual de Abílio, de pintura e desenho, realizada na Galeria Divulgação, no

Porto. 3

Com linóleos de Maria Augusta, com quem Abílio colaborou extensamente. Trata-se de um desdobrável de

grandes dimensões (49 x 70 cm quando aberto) que apresenta uma sequência de onze poemas concretos que exploram as dimensões visuais e sonoras do signo verbal e a sua espacialização na página. A obra pode ser

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consultada no Arquivo Digital da PO.EX: https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/abiliolidanca/. 4

Refira-se, a este respeito, o volume retrospetivo organizado por ambos (Hatherly / Melo e Castro 1981), mas

também os contributos teóricos e documentais presentes nos estudos que exploram a relação do experimentalismo com as vanguardas (Melo e Castro 1965, 1976, 1984; Hatherly 1975, 1979) e nos estudos de arqueologia das formas experimentais, em particular no diálogo que estabelecem entre o experimentalismo e a tradição dos textos-visuais barrocos. Esta relação é evidenciada desde logo no trabalho seminal de Hatherly, A Experiência do Prodígio: Bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII (1983), livro ao qual se seguiram diversos volumes sobre a temática, culminando na recente publicação, a título póstumo, de Esperança e Desejo: Aspectos do pensamento utópico barroco (2018). Embora seja impossível apresentar um quadro concetual exaustivo nesta nota – quer por critérios de espaço, quer devido a uma certa instabilidade dos conceitos e definições da poesia experimental –, merecem ainda menção os breves mas expressivos ensaios de Salette Tavares e de António Aragão nos quais se relacionam vários momentos e expressões da história da literatura com a contemporaneidade do experimentalismo poético. Já Abílio, como deixou escrito pela sua própria mão, “talvez por ser um autodidacta insurrecto e panfletário nunca senti vocação para autor de textos teóricos sobre perspectivas de... não me ajeito! duma maneira geral não gosto das teorias que li ou televi nem dos gajos que as pariram!” (Santos 1985a: 107). 5

Veja-se, no seu (COLAGE)Manifesto Vermelho, adiante analisado em detalhe, as palavras que redige a partir de

um elogio aos ready-mades de Duchamp: “Igualado os objectos, igualou os seus autores e destruiu a pretensiosa superioridade do trabalho intelectual vulgar, normal. O trabalho do padeiro ou do sapateiro será menos importante do que o trabalho do pintor? * Ou do médico, ou do escritor, ou do ministro (mesmo P.S.)???...” (s.p.). 6

Refira-se ainda a inclusão de trabalhos seus em algumas das mais importantes revistas experimentalistas

internacionais, como Kaldron (n.º 15, 1982; n.º 18, 1984), Postextual (n.º 1, 1986), Doc(k)s (n.º 80-86, 1987), UNI/vers(;) (n.º 2, 1988;), Bollettario (n.º 4, 1991) e Dimensão (n.º 21, 1991). 7

Não só é impressionante o número de exposições em que participa como a diversidade de países em que

obras suas foram expostas: Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Brasil, Canadá, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos, Holanda, Israel, Itália, Japão, México, Nicarágua, Perú, Polónia, Portugal, República Dominicana e Suécia. 8

Em organização conjunta com José Viale Moutinho, “O Poeta é um Fingidor - I Exposição Internacional de Arte

Postal da A.J.H.L.P.”, realizada em 1985 na sede da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto (da qual Abílio foi membro dos corpos gerentes e que, recentemente, recebeu a exposição retrospetiva de Abílio, O Guardador de Nada), exposição com réplica em 1986 na Escola Secundária n.º 2 de Santo Tirso; e “1.ª Exposição Internacional de Arte Postal de Matosinhos”, co-organizada em 1992 com César Figueiredo, artista

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Radicalidade expressiva em Abílio-José Santos: uma obra poética fora do espaço da galeria, uma obra visual à margem do sistema editoria

de copy art portuense com quem Abílio colaborou em diversas ocasiões e principal responsável pela realização das mais relevantes exposições internacionais de arte postal realizadas no país. 9

Sobre esta oficina diz Abílio: “Em Novembro de 1961 a Academia Dominguez Alvarez inaugurou uma oficina

livre de gravura para D’Assumpção trabalhar na nossa cidade, continuando a realizar a sua obra gravada e para ensinar técnicas de gravura a todos que pretendessem aprender. Fomos alguns os que aprendemos os rudimentos de gravura com ele. E outros aprenderam depois connosco do que tínhamos aprendido, acrescido da experiência que todos juntos íamos adquirindo.” (Santos 1970: 2) 10

A escrita é aqui entendida num sentido amplo, inclusivo do ato de “ler” e de “ver”, tal como comunica de

forma feliz o verbo “v(l)er”, jogo-neologismo criado por Abílio. Para além de aparecer em vários dos seus trabalhos de arte postal (como autocolante ou carimbo), v(l)er dá aí título a um conjunto de nove boletins do autor, bem como a um volume com o mesmo título (e igualmente não datado) que reúne, em folhas soltas numeradas e agrupadas em capa de cartolina, poemas concretos e visuais elaborados entre 1962 e 1983, constituindo uma espécie de “obra completa” do autor até essa data. 11

A este respeito refira-se a recente realização de um memorial performativo intitulado “De_composição e

meta_morfose: a im_permanência da obra de Abílio-José Santos no Arquivo Digital da PO.EX”. Esta iniciativa, organizada conjuntamente por Rui Torres, Sandra Guerreiro Dias e por mim, consistiu na apresentação de painel de comunicações no colóquio Besides the Screen, realizado na Maia a 5 e 6 de julho de 2018, atividade essa acompanhada, de forma interligada, por recurso digital a publicar futuramente no Arquivo Digital da PO.EX. Esta página será constituída por textos e apontamentos críticos (elaborados pelos investigadores mencionados), imagens fotográficas (narrativa visual, criada por Leonor Figueiredo, a propósito de visita à casa de Abílio na Maia tal como hoje a encontramos, vinte e seis anos após a sua morte ali permanecendo ainda o seu arquivo de artista) e vídeo (depoimentos de César Figueiredo, Isabel Camarinha, Bruno Carvalho e Estela Rodrigues sobre o autor e a sua obra). 12

Os manifestos “lixarte” e “lixarte/2” estão disponíveis no Arquivo Digital da PO.EX através da reprodução dos

panfletos de 1987 agrupados com o título “I e II Manifestos LIXARTE”, em edição do autor que inclui também vários

poemas

visuais

e

colagens

relacionados

com

os

manifestos:

https://po-

ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/abilio-manifestos-lixarte. 13

Considere-se, a título de exemplo, uma vez mais, o seu (COLAGE)Manifesto Vermelho, nomeadamente no

momento em que ali se afirma que “quando MARCEL DUCHAMP apresentou publicamente, a partir de 1914, os seus “READY MADE” – objectos prontos – realizou a MAIOR CRIAÇÃO ARTÍSTICA DE SEMPRE!!!” (s.p.); ou ainda quando inteiramente em letras garrafais o artista escreve: “Admiro Marcel Duchamp e creio que a arte moderna começa no movimento dada” (s.p).

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É possível consultar registos fotográficos de exemplares desta obra no Arquivo Digital da PO.EX em:

https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/tridimensionais/abilio-manifestos-lixarte-1-e-2/. 15

Será interessante transpor para a obra de Abílio o que Manuel Portela afirma a propósito da obra objetual e

“obgestual” de António Barros, também ele poeta experimental e artista intermédia, nomeadamente quando se sustenta que: “Ao participarem da semiótica social que produz identidade de classe e relações de poder, os objetos contêm múltiplas camadas semânticas que interpelam os indivíduos e determinam o exercício simbólico do poder.” (Portela 2014: 189). 16

Referidos como “emba(cu)lagem”, num dos pacotes, ou “cu(emba)lagem”, escrito noutro. Com efeito, trata-

se de paródicas colagens de traseiros em embalagens, conforme se pode ver no Arquivo Digital da PO.EX em: https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/tridimensionais/abilio-ar-bento/. 17

Obra editada em 1992 sob a forma de brochura e constante, na íntegra, do catálogo da V Bienal de Artes

Plásticas da Festa do Avante (1985). Trabalhos desta série foram ainda reproduzidos parcialmente, de forma isolada ou em pequenos conjuntos, nos catálogos da IV Bienal Internacional de Cerveira (1984), Árvore 84 Exposição nacional de pequeno formato (1984) e I Bienal Internacional de Poesía Visual y Experimental (1985); nas revistas Kaldron (n.º 18, 1984), Sobreviver (n.º 2, 1986), DOC(K)S (n.º 80-86, 1987), SCORE (n.º 10, 1989) e Inter (n.º 46, 1990); bem como no livro Poemografias (1985), editado por Fernando Aguiar e Silvestre Pestana, sendo também Aguiar o responsável pela organização de muitos dos números e dossiers incluídos nas revistas acima mencionadas, bem como de algumas das exposições em que Abílio participa. 18

O grupo é constituído por Abílio, Carlos Ferreira e Dias Santos e, sobre ele, Fátima Lambert refere o seguinte:

“Breves escândalos e coloridas manifestações caracterizam a dinâmico do 'Grupo Vermelho', organizado em seu redor [de Abílio]. Integrava, ainda, Carlos Ferreira e Dias Santos, dando expansividade à sua personalidade irreverente, magnética e insaciada.” (Lambert, 2003: s.p.) 19

Vd. reprodução de cartaz próprio da obra na p. 41 da revista Artes Plásticas, n.º 7-8, dezembro-janeiro de

1977. 20

Embora se relacione com o Grupo Vermelho, até através do seu título, este manifesto-obra é assinado

individualmente. Reprodução da matriz original deste trabalho está disponível no Arquivo Digital da PO.EX em: https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/abilio-jose-santos-colagem-manifesto-vermelho. 21

O texto que aqui se cita e o fragmento em que se insere no manifesto-colagem é recorte de “arte e

liberdade”. 22

Intervenção manuscrita no manifesto. No texto de origem (“arte e liberdade”), lia-se apenas: “esse nível é

atingido por artistas. os artistas existem.” (Santos s.d. [197-]).

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Radicalidade expressiva em Abílio-José Santos: uma obra poética fora do espaço da galeria, uma obra visual à margem do sistema editoria

23

O sujeito da frase é, no contexto original (“manifesto à cidade”), não “o artista revolucionário” mas “a

sociedade cooperativa de actividades artísticas 'árvore'”. 24

Inscrição sob a forma de escrita caligráfica. Não presente em texto anterior, note-se que as palavras do autor

estão perfeitamente sincronizadas com o tempo da sua escrita, sendo marcadas por uma certa desilusão pósPREC que toma o lugar da expetativa otimista presente no manifesto de 1974. 25

De seu título completo “manifesto à cidade de um manifesto à cidade dum trabalhador fabril-técnico de

desenho artista autodidacta amador dadaísta” (1974), incluído no panfleto desdobrável Despertador, disponível no Arquivo Digital da PO.EX em: https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/abiliojose-santos-despertador/. 26

Disponível no Arquivo Digital da PO.EX em: https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/abilio-

jose-santos-da-aica-laica-lacaia/. 27

Com imposição do carimbo “ARTE POSTAL” que encontramos em muitos dos trabalhos do artista.

28

Disponível no Arquivo Digital da PO.EX em: https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/abilio-

jose-santos-carta-ao-critico-d-arte-dr-rui-mario-goncalves/. 29

Exclusão até num sentido literal, como foi o caso da não aceitação de obra de Abílio na exposição do Banco

Português do Atlântico, bloqueado por um júri constituído por elementos da A.I.C.A. A obra rejeitada, O bigode no espelho (1968), é uma assemblagem de dimensões variáveis constituída por tufo de cabelo colado sobre espelho emoldurado. A obra pertence à coleção da família do artista e, à semelhança de outros trabalhos, encontra-se depositada na Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, no Porto. Abílio realizou uma exposição homónima em 1970 na Galeria Árvore, no Porto, e, também com o mesmo título, publicou dois folhetos em 1975 e 1976, sempre apontando para O bigode no espelho como “um símbolo e uma denúncia” (lê-se na capa do n.º 1). 30

O autor reporta-se à Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973), ao catálogo da XIV Bienal de São Paulo

(1977), ao catálogo de PO.EX/80

(1980) e ao volume PO.EX: Textos teóricos e documentais da poesia

experimental portuguesa (1981). 31

De resto, a sistematização realizada neste artigo parte das obras disponíveis no referido Arquivo bem como

de uma expansão dos dados biobibliográficos de Abílio apensados ao artigo de Eunice Ribeiro (2014). 32

Uma relação de mútuo apreço manter-se-á por vários anos com César Espinosa, a quem Abílio dedica o curto

folheto anticolonialista com o longo título Crónica de escárnio & mal dizer das Descobertas quinhentos anos depois ou nas mesmas mãos as cruzes & noutras mãos as espadas (1992), consultável no Arquivo Digital da PO.EX em: https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/abilio-jose-santos-cronica-de-escarnioe-maldizer-das-descobertas/. Espinosa publicou em 1983, na série de publicações editada pelo Colectivo 3 sob

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Bruno Ministro

o título Poesia/Visual-Experimental/Poetry, um breve opúsculo com oito poemas visuais e concretos de Abílio. César Espinosa e Araceli Zuñiga, organizadores das Bienais de Poesia Experimental e Visual do México, em cujas exposições o artista português participou por diversas ocasiões, dedicaram a quinta edição da bienal, de 1996, à memória de Abílio. 33

Um exemplar da folha modelo é reproduzido em Marcin (2013).

34

Aliás, vai ser reforçada, conforme comprova o convite disponível no sítio web do Artpool Art Research Center:

http://www.artpool.hu/MailArt/chrono/1982/Poema.html#Call. 35

Escrevem César Espinosa e Araceli Zúñiga no catálogo da exposição realizada na Universidad Autónoma

Metropolitana: “Acreditamos que, enquanto entidade semiótica, o Poema Colectivo Revolución reúne um mosaico ideológico internacional, cujas variantes poderiam ser usadas para mapear critérios e estratégias para um internacionalismo artístico e cultural. Hoje no México, sustentamos que a poesia visual pode significar um ato revolucionário, tanto em termos estéticos quanto para empoderar as capacidades significadoras da maioria de trabalhadores com seus gráficos, com a circulação obtida e também na comunicação popular.” (apud Nogueira 2017: s.p.). 36

A saber: Albuquerque Mendes, António Olaio, Armando Azevedo, Elisabete Mileu, Manoel Barbosa e Pedro

Cabrita Reis. 37

Vd. por exemplo, em T'arrenego, o poema “glória aos sandinistas”, com dedicatória em epígrafe: “para o

mexicano césar espinosa / e os outros amigos do colectivo 3 / e da solidarte – solidariedade internacional por arte correio”. 38

Vejam-se os trabalhos de Abílio digitalizados na plataforma Post e sítio web do MoMA em:

http://post.at.moma.org/themes/10-poema-colectivo-revolucion-and-the-international-mail-art-network (clicar em “Portugal”). 39

Disponível no Arquivo Digital da PO.EX em: https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/planograficas/abilio-

tarrenego-tio-sam/. 40

Coletivo constituído por Aarón Flores, Blanca Noval, Carmen Medina, Jesús Romeo Galdámez e Mauricio

Guerrero. 41

Vd. p. 2 da obra no Arquivo Digital da PO.EX em: https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/

planograficas/abilio-homenagem-a-mandela/ (imagem 4/8 da galeria). 42

No texto seminal “The ABC of Tactical Media” definida nos seguintes termos: “Tactical Media are what

happens when the cheap 'do it yourself' media, made possible by the revolution in consumer electronics and expanded forms of distribution (from public access cable to the internet) are exploited by groups and individuals who feel aggrieved by or excluded from the wider culture.” (Garcia / Lovink 1997: s.p.).

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Bruno Ministro é doutorando em Materialidades da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Este trabalho foi desenvolvido no âmbito da Bolsa de Doutoramento FCT com a referência PD/BD/105707/2014. Gostaria de expressar o meu agradecimento a Rui Torres (Arquivo Digital da PO.EX) e Bruno Carvalho (sobrinho de AbílioJosé Santos) pelos esclarecimentos e auxílio prestado durante a redação deste artigo, bem como pela autorização para reproduzir as imagens que acompanham o texto.

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Entre Florença e Serém: José Miguel Silva num itinerário para uma poética da solidão

Entre Florença e Serém: José Miguel Silva num itinerário para uma poética da solidão

Cristina Oliveira Ramos Universidade do Porto

Resumo: O presente ensaio visa abordar as problemáticas da solidão e do êxodo em duas obras de José Miguel Silva: Erros Individuais (2010) e Serém, 24 de Março (2011). Partindo de uma leitura conjugada de poemas pertencentes a ambos os livros, procura-se evidenciar não só a militância crítica do autor face à sociedade contemporânea, como ainda o seu ímpeto evasivo de uma comunidade urbana, evoluída, porém corrompida no seu âmago. Palavras-chave: “Poetas sem qualidades”, José Miguel Silva, solidão, êxodo Abstract: This essay aims to address the themes of solitude and exodus in two works from José Miguel Silva: Erros Individuais (2010) and Serém, 24 de Março (2011). Based upon a reading connecting poems from both books, the argument put forward seeks to explicate the author's critical militancy against contemporary society, as well as his tendency to escape from an urban community, modern, although damaged in its core. Keywords: “Poetas sem qualidades”, José Miguel Silva, solitude, exodus

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Cristina Oliveira Ramos

Que nos falta para viver uma festa? Quase nada, reconhece. Talvez companhia, Um pouco menos de ruído, não sei, Cancelar de vez a assinatura do mundo.

José Miguel Silva

As obras Erros Individuais e Serém, 24 de Março, quando lidas paralelamente e atentando nos conceitos de “solidão” e “êxodo”, evidenciam, desde logo, perspetivas distintas acerca dessas noções. Isto é, verifica-se uma abordagem diversa das conceções de isolamento e deserção, em diferentes momentos da mesma produção poética. Como poderá ser representada, poeticamente, a solidão? Quais as suas implicações nas obras suprarreferidas? De que modo pode o êxodo ser salvífico para um eu desiludido com a sociedade em que se insere? Estas são algumas das interrogações que se podem colocar, desde já, e nas quais este ensaio se deterá. Principie-se esta discussão por atentar em dois poemas pertencentes à primeira obra mencionada, não sem antes realçar que o próprio título – Erros Individuais – aponta, desveladamente, para a problemática da reclusão: o poeta, através do eu lírico, propõe-se a evidenciar e inventariar erros que, antes de serem transfigurados em linguagem poética, assume como singulares e, portanto, solitários e distintivos. Nesta confluência, note-se desde já que os títulos dos textos poéticos que compõem este livro remetem, por si só, para a peculiar postura adotada pelo flâneur baudelairiano. Assim, o sujeito poético paira pelas ruas de Florença, frequenta os museus mais emblemáticos e observa criticamente a multidão que ora o acompanha à distância, ora, com um impulso consumista face à atitude de apreciação estética da arte, parece acabar por absorvê-lo. Vejam-se exemplos concretos de excertos que denotam esta dualidade de atitudes. As passagens abaixo evidenciam a postura distante e ativamente crítica do sujeito, perante o desinteresse intelectual das massas:

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Entre Florença e Serém: José Miguel Silva num itinerário para uma poética da solidão

Numa órbita pastosa e fatigada, sonolenta, vão cumprindo a penitência da rodagem cultural, electrizados por uaus de trovejante aborrimento.

(...)

Quando saem, combalidos, desagravam-se em gelados de três quilos, endireitam o chapéu com um suspiro, ganham ânimo e prosseguem rumo ao próximo vexame. (Silva 2010: 29)

Porém, num outro poema, o eu modaliza o discurso e recorre à segunda pessoa do plural, como que assumindo ser parte integrante da multidão: Em San Miniato caminhamos sobre mortos, epitáfios, tristes portas a que batemos, sem saber, com um descuido de volúveis, ociosos tacões, enquanto farejamos, de nariz no ar, a gostosa patranha da Ressurreição. (idem: 21)

Ao compor vários dos seus poemas na terceira pessoa do plural – como é o caso de “Galeria dell’accademia” (idem: 29) –, o poeta instiga o seu eu lírico a adotar uma posição de voyeur solitário perante a sociedade. Deste modo, e não obstante a delação que dela faz, o sujeito poético parece esgotar-se nesse gesto e não assumir, claramente, a tomada de uma posição combativa perante as falhas que essa mesma comunidade apresenta, preferindo desistir de militar por uma regeneração: “[p]ela parte que me toca [o tempo presente], está bom para fugir” (Silva 2004: s/p), afiançou o autor numa entrevista concedida a Filipa Leal. A este propósito, Pedro Eiras, em Um Certo Pudor Tardio. Ensaio sobre os «poetas sem qualidades», salienta precisamente que “um poeta sem qualidades não desconhece o peso da tradição, das expectativas da superprodução, da superprodução dos tempos, mas decide, por assim dizer, – desistir” (Eiras 2011: 21). No último poema referido – que detém uma forte componente descritiva –, a multidão parece ser equacionada pelo eu lírico, que a contempla cirurgicamente, como um

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Cristina Oliveira Ramos

todo homogéneo, onde não é possível estabelecer qualquer diferenciação. Desta forma, “[h]umilhados, consumidos, ovelhunos” (Silva 2010: 29) são todos homens que não pretendem superar-se a si próprios, aspirar ao domínio do super-homem nietzschiano, e que se aproximam da obra de arte não para a fruírem, mas para a consumirem, num átimo, e a esquecerem, no instante subsequente. José Miguel Silva regista esse mesmo comportamento, num tom disfórico, porém mordaz: aqueles que rodeiam a escultura de David como que cumprindo o código de conduta inerente aos visitantes hipoteticamente cultos de museus (aos olhos da sociedade) não desfrutam, de todo, da contemplação, como é notório no seguinte excerto: que perversa compulsão atrai os filhos de Golias, o guerreiro filisteu, à presença do fanático David ?

Numa órbita pastosa e fatigada, sonolenta, vão cumprindo a penitência da rodagem cultural. (ibidem)

Valendo-se da ironia, o poeta alerta, então, para a degenerescência do ato recetivo da arte, em prol da profusão consumista de que tem vindo a ser alvo o objeto estético. Assim, o eu lírico possibilita, com o seu spleen solitário, uma aproximação à mundividência explicitada por Charles Baudelaire: “[m]ultidão, solidão: termos iguais e transmutáveis para o poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar a sua própria solidão, também não sabe estar só no meio de uma turbamulta afadigada” (Baudelaire 1991: 35). Todavia, faça-se notar que, diferentemente do que acontece com o poeta francês, o autor de Erros Individuais não atribui ao seu sujeito poético uma dolência intrínseca, decorrente do exercício contemplativo característico de um dandy, preferindo antes valer-se da sua disforia face ao quadro vivencial que observa não para o tentar reverter, mas sim para o denunciar. A este respeito, recorde-se que José Miguel Silva realça que “[m]ais pertinente do que o carácter realista da [sua] poesia talvez seja (…) a (...) propensão para interpelar não apenas o íntimo e pessoal, mas também o social.” (Silva apud Bonifácio 2011: s/p).

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Entre Florença e Serém: José Miguel Silva num itinerário para uma poética da solidão

Regresse-se a “Galeria dell’accademia” para destacar que o sujeito poético disfórico parece sugerir ao leitor o seu isolamento perante o grupo de turistas que o acompanha na visita a esse museu florentino. Assim, o eu lírico denuncia a decadência dos valores sociais, personificados nos indivíduos que o acompanham, porém tenta, através do grito de delação, estabelecer uma posição que visa o seu isolamento face àqueles que apenas “[d]ão voltas e mais voltas à cabeça / tronco e membros do herói, avaliando / pela altura de seus ombros a sua própria / pequenez, a decadência comum” (Silva 2010: 29). Nesta perspetiva, constatese ainda que, contrariamente a Baudelaire, Nietzsche diferenciou solidão e multidão, admitindo que a segunda é prejudicial aos espíritos elevados e aconselhando-os a refugiarem-se consigo mesmos, para se preservarem da corrupção social: “[o]nde cessa a solidão começa a praça pública; e onde começa a praça pública começa também o ruído (…) e o zumbido das moscas venenosas” (Nietzsche 1997: 57). Essa mesma posição de recolhimento reflexivo, que adensa a tonalidade melancólica, mas também enfurecida do eu lírico, torna-se ainda mais evidente noutros poemas como “Via dei malcontenti”. Leia-se, na íntegra, o poema: Os malcontentes eram os homens, os pobres, os condenados à morte. Em Florença não há pobres, e condenados à morte só os vivos. Não admira, por isso, que esteja deserta a velha via della giustizia. Evitam-na turistas e locais, poucos dados, uns e outros, a miasmas que chamusquem a redoma do recreio.

De modo que podemos fotografar-nos, eu a ti e tu a mim, com uma cara de todos os dias, sob o olhar comiserado de Madona com Menino (ladeados por S. Pedro e S. José) no tabernáculo da esquina. Uns e todos condenados à fuligem da riqueza, atropelados pela máquina do tempo. (Silva 2010: 19)

O texto apresenta uma nova narrativa poética que apresenta o sujeito a descrever a multidão in absentia e os preceitos (a)morais dela característicos.

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Neste poema, o eu deambula pela rua apenas acompanhado por um tu incógnito, do qual não são dadas quaisquer informações adicionais para além da sua existência. Sabe-se apenas que, tal como o eu lírico, este flana ao seu lado “com a cara de todos os dias, / sob o olhar comiserado de Madona com o Menino / (ladeados por S. Pedro e S. José) no tabernáculo”, o que introduz uma nova nota de desânimo e desistência, como que retomando as palavras proferidas por Zaratustra: “para qu[ê] falar quando ninguém tem ouvidos para me entender? Ainda é muito cedo para mim” (Nietzsche, 1997: 192). Analisem-se, agora, as duas estrofes do poema, conjuntamente: num primeiro momento, e à semelhança do que se viu no texto poético anterior, o eu lírico descreve, num tom irónico, quem são os “malcontentes”, afirmando que esses são todos os homens: é ele próprio e é também o recetor do poema. Por outro lado, ressurge o topos do universo consumista, que tende a desvanecer a componente histórica do local e impele ao passeio turístico desinteressado – “Em Florença não há / pobres e condenados à morte, só os vivos”. A cidade parece alimentar-se, portanto, do êxtase turístico, da “redoma do recreio” inviolável, o que enfatiza as duas “emoções básicas” (Bonifácio 2011: s/p) do eu lírico: desânimo e irritação para com o mundo em que se insere, “contra tudo o que não sabemos mudar: / a morte, o egoísmo, o levadiço coração / humano. Porque não há mais nada (...) e no mercado / do juízo a catequese está em alta.” (Silva 2010: 11) Num segundo momento, o sujeito poético sublinha a sua postura marginal, face ao mercantilismo característico da sociedade preocupada com a venda de postais, catálogos e outros atrativos turísticos, como se pode constatar em versos como: “De modo que podemos fotografar-nos, eu a ti / e tu a mim” (Silva 2010: 19), pois a rua está deserta e os dois estão, de facto, sozinhos, longe do bulício da multidão, numa aceção que parece aludir à seguinte premissa de Nietzsche: “[v]ale mais bater um pouco os dentes do que adorar ídolos” (Nietzsche 1997: 193). Ora nesta confluência poética, o eu lírico parece dar prevalência ao seu afastamento das massas em detrimento da contemplação acrítica da arte, não almejando pertencer a “uma época histórica, cheia de qualidades redentoras (como acontecia na época anterior, e na época antes dessa época, etc.)” (Eiras 2011: 23) e não crendo “nem [n]a ilusão de mais um apocalipse cultural[,] nem [n]a novidade espetacular e fugaz” (ibidem), segundo a perspetiva de Pedro Eiras.

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Entre Florença e Serém: José Miguel Silva num itinerário para uma poética da solidão

A premissa final, “[u]ns e outros condenados à fuligem / da riqueza, atropelados pela máquina do tempo”, introduz uma nova problemática: a da passagem inexorável do tempo, que avassala o ser humano, apesar da velocidade vertiginosa a que se passa a própria vivência em Florença. Porém, mais uma vez, José Miguel Silva apenas denuncia, não aponta uma “fórmula salvífica” para a humanidade desumanizada e degradada, nem aspira a transformar o ser humano, como se pode verificar no seguinte excerto do último poema integrado na secção “Vozes Apanhadas do Chão na Igreja de San Miniato al Monte”, de Erros Individuais: Há quem olhe para as coisas e veja formas, cores, colmeias de melífluo sentido. Eu nunca vi senão prefácios à destruição. Nas linhas dum rosto via o medo farpado, na curva dum ombro, o peso que suporta. Encarava com descrença o sorriso das praças, na cabeça dum menino lia o mapa do inferno e no amor o combustível da ganância. (Silva 2010: 55)

Atente-se, agora, em outros dois poemas pertencentes a Serém, 24 de Março – “Com o pé no acelerador” (Silva 2011: 25-26) e “Desculpas não faltam” (idem: 27) –, nos quais o conceito de solidão se revela como esperança catártica, não obstante infrutífera, do sujeito. Abra-se, contudo, um pequeno parêntesis para frisar que, apesar de esta ser uma poética que parece visar uma hipotética perda de predicados, não deixa de demonstrar um cuidado compositivo peculiar. Neste âmbito e a título de exemplo conciso, não se olvide que vários poemas integrados na obra supracitada1 parecem encetar um diálogo temático com a Écloga Basto, de Sá de Miranda (cf. Miranda 1885: 381-400); isto é, manifestam, mutatis mutandis, uma tensão (ora intelegível, ora mais subtil) entre dois modos distintos de encarar o êxodo e o isolamento: o salvífico e o disfórico, como se constatará com mais pormenor adiante. Após este aparte, realce-se que ambos os textos poéticos são pautados, mais uma vez, pela desesperança e pelo ímpeto solitário face a um mundo e a um protótipo de ser humano deteriorados. Leia-se o primeiro poema referido:

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O vulcão do paraíso expele vendas de ouropel. São os últimos dias do crescimento económico, essa mecânica utopia burguesa, os conselheiros deitam água na fervura do melhor e o futuro retrocede tão depressa que se instala no passado.

Custa-me dizê-lo, mas Descartes estava errado: não há nada no mundo mais bem distribuído do que a estupidez. O que nos leva, fatalmente, à conclusão de que as catástrofes políticas ocorrem por motivos puramente naturais.

Com isto uma pessoa aborrece-se, claro, e já não sabe o que fazer com o acervo de ovos que em tempos esbulhou na sonhadora capoeira anarco-cristã, dividido entre uma fome de cão e a súbita repulsa por gemadas exemplares.

Resultado: pomo-nos a conjurar uma patética fuga para o interior, onde a lixo-dependência menos pesa e nos podemos dar ao luxo de ser pobres. Assim, vira-se à esquerda na nacional 1, depois de novo à esquerda e por fim à direita.

Chegamos. A casa é a última da rua, que não tem, naturalmente, saída. Abaixo disto não há mais nada, apenas um fecundo lameiro de silvas e um rio sossegado, que não lembra a brevidade da vida e onde nem um suicida se consegue molhar.

Sem descendência, nem vocação para sofrer de borla, vou antes tratar (como é que se diz?) do meu jardim, solicitado por narcisos, malmequeres, amores-perfeitos – em suma: florinhas amorais. Então adeus. E boa sorte. Qualquer coisa, telefonem. (Silva 2011: 25-26)

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O supracitado poema pode ser dividido em três partes, de tal forma que os pares de quintilhas preencham cada um desses segmentos. Esta divisão, crê-se, permite observar uma progressão argumentativa, no trilho de um êxodo ponderado e potencialmente purificador (no sentido aristotélico do conceito), escolhido pelo eu lírico. O isolamento parece mimetizar a tentativa de o sujeito poético se afastar não só ideológica, mas também geograficamente, do ruído e da decadência citadinos, que lhe causam mal-estar. O próprio título do poema – “Com o pé no acelerador” – pode remeter, desde logo, para essa necessidade de rápida evasão do eu, desconfortável com a sua solidão, acompanhada pelos restantes turistas vãos de Florença. Esse vertiginoso movimento de aceleração parece constituir uma estratégia de fuga que, num momento introdutório, poderá ser percecionada como catártica. Na fase inicial do poema, o eu lírico relata, ironicamente, a situação políticoeconómica angustiante de que pretende afastar-se, convocando o real verosímil para a própria poética. A este propósito recordem-se as palavras de Rosa Maria Martelo: “parece inegável que (…) [o] movimento geral desta poesia [a poesia “sem qualidades”] é o de uma aproximação mais emocional e mais circunstancial ao que chamamos ‘mundo’” (Martelo 2003: 49). No universo lírico de José Miguel Silva, essa comunhão do tempo futuro com o tempo passado, resgatando a conceção eliotiana (cf. Eliot 1974: 189), constitui um adjuvante da dilatação do mal-estar interior do sujeito poético. Refira-se, neste contexto, que este malestar se apropria do eu devido ao seu profundo descontentamento perante o mundo político-social em que se encontra inserido (muito embora se tente refugiar dele numa pequena localidade afastada do mecanismo frívolo e consumista da cidade). A atitude delatora que se mescla com a desistência mantém-se, o que se relaciona com a seguinte constatação de Zaratustra: “[s]e é difícil viver entre os homens, é porque é difícil calarmonos” (Nietzsche 1997: 158). À pergunta “[p]osso, sem armas, revoltar-me?”, colocada por Carlos Drummond de Andrade (Andrade 1978: 14), o eu lírico parecer responder de forma afirmativa, isto é, para si, a revolução pode fazer-se sem armas, sim, mas não sem ironia: “custa-me dizê-lo, mas Descartes estava errado: / não há nada no mundo mais bem distribuído / do que a

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estupidez”, denuncia jocosamente. Para complementar este raciocínio, não se olvide que Nietzsche alertou, também, para a importância do riso, aquando da exposição de uma determinada verdade (que, no contexto poético, se tem como verosímil): “e que se considere falsa qualquer verdade que não seja acompanhada de risos!” (Nietzsche 1997: 237). Deste modo, entende-se que o riso pode legitimar a verdade poética exposta pelo eu lírico, que, nesse ponto, parece reencontrar-se com o recetor do poema: o riso aproxima, assim, o sujeito poético e o leitor, que pertencem à mesma comunidade, inserida num “tempo sem qualidades”, convocando a expressão citada por Manuel de Freitas, no prefácio à antologia Poetas sem Qualidades (cf. Freitas 2002: 9-15). Depois de descrever irónica e prosaicamente a situação que pode entender-se como força motriz para o isolamento, quer interior quer geográfico, patente na primeira estrofe, o sujeito lírico declara o que daí decorre. O aborrecimento perante a inconsciência das massas com ideais burgueses ociosos impele-o a planear “uma patética / fuga para o interior, onde a lixo-dependência / menos pesa e nos podemos dar ao luxo de ser pobres”, conforme se pode ler na quarta estrofe. Muito embora José Miguel Silva não detenha “qualquer poder ou sequer obrigação de transformar o mundo”, como frisou Joana Matos Frias (Frias 2014: 140), o sujeito poético parece fornecer diretrizes concretas, com existência verosímil, para que o leitor o possa seguir até ao seu refúgio solitário: “vira-se à esquerda na nacional 1, / depois de novo à esquerda e por fim à direita”. Isolado, o eu lírico atinge enfim o seu destino final, aquele onde tentará (sobre)viver, alheado da corrupção inerente à sociedade. Porém, será de facto possível um isolamento total que anule a ansiedade do grito de denúncia social, instigada pelo desajuste face ao mundo real? Nesta instância, uma possível resposta parece encontrar-se no texto de Sá de Miranda já mencionado: (...) estes males são gerais. Todos têm seu quinhão d’eles. Onde irás fugindo deles Que não aches muitos mais? (Miranda 1885: 392)

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Regressando ao poema, constata-se que a rua onde o sujeito irá habitar não tem, como a sua própria existência tempestuosa, saída: a “casa é a última da rua, que não tem, / naturalmente, saída. Abaixo disto não há mais nada”. Assim, esta tentativa de evasão acaba por redirecionar o eu, de novo, para o solo, para uma dimensão terrena da própria poesia que, agora, não se quer sagrada. No trabalho poético de José Miguel Silva, o poeta não é leve, nem alado – como pretendia Platão –, está sobrecarregado pela ausência de predicados. O poema, para além de apelar à valorização das experiências inerentes à vida rural, brota do “fecundo lameiro de silvas”, do percurso trilhado na estrada, da angústia revoltada, do concreto, do minimal, uma vez que “a arte é um trajeto de nenúfar / intervalo colorido entre a luz e o lodo” (Silva 2011: 35). No âmbito desta poética, o texto lírico parece, numa primeira abordagem, não visar um estilo grandiloquente, preferindo antes renunciá-lo; isto é, esforçando-se por aniquilar qualidades – fruto do trabalho do poeta sem aura, que não almeja a sua recuperação. Mas o ato de perder qualidades não será, já e por si só, uma qualidade? Se não o for com certeza nítida, assume-se, pelo menos, como uma forma de resistência poética (que desautomatiza as perceções primeiras dos leitores), onde há uma clara contaminação do lirismo com o prosaico e com a narratividade (o que demonstra a existência de um cuidado peculiar com a linguagem e com as metodologias adotadas para a elaboração poética). No final do poema em análise, a solidão do eu lírico atinge o seu clímax, libertando-o de qualquer hipotética preocupação moral para com os seus semelhantes, que ainda pudesse ser equivocamente confundida com o seu gesto de partilha das direções que tomou até chegar ao local onde “[s]em descendência, nem vocação para sofrer de borla” se dedicará a cuidar do seu jardim, adornado com “florinhas amorais” – elementos jocosos do efémero que, na conceção de Jean Starobinski, se vão revelando sob o olhar do melancólico (cf. Starobinski 1989: 49). Ainda neste contexto, note-se que o último verso aponta, de forma irónica mas precisa, para esse êxodo do mundo urbano: “Então adeus. E boa sorte. Qualquer coisa, telefonem”. Na despedida, o eu lírico possibilita a criação de um espaço para fechar-se sobre si próprio, para desistir de militar contra o pensamento massificado e contra o mundo que valida tal hipótese de vivência. Inquiriu-se, anteriormente, se a solidão

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possibilitaria a catarse de um ego profundamente desconcertado com o que o rodeia. Uma resposta possível pode encontrar-se em “Desculpas não faltam”. Leia-se o poema: Uma casa junto ao Vouga, rio de água suficiente, onde apenas se mergulha até à cintura, a pequena horta de Virgílio, o amor robustecido por nenhuma esperança e tantos livros para ler — que desculpa vou agora dar para não ser feliz? (Silva 2011: 27)

Neste texto poético, o título estabelece um paradoxo com o próprio enunciado. Tal como sublinhou Jean Starobinski, a propósito de As Flores do Mal (Starobinski 1989: 16), pensa-se que a tonalidade melancólica do abandono não está tão patente no próprio texto poético quanto no título disfórico, que aponta, desde logo, para a temática da descrença que alicerça o poema. Senão veja-se: por um lado, o poema parece estar envolto num tom algo esperançoso com que são elencadas as múltiplas razões que encaminham o eu para a felicidade possível (porém inatingível), como o “rio de água suficiente”, “a pequena horta” e a existência de “tantos livros para ler” – o que remete para o conceito latino de aurea mediocritas e para um ideal de vida bucólico, explícito, também, na referência clarividente à obra Bucólicas, de Virgílio (cf. Virgílio 1996) –; por outro, o título, como que invertendo essa lógica argumentativa, deixa transparecer que, apesar da evasão para um isolamento ponderado, da tranquilidade aparente, “desculpas não faltam” para continuar-se desassossegado. Frise-se, então, que o pensamento votado a razões para se ser feliz, ao invés de possibilitar a catarse do eu lírico, adensa ainda mais a sua dor intelectual (proveniente do seu desajuste face aos paradigmas político-sociais vigentes), pois, tal como referiu George Steiner, “[p]ensar [as motivações para ser-se feliz] é ficar aquém, é chegar a algum lado ‘irrelevante’” (Steiner 2015: 32). A este propósito resgate-se, ainda, a perspetiva de Vergílio

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Ferreira, que complementa o que se acaba de evidenciar: tentar convencer-se de que “se é feliz é começar a ser infeliz” (Ferreira 1986: 399). Assim, note-se que em “Esconde-Esconde”, o sujeito poético afirma que o seu isolamento não o salvará dos fardos terrenos, talvez pela incapacidade de cessar os pensamentos desconfortáveis, que o conduzem à disforia pela não existência do SuperHomem regenerador do mundo, que Zaratustra havia proclamado. Atente-se num trecho significativo desse poema: quem inaugura um abrigo decente e se pretende a salvo das cargas do mundo. A salvo? Lá mais para diante se verá que não é bem assim. (Silva 2011: 30)

Por último e tendo em conta o debate estabelecido em torno do corpus poético selecionado para este ensaio, torna-se irrevogável reiterar que quer a solidão quer o êxodo apresentam conceções díspares, em diferentes instantes textuais do mesmo trabalho estético. Por um lado, o isolamento e a tentativa de evasão da sociedade consumista, voyeurista e culturalmente vã podem não só instigar o eu lírico a denunciar a inexistência de valores dessa mesma sociedade, mas também simbolizar o seu esforço para demarcar, de forma clara, o seu distanciamento face à postura vivencial acrítica das massas; por outro, a incapacidade de atingir um alheamento total de um mundo também ele sem qualidades, exponencia a sua dolência e impele-o a desistir de militar por uma regeneração social. Para complementar esta perspetivação, frise-se ainda que, conforme asseverou Ida Alves, escrever [poesia] po[de] ainda ser uma atitude possível de oposição ao consumismo das multidões e a uma indústria cultural espetacular, constituindo um projeto de existência e criação estética na contramão do cotidiano conformado e controlado. (Alves 2013: 29)

José Miguel Silva, irónico, mas delator, incomodado com “a hipocrisia e a duplicidade” (apud Bonifácio 2011: s/p), parece comungar, esteticamente, com a perspetiva de Bertolt Brecht: “só a náusea / Me faz escrever” (Brecht 1986: 72).

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NOTA __________________ 1

Refiram-se, a título de exemplo, para além de “Desculpas não faltam”, os poemas “Casa da Cadeia” (Silva

2011: 28), “Esconde-Esconde” (idem: 30) ou “Corrente alterna” (idem: 34-35).

Bibliografia

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Entre Florença e Serém: José Miguel Silva num itinerário para uma poética da solidão

Frias, Joana Matos (2014), “Os sais e as cinzas: Dialética da anestesia na obra de José Miguel Silva”, in Repto, Rapto (alguns ensaios), Porto, Afrontamento, 131-144. Nietzsche, Friedrich (1997), Assim Falava Zaratustra, Lisboa, Guimarães. Martelo, Rosa Maria (2003), “Reencontrar o Leitor”, Relâmpago, nº 12, Fundação Luís Miguel Nava, 39-52. Miranda, Francisco de Sá de (1885), Poesias Completas de Francisco de Sá de Miranda (ed. Carolina Michaëlis de Vasconcellos), Halle, Max Niemeyer. Silva, José Miguel (2010), Erros Individuais, Lisboa, Relógio D’Água. -- (2011), Serém, 24 de Março, Lisboa, Averno. --

(2004),

Entrevista

concedida

a

Filipa

Leal,

O

Primeiro

de

Janeiro,

<https://eumeswill.wordpress.com/2011/06/18/pub/> (último acesso em 4 de janeiro de 2018). Starobinski, Jean (1989), La Mélancolie au Miroir, s/l: Julliard. Virgílio (1996), Bucólicas (trad. Maria Isabel Rebelo Gonçalves), Lisboa, Verbo.

Cristina Oliveira Ramos é doutoranda em Estudos Literários, Culturais e Interatísticos. Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto concluiu, em 2017 e na mesma instituição, o mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes (variante de Literatura Portuguesa, Literaturas de Língua Portuguesa), com uma dissertação sobre poesia e hibridismo na obra de Ana Cristina Cesar. Publicou os ensaios “‘Adormecer no corpo um modo de ver’: Notas para uma leitura interartística de Mãe-do-Fogo,

de

João

Miguel

Fernandes

Jorge

e

João

Cruz

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Rosa”

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Cristina Oliveira Ramos

(https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/portodasletras/article/view/4585/12646) e “‘Um fenômeno mor ou um lapso sutil?’: Antropofagia e fingimento na poética de Ana Cristina Cesar” (http://websensors.net.br/seer/index.php/guavira/article/view/657/504), assim como dois verbetes sobre a cosmovisão da Europa na poesia de Rui Cóias (http://europafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/rui-coias/)

e

Valter

Hugo

Mãe

(http://europafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbetes/valter-hugo-mae/).

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vivendo de hora em hora: sobre a geração mimeógrafo brasileira & a Nuvem Cigana

vivendo de hora em hora: sobre a geração mimeógrafo brasileira & a Nuvem Cigana

Pedro Craveiro University of California, Santa Barbara

Resumo: Face ao regime ditatorial brasileiro (1964-1985) e às consequências dessa governação, a geração dita marginal procurou despir-se de maquinismos artificiais e tentou dissolver o trauma de uma camada jovem perturbada pela limitação das suas experiências, sobretudo, quando exposta aos valores da contracultura. Este artigo pretende pensar o (con)texto da geração mimeógrafo e demonstrar de que forma essa poesia, produzida a “mil mãos”, tomando a expressão de Cacaso, desafiou a figura autoral do poeta e o panorama políticoideológico da década de 70. Palavras-chave: Poesia brasileira, ditadura, geração mimeógrafo, contracultura Abstract: Bearing in mind the Brazilian dictatorial regime (1964-1985) and the consequences of its governance, the ‘geração dita marginal’ tried to get rid of the artificial machinations and tried to dissolve the trauma of a young generation disturbed by the limitation of their experiences, especially when exposed to the values of counterculture. This article intends to reflect about the (con)text of the “geração mimeógrafo” ("Mimeograph Generation", out-of-the-mainstream poets of the time who used the mimeograph machine to print texts), and to show how this poetry, produced by "thousand hands", borrowing Cacaso’s expression, challenged the poet's authorial figure and the political and ideological panorama of the 70's in Brazil. Keywords: Brazilian poetry, dictatorship, geração mimeógrafo/ Mimeograph Generation, counterculture

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Pedro Craveiro

tire o nó da garganta que a palavra corre fácil sem desculpas nem contornos direta: do diafragma ao céu da boca Bernardo Vilhena

1. O BOOM DA LIXERATURA1 ainda bem que ninguém nunca disse nada de novo posso (se quiser) dizer tudo outra vez Nicolas Behr

Pensar a geração mimeógrafo ou dita marginal2 sem entender o Brasil dos anos 60 e 70 é impossível. A verdade é que, durante estas duas décadas, o Brasil vivia tempos agitados e pontuados por alternativas poéticas face à ditadura militar, formada em 1964 e com o seu fim em 1985. Durante estes dois decénios são diversas as neovanguardas3 de significação interartística que se agilizam no seio cultural e literário e, extensivamente, na sociedade. A atitude neovanguardista brasileira (concretista, práxis e processo), por exemplo, é de certa forma reflexo da agitação política e da instabilidade económico-social, sedimentada particularmente pelo regime ditatorial. Com a passagem da década de 60 acontece a derrota dos movimentos populares – em especial os motins estudantis –, a descrença no programa político-ideológico da esquerda e o AI-5 (Ato Institucional n.º 5), que instaura terminantemente a repressão política de direita do Estado. Contudo, é nos anos 70, que se solidifica um quadro conjuntural de novas medidas, que culminará com o eufórico “milagre económico”,4 tornando o Brasil num paraíso para o capital monopolista estrangeiro. Acrescente-se que, a nível cultural, a censura se torna cada vez maior, não permitindo a circulação de manifestos críticos, que pudessem sugerir a oposição ao regime. O Estado tem um poder bastante

, 11, 06/2018: 129-144 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely11e4

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coercivo e preponderante nestes anos e recorre aos veículos culturais existentes, principalmente a televisão, a fim de implementar os valores e padrões de um “país que vai pra frente de uma gente amiga e tão contente” ou de um “país que vai pra frente de um povo unido de grande valor”.5 Neste contexto, é o cinema que responde com maior adesão às exigências da política cultural do regime. É, portanto, nesta atmosfera implacável que a geração mimeógrafo nasce: num país cada vez mais opressivo, sem margem de liberdade e com um plano de modernização a acontecer. Não é por acaso que Paulo Leminski reconhece que a poesia desse decénio é a figuração exata desse Brasil: “Historicamente, esse tipo de poetar foi expressão legítima da brutal urbanização da sociedade brasileira, ocorrida durante os anos da ditadura, que privilegiou a cidade e deixou o campo entregue às latifundiárias moscas que Portugal nos legou” (Leminski 2012: 60). A poesia de 70 é sem dúvida um fenómeno etário, na medida em que a sua produção era juvenil, “poesia de pivetes para pivetes, todos brincando de Homero” (idem: 61). Todavia, ao ser feita por jovens não significa que seja uma poesia imatura: resvala na sua ação poética, em vários sentidos, originalidade desde a sua produção até ao modo como as obras foram distribuídas. Note-se, em primeira instância, como o poema se encurta com esta prática, chamando-lhe Leminski de “poema flash”, “poema minuto”, “poema relâmpago” ou “estalo lírico” (idem: 59). A poesia desta geração dita marginal6 é tendencialmente breve e instantânea: vai ter uma festa que eu vou dançar até o sapato pedir pra parar. aí eu paro, tiro o sapato e danço o resto da vida (Chacal apud Hollanda 2007: 218)

O poema de 70 é uma miniexperiência imediata, que busca o aspeto lúdico da poesia contra a seriedade das poéticas de 60. É o recobramento da poesia enquanto alegria de viver, que a composição supracitada, aliás, serve de exemplo. Leminski considera que “sem esta dimensão, a poesia vira um departamento da semiologia, da linguística ou uma

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dependência das ciências sociais” (Leminski 2012: 61), como, de certa maneira, tinha acontecido na década anterior. Esta poesia alternativa revela-se, de certa forma, despretensiosa, irresponsável ou contra a “séria caretice dos anos 1960” (ibidem). Esta poética encontrou os seus antecedentes e referências nos versos de Oswald de Andrade, de José Paulo Paes, de Manuel Bandeira, no Carlos Drummond de Andrade e no Murilo Mendes dos primórdios, declarando-se uma poesia coloquial, (auto)crítica, informe, informal e com piada, contrariando toda a mistificação literária. Grande parte da denominada poesia dita marginal foi assim: a recuperação de aspetos avessos a todo o mistério e a toda a profundidade lírica: Minha terra tem palmeiras onde canta o tico-tico. Enquanto isso o sabiá vive comendo o meu fubá. Ficou moderno o Brasil ficou moderno o milagre: a água já não vira vinho, vira direto vinagre. (Cacaso 2012: 158)

A ação da lírica dita marginal é fortemente influenciada pelos grandes meios de massa, desde o cartaz publicitário e o poster até à televisão.7 Por este motivo é que a linguagem desta prática se anuncia sintética, na medida em que há o impacto de uma sociedade de consumo, tornando a sua poesia de baixa definição, descartável, económica, leve, portátil ou televisiva. A propósito desta poética, diz Heloísa Buarque de Hollanda, no posfácio da antologia 26 poetas hoje: “Além de fenônemo quantitativamente intrigante, o exame desta produção sinalizava outros traços curiosos e paradoxais. Era uma poesia aparentemente light e bem-humorada, mas cujo tema principal era grave: o ethos de uma geração traumatizada pelos limites impostos a sua experiência social e pelo cerceamento de suas possibilidades de expressão e informação através da censura e do estado de exceção institucional no qual o país se encontrava” (Hollanda 2007: 257). Explique-se, porém, que este poetar, que privilegiou a forma breve – por exemplo, o epigrama, a frase publicitária de outdoor, típica do consumo, ou o haicai –, é a rutura da alta

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definição da orientação cepecista e das poéticas neovanguardistas. Por conhecerem o poema de 60 nas suas vicissitudes e fraquezas, os marginais souberam inteligentemente fazer a sua poesia. Da lírica participante, a produção alternativa recusou o compromisso ético-político: não é do seu interesse envolver-se com os problemas da sociedade brasileira, tampouco é da sua vontade resolvê-los através do espírito crítico. Das neovanguardas concretista, práxis e processo, os poetas de 70 rejeitaram a arquitetura escrupulosa poemática. Apesar de se considerar que a poesia cepecista e neovanguardista são díspares, a verdade é que ambas tinham muito em comum, em especial no modo como privilegiavam a postura crítica, judicativa e racionalista perante o poema: a primeira queria mudar a poesia, a última queria mudar o mundo. E eis-nos perante a utopia das poéticas de 60. Em contrapartida, a geração dita marginal não tinha intenções de mudar a poesia e o mundo: queria apenas existir. Por esta razão, o poema alternativo é o gozo da experiência imediata, é “curtição”, agarrando a ideia de Silviano Santiago.8 Aliás, essa distinção é explicada por Santiago, quando esclarece que a literatura brasileira pós-64 “Deixa esta de apresentar como tema principal e dominante a exploração do homem pelo homem [...] É sintomática a ausência da figura do operário nos textos da época. [...] É ainda sintomática a ausência de qualquer reflexão sobre o público [...]” (Santiago 2002: 13). Outro aspeto curioso sobre esta poesia passa pela sua distribuição em edições mimeografadas, folhas dispersas, panfletos, nas filas dos cinemas e dos autocarros, nos concertos de rock, nos estádios de futebol ou nos happenings. As publicações dos poetas alternativos eram editadas, diga-se de passagem, em materiais não-nobres, o que também constituía uma enorme vantagem: era uma poesia de consumo, que chegava aos leitores e à sociedade. Embora editada em materiais precários, o poema marginal chegou a todos e o livro revogou o privilégio da montra de livraria, estando presente em qualquer lugar, graças à venda de mão em mão, cara a cara. Alice Ruiz considera que a geração mimeógrafo, assim chamada devido à sua dificuldade de edição, cumpriu os pressupostos da poesia cepecista e de neovanguarda (cf. Leminski 2012: 62). Da poesia participante, a poética alternativa inspirou-se na ambição de ser popular do CPC (Centro Popular de Cultura) e de levar a poesia às pessoas. Foi assim que a poética de 70 procurou e encontrou o seu público através de uma distribuição inusitada:

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não é o leitor que procura o poema, mas sim poema que busca o leitor, estabelecendo, desta forma, a relação cúmplice e direta poesia-leitor/poesia-vida. Da poesia neovanguardista, a da década de 70 procurou a brevidade e a síntese nos seus poemas, ainda que de maneira diferente. Para além disso, esta lírica incorporou a preocupação de modernidade urbano-industrial e a dimensão lúdica da linguagem muito característica do Concretismo. A prática geracional dos anos 70 foi muito mais democrática, pois, contrariamente à poesia participante de caráter didático, catequético e doutrinário, não exigia um compromisso político. A poética da alternatividade não queria educar, revelando-se horizontal e não permitindo uma poesia aristocratizante e vertical. Neste sentido, acreditamos que o poema alternativo ao não ter pretensões algumas, exceto existir, acabou por ser uma poética inovadora e avessa à produção literária anterior. De acordo com Silviano Santiago, em Uma Literatura nos Trópicos, a cultura dos anos 70 é movida pela força reversiva de noções fundamentais acerca da arte no cânone ocidental. Por isso, ocorre, durante esta década, não só a dessacralização da alta cultura, mas também o descentramento e o deslocamento nas decisões de valor. Clara é a relação íntima entre a geração mimeógrafo e o espaço cultural da época, porque com esta prática não só acontece a transformação em literatura, mas também no programa cultural, no qual se pode destacar a performance como exemplo mais fulgurante. Enquanto a ação cepecista foi somente um fenómeno, que produziu carreiras literárias como as de Ferreira Gullar, Geir Campos ou Thiago Melo, e que se circunscreveu aos livros, a poesia dita marginal saiu da literatura, corrompeu a arte de elite, sendo pragmática e inovando, seja no fazer poético, seja na recusa das editoras comerciais. A geração mimeógrafo alcançou o seu ensejo existencial, uma vez que compreendeu a sociedade consumista e fabril e se colocou ao nível dessa massa, revelando-se uma poesia da cidade feita “aqui” e “agora”, entregue aos ímpetos, despreocupada com a organização frásica e verbal e conhecedora do quotidiano da urbe. Para além disso, acontece com a geração mimeógrafo a alteração do paradigma do poeta. O poeta é, agora, cidadão, resgatando também a sua imagem de bardo ou rapsodo. Estes jovens produzem, como se referiu, uma lírica, em que o “novo é o belo de hoje” (Leminski 2012: 66), implicando uma mudança quase drástica em muitos aspetos, porém,

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necessária para o rumo da poesia brasileira: “Aí, acontece um fato extraordinário. A esfarrapada arte da poesia fica, literalmente, milionária. Milhões de Lennon, de Dylan, de Jagger, de Roberto” (idem: 71). Esta geração chamada de marginal, a fim de se evitar uma postura tão assertiva em relação àquilo que verdadeiramente era, nada mais foi do que uma alternativa, na medida em que estes novos poetas não ansiaram nenhuma revolução, contrariamente ao CPC, e não confrontaram nenhum sistema, como os (pós-)tropicalistas; aliás, rejeitaram-no. Esta foi a geração do possível, da literatura quase confundida com a vida,9 do poeta cidadão, da estrofe promovida a poema, do quotidiano como arte, do poema desfibrilhador, do culto à instantaneidade ou do registo urgente da ação.

2. A Nuvem Cigana eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível Torquato Neto

Um dos mais ricos exemplos, que parece condensar o espírito desta geração e o movimento de contracultura da época, é o coletivo carioca Nuvem Cigana.10 Apesar da sua efemeridade, visto ter durado sensivelmente uma década, a Nuvem Cigana, constituída por Bernardo Vilhena, Chacal, Charles Peixoto, Dionísio Oliveira, Guilherme Mandaro, Lúcia Lobo, Pedro Cascardo, Ronaldo Bastos, Ronaldo Santos, entre outros, “realizou de maneira sistemática, pela primeira vez no Brasil, a poesia moderna falada” (Cohn 2007: 6). Não deixa de ser curiosa a intervenção de Sérgio Cohn, quando numa entrevista, lhe perguntaram qual era a grande diferença entre as poesias carioca e paulista de hoje e o editor respondeu com duas palavras: Nuvem Cigana. Na verdade, este coletivo teve um impacto enorme e contribuiu notoriamente para que as manifestações culturais dos últimos trinta anos do século XX, no Brasil, se consolidassem: referimo-nos à poesia falada, ao teatro de besteirol, ao rock brasileiro de 80 ou à regeneração do carnaval de rua do Rio de Janeiro.

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Fundada, em 1972, por Ronaldo Bastos, e com o propósito de ser um coletivo plural no que às artes diz respeito,11 a Nuvem Cigana editou alguns dos livros que mudariam a cena literária: Creme de Lua e Perpétuo Socorro de Charles, Vau e Talvegue de Ronaldo Santos, Hotel de Deus de Guilherme Mandaro, ou Quampérius de Chacal. Todas estas obras foram publicadas entre 1975 e 1977, encarnando o espírito da prática geracional de 70. Não nos esqueçamos, no entanto, que, em conjunto, estes poetas e outros mais – Carlos Saldanha, João Carlos Pádua ou Luís Olavo Fontes – criaram duas edições da revista Almanaque Biotônico Vitalidade12 com o carimbo da Nuvem Cigana entre 1976 e 1977. Sob a mesma chancela, O Rapto da Vida de Bernardo Vilhena, e América de Chacal, são as primeiras obras a receber o carimbo da Nuvem e a partilharem o mesmo espaço das primeiras na coleção. Não deixa de ser interessante notar que toda a poesia até aqui produzida pelo grupo carioca tem em comum o culto ao instantâneo e à espontaneidade. Aliás, o testemunho de Charles, em Nuvem Cigana – Poesia & Delírio no Rio dos anos 70, realça, em resumo, a prática poética do núcleo: A gente criava nossos poemas de uma forma espontânea. Até porque a própria vida da gente, essa vida em grupo, libertária, alimentava muito isso. De um lado havia a repressão, mas também havia a libertação pessoal de cada um, as viagens de ácido, o sexo. Havia maluquice que dava gás, dava substância a essa produção mais leve e coletiva (idem: 24).

Charles, em poucas palavras, nomeou a natureza dispersa e liberta da Nuvem Cigana. Se, por um lado, o Brasil enfrentava uma repressão cada vez mais concentrada e violenta, por outro lado, a Nuvem Cigana era um microcosmo de desassombro, onde os seus membros podiam respirar em liberdade, seja na vida em comum com os seus vários integrantes, seja na poesia. A Nuvem Cigana é sem dúvida a expressão sublime do que foi o movimento de contracultura, importado, em grande parte, dos Estados Unidos da América. Por isso, faz tanto sentido o seu exercício em comunidade: Aquela casa virou uma comunidade, foi aglomerando cada vez mais gente. E o pai de Pedro era um cara ótimo, mas com uma cultura mais tradicional, que não entendia muito bem toda aquela maluquice. Então um dia encontrou um cara na rua que não tinha para onde ir, e decidiu levar para a

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casa. Na cabeça dele fazia todo o sentido, porque afinal se o filho ajudava tanta gente, ele podia fazer o mesmo. (idem: 64)

A Nuvem Cigana é a súmula de uma geração jovem fragilizada pela ditadura militar, vivendo um cenário cultural precário e carecendo com urgência de intervenções corajosas não só no programa literário, mas também no espaço cultural. É, pois, neste contexto, que o movimento carioca teve um dos seus maiores contributos: as Artimanhas, apresentações performativas ou happenings coletivos, que consistiam na declamação de poemas ora dramatizados e encenados, ora acompanhados com música. O espetáculo, cujo nome homenageia o poema “o poeta é mãe das armas” de Torquato Neto e publicado na Navilouca, teve a sua primeira sessão na Livraria Muro, situada em Ipanema, a 31 de outubro de 1975, contando com a apresentação audiovisual de Carlos Vergara sobre o Cacique de Ramos.13 De acordo com Chacal, ninguém no Rio de Janeiro declamava poesia em público na década de 70 e, por isso, inspirado na convivência que tivera em Londres com as performances de Allen Ginsberg, o poeta reuniu o coletivo para fazer o mesmo no Brasil. Apesar das adversidades preliminares, por exemplo, a fraca dicção ou a quebra do ritmo poemático, as Artimanhas foram, indubitavelmente, símbolo desta geração subversiva. Recordamos inclusive as palavras de Charles, quando diz, hiperbolicamente ou não, que “Artimanha não é performance, é loucura mesmo” (idem: 95). Conforme salienta Fernanda Medeiros, em “Afinal, o que foram as ‘Artimanhas’ da década de 70?”, há uma desorganização em relação ao que o grupo pretendia das Artimanhas, mas ao mesmo devese à importação de algo novo no Brasil na vida cultural e ao questionamento do cânone e dos limites artísticos: É no sentido de amarrar as informações trazidas por essas outras artes conjugando artista e receptor por vínculos performáticos que a visão de Ginsberg por Chacal foi tão informativa, sintetizando a associação entre o poeta e o cantor de rock, o poeta e o artista performático. A figura que dizia seus textos de macacão Lee, cabelos desgrenhados e se fazia acompanhar por uma sanfoninha e pela marcação com a batida do pé, integrando risadas e blues à sua enunciação dos poemas, certamente remodelava as noções convencionais de poeta e poesia, comprovando que esta também se punha a experimentar a possibilidade da arte inclusiva do corpo, oferecendo-se como acontecimento. O

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conteúdo político das performances, inerente não só ao traço “acontecimental” da arte como ao próprio processo de produção independente, se vai tornando mais claro para os poetas da Nuvem à medida que as Artimanhas vão acontecendo. (Medeiros 2004: 22)

É conveniente entender que, se a Nuvem Cigana adensa o espírito de “curtição” e “desbunde” desses anos, o coletivo apresenta um forte programa literário no Rio de Janeiro e enfatiza a necessidade cultural na sociedade brasileira dos anos 70. Porém, se este grupo teve um impacto mais forte do que o esperado, em muito se deve ao ecletismo dos seus membros: Embora a gente tenha alguns elementos em comum que identificam a nossa poesia, cada um de nós tem uma dicção muito diferente. Mesmo dentro do grupo da Nuvem, então imagina na geração. Por exemplo, o Charles é mais delirante. Ele parece estar sempre escrevendo o mesmo poema, como se estivesse explorando um delírio. O Bernardo é cronista, o Chacal mais lúdico, eu [Ronaldo Santos] mais existencial. Cada um tem uma poesia muito diferente do outro, não dá para confundi-las. E isso sempre enriqueceu muito o grupo (idem: 100).

Desta forma, o grupo da Nuvem foi ganhando a atenção dos diversos meios culturais da época, principalmente da universidade. No início, quem acabaria por estabelecer essa ponte entre os poetas e os académicos seria Cacaso, que na altura era professor universitário. No seguimento deste elo, Heloísa Buarque de Hollanda decidiu reunir vários poetas numa antologia:14 claro está que se torna pouco consensual para o coletivo carioca esta publicação,15 porém, acabou-se por ceder ao convite e, em 1975, nasce 26 poetas hoje, editada pela Aeroplano. Esta antologia, que reúne vinte e seis poetas desta geração – e lembremo-nos que não apenas da Nuvem Cigana –, constituiu um trabalho importantíssimo de divulgação e que Charles o reconhece: “Foi no 26 poetas hoje que os nossos nomes e poemas começaram realmente a circular” (idem: 101). Embora essa publicação fosse “meio saco de gatos” (ibidem), de acordo com Chacal, a verdade é que as intenções de Buarque de Hollanda foram transparentes: O que interessa é que, por volta de 1972-1973, surgiu, assim como se fosse do nada, um inesperado número de poetas e de poesia tomando de assalto a nossa cena cultural, especialmente aquela

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freqüentada pelo consumidor jovem de cultura, cujo perfil, até então, vinha sendo definido pelo gosto da música, do cinema, dos shows e dos cartoons. Atraída por essa ostensiva presença da poesia, comecei a me interessar por esse fenômeno que, na época, foi batizado com o nome poesia marginal, sob protestos de uns e aplausos de outros (Hollanda 2007: 256-257).

26 poetas hoje difunde, por conseguinte, vinte e seis nomes desta geração brasileira e exclui tantos outros, como por exemplo, Alice Ruiz ou até mesmo Paulo Leminski. Os nomes da poesia dita marginal não são apenas estes vinte e seis poetas, entre os quais, Ana Cristina César, António Carlos de Brito (Cacaso), Francisco Alvim, Geraldo Eduardo Carneiro ou Torquato Neto, são tantos outros. Esta prática geracional, que procurava apenas existir, acabou por ser uma poesia intimamente relacionada com o espaço cultural e voltada para intervenção no espaço público. Ao mesmo tempo que questionava os programas poéticos anteriores, dissecou sobre a figura autoral do poeta, testando os limites da poesia e da palavra, graças às intenções das poesias dos anos 60. A pergunta que, no fundo, se pode fazer é: será que ao apenas ao querer existir, esta geração não tinha também um compromisso contestatário e rebelde? O que importa é que esta prática geracional, que carecia de um manifesto programático, conseguiu uma poesia capaz de se colocar ao nível da massa. Profundamente traumatizada por um regime ditatorial, a geração mimeógrafo buscou diluir o seu ethos social, acreditando na atuação da palavra com as suas propriedades transformativas, salvíficas e transgressoras, conforme abrevia Ana Cristina César em “Mocidade Independente”: “Pela primeira vez na vida infringi a regra de ouro e voei para cima / sem medir as consequências. [...] / é agora, nesta / contramão.”

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NOTAS 1

Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, no artigo “Os sórdidos”, publicado na revista Veja, no dia 7 de julho

de 1976, o termo “lixeratura” deve-se a “uma revistinha surgida em Minas”. Embora o termo tenha aparecido numa brincadeira, a verdade é que a expressão acabou por ganhar alcance e fez parte do uso corrente, sendo uma das alcunhas pejorativas da poesia dita marginal. 2

O conceito de marginal alia-se quase sempre à noção e ao mito de escritor maldito. Salientamos, desta forma,

que o conceito de marginal aqui aplicado não está relacionado intimamente com a ideia e a aceção de cariz mitológico. O termo “marginal”, recorrentemente utilizado quando nos referimos a esta produção poética, deve-se ao estigma dos autores postos à margem, seja pelo seu comportamento transgressor, seja por não se enquadrarem no círculo literário da época. Por isso, a esta estética também se chama de poesia alternativa, na medida em que é uma segunda preferência em relação ao circuito da considerada “boa literatura”. Joana Matos Frias, no prefácio à antologia poética Um beijo que tivesse um blue, de Ana Cristina César, considera que o significado do termo “marginal” se deve não só ao impedimento editorial, mas também a uma certa antipatia por parte da universidade: “A verdade é que esta postura a um tempo militante e marginal – mais marginal devido à dificuldade de edição e a uma certa antipatia por parte dos meios universitários, o que levava os autores a frequentarem circuitos alternativos – conduziu à recusa limiar, tanto da literatura classicizante que a geração de 45 reavivara, como das correntes experimentais das vanguardas pós-guerra que os concretistas representavam” (Matos Frias apud César 2013: 484). 3

Embora as vanguardas históricas aconteçam no início do século XX, acreditamos ser mais exigente designar a

atuação concretista, práxis e processo por neovanguardas. 4

O “milagre económico” é a denominação dada ao excecional crescimento económico, que aconteceu durante

a Ditadura Militar. Face aos sinais de recessão da economia brasileira, Antônio Delfim Netto, encarregado, na altura, pela pasta da Fazenda, investiu nas empresas estatais, sobretudo nas áreas da siderurgia, da petroquímica, da geração de energia, etc. Tais investimentos surtiram efeitos e lucrou o estado, criando postos de trabalhos e condições favoráveis para o país. Quando Emílio Médici, em 1969, assumiu o poder, acontecia o eufórico milagre. 5

Lembramos, neste contexto, que o reclame televisivo é um dos meios mais eficientes para a disseminação dos

ideais do regime. Dois exemplos deste género são os reclames com desenhos animados, que, na época, eram transmitidos regularmente: o primeiro com o lema “este é um país que vai pra frente de uma gente amiga e tão contente” e o segundo aclamando, parece-nos, a miscigenação do povo brasileiro com a máxima “Ô, Ô, Ô, Ô, Brasil gente pra frente”. 6

Ana Cristina César, ao comentar o critério de quem escolheu os poemas do número 42/43, “Poesia brasileira

hoje”, da revista Tempo Brasileiro, define a novíssima poesia de então como anticabralina: “Resta saber que sentido tem este recente para a revista como um todo: ao que parece há uma confusão entre as últimas

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novidades surgidas e o verdadeiramente novo como linguagem, evitando assim os perigos da definição própria. Basta dizer que a revista abre com meia dúzia de poemas do último livro de João Cabral (Museu de Tudo), que, realmente, não pode ser alinhado entre os representantes da nova poesia, anticabralina por excelência. No mesmo barco vai o longo poema de G. H. Cavalcanti, cabralíssimo. É desorientante percorrer os poemas publicados pela revista, que, depois desta entrada cabralina, desagua indevidamente nos anticabralinos novíssimos ('devidamente' postos no final de tudo?). Fica claro que não há uma reflexão por parte da revista sobre esta nova poesia, ou seja, uma proposta editorial que a oriente: o critério para publicação dos poemas foi simplesmente o seu ineditismo (os poemas de Museu de Tudo, assim como todos os outros, eram inéditos na época).” (César apud Cota 1998: 38-39). 7

A propósito desta questão, leia-se o juízo de Paula Moreira: “Intimamente ligados ao novo mundo dos mass

media, tais poetas incorporam estes meios a suas produções artísticas, conjugando um outro significado do que é ser poeta para essa geração – e ser poeta é muitas vezes negar o caráter sisudo da poesia, a aura tradicionalmente conferida ao autor e a propalada construtividade no texto – ainda que negar seja um movimento diferente de abolir” (Moreira 2011: 52). 8

É importante referir que os termos “curtição” e “desbunde”, enquanto características da prática geracional de

70, foi cunhada por Silviano Santiago. Em Uma literatura nos trópicos, os dois termos funcionam como categorias durante a incursão do crítico literário pela emergente cultura popular desse decénio. Conforme atestam os ensaios “os abutres”, “Caetano Veloso enquanto superastro” e “Bom conselho”, há durante esta década a contração de valores da modernidade estética como questionamento do valor da literatura, da arte, etc. Há, de acordo com Santiago, a disseminação do “valor do precário, do efêmero, do transitivo; a exploração do corpo como lugar de inscrição e leitura; a contingência do espetáculo, as contaminações entre o público e o privado, o desejo e a necessidade; a desconfiança da atividade intelectual que cataloga, codifica, paralisa, sacraliza − “salva do acaso (...)” (Cunha 2018: 16). 9

A propósito desta questão poesia-vida, formulada pela poética alternativa, consideramos importantes as

palavras de Flora Süssekind: “onde se lê poesia, leia-se vida” (Süssekind apud Moreira 2011: 53). 10

O nome deste coletivo – Nuvem Cigana – provém da canção homónima, composta por Bastos e Lô Borges e

gravada por Milton Nascimento, no LP Clube da Esquina. 11

Recordamos o testemunho de Dionísio Oliveira acerca das intenções do coletivo: “A Nuvem Cigana surgiu da

vontade que a gente tinha de participar, de mudar as coisas. Não dava para deixar daquele jeito, mas também não queríamos ir para a luta armada, ou coisa do tipo. Várias vezes fui convidado, mas não era a nossa. Então começamos a tentar fazer alguma coisa ligada à arte” (Cohn 2007: 71). 12

Acerca desta revista, salientamos a sua importância na época, enquanto difusora dos ideais do núcleo

carioca e da poesia que até então tinha vindo a ser feita. A revista nasceu da vontade de se fazer algo parecido com o que acontecia em Londres e nos Estados Unidos da América – novos centros de informação. Não é

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admirar, portanto, as letras capitais, que dão nome ao almanaque, muito semelhantes às do grupo musical britânico The Beatles. 13

Ao reunir as fotografias do bloco carnavalesco Cacique de Ramos, Vergara retratava e discernia a realidade

política brasileira. Nesse seu trabalho, observamos um estado de guerra através das poses e da maquilhagem dos modelos. 14

Chamamos a atenção para o contexto desta antologia: “Deve ter sido por isso que fui procurada por um dos

diretores da Labor, recém-chegado ao Brasil, que andava buscando uma novidade para editar como primeiro lançamento da filial brasileira da conhecida editora espanhola. Juan me sugeriu que organizasse uma antologia com a poesia “de los hijos de la dictadura”. Ainda que eu tenha achado, num primeiro momento, uma proposta um tanto institucional para aqueles que exatamente estavam recusando, com êxito, os canais tradicionais das editoras comerciais, fiquei mordida pelo impacto que esta publicação poderia produzir no debate cultural meio morno daquele momento. Aceitei o convite” (Hollanda 2007: 258). 15

Lembramos as palavras de Ronaldo Santos: “Eu sempre fui meio bélico. Talvez por ter vindo do Posto 2, de

Copacabana, ter feito parte de turma de rua. Então eu reagia muito às coisas. Quando apareceu o negócio do livro da Heloísa, eu não entendi aquilo direito. Falei: ‘Pô, peraí, tem alguma coisa esquisita nisso tudo, nós somos poetas paralelos a um sistema confrontando ele, então de repente vem uma pessoa e vai fazer uma antologia, para ser editada por uma editora comercial, com nossa poesia?’” (Cohn 2007: 101).

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vivendo de hora em hora: sobre a geração mimeógrafo brasileira & a Nuvem Cigana

Bibliografia

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Pedro Craveiro

-- (2002), “Poder e alegria. A literatura brasileira pós-64 – reflexões”, in Nas Malhas das Letras: ensaios, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 13-27.

Pedro Craveiro é licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos e mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto com a dissertação: hoje sem musa apenas meu nome escrito na blusa: a Beat Generation e o Budismo Zen em Paulo Leminski (2014). Atualmente, é estudante do Doutoramento em Literaturas Portuguesa e Brasileira, na Universidade da Califórnia, Santa Bárbara.

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Internet trouvé: impactos da vida digital em certa poesia brasileira

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Sérgio Bento Universidade Federal de Uberlândia

Resumo: O texto visa a refletir sobre o impacto das tecnologias computacionais e digitais sobre a poesia brasileira recente e contemporânea, não a partir de ciberpoesia ou produções que contemplem escrita automática a partir de softwares, mas no escopo da criação poética dita “tradicional”, publicada em livros ou em revistas, ou ainda canções populares. Para tal, serão usados poemas de autores como Eduardo Sterzi, Fabiano Calixto, Marcos Siscar, Leila Míccolis, Angélica Freitas, entre outros. Percebe-se, nessa análise, que os avanços da informática e da internet não apenas transformam a temática de parte desse recorte poético, mas principalmente influem em sua construção estrutural. Assim, tenta-se compreender como esse novo contexto tecnológico introjetou-se enquanto forma. Um dos procedimentos mais recorrentes, e por isso aprofundado, foi o do objet trouvé, apropriação de textos existentes em sites e transpostos ao poema. Palavras-chave: Poesia contemporânea brasileira; objet trouvé; ready-made Abstract: This article discusses the impact of computer and digital technologies on recent and contemporary so-called 'traditional' poetry, published in books or magazines, or songs in Brazil (without considering cyber poetry or software-automatic writing). Close readings of poets like Eduardo Sterzi, Fabiano Calixto, Marcos Siscar, Leila Míccolis, Angélica Freitas (and others) will show that digital technology and internet not only transformed the content of part of such works, but also affected their structure. Thus, the article attempts to understand how such technological innovations become embedded into this poetic corpus as form, and how the recurrent procedure of the ready-made is an appropriation of existing texts from websites that are transformed into poems. Keywords: Contemporary poetry in Brazil; objet trouvé; ready-made

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Em constante transformação a partir de sua relação dialética com a sociedade, é natural que a Literatura reaja e responda a grandes mudanças tecnológicas e comportamentais, especialmente quando houver um impacto direto em seus suportes. Pegue-se como exemplo Mallarmé e seus sentimentos paradoxais ao se deparar com o jornal. Em “Mistério nas Letras”, o poeta afirma ser aquele novo tipo de publicação diária uma banalização da leitura, vazia de transcendência, que não “interrompe o curso das preocupações” do leitor. Em “O livro, instrumento espiritual”1, esse um de seus mais célebres artigos, o jornal é exaltado em suas inovações gráficas, no modo de colocação das notícias e dos anúncios na página (em perspectiva horizontal e vertical), a dobradura da folha, enfim, uma maneira totalmente nova de se encarar o espaço do papel, o que “aproxima de um rito a composição tipográfica”, diferente do livro, “mesmo o formato, ocioso”. A partir de tais observações, o poeta construiria a base conceitual para o seu último poema, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, em que a disposição dos sintagmas na folha não segue o modelo ocidental tradicional de linhas e parágrafos ou estrofes, mas atomiza-se a partir de grupos de períodos que povoam o espaço em branco da página. Além disso, Mallarmé explora diferentes tipografias, umas maiores – como “manchetes”, outras menores, o que acarreta implicações sintáticas (as menores sendo “subgrupos” das maiores, ou seus “apostos” e complementos nominais) e semânticas (as palavras maiores são naturalmente mais impactantes ao leitor). Como se sabe, esse poema foi uma das bases para as vanguardas europeias do começo do século XX, bem como a inspiração maior para as neovanguardas do meio do século, em especial os poetas concretos de São Paulo. Outro momento marcante das relações entre literatura e tecnologia se dá a partir da década de 60, quando há uma relevante escalada no uso de computadores, em muito catapultada pela corrida espacial na Guerra Fria. São conhecidas e já amplamente estudadas diferentes iniciativas de geração de poemas a partir de hardwares e/ou softwares, como as dos grupos franceses OULIPO e ALAMO, ou as de Waldemar Cordeiro e Erthos Albino de Souza no Brasil. Na mesma época, a questão da informática também adentra a produção poética dita “tradicional”, que não é digital nem aleatória, mas que vê elementos do novo mundo computacional introjetando-se em sua forma e em seu conteúdo. É paradigmático, por exemplo, o álbum Gilberto Gil, de 1969, um dos mais marcadamente tropicalistas do

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compositor baiano. Com forte carga devedora ao rock progressivo, à psicodelia e à atualização cultural típicas do movimento, as canções nele inclusas abordam amiúde o universo espacial e os astronautas (registre-se que o homem pisou na lua no mesmo ano do lançamento da obra), como em “Volks-Volkswagen blues”, escrita pelo próprio Gil (“My Volks-Volkswagen blues / Ready to carry me away / A long way to reach the moon”); a presença tecnológica no cotidiano, como em “2001”, composta por Tom Zé e Rita Lee (“A equação me propõe / Computador me resolve”); e a inevitável comparação entre o homem e a máquina: Só eu posso pensar Se Deus existe Só eu Só eu posso chorar (Gil 1969: faixa 1)

Estes versos pertencem à canção de Gil de sugestivo nome, “Cérebro Eletrônico”, metáfora óbvia do computador que “comanda / manda e desmanda / [...] Mas ele não anda”, retrato da reflexão corrente na época acerca dos limites da informática. Na melodia, notam-se sons metalizados, dissonantes, com compassos em crescente aceleração e elementos da letra cantados de maneira caótica e não-linear, claramente aludindo a um universo robótico, metálico (em “Futurível”, também escrita por Gil e presente no mesmo álbum, ele afirma: “Seu segundo estágio de humanóide hoje se inicia / [...] Na nova mutação / A felicidade é feita de metal”). O efeito gerado pela combinação dos acordes com as palavras traz certo desconforto de um eu que se apega na mais primordial humanidade para rechaçar o rebaixamento do sujeito diante da tecnologia (“Sou muito vivo e sei / Que a morte é nosso impulso primitivo”), modo de resistir na diferença, naquilo que é inalcançável à inteligência artificial, o “pensar”, o “chorar”, o “morrer” como atos de reafirmação de um estado humano cada vez mais frágil, porém ainda existente. Se a influência do mundo da informática é notada, enquanto forma, na harmonia e na melodia da canção popular, na poesia escrita ela é revertida em sátira por José Paulo Paes, com a reversão de fundamentos-chave da computação básica contra si mesma, em clave altamente irônica. Em Meia Palavra, de 1973 – portanto bem próximo ao álbum de

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Gilberto Gil –, o poema “Metassoneto ou o computador irritado” apresenta quatro estrofes ilegíveis, com pseudopalavras formadas apenas pelas letras “a”, “b”, “c” e “d”, referência às sequências binárias que compõem as linguagens de programação. Ao final, uma longa linha com a formação “blablablabla”, expressão que remete a um discurso desimportante. Desconstrói-se tanto a poesia gerada por computador como o próprio equipamento. É curioso notar as reações de Gil e Paes à informatização em uma época prévia ao PC, ou seja, anterior ao contato mais direto do indivíduo com a máquina. As possibilidades computacionais eram, então, uma espécie de abstração, uma promessa de revolução a se dar em breve, e, por isso, amedrontadoras. Sherry Turkle, pesquisadora do MIT que vem se dedicando a propor uma “etnografia digital”, identifica, entre as décadas de 60 e 70, uma prevalência desse tipo de reflexão frente ao avanço tecnológico. Diferentemente de outras invenções, o computador não efetua exclusivamente uma função (como o rádio), não é relacionável a algum ente da natureza (como o avião ao pássaro) nem é reduzível a especificações técnicas (como um braço mecânico), mas comporta, em si, uma complexidade que escapa à compreensão daquele que não é programador, ganhando aura de mistério. Sua natureza de plataforma múltipla, capaz de realizar diferentes funções (calcular, organizar, separar, agrupar), só é comparável ao cérebro humano. Por isso, a teórica afirma, em sua obra de sugestivo nome The Second Self: Computers and the Human Spirit – de 1984, portando captando esse momento pré-popularização do computador pessoal – que tal equipamento possui valor “evocatório”2 (Turkle 2005: 19) ao suscitar sentimentos diversos em seus usuários e observadores, análogas, em termos de impacto coletivo, à repercussão dos conceitos psicanalíticos no começo do século XX: “As pessoas têm medo de pensar em si como máquinas, controladas, previsíveis, pré-determinadas, assim como têm medo de pensar em si como “guiadas” por impulsos sexuais ou agressivos” (idem: 272). O início da interação homem-computador, pois, deu-se de forma bitransitiva: a ideia de semelhança entre o processador e o cérebro tanto gera temor quanto às possibilidades da máquina quanto suscita o questionamento de quem realmente detém o poder, reavivando fantasias de uma “rebelião” das inteligências artificiais tão exploradas pela ficção científica. Essa analogia é o que move a rejeição à tecnologia escancarada nas canções

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citadas de Gilberto Gil e no soneto paródico de José Paulo Paes, ambas as manifestações em claro tom de resistência do indivíduo frente à nova realidade. Mais de vinte anos depois, já em um contexto de ampla popularização do PC, o próprio Paes retornaria ao tema, em poema publicado no livro póstumo Socráticas, de 2001: Descartes e o computador Você pensa que pensa ou sou eu quem pensa que você pensa? Você pensa o que eu penso ou eu é que penso o que você pensa? Bem vamos deixar a questão em suspenso enquanto você pensa se já pensa e eu penso se ainda penso (Paes 2008: 478)

No título já se deflagra a atmosfera cômica de um suposto diálogo entre o filósofo francês e a máquina, o que o leva à relativização de sua máxima, cogito ergo sum. A intensa repetição do verbo pensar leva o leitor a uma labiríntica aporia, como que representando o próprio processamento frenético da máquina. Mais uma vez, surge o questionamento de quem está no comando das ações, por meio do quiasmo da segunda estrofe. Finalmente, a oposição “já-ainda” dos últimos versos exibe a simbiose do usuário e de seu processador, unidos cotidianamente em diversas operações pessoais e profissionais. O computador extrapola o que se possa entender por ferramenta3 ou equipamento, mas se torna uma extensão virtual do próprio pensamento, em que “locais” de processamento, análise e cálculo vão acontecendo simultânea e irrefletidamente. Isso, somado à substituição do trabalho humano pelo automatismo em tantos ramos de atividade, vai apagando cada vez mais o limite entre indivíduo e máquina, ora complementares, ora intercambiáveis. É nesse sentido que a menção a Descartes traz outra camada significativa ao poema: a imbricação entre pensamento e existência desestabiliza-se de modo definitivo. A hesitação “eu penso se

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ainda penso”, no limite, converte-se em “eu penso se ainda existo”. As décadas de 90 e 2000 foram paradigmáticas nessa reflexão, que culminou com diversas teorias como o “póshumanismo”4 e o “pós-biológico”, que por seu caráter por vezes polêmico, e por se concentrarem sobremaneira na “robotização do corpo” por meio de próteses, chips e outras inovações, não interessam a esta análise. O fato é que esse texto de Paes simboliza uma percepção do poeta em um momento crucial do processo de informatização do mundo dito “desenvolvido”: junto com a proliferação do computador pessoal, vê-se um movimento global de simplificação das interfaces de utilização deste aparelho, mediadas cada vez mais por “máscaras” visuais que elidem as linhas de comando e toda a lógica de programação e as substituem por ícones gráficos que aumentam a sensação de se estar “dentro” da máquina, e não no seu controle. Sherry Turkle, na obra supracitada, chama esse fenômeno de “transparência”, no sentido de que a existência de linguagens de software é esquecida pelo operador, que navega em um ambiente dito “amigável”, sem nenhuma necessidade de conhecimento técnico. Embora os PCs Macintosh tenham sido pioneiros nessa estrutura, foi o sistema operacional Windows que popularizou de vez a interface visual. Estar ao computador a partir da metade da década de 90 era cada vez menos “como guiar uma máquina e cada vez mais como conversar com alguém” (Turkle 2005: 07), sensação reforçada pelo vocabulário que humanizava o equipamento, como “memória” e “inteligência”. “O computador é um novo espelho, a primeira máquina psicológica” (idem: 280), reforça a teórica, o que explica o conflito da voz cartesiana que enuncia o poema, em abalo com seus limites psíquicos e identitários. É de se compreender que artistas da geração de José Paulo Paes, nascido em 1926, e mesmo Gilberto Gil (de 1942) tenham vivido tais dilemas, que não se encerram na relação ser humano/tecnologia, mas que suscitam outras questões. Um aspecto que chamava a atenção dos novos infonautas era a fragilidade daquele tipo de “memória”. A ideia de que uma pane ou um acidente pode fazer desaparecer todo um trabalho intelectual é mais presente, pois não se tem a materialidade de papéis, por exemplo, ou a confiança de durabilidade da própria memória humana. Armando Freitas Filho, poeta de uma geração posterior a Paes, mas ainda formado em uma civilização pré-informática, expressa a relação etérea, delicada e impalpável com a máquina, que passa a ser suporte de escrita e leitura:

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Você não para de cair fugindo por entre os dedos de todos: água de mina resvalando pelas pedras. Nunca nenhum poema acaba a não ser com um tranco com um corte brusco de luz. As janelas daqui não choram como nos filmes com seu clichê de vidraças feito de chuva e lágrimas que o estúdio e o destino encomendam aos deuses de passagem. De costas é melhor para não perder de vista nem por um segundo nenhum sentido do que estava escrito nem quando, no chão seu corpo a céu aberto! (Freitas Filho 2003: 410)

Este é o poema “Na área dos fundos”, publicado originalmente em De cor, de 1988, e alusivo ao suicídio de Ana Cristina Cesar, o que é perceptível pela presença da queda e do corpo no chão. Ao mesmo tempo, porém, há um forte tom metalinguístico na reflexão sobre o término do poema e o “sentido / do que estava escrito”. Entrelaçam-se as fugacidades da escrita e da vida, ambas fugindo ao controle, escapando pelos dedos. Ao falar certa vez sobre esse texto em uma entrevista, Armando Freitas Filho cita o computador como local de criação poética, e repete a metáfora da água: A poesia "chega" para mim descontinuadamente. O caderno, a folha casual (mais esta do que aquele), o pedaço de papel (mais este do que aquela) condicionam o que escrevo, forçosamente. Afinal, o

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suporte acaba por influir no que vai "suportando". Como esse pedaço de papel não tem "estatuto" nenhum (se tiver será o de um "volante" passado de mão em mão), o poema se estrutura nesse lugar instável, trêmulo. Quando se fixa através da escrita, primeiro à mão, depois à máquina de escrever mecânica, e, agora (estágio recente), na tela do computador, traz na sua composição essa incerteza. Aliás, com o advento do computador o ciclo da criação, digamos assim, se fecha, pois parece que volto ao começo de tudo, já que escrever nele é como escrever na água do pensamento, quando tudo pode ser, de repente, apagado, reformado, absolvido, sem deixar marcas, apenas o leve incômodo ou remorso de alguma coisa que se perdeu para sempre. (Freitas Filho 2000: 07)

É bom lembrar que a questão da inscrição da letra e a preocupação com a materialidade da literatura são recorrentes na temática desse poeta. Não apenas o papel, receptáculo da palavra, mas também o instrumento responsável por essa gravação, como a caneta, protagonista de um poema em Longa vida: “Deixem-me somente / a pena e os papéis / para as minhas novas ninfas: / a Bic, a Cross [...]”, tentativa de se reverter a virtualidade da linguagem em objetos palpáveis, que lhe dão corpo, forma de reduzir a instabilidade por ele aludida na entrevista acima. Outro estágio é o da máquina de escrever, não à toa o nome da extensa coletânea de suas obras até 2003. Com o computador, a sensação de que jamais se vencerá a intangibilidade poética, agora não mais corporificada em algo táctil, mas tornada dados de um software que roda a partir de um hardware, editável, sob o risco de desaparecer. A água, repetida no poema e em sua resposta ao entrevistador, é a metáfora heraclitiana desse fluxo constante no tempo, em que a inapreensibilidade da poesia e da própria vida reforça o sentimento de perda de algo. Essa fluidez poética é o que causa a agonia do término do poema, do momento de interrupção da corrente que estanca o pensamento, “tranco” artificial, forçoso, afinal, “nenhum poema acaba”, como a água, ele jamais para de jorrar: é interrompido. Tal reflexão remete a um famoso ensaio de Giorgio Agamben, “O fim do poema”, em que o filósofo italiano questiona o estatuto do último verso, do encerramento de uma peça poética. Para ele, é o momento em que som e sentido se conciliam, desfazem o descompasso sintáticofônico-semântico causado pelo enjambement, ou seja, é quando a poesia tende à pobreza prosaica, a menos que interrompa tal processo mantendo a tensão entre os dois polos: “No ponto em que o som está prestes a arruinar-se no abismo do sentido, o poema procura uma

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saída suspendendo, por assim dizer, o próprio fim, numa declaração de estado de emergência poética” (Agamben 2002: 146). Veja-se o poema em questão: a verticalidade da mancha da página, além de delinear a própria queda, exibe cortes bruscos nos versos, mantendo a abertura de sentido que oscila entre o fim da vida e o fim do poema. A leitura é interrompida, ofegante, como se as cesuras dos encavalgamentos tentassem reter o fluxo vital, evitar a perda do controle. O isolamento de “seu corpo”, em meio à oposição chão/céu, marca o cadáver da amiga e o poema pronto (também já um cadáver), ambos no solo – o encerramento da queda –, parados, mas, imediatamente, alçados ao céu aberto do verso seguinte, de onde recomeça o movimento de cair. Dá-se algo próximo à suspensão proposta por Agamben, como o chão se abrisse em firmamento, não sem reter algo, não sem prejuízo à fluidez, ainda que mínima (“nem por um segundo”), para então recomeçar seu processo infinito, em looping, afinal, “Você não para de cair”, frase que inicia o poema já em movimento, já sugerindo o caráter infindável do ciclo escrita-leitura-vida. Eis, porém, que, sem a materialidade – ainda que “instável” – do papel, essa experiência de retesamento do fluxo poético é perdida no desligamento da máquina, “tranco”, “corte brusco de luz”, ou ainda no navegar das diversas “janelas” abertas na tela, instaurando uma curiosa dialética que nasce a partir da computação: o poema ora “está” na tela, ora é coberto por outra janela aberta; ele “está” gravado na memória do equipamento, porém reduzido a um código binário, em latência. Enfim, o advento da informática traz diversas novas questões ao mundo da escrita, da linguagem, e por consequência, da poesia, expressas no poema e na entrevista de Armando Freitas Filho. Se o computador enquanto suporte refletiu-se em determinadas produções poéticas, a popularização da internet já nos anos 2000 provocou mudanças definitivas no sistema editorial. Surgem blogs poéticos, narrativas hipertextuais, democratiza-se um pouco a publicação e o acesso à literatura, o que acarreta, também, um universo de obras sem filtros de editoras em uma pulverização de criações que dificulta o recorte crítico. Alguns escritores passam a usar redes sociais para divulgar seus poemas5, ou ao menos “testar” ideias e versos, verificando a reação dos leitores em poucos minutos. Essa dinâmica de escrita/leitura, perceptível no humor dos calembours de André Vallias lançados no Facebook

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e nos aforismos que Fabrício Carpinejar posta no Twitter, elimina qualquer mediação entre autor e público, e alimenta um novo tipo de fruição poética, de modo fugaz, passando em uma timeline em meio a tantos outros registros de linguagem. Concomitantemente, instaura-se um paradoxo: embora tais “micropoemas” estejam gravados no sistema do website – podendo ser acessados a qualquer momento –, eles acabam por desaparecer em meio à pletora de informações, notícias, mensagens pessoais, enfim, no fluir natural da interação dessas mídias de socialização. São, de certa forma, produtos estéticos momentâneos, talvez a mais fidedigna concretização do “poema-pílula” desejado por tantos poetas anteriores. Ademais, a internet introjeta-se na poesia não apenas como veículo, mas também suscita inquietações de forma e conteúdo, como não podia ser diferente, já que ela vem revolucionando o cotidiano, com impactos sociais, econômicos e identitários. Sherry Turkle, no livro Alone Together, publicado mais de trinta anos depois de The Second Self, já citado anteriormente, afirma ter, no intervalo entre as obras, mudado significativamente sua definição acerca da informática: Certa vez descrevi o computador como um “segundo self”, um espelho da mente. Agora a metáfora não é mais suficiente. Nossos novos dispositivos fazem emergir um novo modelo de self, que se divide entre a tela e a realidade física, ambas conectadas por meio da tecnologia. (Turkle 2011: 26) Mais adiante, a teórica afirma, ainda, que na era pós-conectividade, passou-se do “multitasking” ao “multi-lifing” (idem: 148), ou seja, a multiplicidade de tarefas e dimensões de atenção que as “janelas” nos exigiam foram convertidas em uma pluralidade de vidas simultâneas, performadas por perfis públicos, avatares, apelidos, “fakes” em ambientes de sociabilidade virtual. A contradição é explicitada no oximoro que nomeia seu livro, Alone together, síntese da solidão compartilhada que caracteriza o ser conectado. Um poema de Leila Míccolis ilustra bem esse sentimento: Domingueiras Do ciclo: Familiar Aos domingos, nosso amor acabado dói mais,

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talvez porque não haja novela ou porque a conexão seja mais lenta do que a usual, com isto esvaziando as salas de sexo virtual; [...] (Míccolis 2013: 418)

Há claramente uma lógica entre a dor sofrida pelo fim de um relacionamento e o acesso à TV e à internet, tudo sob a ironia do título, que sugere atividades festivas. O enfado força o eu a pensar e a sentir, já que não está mais distraído pela hiperestimulação. Aos poucos, a substituição da interação corpórea e presencial pelo anonimato da Web, pelo conforto do isolamento6, pela virtualidade das relações. O mesmo tema está presente na canção “Nina”, de Chico Buarque (2011): [...] Nina adora viajar, mas não se atreve Num país distante como o meu Nina diz que fez meu mapa E no céu o meu destino rapta O seu

Nina diz que se quiser eu posso ver na tela A cidade, o bairro, a chaminé da casa dela Posso imaginar por dentro a casa A roupa que ela usa, as mechas, a tiara Posso até adivinhar a cara que ela faz Quando me escreve

Nina anseia por me conhecer em breve Me levar para a noite de Moscou Sempre que esta valsa toca Fecho os olhos, bebo alguma vodca E vou

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Há no álbum Chico, em diversos momentos, a percepção de um homem mais velho relacionando-se com o mundo contemporâneo e com mulheres mais jovens. Aqui, o relacionamento à distância, que evidentemente antecede a internet, ganha instrumentos de aproximação e realismo, como o uso de aplicativos como o Google Earth, que permite ver basicamente imagens do mundo todo. Mimetizando um zoom, a enumeração parte do mais geral para o mais específico (cidade/bairro/casa), enquanto a melodia acelera-se. No telhado, o limite da tecnologia, local de segurança da mulher que “não se atreve”, característica geracional de quem já cresceu em um mundo conectado. Resta apenas a imaginação, o contato simulado entre avatares virtuais de indivíduos que passam a conviver primordialmente dessa forma. Uma observação importante que Turkle (2011) faz a respeito de redes sociais é que, como elas estão sempre lá, com seu rol de “amigos” disponíveis, perdeu-se o senso de escolha do momento de se comunicar, ou mesmo da necessidade de interagir. Está-se sempre em múltiplas conversas, grupos de troca de mensagens, em um acúmulo de interlocuções que extrapola qualquer tempo que se disponibilize para tal. Embora não se esteja sempre online, a representação latente do indivíduo está sempre lá, no “espaço” do chat, do site, do perfil. É o que a teórica chama de “performances do eu”, supostas camadas de existência assumidas na vida digital que fragmentam nossa percepção espaço-temporal. Com isso, acaba-se sugado pela demanda gerada por tais interações: Agora sabemos que, uma vez que os computadores nos ligaram uns aos outros, e já que nos tornamos acorrentados à rede, nós realmente não precisamos manter os computadores ocupados. Eles nos mantêm ocupados. É como se nós fossemos o principal aplicativo deles. [...] Falamos que “gastamos” horas no e-mail, mas nós, também, estamos sendo gastos”. (Turkle 2011: 249) É a prevalência de um novo tipo de comunicação, representada na canção de Chico Buarque pelo etéreo da imagem do destino e do céu, que contrasta ironicamente com a fisicalidade de “rapto”. As relações tornam-se palavras trocadas, signos perdidos na vastidão da rede. O tema é retomado em seu álbum mais recente, Caravanas, a partir de uma nova versão de “Dueto” (Buarque 2017: faixa 6), originalmente lançada em 1980 em gravação com Nara Leão. A letra é muito conhecida: trata-se de uma jura de amor que cita diversos argumentos de autoridade que comprovam o destino promissor dos amantes, cuja felicidade

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“consta” em referências religiosas (evangelho; orixás; búzios), acadêmicas (tese; tratado) e legais (dados oficiais; autos; pauta) citadas em profusão enumerativa – a partir de um ritmo melódico que se tensiona com o correr da canção – que reforça a abundância dessas “provas” de sucesso daquela paixão. Em seu relançamento 37 anos depois, Dueto tem como cantora ao lado de Chico Buarque a sua neta, Clara Buarque. Não há qualquer grande diferença rítmica ou poética entre as versões, exceto ao final da última, em que novos versos são adicionados: a relação passa a “constar” em websites e aplicativos como “Google”, “Tinder” e “Facebook”. Essa inserção não apenas ressalta o contraste geracional entre a jovem artista e o avô como gera certo desconforto no recobrimento da letra com a música, pois todas as palavras incorporadas são da língua inglesa, acarretando uma espécie de ruído, ficando nítida a artificialidade da presença delas naquela canção. Tal efeito desvela a estranheza com que o homem mais velho, anterior à geração millennial, encara esses novos “locais de autoridade” que substituem as antigas referências religiosas, acadêmicas e legais, e, principalmente, onde os relacionamentos se desenrolam. Também na poesia publicada em livros há a exploração desse peso jurisdicional que determinadas funções da internet adquirem. Talvez o mecanismo de buscas Google seja o exemplo mais evidente de local virtual que encarna uma certa “voz da verdade”, por ser de longe o website mais utilizado para a ordenação e organização do caos existente na internet. Basicamente tudo o que se quer encontrar será obtido por meio desse filtro, que ganha o poder de selecionar o que será visto ou não pelo usuário. Mais que isso, ganha status de complemento da memória humana, suporte automático de lembrança de dados que antes dependiam da memorização ou do registro em papel ou outro meio, talvez no mais perfeito caso de simbiose entre neurônios e algoritmos já estabelecida. Em poema recente, Eduardo Sterzi ironiza tal condição sem nomear a marca, mas em clara alusão ao Google: PERGUNTE AO ORÁCULO (MAIS UMA VEZ) Como fazer cupcake? Como fazer chantilly? Como fazer ganache? Como fazer vermute?

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Como fazer costela? Como fazer uma mulher Da minha costela? Como fazer sexo? (Sterzi 2016: 18)

A anáfora em “Como fazer” cria um paralelismo verticalizado que remete à função de “autocompletar” que o mecanismo de buscas oferece quando se começa a escrever em seu campo de texto. Segundo o suporte da empresa, “As previsões de pesquisa são geradas automaticamente por um algoritmo sem qualquer envolvimento humano. O algoritmo é baseado em vários fatores, como a frequência com que as outras pessoas pesquisaram um termo”7. Ou seja, as sugestões são, de certa forma, uma mostra do que os usuários mais pesquisam, tornando-se um substrato valioso para compreender as intenções dos internautas, o que está “em alta” nas procuras diárias. No poema em tela, o autor faz parecer que se trata de um objet trouvé, cuja autenticidade é irrelevante para a sua compreensão. A partir, então, da pergunta base “Como fazer?”, surgem as alternativas de preenchimento, a priori prosaicas, até que a penúltima questão gera um estranhamento, que em combinação com a última, remete a Adão no livro bíblico do “Gênesis”. Liga-se, então, a ideia ao “oráculo” presente no título, que pode tanto denotar tanto uma divindade consultada por um mortal como uma metáfora derrisória ao Google. Imagina-se, então, o primeiro dos homens verificando como fazer Eva, e como fazer sexo (depois da queda do Éden) no site de buscas, “mais uma vez”, pontada chistosa que sugere uma substituição de Deus pelo algoritmo supremo que comanda a vida contemporânea, em clara crítica ao caráter corporativo que a rede mundial de computadores tem assumido. Tal recurso poético recebeu o nome de “googlagem” por Ricardo Domeneck (2011) em texto que analisava poemas de Angélica Freitas, ligando a prática à poesia Flarf, tendência estética sobretudo americana que explora motores de pesquisa para compor textos que tendem ao nonsense.8 A poeta gaúcha talvez tenha sido a primeira no Brasil a ter proposto esse procedimento, em algumas peças de Um útero é do tamanho de um punho: a mulher vai ao cinema a mulher vai aprontar a mulher vai ovular

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a mulher vai sentir prazer a mulher vai implorar por mais a mulher vai ficar louca por você a mulher vai dormir a mulher vai ao médico e se queixa a mulher vai notando o crescimento do seu ventre a mulher vai passar nove meses com uma criança na barriga [...] (Freitas 2012: 69)

Da mesma forma, a anáfora remete às previsões de pesquisa, cujos resultados exibem as buscas mais comuns ligadas à mulher, em que se depreende todo o ideário relacionado ao feminino em um contexto machista: a maternidade, a satisfação sexual subjugada ao homem (“implorar por mais”; “louca por você”), enfim, escancara-se a mentalidade prevalente do usuário anônimo do Google. Percebe-se que há, portanto, relevantes casos em que aspectos fundamentais da internet e desse cotidiano conectado se convertem não apenas tematicamente em crítica política na poesia, mas transformam sua estrutura, causando impactos estéticos claros. Outro exemplo em que o modus operandi do internauta é mimetizado poeticamente é “Índio (poema-wikipedia)”, de Rodrigo Lobo Damasceno, publicado na antologia Vinagre (Os vândalos 2013: 145), cuja leitura simula o navegar no maior site enciclopédico do mundo. São listados, sem uma ordenação lógica ou coerente, eventos que ocorreram em 1964 (“Anita Malfati morreu em 1964”; “Em 1964 Martin Luther King recebeu o prêmio Nobel da \ Paz”) enquanto trançam-se tempos verbais distintos (“1964 está sendo um ano \ longo, escroto, árduo”; “Em 1964 Cassius Clay teve fé, \ se tornou Muhammad Ali \ e derrubará índio e impávido - outro adversário: 1964”) que projetam o ano do golpe militar no Brasil a um plano atemporal, tornando-se um “modo de ser” do país em seu passado e presente – o que fica mais claro quando se lembra que Vinagre agrega textos em resposta à violência policial vista na repressão das amplas manifestações de 2013. O último verso, porém, remete a um verso de Índio, canção de Caetano Veloso cujo horizonte utópico empresta ao poema de Damasceno uma esperança de ver o ano de 1964 – enquanto metáfora da truculência institucional brasileira – enfim vencido.

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O procedimento de simular o excesso de informações na rede e como elas são caoticamente recepcionadas pelo internauta, visto em “Índio (poema-wikipedia)”, é recorrente em tentativas poéticas de se transpor o mundo virtual à poesia, reproduzindo-o em viés crítico. Em “A quimera” 9, Italo Diblasi junta manchetes aleatórias de notícias que saltam aos olhos na frente da tela, unindo temas totalmente diferentes (“[...] gabigol revela motivo de não jogar \ na europa. senado aprova texto de reforma \ ministerial. daniel dias leva a décima \ sexta medalha da carreira [...]”). Interessante notar com o enjambement quebra a sequência sintático-semântica das frases, desvirtuando o seu caráter fácil e chamativo, destruindo o seu poder de atração pelo click. Já Marcos Siscar vai da enumeração de anúncios ao nonsense frente a uma caixa de entrada de e-mails: A VIDA SEM ANTI-SPAM emagreça dormindo e sem dieta. pare de fumar fumando. veja como é fácil. elimine o mau hálito. impotência nunca mais. aumente seu p. seduza com 75% a mais de eficiência. 25% de desconto 100% jesus. tem alguém traindo você. veja como é fácil. fale inglês sonhando. seu dinheiro de volta sem juros. tudo 12 vezes em segundos livros cremes viagens a cabo. nada de amadoras. venha paixão é tão fácil gostar de gostar de coisa e tal. não tenha medo. cobrimos a concorrência cu de midas onde a vida enfia o dedo (Siscar 2010: 100)

É como se os spams fossem sendo percorridos e apagados cada vez mais rapidamente, e seus verbos imperativos se impregnassem caoticamente na mente do usuário, obrigado a conviver com quantidades imensas do “lixo linguístico” que cruza a sua navegação, e do qual a propaganda representa significativa parte. Evidentemente, o furor do marketing não nasce a partir da Web, mas certamente se intensifica, o que polui a busca por dados específicos, força a perda de tempo e piora a hiperestimulação já inerente à rede.

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Do sétimo verso em diante, as frases passam a não fazer mais sentido, embora certos sintagmas ainda sejam reconhecíveis do discurso propagandístico. Nas últimas duas linhas, porém, há a inserção clara da voz do poeta, que interrompe o ready-made e propõe uma imagem, “cu de midas onde a vida \ enfia o dedo”, curiosa inversão do mito de Midas (cujo toque transforma tudo em ouro) em que “a vida”, espécie de metonímia para “os outros”, transforma em dinheiro o contato com aquele que recebe todas essas mensagens, obviamente prejudicado.10 Retratada, então, a posição de desigualdade entre anunciante e leitor, este constantemente seduzido por chamadas atraentes e muitas vezes falsas. O fecho “enfia o dedo” propõe uma duplicidade: “a vida enfia o dedo”, lesando o destinatário; ou a leitura do verso isolado, simbolizando o clicar para o apagamento das mensagens, marca do tempo perdido e da overdose sensória que a internet representa, bem explicada por Turkle: Um e-mail ou mensagem de texto parece sempre estar rumo ao lixo. Hoje, como um fluxo contínuo de textos torna-se um modo de vida, podemos dizer menos coisas uns aos outros, porque imaginamos que tudo que dizemos é praticamente já descartável. Textos telegráficos, por natureza, certamente podem ser emotivos, inspiradores e sensuais. [...] Mas eles não servem para compreender de forma profunda um problema ou explicar uma situação complicada. Eles são momentâneos, eles preenchem lacunas de tempo. (Turkle 2011: 155) Além da natureza impessoal, quando comparado ao telefone ou ao encontro presencial, o e-mail tem esse caráter fugaz e descartável que não se via na carta escrita. Além disso, ele tem uma complexidade muito maior na questão da privacidade, pois quando se envia uma mensagem eletrônica, não se tem certeza sobre quem tem acesso a ela, quem poderá lê-la, já que não há marcas de sua violação (em contraste ao envelope selado). É um modo de comunicação frágil e efêmero, mas que domina o intercâmbio de ideias no mundo, juntamente com os aplicativos de mensagens instantâneas, ainda mais fluidas e passageiras. O poeta Fabiano Calixto, em seu Nominata Morfina, tem um poema chamado “E-mail para Fabiano Calixto” (2014: 127), em que se reproduz exatamente a mensagem de devolução de um e-mail, recebida quando o contato não se efetiva. Repleta de linhas de comando em linguagem de programação – portanto, ilegível a quem não é técnico –, a mensagem não esclarece o motivo do problema no envio, deixando inerte aquele que tentou comunicar-se.

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Diversos dos poemas citados exploram o recurso do objet trouvé, que além de gerar reconhecimento no leitor acostumado ao mundo virtual, coloca em evidência as peculiaridades da rede. Em célebre texto sobre o ready-made de Marcel Duchamp, Octavio Paz afirma que o ato de retirar um objeto de seu universo cotidiano e levá-lo à cena artística provoca um duplo movimento de esvaziamento do sentido de existir da coisa apropriada, bem como de dissolução da noção de “obra de arte”: “um dardo contra o que chamamos valioso” (Paz 2008: 31).11 Provocando, assim, uma “higiene do gosto”, o procedimento renova as percepções de fruição e força o público a redefinir seu padrão estético, contrariando qualquer concessão ao “bom gosto”, conceito paralisante abominado por Duchamp. Ao esgotar qualquer significado do que é exposto, resta somente sua forma, que no caso do objet trouvé reduz-se ao gesto político-artístico do autor, e a ironia que tal gesto carrega ao deslocar o estatuto do objeto à condição de arte. Mesmo essa intervenção autoral é mínima, momentânea, já que, uma vez tornada “arte”, seu controle esvai-se. É quando, nesse desenlace, o artista descarrega criticamente a sua angústia: Jogo dialético, o ready-made é também um exercício ascético, um caminho de purgação. Diferentemente das práticas místicas, sua finalidade não é a união com a divindade ou a contemplação da verdade: é um encontro com ninguém e seu objetivo é a não-contemplação. O ready-made se instala em uma zona nula do espírito. [...] Um niilismo que gira sobre si mesmo e se refuta: entronizar uma bugiganga e, uma vez ela estando em seu trono, negá-la e negar a si mesmo. Não um ato artístico: a invenção da arte de liberação interior. [...] É o que Duchamp chama a beleza da indiferença. Ou seja: liberdade. (idem: 38)

Nos Estados Unidos, alguns pesquisadores têm trabalhado o fenômeno percebido nos poemas citados. Brian Reed, por exemplo, atenta ao que ele chama de "linguagem redirecionada": "apropriar-se das palavras alheias, editá-las e apresentá-las como se fossem suas" (Reed 2011: 759), em um processo que converge, no limite, à impossibilidade de definição de autoria de qualquer discurso, uma vez que o entrecruzamento infinito de enunciados, em diversas mídias, na contemporaneidade, dilui a importância, ou mesmo a viabilidade, de uma "origem" criadora. O poeta, então, passa a ser um “word processor”, termo que Marjorie Perloff (2011) usa para definir o ato de “absorver, recarregar e redistribuir a linguagem que já está lá”. A expressão remete tanto a softwares de edição de

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texto, como o “Word”, da Microsoft, quanto à sua acepção literal, “processador de palavras”, sendo o escritor então aquele que organiza, delimita e dispõe as palavras já constantes no universo digital. Veja-se, pois, um poema de Eduardo Sterzi ainda não publicado em livro, mas antecipado pela revista virtual Modo de Usar & Co.: Unicórnios e chimpanzés É grande ofensa aos chimpanzés dizer que os ateus [são seus descendentes? Se o morto não é consciente quem fala nos centros [kardecistas é o demônio? Quem vai à igreja o faz por medo do inferno? A existência de um umbral é prova de que a reencarnação é falha? Quais as principais diferenças entre as nossas senhoras do bom parto [e do mau parto? Você tem saudade de alguém que já não está mais aqui? O que a bíblia fala sobre hermafroditas? Que animal não coube na arca de noé? Tristeza atrai satanás? Por que os atuais chimpanzés estão em greve de evolução e não querem se tornar humanos? Unicórnios têm algum significado maligno? O amor é uma ilusão? Qual é a música mais triste do mundo? E se deus não existir? Quando alguém morre é por vontade de deus? Dá para ser cristão acreditando apenas em algumas partes da bíblia? Jesus foi paranormal ou escritor? Quando estou sonhando não sei que estou sonhando como posso saber se este exato momento é real?

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Se o sol morrer ressuscita? Não foi a princesa isabel que libertou os escravos mas sim jesus? E se quando você morrer descobrir que nada na bíblia é real? Enterrar pessoas junto com foto faz mal? Se a terra é um planeta expiatório nunca teremos um mundo melhor? Estou no caminho certo? É verdade que deus canta? (Sterzi 2014)

Tem-se, aqui, um equivalente literário da assemblagem, espécie de mosaico de alguns ready-mades. Em diálogo óbvio com o supracitado “Pergunte ao oráculo (mais uma vez)”, apresenta mais uma coleção de questões, porém não mimetizando o Google, já que não há anáfora. O leitor parece passear por um site de perguntas e respostas, como o Quora ou o Yahoo Respostas. Chama a atenção a repetição da temática do outro poema, a questão religiosa, dessa vez confrontada com menções ao Evolucionismo. Retiradas, pois, de seu contexto, e sem o complemento de suas réplicas, as indagações – já cômicas de tão insólitas – esvaziam-se, montando uma miscelânea de carcaças linguísticas despejadas em um ato literário que se reduz ao gesto dessa compilação. A ironia reside em trazer à poesia – local de expansão dos horizontes da língua, de reflexão da linguagem torcida sobre si mesma – amostras radicais da completa banalização da palavra que se deflagra na rede, não apenas uma “floresta de signos”, mas uma “floresta de simulacros”, universo infinito de manifestações verbais e imagéticas que, por um lado, cumpre o seu potencial de comunicação e informação, mas que, por outro, gera um macrocosmo insano de dados que sabota esses mesmos papéis. Se os recursos do ready-made e da assemblagem mostram-se recorrentes em obras poéticas que repercutem a Web, é porque seus autores sentiram-se compelidos ao gesto que escancara o vazio do mundo virtual e, ao mesmo tempo, os liberta dele. É uma estratégia artística possível, entre outras que merecem estudo à parte, como certa produção que vem incorporando a ideia de avatar e de performance de si ao resgatar e intensificar representações de fragmentação e dissolução egoica (fenômenos discutidos anteriormente à internet, mas que ganham novos elementos a partir dela). Penso em poemas como

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“Personagem”, de Eduardo Sterzi (2009: 57), modulação serialista de eus a partir da mínima variação da ortografia do sobrenome do poeta (Eduardo Stenzi; Eduardo Strezi; Eduardo Sperb, etc); ou nas autobiografias de Fabiano Calixto (2014: passim), coleção de quatro poemas chamados “Autobiografia” espalhados pelo Nominata morfina, cada um trazendo uma narrativa diferenciada, como “autoficções poéticas”. No que ao tange ao escopo desse artigo, porém, creio ter ficado claro que a apropriação do objet trouvé virtual – “internet trouvé” – responde a uma urgência de expor a natureza fútil, às vezes absurda, às vezes opressora da massa de discursos, afetos, projeções e performances identitárias que compõem uma espécie de “esfera pública”, conceito que Habermas (2014 [1962]) cunhou pensando na constituição, a partir da sociedade burguesa, do ideário de uma coletividade de pessoas privadas, uma dimensão discursiva comum em que coabitam indivíduos e subgrupos absolutamente multiformes, diferentes entre si. Ao tirar excertos dessa esfera e isolá-los no tablado do poema, os autores citados explicitam a banalidade que dela verte e iluminam os efeitos da conectividade, do anonimato e da excessiva exposição sígnica sobre a linguagem, as mídias e a sociedade como um todo. Esse gesto, conceitual e incisivo, ressignifica o conteúdo apropriado e o transforma em pièce de résistance do universo em que foi retirado, parte que metonimicamente expõe a frivolidade dos meios digitais. Tal prática, então, resulta um caráter político ao subverter a língua contra si mesma, em torção autófaga, deflagrando, a partir da particularidade dos exemplos pinçados, as idiossincrasias coletivas da Web, a saber, o seu falseamento informacional, a sua potência difusora de discursos dominantes e perpeturadora de enunciados excludentes, anomalias essas que, no poema composto a partir do procedimento “internet trouvé”, aclaram-se imediatamente ao leitor.

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NOTAS 1

Ambos os textos citados de Mallarmé foram traduzidos ao português por Amálio Pinheiro na coleção

Fundadores da Modernidade (Mallarmé 1991). 2

As citações às obras de Turkle foram traduzidas livremente por mim.

3

Turkle (2005: 159) chega a citar a oposição ferramenta/máquina que Marx propõe no décimo-terceiro

capítulo de seu O Capital, sendo a primeira uma extensão do usuário e, a segunda, um dispositivo que obriga seu operador a funcionar conforme o seu ritmo mecânico. A aplicação desses conceitos para o computador, porém, soa insuficiente, já que, na explicação do filósofo alemão, a ferramenta servia a trabalhos como o de artesãos e ferreiros, ao passo que a máquina abrangia qualquer mecanismo que escape ao controle do trabalhador. A informática parece trazer aparatos de outra ordem, com sua autonomia funcional, sua operação multidimensional em que várias coisas acontecem em concomitância e sua arquitetura virtual (software) totalmente desconhecida daquele que a usa. 4

Para uma abordagem extensiva – e crítica – de tais teorias, ver Santaella 2007.

5

Um exemplo claro da relevância da Web como plataforma de publicação é o livro A extração dos dias,

organizado por Gustavo Silveira Ribeiro (2017), disponível apenas online em sua forma digital, contendo poemas de diversos poetas contemporâneos de alta relevância. Chama a atenção, ainda, que dois desses poemas sejam links para o Youtube, onde se veem performances poéticas de Érica Zíngano. 6

“Preenchemos nossos dias com a conexão contínua, nos negando tempo para pensar e sonhar. Ocupados até

a exaustão, fazemos uma nova barganha Faustiana, que ocorre assim: desde que estejamos sozinhos para entrar em contato, suportamos a convivência” (Turkle 2011: 184-5). 7

Trecho extraído do suporte do Google, disponível em < https://goo.gl/6HufKs >, acesso em 13 de abril de

2018. 8

É importante ressaltar que os poetas adeptos da Flarf Poetry costumam recortar e colar os resultados das

buscas a partir de termos-chave aleatórios, diferentemente do que fizeram Eduardo Sterzi e Angélica Freitas nos exemplos aqui exibidos, já que eles se ativeram ao (ou simularam o) recurso do “autocompletar” do campo de busca. Para uma análise mais detida da Flarf, cf. Bernes, 2016; para uma notável coleção de poemas em inglês a partir do Google, cf. o blog “Google Poetics”, disponível em < https://goo.gl/EiuHXR>, acesso em 10 de julho de 2018. 9

Disponível em < https://goo.gl/x4jU1v>, acesso em 14 de abril de 2018.

10

Vale lembrar que, segundo o mito grego, depois de obter o toque de ouro, Midas ainda receberia “orelhas de

burro”. 11

As citações a Paz são uma tradução livre a partir do original, feita por mim.

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Sérgio Bento é professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, possui capítulos de livro e artigos sobre poesia moderna e contemporânea e tradução literária, abrangendo temas como as obras de José Paulo Paes, Ferreira Gullar, Carlos de Oliveira, entre outros; as relações entre humor e poesia; e os conceitos de transcriação. Coordena o GEPOC, Grupo de Estudos de Poesia Contemporânea.

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“Indio No Estandarizado”: Countering State Discourses of Indigeneity through Poetry Online

“Indio No Estandarizado”1: Countering State Discourses of Indigeneity through Poetry Online2

Chiara Maria Morfeo University of Cambridge

Abstract: Mapuche poetry has become increasingly popular in Chile. However, the government primarily promotes those Mapuche poets whose vision of Mapuche identity is in line with its own views. How much scope does Mapuche poetry online offer for articulating and visualising counterhegemonic discourses on Mapuche identity? By examining Mapuche poetry videos on the Mapuche YouTube channel “Wetruwe Mapuche” and an extract from a government TV debate on Mapuche identity on YouTube, this article assesses whether the internet is an effective tool to disseminate counter-hegemonic views or whether the internet perpetuates the same power hierarchies that exist in the offline world. Keywords: Mapuche poetry, YouTube, dissent, Aniñir, Manquepillan

Resumen: La poesía mapuche es cada vez más exitosa en Chile. Sin embargo, el gobierno suele fomentar en primer lugar los poetas mapuche cuya representación de la identidad mapuche es acorde con la suya. ¿Cuánto 145la impacto tiene la poesía mapuche en línea en la articulación y visibilización de discursos no hegemónicos de

identidad mapuche? En este estudio se examinan vídeos de poesía mapuche en el canal de YouTube mapuche “Wetruwe Mapuche”, y videos del gobierno sobre la identidad mapuche, para evaluar si el internet es una herramienta eficaz para difundir visiones contrahegemónicas, o si existen las mismas jerarquías de poder que se encuentran en el mundo offline. Palavras clave: poesía mapuche, YouTube, disidencia, Aniñir, Manquepillan

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When considering the legal conventions for the Mapuche in Chile, it seems that their situation has improved. In 2007 and 2008 Chile accepted the UN Declaration on the Rights of Indigenous People and the ILO Convention 169, which recognises many indigenous rights (see Richards, “Of Indians” 2010: 71). The rising popularity of Mapuche poetry appears to mirror this growing legal acceptance, but a closer look reveals unequal dependencies. For purposes of publication Mapuche poets often depend on state structures such as stateowned publishing houses or national literature awards (see Huenún 2007: 16). In this process, Mapuche poets that conform to a certain vision of indigeneity are favoured over more critical voices (see Crow, “Mapuche Poetry” 2008: 223). This invites the question whether there are forms of publishing counterhegemonic Mapuche poetry which are independent of state structures and thus allow for a more nuanced portrayal. For Manuel Castells “mass self-communication provides the technological platform for the construction of the autonomy of the social actor […] vis-à-vis the institutions” (2012: 7). In Latin America these means of mass self-communication, that is social media, are particularly popular. A survey in 2016 showed that among internet users worldwide, Latin Americans spent more of their online time on social media than internet users in any other continent (see eMarketer Inc.). Chile has “one of the highest internet penetration rates” amongst Latin American countries (Andrews/Steckman 2017: 41). In 2016, 78% of the Chilean population were using the internet; social media sites were among the most visited websites (ibid. 42). In view of its wide reach, social media seems the ideal place for Mapuche poets to circulate their vision of Mapuche identity free from state scrutiny. However, more recent studies question whether the notions of autonomy and freedom the internet once promised have become compromised. Internet corporations increasingly collaborate with states who act as gatekeepers to online spaces (see Schneider 2015: 192). Even if Mapuche poets pass these gates unhindered, the impact of their work may be reduced by other mechanisms such as “echo chambers” (Kahne et al. 2015: 51). The term describes a phenomenon according to which people mainly attend to like-minded and familiar opinions and narratives when online. Mapuche poets would therefore risk only reaching an audience that is already interested in their work. The political philosopher Danielle Allen has developed a framework to assess different levels of discursive impact in the context of the

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digital age. She distinguishes between “influential” and “expressive” discourse (2015: 178). While “influential” discourse “flows through decision-making structures” and impacts “the decision-making mechanisms that define the lives of entire polities” (ibid. 178), “expressive” discourse “circulates within subnational and transnational communities” (ibid. 179). It therefore has a “more limited impact on particular communities of expression” (ibid. 178). In this article I will compare governmental and counterhegemonic discourses of Mapuche identity on YouTube. I focus on YouTube because its popularity suggests that it is a powerful platform for influencing public opinion. Videos of the Mapuche poets David Aniñir and Faumelisa Manquepillan performing their poetry will be examples of counterhegemonic discourse. A video of a TV show with the former and current Chilean president Sebastián Piñera will serve as an example of governmental discourse. By choosing these videos for comparison, I am comparing two different types of discourse. Piñera’s video falls into the category of political discourse. I adopt Fairclough’s and Fairclough’s understanding of political discourse as “a form of argumentation … for or against particular ways of acting, argumentation that can ground decision (2012: 12). In contrast, poetic discourse is often associated with the artistic expression of “feeling, emotion, attitude” (Hungerland, 1977 [1958]: 1). However, I agree with Hungerland that this association is not always useful as poetry can be highly political, as my analysis will demonstrate (ibid. 12). Moreover, the YouTube videos represent different genres; one is part of a TV debate and the others are poetry videos. Nonetheless, all have the same objective of convincing the reader of their vision of Mapuche identity. Given this shared aim and the shared space the authors pursue their aim in, i.e. YouTube, a comparison of these videos shall provide valuable insights. The analysis will be carried out in two steps. Firstly, I will analyse how Piñera, Aniñir, and Manquepillan try to influence the viewer’s perception of the Mapuche, both discursively and visually, by using the medium of the video. Secondly, I will examine how successfully they utilize YouTube to circulate their message. By analysing and comparing each portrayal’s potential for influencing the viewer, I will be able to assess whether YouTube is a useful platform to oppose state discourse or whether it merely perpetuates the power dynamics of the offline world. The use of Allen’s categories of discourse for this analysis will allow me to

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simultaneously assess her theory’s applicability for determining the influence of online discourse. As the two main themes of the article, “identity” and “influence”, are contested concepts, I will define how I use them here. I understand “identity” as a collective of “markers that delineate group membership”, more specifically Mapuche group membership (Edwards 2009: 16). As such, the word can and will be used interchangeably with the term “Mapuche-ness” as coined by Joanna Crow (“Mapuche Poetry” 2008: 223). I use “influence” to describe “The capacity to have an effect on the […] behaviour of someone” (Oxford Dictionaries). I adopt two elements of the work on social influence by psychologist Herbert Kelman to describe different reactions to influence. While some forms of influence lead to a recipient’s “compliance”, which is “a superficial change” the recipient adopts to gain approval or avoid punishment, other forms of influence lead to “internalization”, which is “a lasting change in attitude and belief […] integrated into the person’s value system” (Kelman 1958: 51ff.).

State Discourses on the Mapuche The Mapuche are one of the only indigenous peoples who defeated the Spanish conquerors (see Crow, The Mapuche 2013: 10). However, since their violent inclusion into the Chilean nation-state in 1869, the Chilean government has been trying to tame their spirit of resistance by forcing them to perform Mapuche identity a certain way (see Richards, Pobladoras 2004: 127). Sarah D. Warren goes as far as saying that Mapuche identity has come “under siege” by state policies (ibid. 695). In post-dictatorship Chile the government has implemented a policy of neoliberal multiculturalism (see Richards, “Of Indians” 2010: 62ff.). Initially, the concept promises the coexistence of multiple cultures. But as Hale has analysed, in the context of neoliberal multiculturalism Mapuche identity is limited to the “indio permitido” (Hale 2004: 16). It is a socio-political category which describes the mechanisms by which the government rewards Mapuche that behave a certain way, while punishing deviant behaviour (ibid. 16). Those Mapuche who collaborate with state agencies perform the “indio permitido” by being “fully conversant with the dominant milieu” (ibid. 20). However, the laws put in place over the past decades do not address all Mapuche

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concerns such as the redistribution of land or demands for autonomy (see Richards, Pobladoras 2004: 129f.). Moreover, they do not foresee any structures for the Mapuche to make demands on the state. Therefore, those who disagree with state policies often turn to direct action, which can range from “land occupations to the destruction of plantations and forestry equipment” (Warren 2017: 700). For the state they become the indio permitido’s “undeserving, dysfunctional Other” who “is unruly, vindictive and conflict prone” (Hale 2004: 20). The party programme of the recently elected Chilean president Sebastián Piñera suggests that his government will continue to divide the Mapuche into “indios permitidos” and their Other. While the programme recognises “en los pueblos indígenas un elemento relevante de […] nuestra identidad” (Piñera 2017: 122), it defines the terms on which the Mapuche can be part of the national identity very narrowly. It promises to work towards the constitutional recognition of indigenous people and promote indigenous culture (ibid. 123ff.). In exchange it wants to create “emprendedores indígenas” (ibid. 124) who become productive members of the neoliberal nation-state. Anyone who does not conform to these aims is reminded that the government will continue “aplicando todo el rigor de la ley a quienes no respeten el Estado de derecho” (ibid. 125). This section alludes to the controversial antiterrorist law from the Pinochet dictatorship that Chilean democratic governments primarily use to punish direct action by the Mapuche (see Warren 2017: 700; Richards/Gardner 2013: 265). The YouTube video of Piñera also creates a dichotomy between the good and the terrorist Mapuche. On 13 June 2017 Piñera appeared on the programme “Aquí Está Chile” by Chilevisión and CNN Chile. During the show Piñera answered questions posed by selected members of the live audience. On 15 June 2017 a twenty-minute clip of the interaction between Piñera and a member of the audience, the Mapuche leader Juan Pichún, was uploaded on the YouTube channel “Política Chile” (Política Chile). In the video Piñera uses specific rhetorical devices to assert his authority as an expert on the Mapuche: “el pueblo Mapuche, yo lo conozco bien, es un pueblo trabajador, es un pueblo que quiere vivir en paz, es un pueblo emprendedor, no es un pueblo violento, ni mucho menos un pueblo terrorista”. The enumeration combined with the parallel structure “es un […] es un […]”

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converts his statement into a stream which is difficult to interrupt. The viewer can only listen while absorbing the message further with each repetition. Piñera resorts to the same mechanism to show the Mapuche’s subordinate position when collaborating with companies in the context of the government’s development projects. While the Mapuche provide “la tierra, […] y ponían cierto trabajo”, “los otros ponían tecnología, ponían insumo, ponían recursos, ponían acceso a los mercados”. He suggests that the Mapuche should be grateful to the government because they receive so much for the little they give. The contrast between “tierra” and “tecnología” also highlights the Mapuche’s supposed backwardness. Any Mapuche who is not content with the government’s proposal and demands more political rights becomes the dysfunctional Other and will be contained, as any Chilean would be, by ‘la ley antiterrorista cuando corresponde’. To justify the law, Piñera describes terrorism as ‘un enemigo formidable, cruel, implacable que mata …, que quema iglesias … que quema maquinarias, que quema cosechas, que quema camiones’. While he does not mention the Mapuche directly, he implicitly links them to terrorism by describing crimes that Mapuche have been accused of in order to define terrorism. By personifying terrorism, it appears even more dangerous. While the parallel, alliterative structure of ‘que quema… que quema...’ makes terrorism seem like an unstoppable force, it converts Piñera into an uninterruptable speaker. His emphasis on terrorism feeds into a wider narrative of the Mapuche as terrorists in mainstream media (Warren: 700). The video’s title emphasises the opposition between the government and the Mapuche even more: “Sebastián Piñera vs Lonko Mapuche: ‘Más Respeto con los Carabineros’”. The abbreviation “vs” establishes Piñera and the Mapuche as opponents. A split screen reinforces this image because it visually opposes them. However, it is not an opposition among equals. Pichún’s name is not included in the video’s title. Unnamed, he becomes an exchangeable symbol representative of all Mapuche. During the clip Pichún only speaks once. He expresses his concern regarding the government’s plan to militarize his region and demands an open dialogue to resolve the conflict. Rather than engaging with him, the presidential candidate follows Pichún’s explanation with the words “Yo recuerdo muy bien” and then repeats what Pichún has just explained. Pichún is not allowed to intervene again. Instead, the dialogue unfolds between Piñera and the non-Mapuche

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anchor-man. This instance shows that “discourse is organised along lines of power […]; [and] status, as elites […] seek to retain their privilege to define issues and solutions” (Hauser 1999: 58, emphasis in the original). Entering into a dialogue and admitting that there are different viewpoints would undermine Piñera’s solution to form a unified nation. He determines: “somos un solo país y somos todos chilenos”. While the camera captures Pichún’s disapproving facial expression during this claim, it does not reproduce the words he seems to mouth in this moment: “Yo soy Mapuche”. Piñera tells the listener who the Mapuche are, regardless of whether they agree. His discourse confirms what some scholars, following Foucault, have argued, namely that neoliberal multiculturalism “represents a new form of governmentality involving the subjectification of a new type of citizen” (Richards, “Of Indians” 2010: 60). One mechanism of fashioning this new type of citizen is through discourse, as it feeds into “opinion formation, subjectivity formation, identity formation […] and intersubjective understandings amongst individuals” (Allen 2015: 185). The government controls this opinion formation not only by disseminating their own discourse but also by policing the citizens’ discourse. At the beginning of the clip, Piñera scolds Pichún for having used the derogative term “paco” when referring to the military police: “Ahora yo hablo de carabineros […] y no hablo de paco porque esto es […] muy agresivo”. Piñera silences his critique in a highly infantilising way, speaking to him as if he was a misbehaving child, or in this case, a not yet fully formed citizen. This treatment extends to the viewer as Piñera’s dogmatic discourse does not engage him either.

Counterhegemonic Mapuche Poetry on YouTube Mapuche poetry also reflects the “indio permitido” dichotomy (see Crow, “Mapuche Poetry” 2008: 222). It has been defined as “una poesía que privilegia temas […] surgidas del inevitable y friccionado contacto que las sociedades Mapuche, criolla y europea colonizadora han mantenido” (Huenún 2007: 15). However, the Mapuche poetry which is most popular consists of “bilingual verse that re-projects a glorious Mapuche past and a utopian rural community” (Crow, “Mapuche Poetry” 2008: 223), instead of frictions. It is in line with governmental discourse. In the Piñera video the candidate repeatedly emphasises and romanticises the Mapuche’s relationship with nature: “el pueblo Mapuche tiene una

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ligazón muy fuerte con la tierra […] que es ancestral”. Poetry which reflects this relationship is considered marketable and therefore widely circulated and promoted. But state sanction also has disadvantages. The focus on marketable indigeneity means that Mapuche poetry is often judged by how stereotypically Mapuche it is. Some critics lament that Mapuche poetry is delivered in written from rather than orally, and in Spanish rather than Mapudungun, the Mapuche language, because it seems “anti-indigenous” (Crow, “Mapuche Poetry” 2008: 228). Moreover, politicians quote Mapuche poets “as an alibi against ethnic and racial discrimination in Chile” (ibid. 222). At times they misquote them, thus obscuring notions of criticism or resistance in the poems. The “iniciativa autónoma y autogestionada” Wetruwe Mapuche provides a platform for artistic, counterhegemonic Mapuche voices (Mapuexpress). According to their Facebook page, Wetruwe Mapuche is a “medio audiovisual Mapuche que trabaja en la difusión y promoción de la poesía y música Mapuche” (Wetruwe Mapuche, "About"). They organise events such as a “La música es resistencia”, a festival which took place in Temuco and Santiago, but are mainly active on Facebook, Twitter, Instagram, Flickr and YouTube (see Mapuexpress). Their YouTube channel was created on 11 June 2011. They use it to promote Mapuche art by uploading videos of Mapuche music or poetry performances. One of the poets represented on the channel is David Aniñir. Some of his work has been published by publishing houses, but he has also distributed his work on leaflets and the Internet (see Crow, “Mapuche Poetry” 2008: 197). His support for Mapuche activists might be one of the reasons why he remains on the margins of the national poetry canon (ibid. 199). In the YouTube video ‘DAVID ANIÑIR GUILITRARO – POEMA I.N.E (INDIO NO ESTANDARIZADO) – (WETRUWE MAPUCHE) (Wetruwe Mapuche, “DAVID”, emphasis in the original) he opposes the government’s portrayal of Mapuche identity. The poem Aniñir reads out in the video ridicules the government’s bureaucratic language and problematizes its attempts to categorise the Mapuche. This becomes already apparent in the title. The acronym INE stand for the Institution Nacional de Estadísticas (INE) in Chile. However, Aniñir reappropriates the acronym in the title by suggesting that it means Indio No Estandarizado, thus subverting institutional discourse. The rest of the poem continues to present a tension between institutional discourse and Aniñir’s expression of Mapuche-ness. The first line is

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phrased as a question on the national census form: “Usted se considera”. The poet then presents a list of adjectives as if they were multiple-choice answers to the question. The nature of the adjectives clashes with the formality of the census. One group of adjectives consists of insults that are usually directed at the Mapuche: “Flojo / Hediondo / Borracho”. Some of them present a play on words that challenges those insults which depict indigenous people as stupid. For one of the options, Aniñir has changed the word “homo sapiens”, the Latin description for “wise man”, to “mono sapiens”. “Mono” can mean “monkey” or “overall”, alluding to construction workers. Both associations question the Mapuche’s intellect. However, the pun based on the Latin definition for human being shows that the insult underestimates the Mapuche’s creative and intellectual potential. Moreover, Aniñir ridicules supposedly politically correct adjectives. By placing certain adjectives next to each other, the poet reveals the harmful potential of their apparent neutrality: “Precolombino / Post Punx Rocker”. The alliteration connects these two lines. “Precolombino” appears to innocently describe the Mapuche as a people that had already lived in Chile before Columbus’s arrival. However, the fact that the subsequent description “Post Punx Rocker” seems out of place, emphasises that the Mapuche are often associated with the past instead of with modernity. The poem’s message is strengthened by the way it is embedded in the video. Before reading the poem, Aniñir introduces the text: “Tiene que ver con el contexto de cómo nos contaron con los dedos, con las balas y con el lápiz, el instituto nacional de estadísticas”. The contextualization by the poet leaves less room for co-option. The use of the word “balas” denounces the violence directed against the Mapuche. By equalling “lápiz” to “balas” in the enumeration, he implies that this violence is continued by the National Institute for Statistics. At the same time, his poem shows how words can be used to disarm institutional discourse. His voice increases in velocity as he reads out the long list of adjectives used to define the Mapuche. He sounds increasingly enraged, shouting at the viewer who is placed in the position of the Mapuche who have been called these names. This is where the potential for change through poetry lies: “The social power of activist artists emanates from their ability to provoke movement constituents and other publics to see, think, imagine, and even feel in meaningfully new ways” (McCaughan 2012: 6). The audience’s reactions

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embody this effect. While the camera focuses on Aniñir, one can hear the audience clapping, laughing and shouting in response to the poem. The fact that Aniñir wears a denim jacket and speaks into a microphone further contradicts notions of backwardness inherent in the insults. Aniñir challenges governmental discourse both through the poem and its delivery. In the video entitled “David Aniñir Guilitraro - Perimontú - (Video Oficial) - (Wetruwe Mapuche)” (Wetruwe Mapuche, “David”) Aniñir destabilises fixed images of the Mapuche by linking urban culture to indigeneity. In Chile over 60 percent of the indigenous population lives in urban areas (see Richards, Pobladoras 2004: 127). Nonetheless, the Mapuche are still strongly associated with nature, as Piñera’s discourse demonstrates. In the poem “Perimontú”, which serves as the voice-over for the video, Aniñir creates a counter-vision of Mapuche identity through language. He forms neologisms of the word-stem “ma” of Mapuche and supposedly non-indigenous words such as “punky” or “urbe”, resulting in “mapunky” or “mapurbe”. While he uses natural imagery when describing how the girl in the poem dances “al son del sol/en clave de luna/ en llave de estrellas”, he also introduces English words such as “hardcore”, “power metal” and “mosh”. He calls her a “mapuche 2.0”. In the video she breaks out of the natural imaginary space that governmental discourse affords her.

Fig. 1 Screenshot taken from Wetruwe Mapuche. “David Aniñir Guilitraro - Perimontú - (Video Oficial) – (Wetruwe Mapuche)”, YouTube, uploaded by Wetruwe Mapuche, 14 July 2016, https://www.youtube.com/watch?v=RfPzB5rlWK0. Accessed 22 Mar. 2018

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The video’s aesthetics further destabilise traditional imagery. The camera follows the female “machi” described in the poem. While traditionally a “machi” is a healer who mediates between humans and the world of spirits, in the context of the poem the girl becomes a mediator between natural and urban surroundings (see García 2012: 56f.). Images of the girl in nature rapidly alternate with images of pylons and neon-signs in the city. At one point she presses her lips against a tree, only to draw on a cigarette in the next. This unconventional portrayal is emphasized by rapid camera movements that disorientate the viewer (see fig. 1). Bundles of leaves swish in front of the camera lens. It seems as if the video cannot be contained in its frame and attempts to shake off the preconceptions the viewer might have. This sensation is intensified by the heavy metal guitar music accompanying the video. The viewer is made to experience the same disorientation a Mapuche might feel, when trying to reconcile his sense of identity in an urban environment with what has been presented to him by the state. The video “FAUMELISA MANQUEPILLAN – POEMA LA MATERIA – (WETRUWE MAPUCHE)” (Wetruwe Mapuche, “FAUMELISA”, emphasis in the original) opens with a more conventional scene. The poet is standing on a stage singing in Mapudungun, thus conforming to the canonized vision of Mapuche poetry. Manquepillan is closer associated with the government than Aniñir. Her work has been funded by government agencies and she has attended events with former Chilean President Michelle Bachelet (see Falabella et al. 2009: 105). However, after a rather traditional opening, she reads the poem “La Materia” which presents a very visceral relationship with nature and thus contradicts the romanticised relationship presented by Piñera. She re-formulates Mapuche identity by describing the fusion of her body with nature in morbid terms. Her body is “frío” as “se sumerja entre los makis” and the “olor putefacto” of her “visceras” is meant to attract birds. Instead of relying on Mother Earth, the body becomes nutrition for nature: “Dejo que mi boca y mi nariz sean alimento y cuna de moscas y sus larvas”. Manquepillan’s case shows how “many Mapuche intellectual-activists shift between two different ways of ‘being Indian’ or play both roles at the same time” (Crow, The Mapuche 2013: 187).

On one hand, Manquepillan has

collaborated with the government to publish her work and is proud of this collaboration (see

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Falabella et al. 2009: 105). On the other hand, the video of her poem becomes subversive in the context of the Wetruwe Mapuche channel, where it undermines the romanticisation of the Mapuche’s connection to nature. In the video “Faumelisa Manquepillan - Poema: Paseo Ahumada - (Wetruwe Mapuche)” (Wetruwe Mapuche, “Faumelisa”), the poet presents the Mapuche urban experience very differently from Aniñir. The poem describes a woman who does not claim city space for herself but feels as if she is held hostage there. This is expressed by words that demonstrate fear such as “se asustaba” and “atrapada”. These are coupled with expressions of submissiveness. She walks “cabizbaja […] un ruego en la boca […] ‘Ayúdenme a salir’”. This submissive, imploring attitude is embodied by the rhyme scheme of the poem, which is written in rhyming couplets as if no line dares to end differently from the previous one. The “Paseo Ahumada”, of which Manquepillan writes, is one of the main boulevards in Santiago de Chile. It could be seen as a symbol of the neoliberal economic system, which does not provide a way of comfortably accommodating Mapuche people in the urban setting except in positions of economic dependency, for example working as a maid, as the poetic voice describes. In such a hostile environment it is not surprising that the poetic voice is eager to return south “soñando su tierra siempre esperanzada”. In both videos it is the calmness with which Manquepillan presents her alternative vision of Mapuche identity that is striking. Her behaviour stands in stark contrast to the Mapuche as terrorist as depicted by Piñera. At the end of the video, she looks at the camera, as if awaiting a response from the viewer, ready to engage in meaningful dialogue.

The World Wide Web: fighting with a two-edged sword All speakers analysed in this article use the format of the video to strengthen the delivery of their message. But how effectively can they each use YouTube to promote their video? YouTube is a video sharing website which was launched in 2005 and became part of Google Inc. in 2006. It is famous for its user-generated videos (see Schneider 2015: 229). In 2016 it was the most visited website in Chile (see Andrews and Steckman 2017: 42). Today, states and Internet corporations increasingly collaborate for purposes of surveillance, which infringes activist mobilisation and communication online (see Schneider 2015: 192ff.),

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thereby creating an “unequal power field” (Trottier and Fuchs 2015: 34). By using YouTube, Wetruwe Mapuche opens itself up to this unequal power dynamic. While the Mapuche videos oppose the government’s portrayal of Mapuche-ness, the government could still coopt them. By using YouTube, the Mapuche poets become “emprendedores indígenas” (Piñera 2017: 124); they support YouTube as a corporation by sharing their content for free, thus contributing to the neoliberal system. They could therefore be portrayed as a testament to the success of governmental programmes aimed at closing the digital divide in the country (see Andrews and Steckman 2017: 42). The videos’ viewer numbers further emphasize this unequal power dynamic. Viewer numbers are displayed beneath each YouTube video. While the Piñera video has been viewed more than 500,000 times, the poetry video that has been viewed most of those compared in this article has had 6,373 views (21 March 2018). The Piñera video is therefore more “viral”, which means that it reaches a large audience and spreads quickly (see Fung/ Shkabatur 2015: 155). When considering virality only, the videos fit Allen’s categories of “influential” discourse, in the case of Piñera, and “expressive” discourse, in the case of Wetruwe Mapuche. However, Allen’s definition of “influential” discourse does not consider the quality of influence exerted by the videos. Viewer numbers do not reflect to what extent the videos influence the viewers’ beliefs, especially because viewer numbers can increase for different reasons. Firstly, YouTube views can be bought to exaggerate the image of a candidate’s popularity (see Welbourne/ Grant 2016: 709). Secondly, recent empirical research by the scholar Zeynep Tufekci suggests that YouTube’s algorithm, which recommends further videos to viewers who have finished watching one YouTube video, has a bias towards videos that contain inflammatory content (see Tufekci 2018). The Piñera video might have more views, because its provocative title makes it more likely to be recommended to users. Finally, clicks do not always turn into action. The slacktivism hypothesis claims that the use of social media leads to superficial political conversations and is ultimately counterproductive to civic engagement (see Howard et al. 2016: 55f.). And it is questionable whether the Piñera video wants viewers to engage, considering that Piñera’s last “campaña digital representó mucho más una herramienta de branding que una de participación política” (Cárdenas et al. 2017: 26). This attitude towards social media is

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reflected in the president’s dogmatic discourse in the video which does not invite participation on behalf of the viewer. It therefore is more likely to achieve “compliance” rather than the “internalization” of its message amongst its viewers. The slacktivism hypothesis could also be applicable to the Wetruwe Mapuche videos. But although Wetruwe Mapuche uses YouTube, it does so to subvert the governmental vision of Mapuche identity, thus engaging with technology on its own terms, which makes the Wetruwe Mapuche videos into a meaningful political gesture regardless of their reception. This feeds into a broader Mapuche desire to enact technological uptake free from patterns of digital adoption imposed on them by external powers: a project by Microsoft to launch a Windows Software package in Mapudungun was criticised by the Mapuche because they had not been consulted in the process (see Pitman and Taylor 2007: 9). Although the videos’ viewer numbers are low, and they are tailored to the Mapuche as a subnational interest group, which qualifies them as “expressive” discourse, the use of poetry enables them to deeply engage the viewers that do watch their clips, thus initiating a process of “internalization”. The literary scholar Hubert Zapf considers literature a “transformative force of language and discourse, which combines civilizational critique with cultural selfrenewal” (2016: 4). Instead of presenting a solidified counter-model of Mapuche-ness, the Wetruwe channel shows diverse images of Mapuche identity, thus not only defying the government’s specific portrayal, but also its broader underlying approach of homogenization and categorisation. Consequently, the viewer cannot adopt an alternative vision of Mapuche identity but has to think for himself about what being Mapuche means; this is when the transformation of the viewers’ perception begins. There are examples of how Mapuche poetry has already initiated cultural self-renewal online. Aniñir’s work has inspired the creation of “Mapurbe’zine” by Mapuche in Argentina; an online newsletter that aims at opening “un debate […] a partir del interrogante ‘general’: ¿qué es ser Mapuche hoy?” (Balleta/Venturoli 2016: 64). In 2017 Aniñir performed his poem “I.N.E (Indio No Estandarizado)” at an event at the Universidad de Chile which included Mapuche and nonMapuche attendants and was aimed at stimulating “reflexiones que necesitamos para tratar de construir […] una sociedad diferente” (Ibáñez 2017). The broad impact of Mapuche poetry invites a revision of Allen’s distinction between “influential” and “expressive”

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discourses. While Allen focuses on the width of influence, the poetry videos draw attention to the depth of influence. Although the Mapuche videos could be described as “expressive” discourse, circulating within “subnational and transnational communities” (ibid. 179), they deeply influence its recipients and invite both Mapuche and non-Mapuche, Chileans and non-Chileans to rethink society as a whole, using Mapuche-ness as a point of departure.

Conclusion The analysis has shown that the Wetruwe Mapuche YouTube channel provides a space where Mapuche poets can present diverse images of Mapuche-ness that differ from governmental discourse. While the government cannot silence these critical voices as easily as in the offline world, it uses YouTube to communicate its own vision of Mapuche-ness, which it clearly divides between the good and the terrorist Mapuche. All videos display a series of rhetorical and visual devices to influence the viewers’ image of the Mapuche and they all compete for the viewers’ attention. The Piñera video is more viral and therefore seems more “influential”. However, the different degrees of involvement that are expected of the viewer call for a more nuanced understanding of influence in the online world. Due to its dogmatic style, the Piñera video aims at the viewers’ “compliance” with and passive acceptance of its message. In contrast, the Wetruwe Mapuche videos’ complexity requires the viewer’s active participation to be fully understood. The scholars Gruzd and Wellman note that “in a networked society it is easy to claim influence, but not as easy to exercise influence” (2014: 1252). My analysis reveals that, in addition to their claim, it is important to consider that those who do exercise mind-changing influence might be those that appear less “influential” because the depth of the online material required to produce a profound change in attitude does not lend itself to viral consumption. We should therefore revise the connection drawn so naturally between virality and influence. It would be very useful to develop tools and apply frameworks that can measure and evaluate the quality of engagement when considering influence on social media. Such a critical mindset towards online influence is particularly useful in view of the rising number of politicians in Latin America who artificially inflate their social media following to appear more popular and influential (see Filer/Fredheim 2017). On the basis of such a framework, we could justify

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awarding the word “influence” more sparingly to these politicians to prevent them from obtaining actual, political influence and power by winning elections based on a seemingly influential online appearance rather than profound policy proposals.

NOTAS 1

Capitalization taken from Ibáñez, María Jesús. Ad Mapu Constituyente: la crítica intervención del poeta David

165 Aniñir - Universidad de Chile. 13 Oct. 2017, http://www.uchile.cl/noticias/137853/ad-mapu-constituyente-la-

critica-intervencion-de-david-aninir. Accessed 22 Mar. 2018. 2

I use the expression “poetry online“ rather than “online poetry” to emphasise that the poetry analysed in this

article first appeared in print literature and was then digitized, rather than being “digital born” (Hayles 2008: 3).

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Chiara Maria Morfeo is a student of Latin American Studies at the University of Cambridge. After graduating with a Master of Arts in Spanish and English Literature from the University of Edinburgh in 2016, she decided to develop her interest in Latin American poetry by completing a MPhil in Latin American Studies.

Acknowledgments I would like to thank Dr Tanya Filer for her valuable guidance and inspiring critiques throughout this project.

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Desasosiego en la ciudad neoliberal. Reflexiones en torno a la poesía peruana urbana contemporánea

Desasosiego en la ciudad neoliberal. Reflexiones en torno a la poesía peruana urbana contemporánea

Ilka Kressner University at Albany, State University of New York

Resumen: El presente estudio investiga la presentación de espacios cotidianos urbanos marcados por prácticas del neoliberalismo en las obras de las tres poetas peruanas contemporáneas Roxana Crisólogo, Victoria Guerrero y Ericka Ghersi. Los espacios invocados en sus poemas, que a menudo se vuelven los protagonistas directos o indirectos de los textos, marcan a sus habitantes imponiéndoles un perpetuo desasosiego. El poema resultante se aventura a frenar la precipitación sistémica impuesta a través de una reflexión individual en el aquí y ahora de su escribir y leer. Palavras clave: Poesía peruana, neoliberalismo, espacio urbano, Roxana Crisólogo, Victoria Guerrero, Ericka Ghersi Abstract: This essay explores the presentation of everyday urban spaces marked by neoliberal practices in a selection of works by Peruvian poets Roxana Crisólogo, Victoria Guerrero and Ericka Ghershi. The spaces invoked in their poems are oftentimes the protagonists, either direct or obliquely, that condition their inhabitants and impose a perpetual unrest upon them. The resulting poem endeavors to slow down the systemic haste via individual reflection in a here and now of writing and reading. Keywords: Peruvian Poetry, Neoliberalism, Urban Space, Roxana Crisólogo, Victoria Guerrero, Ericka Ghersi

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Los primeros años de este siglo han visto una gran variedad de publicaciones de lírica hispanoamericana. Con enjundia y determinación, la poesía joven afirma su voz en el discurso cultural contemporáneo. Es atrevida, original, versátil, portátil y a menudo fruto de una labor colaborativa. El presente estudio investiga una selección de esas voces líricas contemporáneas, escritas por poetas mujeres peruanas. Su planteo específico consiste en analizar el claro énfasis en los espacios cotidianos urbanos marcados por prácticas del neoliberalismo. A partir de este enfoque, mis cuestiones de análisis de esta poesía contemporánea vierten sobre reinterpretaciones de conceptos con una larga tradición lírica: la noción del sujeto en relación con la de agente volátil y de enunciación plural, la concepción de una poética de presencia singular relacionada con existencias múltiples (incluso virtuales) y las nociones de cuerpo y espacio—sean estos íntimos, compartidos, reales o simulados.1 Por último, se estudia el rol de esta nueva poesía en y más allá de los contextos geográficos en donde se gestiona. Siguiendo la tradición vanguardista del comienzo del siglo XX, esa poesía se plantea como irrupción en un discurso lírico “oficial” percibido como ajeno a las realidades de nuestro siglo (Unruh 2016: 243-44). De modo similar a dos de sus más influyentes predecesores—tanto la tradición lírica oral indígena como las poesías vanguardistas en lengua

española

de

ambos

lados

del

Atlántico—,

la

poesía

contemporánea

hispanoamericana se concibe como evento (Kuhnheim 2014: 8 y Marcone 1997: 47). Según la crítica Jill Kuhnheim esta poética como acaecimiento tiene la meta de cuestionar “the prevalent twentieth-century tradition that has fixed the poem on the pages as a selfsufficient ‘verbal icon’” (Kuhnheim 2014: 8). Por ende, la nueva poesía “can exist in multiple places, reach an assortment of audiences” e “infiltrate multiple audiences” (idem: 134 y 136). El evento poético como enunciación del y en el mundo, en estrecha interacción con audiencias heterogéneas, nunca es auto-suficiente (“self-sufficient”, el ideal modernista), sino al contrario producto, y en el mejor caso creador de, experiencias individuales y sociales directas. Entre muchos otros, la poeta peruana Roxana Crisólogo expresa su credo en una nueva enunciación en el siguiente poema metapoético sucinto sin título de la colección Trenes:

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algunas noches me he dejado llenar la boca de frases huecas adónde fueron a parar aquellos versos

¿al cesto de material orgánico? ¿a la ruina de los papeles?

algún día encontrarán su lugar

algún día en las largas esperas del tren toleraré que me empujen una lagrimilla a los ojos. (Crisólogo 2010: 51)

En esos versos, llama la atención la actividad y movilidad de la poesía versus la actitud más contemplativa y reactiva del yo lírico. Más allá de las “frases huecas”, la voz poética se percata de una expresión lírica verdadera. Los “versos”, un conjunto de palabras trabajadas con cuidado, son opuestos a—en verso de—la expresión prosaica. Y más que sean escurridizos e ilocalizables en el momento de enunciación, sin embargo “algún día”, después de mucho esperar y buscar, “aquellos versos” pueden de repente resurgir y encontrar su lugar de enunciación veraz. Los breves versos del poema evocan la labor lírica en un ámbito marcadamente cotidiano. Tal ejercicio poético ya no depende del beso inspirador de ninguna musa, sino requiere una actitud de vigilancia y sensibilidad a espacios, movimientos, cosas, o reacciones corpóreas mínimas dentro del vaivén diario para detectar la materia prima lírica. El breve poema de Crisólogo se puede considerar ejemplar de la lírica peruana contemporánea, que, según Miguel Casado, se perfila como proceso abierto y “continua búsqueda formal, para inquirir formas nuevas de contacto” entre el hablar poético y la realidad extratextual (Casado 2009: 9-10). Añadiría que eso es aún más acertado en el caso de formas de contacto no solo entre seres humanos sino también entre seres humanos y el espacio circundante; ya que a veces encontramos a voces poéticas que hablan directamente al espacio, a objetos inanimados, como lo son unos edificios, rincones, coches, camas o libros. “Esos versos” ausentes del poema de Crisólogo, que sin embargo son conjurados en

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estos versos presentes (de su poema), tienen un gran potencial emocional para la voz hablante. Son indecibles en la enunciación presente, pero el hecho de anhelarlos se vuelve ya un acto creativo, que circunscribe un espacio (una estación de trenes), apunta a un tiempo (un futuro) y desencadena una respuesta tanto racional (“toleraré”) como afectiva (“que me empujen una lagrimilla”). La descrita enunciación poética, que se afirma contra el mismo vacío de acontecimientos y la reconocida fugacidad o hasta negación verbal remarca la firme convicción de sus creadores en el poder de la nueva poesía, tanto escrita en formato tradicional como plurimedial y en colaboración. Esta confianza en el poder de la enunciación poética, que se nutre de la larga tradición cultural hispanoamericana con su valoración excepcional del potencial poético, ha resultado en una gran diversidad de experimentación lírica actual, incluso intermedial, que logra hablarle a e interactuar con una audiencia numerosa y abigarrada.2 La escena invocada por Crisólogo de un ser en tránsito en un medio de transporte público se inscribe en una larga tradición poética. Sin embargo, la voz lírica de Trenes (2010) no se asemeja, por ejemplo, a “Expres” de Poemas árticos (1918) de Vicente Huidobro, los Veinte poemas para ser leídos en el tranvía de Oliverio Girondo (1922), o los más recientes Poemas para ser leídos en el metro del mexicano Arturo Dávila (2003). En vez de, por ejemplo, enumerar los nombres “de todas las ciudades recorridas” (Huidobro 2003: 533), de inspirarse en el traqueteo rítmico o de utilizar el tren como metáfora lírica del volar de la imaginación creativa, el poema de Crisólogo presenta, aunque solo ex negativo, la posibilidad de encontrar lo furtivo poético “en las largas esperas del tren”, en un momento de tiempo extendido incompatible con la secuencialidad y lógica espacio-temporal dominantes. “Esos versos” tienen el potencial de (re)aparecer en un lugar y tiempo novedosos que se abren dentro de lo cotidiano. El resultado es un acaecimiento, una alteración de la percepción. La exploración creativa de momentos tradicionalmente considerados poco líricos se puede observar en muchos poemas iberoamericanos contemporáneos. Más allá de anécdotas o encuentros densos de significación, los poemas tematizan y se nutren precisamente de un “vacío de […] acontecimiento” (Augé 2006: 38) para destilar sus instantáneas poéticas a partir de la monotonía cotidiana. A diferencia de muchas otras

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elaboraciones líricas, la presente no se concibe como enunciación en contraste a la experiencia de lo cotidiano, sino que se inspira precisamente en la misma. Ese gesto se asemeja en parte al de las estéticas surrealistas, según las cuales lo maravilloso se esconde dentro de lo cotidiano (el concepto de “lo maravilloso cotidiano” de Louis Aragon, formulado en la introducción de Le paysan de Paris).3 Los espacios comunes invitan a la observadora atenta a una experiencia transitoria. La materialidad de las cosas y la experiencia del espacio común y corriente casi asaltan a la viajera en espera, no de las musas sino de un simple tren. La primacía de las cosas y los objetos de uso diario en los versos abre paso a una auto/percepción del individuo mucho más amplia que la del sujeto psicológico tradicional, que todavía formaba parte del episteme surrealista. No es casual que el poema de Crisólogo se enfoque primero en papeles y baldes de basura, los borradores fracasados, que probablemente terminaron en cestos de material orgánico en algún andén, antes de abordar al yo lírico, que se presenta solo como sujeto indirecto y auto-observador pasivo. Con su énfasis marcadamente situacional, esta poesía se gestiona y se comunica en contextos determinados, a los cuales refleja consciente y directamente. Es—y se percibe—, tanto como enunciación estética como política. Las tres poetas cuyas obras propongo explorar a continuación, también son activistas sociales, políticas y culturales: Roxana Crisólogo, quien además de sus estudios de literatura, ha realizado estudios de derecho internacional, coordinó y formó parte de equipos de trabajo de varias colaboraciones artística-culturales, entre esas la Red por la Democratización Global (NIGD) del Programa Democracia y Transformación Global, y dirigió el espacio Arte para la Trasformación Global, ambas con sedes en el Perú. Entre sus trabajos editoriales cabe mencionar Memorias Insantas. Antología de poesía escrita por mujeres sobre la violencia política en el Perú, en el cual fue co-compiladora (con Miguel Idelfonso) y el DVD de videopoesía Poéticas visuales de la resistencia (dirigido por Karen Bernedo). En la actualidad radica en Helsinki, Finlandia, en donde forma parte del Network Institute for Global Democratization. Ericka Ghersi (*1972), la segunda poeta cuya obra analizaré a continuación ha publicado los dos libros de poesía Zenobia y el anciano (1994) y Contra la ausencia (2002). Fue co-fundandora del Colectivo de Arte, Cultura y Agitación peruano. Actualmente trabaja de profesora de lenguas y literaturas hispanoamericanas en EEUU.4 La creación poética de Victoria Guerrero, quien es profesora

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de literatura y escritura creativa en la Pontificia Universidad Católica del Perú en Lima, es la más explícitamente comprometida. En sus poemarios El mar, este oscuro porvenir (2002), Ya nadie incendia el mundo (2005), Berlín (2011), Cuadernos de quimioterapia (2012) (todos reunidos en Documentos de Barbarie, Poesía 2002-2012, 2013), la colaboración con el poeta chileno Raúl Zurita Zurita +Guerrero (2015) y su más reciente volumen bilingüe And the Owners of the World No Longer Fear Us (Y los dueños del mundo ya no nos temen, 2016), la suya es una poesía de descontento, que examina, en las palabras de Eleonora Cróquer Pedrón, el contemporáneo “malestar en la cultura y… la resistencia a la demanda que se impone desde el presente” (Cróquer Pedrón 2016: 10). Gran parte de los textos publicados en los últimos años en el Perú nacen de experiencias de injusticias políticas–en la obra de Crisólogo, Guerrero y Ghersi, el trasfondo es el legado del fujimorismo tardío, marcado por una política conservadora y la extensa implementación de medidas neoliberales. Cabe destacar que, aunque el ímpetu de denunciación política tiene una fuerte presencia en los poemas, estos no son en primera instancia textos de crítica política. Más allá de la temática política-social directa, las obras líricas tienen una clara orientación poética y a menudo metapoética. Meditan acerca de las prácticas y convenciones líricas actuales y apuntan a alternativas de comunicación poética y social más inclusivas y plurales, en contraste directo con las consecuencias enajenadoras sistemáticas del neoliberalismo.5 Como muchas otras obras poéticas latinoamericanas, las de Crisólogo, Ghersi y Guerrero comunican observaciones y preocupaciones de la vida cotidiana contemporánea. El espacio vital compartido por las tres es la Lima de los años 90, en donde el mercado es el núcleo principal de la organización social, con su acelerada expansión urbana marcada por una extrema desigualdad socio-económica y segregación espacial (inmigración interior del campo, urbanizaciones cerradas, áreas marcadas por la gentrificación etc.). El crítico Martín Hopenhayn subraya la influencia masmediática en esa percepción vital, marcada por una “brecha creciente entre mayor consumo de imágenes y menor consumo de bienes palpables, vale decir, cada vez más manos vacías con ojos colmados de productos publicitarios; y un creciente ‘desarraigo existencial’, compuesto por cambios de valores y territorios, y por la precariedad del empleo, todo lo cual lleva a vivir con menos piso y menos

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futuro” (69). El poema “Cuando las luces no tienen intenciones” de Ghersi, incluido en Zenobia y el anciano, transforma esa experiencia al lenguaje lírico: “Cuando las luces no tienen intenciones” Los plásticos se funden en verano cuando la ira persigue nuestros pasos confundiéndose con luces y movimientos de edificios casas parques enteros Reserva que en un pasado de verdad fue reserva ahora se pierde entre olor de terokal y sudor de amores vengados reprimidos por la mañana fría o el smog que baja lento y pulveriza las hojas de los árboles Ellos se llevan cansados y arrancan de sus gargantas gajos de sangre ellos son muchos y nadie los toma en cuenta Siempre han estorbado en la línea de la acera a la hora de correr y tomar el micro Ellos te quitan la cartera y ocasionan accidentes automovilísticos cuando están en pleno vuelo zigzagueando a los autos de la avenida principal Sus sueños son de colores, foquitos de navidad a través de cámaras de televisión conos de regalos o falditas cortas puestas en piernas de porcelana

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Quieren amor y reciben enfermedades furtivas Quieren sentirte en una mirada, que los impresiones con sinceridad Ansían un cuerpo caliente a mediodía esperan a la muerte en vuelo de paloma no con un extraño En el reino de los cielos allí te espera el trono entre nieve blanca, suave pasta inhaladora. (Ghersi 1994: 25-26)

El espacio poético es una reserva ecológica descuidada, ahora habitada por los desamparados sin nombre, a los que el poema solo se refiere por el pronombre plural. Ellos son descritos como ladrones (expresión limeña “pirañas”), cuerpos que estorban el ordenado fluir del tránsito masivo. Están adictos al terokal. La referencia a ese adhesivo no es un detalle casual de parte de Ghersi, sino resultado de la visible presencia de la droga en las vidas de los jóvenes desamparados. El significado del espacio urbano descuidado y de los materiales que se encuentran en este mismo se manifiesta desde el comienzo del poema: Son los temas claves iniciales y sujetos gramaticales de las primeras tres estrofas. Durante el poema, el espacio se invoca en forma de hábitat distópico cuyo clímax se encuentra en la estrofa final con su alusión al reino de los cielos como utopía ilusoria fatal. Los seres humanos apenas aparecen como sujetos líricos a partir de la cuarta estrofa y solo a través de referencias plurales e imprecisas (“ellos”). En el mundo abstracto del poema, los humanos están rodeados de y marcados por un medio ambiente inorgánico, inhóspito y fatal. En su estudio “The Risks of Becoming a Street Child”, la socióloga Talinay Strehl describe que el 60% de los niños y jóvenes limeños y cusqueños quienes viven en la calle están adictos a este adhesivo (Strehl 2011: 59-61). El plástico, ese objeto prominente en el poema a partir del primer verso, se refiere probablemente no solo a los desechos acumulados en un lugar sin cuidar, sino también a los bolsos y las botellas que se usan para inhalar el terokal. Irónicamente, el espacio distópico del texto de Ghershi había antes sido una reserva, un lugar para conservar, recrear y crecer en libertad y harmonía con el medio

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ambiente. Los habitantes de esa reserva de luces sin intenciones, sin embargo, siguen teniendo deseos: “sueñan,” “quieren” y “ansían” juguetes, regalos y ropa. Estas mercancías transmitidas por los medios masivos como lo son las metonímicas “cámaras de televisión”, son omnipresentes. Más allá de los objetos inanimados hipervisualizados, los sin hogar del poema ansían la cercanía humana. Pero en vez de amor, se contagian de enfermedades. El final de esa corta alegoría de los olvidados de la ciudad neoliberal los describe en “el reino de los cielos” del evasivo mundo de las drogas.6 La última evasión efímera tiene consecuencias fatales; el jugarse la vida resulta en su pérdida. La voz poética relata esta experiencia con impasibilidad impía. El mundo de la reserva neoliberal pervertida poetizada por Ghersi se narra a través de los extremos de la excitación y la indiferencia; ambos discursos se basan en una noción del sujeto que se forma a través de impulsos exteriores y carece de interioridad. Hopenhayn estudia el nexo entre el consumo masmediático y el uso de las drogas en el contexto urbano latinoamericano contemporáneo: “Existe hoy una clara tendencia de las personas a remitir cada vez más sus fuentes de autorregulación a elementos exógenos. Se trata de la ratio misma de la sociedad de consumo y también del espíritu propio de la vida en la gran ciudad: colocar fuera del sujeto la mayor cantidad posible de fuentes requeridas para su bienestar, su satisfacción y su felicidad” (Hopenhayn 2002: 74). Los jóvenes quienes viven situaciones de tal fuerte desmotivación como el alto nivel de desempleo ya no se sienten movilizados por las utopías políticas que habían sido entre las grandes fuentes de felicidad (anhelada) en el siglo XX (idem: 75). La cosificación y la exteriorización de deseos se reflejan y meditan en las primeras cinco estrofas del poema a través de la enumeración febril de objetos de consumo masivo que son omnipresentes tanto en el espacio urbano como en los sueños de los sin hogar. Lo que falta en la ciudad lírica real e imaginada/soñada de Ghersi, es un sentido de pertenencia humana básica, de cohesión social, al que refiere con el cándido verso “quieren amor”, que suena fuera de lugar dado el contexto inhumano del mundo de luces sin intención (¿de iluminar o guiar?), ya que los únicos amores posibles en tal espacio son los amores “vengados” de la breve satisfacción sexual. Más allá de la descripción de la realidad precaria de los desamparados en el poema, el tema de la droga apunta a un fenómeno más amplio presente en una sociedad de

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consumo, que es el culto a la obtención inmediata de placer. La misma hiperactividad que define el mundo del trabajo y el del dinero se repite en la esfera del ocio (idem: 75). Los seres, incluso los del poema de Ghersi, son frágiles y se sienten atosigados y solos. El amor es para ellos mera palabra hueca, aprendida a través de su excesiva presencia en los medios masivos o toma la forma de una venganza de una desilusión anterior. La soledad se vuelve una realidad constante en ese mundo neoliberal dibujado en los poemas, aunque se expresa de modos diferentes en cada uno de los ejemplos líricos reunidos en el presente estudio. A diferencia de Ghersi, quien traza primero la realidad espacial y de los objetos antes de acercarse a la experiencia humana colectiva, la poesía de Victoria Guerrero se germina casi exclusivamente a partir de la percepción de un yo lírico en primera persona. Ese yo, contemplando la ciudad, a menudo se encuentra en una honda soledad. El poema “La ciudad del reciclaje (por estos días)” de la colección Ya nadie incendia el mundo, germina durante un momento de contemplación solitaria. La voz lírica observa un río (el río Charles en Boston); y esa imagen se alterna con el recuerdo del río Rímac de Lima. El espacio presente y el del pasado en parte se solapan y el efecto de esa sobreimposición espacial es una desorientación del humano que se percibe a su merced. En el poema presente, la desolación se comunica en un estilo más amargo que en el de Ghersi lindando con lo sarcástico. “La ciudad del reciclaje (por estos días)” con el corazón hecho trizas atravieso un puente una superficie metálica incapaz de corromperse abajo se asoma un río inmenso gélido un hermoso espejo azul que cobija a sus muertos: tres punks un profesor universitario una mujer desconocida (siempre lo somos) flotan sobre sus aguas yo les llamo mis ofelias posmodernas en la ciudad del reciclaje

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(do not recycling is ilegal – dijo la dueña de casa Y enseguida me puse a separar las astillas de mi corazón) … (Guerrero 2005: 77-78)

El enunciar de ese texto parece asociativo (no lo es). Transmite la situación exasperada y frágil del yo lírico a través de enumeraciones insólitas. El cambio de código y uso de calcos en el paréntesis “(do not recycling is ilegal – dijo la dueña de casa” […]) (idem 78) enfatiza la realidad de vivir entre países, culturas y lenguas. La postura de la voz poética del presente texto es menos distanciada y descriptiva que la de Ghersi, sino que es involucrada y marcadamente emocional. Llama la atención el paralelismo entre la reserva ecológica en el poema de Ghersi y la referencia al reciclaje en el de Guerrero: ambos conceptos remiten a un ideal pasado de preservar y conservar el medio ambiente y en extensión el hábitat humano. El reciclar en el pasaje de Guerrero, sin embargo, se interioriza. Es ahora un progreso en el cual se cuestiona e incluso se disipa la misma división entre lo orgánico y lo inanimado: ¿Será que los objetos cobran vida? ¿O qué el cuerpo humano se vuelve objeto? ¿O tal vez, que la diferenciación entre lo animado y lo inanimado ya no tiene vigor en el momento de desolación después de una separación amorosa (“con el corazón hecho trizas”)? La superficie gélida del río divide y refleja cuerpos en espacios diferentes: por un lado está el cuerpo humano, vivo, inmóvil, sobre el puente y por el otro los cinco cuerpos muertos, pero móviles, que están flotando debajo. Si en los poemas anteriormente discutidos, los objetos inanimados se vuelven más activos que los seres humanos, aquí son los cadáveres humanos quienes se mueven (flotan a la deriva), mientras que el yo lírico los contempla inmóvil desde arriba. El cuerpo humano es una entidad o cosa frágil, que se puede destruir en una situación de angustia y abandono, como el de la mítica Ofelia en la obra shakespeariana. El puente, esta “superficie incapaz de corromperse”, adquiere características antropomorfas, se describe en términos de resistencia, tanto material como moral y emocional. Este mundo lírico trazado por Guerrero ya no se basa en una noción clásica de sujeto como enunciación coherente y estable, ni siquiera instancia de enunciación de un sujeto en revuelta planteada por la poesía del romanticismo, neorrealismo y las vanguardias históricas. En el presente poema, el yo lírico, los tres punks, el profesor y la mujer desconocida se

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perciben como cuerpos reemplazables y flotantes, hasta reciclables. El desarraigo existencial mencionado por Hopenhayn (idem: 69) se perfila ahora en forma de un enajenarse de las mismas nociones de presencia y conciencia humana orgánica. En vez de un corazón humano, la hablante se encuentra con las astillas de un órgano marcado por lo inorgánico. La metamorfosis clásica da lugar a la auto-disección (“me puse a separar las astillas de mi corazón”) o hasta un ente cyborg que se empeña en reciclar los fragmentos inorgánicos de un órgano que tal vez los necesite para subsistir y se componga en su mayoría de los mismos.7 El siguiente poema, de la colección Ludy D de Crisólogo, da un paso más y describe el cambio corpóreo de la voz poética en términos de amoldamiento de materiales de construcción.

“Hay días que no tolero más ruido que el de las construcciones”

y el café no endulza ... -no hay nada que endulce este caféy quisiera ser la virgen que adorna el vello crepuscular de un acolchonado cuadro llamarme Rosa ... -Rositatener el cabello largo y los pies pequeñitos y rosados como los de una conocida muñeca y llevarle a los muchachos de la construcción tappers limpios de comida papas sancochadas con pollo mi buena sazón que venderé y revenderé con sendos cerros de arroz lechuga agria y ají de algo me servirá ser acomedida o liviana .............. .............. ................ ................ ........ sudar atados de ropa limpia y una toalla por si la transpiración y luego pensar en los acabados del edificio ............-como terminaré yomuros sellados y cielos falsos en placa de yeso ............-donde terminaré yo-

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soldaduras anclajes fijaciones de plástico ............dónde anclaré ................... .... ....me desfondaré ............y terminaré yo y nada de prevención y mantenimiento de martillos taladros patologías y formas que hincan su cabeza de movediza serpiente y me invitan a rodar sentirme en la erosión de esta tierra de doble piso sin fondo y empapelan el ruido de un enceguecido tránsito de aves guaneras como el dolor ................... .............. ....... ......de alguna primera vez. (Crisólogo 2006: 13-14)

Entre las técnicas poéticas claves de ese texto se destacan la acumulación y la elipsis, marcada por puntos de suspensión que a veces ocupan la mayor parte de los versos. El yo lírico enumera proyectos y planes en una voz sin aliento, usando las formas verbales futuras y los infinitivos. Se presenta inicialmente como ser que anhela ser otra—la virgen, una Barbie o vecina que les lleva comida a los obreros trabajando en las construcciones del barrio. En la segunda parte del poema, el espacio arquitectónico cambiante se vuelve modelo de las modificaciones del cuerpo humano que se “termina”, “ancla”, “fija” y “desfonda” para sentirse “en la erosión” de una “tierra de doble piso” que, en el verso siguiente, resulta ser “sin fondo.” En vez de una retirada en un mundo de interioridad, el yo despojado de este refugio se percibe a través de y en los materiales y ruidos de las construcciones urbanas que crecen a ritmo vertiginoso. El espacio sensorial está marcado por el ruido de los martillos de percusión y de alisadores de cemento que igualan las formas artificiales y orgánicas. El yo lírico observa las transformaciones de los materiales que se vuelven modelo de su propia metamorfosis hacia lo inorgánico, que es percibida como proceso incalculable y opaco. Ludy D, cuyo título se refiere al nombre de guerra de una activista militante del Sendero Luminoso, se centra en la memoria de la actitud conflictiva de la hablante frente a la guerrilla del Sendero: por un lado, se vislumbra la atracción de su intransigencia para una estudiante adolescente, por otro, se nota la repulsión de la crueldad e ideología arcaica del

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movimiento revolucionario maoísta “más radical del hemisferio” (Scott Palmer 1994: 16).8 Después de terminar las décadas de violencia de la guerra popular del Sendero Luminoso contra el Estado peruano (Abimael Guzmán, el líder senderista, fue asesinado en el 1992), el siguiente régimen civil encabezado por Alberto Fujimori (1990-1995 y 1995-2000), se caracterizó por un gobierno de mano dura. En vez de un nuevo comienzo progresivo y democrático, que había sido el anhelo de la gran mayoría de los peruanos después de terminar la guerra, la vida durante el Fujimorismo fue marcada, por un lado por una fuerte militarización del espacio público (justificado por la voz oficial como “vigilancia” contra movimientos de la izquierda extrema), y por el otro por un fuerte impulso neoliberal económico. La Lima de los 90 era una ciudad en construcción y modificación constante, basada en una tasa aumentada de inversiones internacionales y nacionales. Esa hiperactividad, sin embargo, veló el colapso de sistemas de seguridad social, la creciente falta de infraestructura y segmentación de la sociedad (Ghersi 2008: 73-77). Crisólogo sitúa a su hablante en medio de ese ruido ensordecedor de las construcciones para exponer los cambios sonoros y espaciales reales, en nítida contraposición a los discursos oficiales de progreso de la sociedad “democrática”: el “milagro” peruano tan frecuentemente evocado por Fujimori (con Chile como modelo neoliberal por seguir) no tuvo lugar; y el alcance de los avances económicos era mínimo o nulo para la gran mayoría de la población. El cuerpo humano inmerso en tal realidad, trazado en el poema presente, experimenta la falta de prevención, toca la erosión y vive la carencia de un fondo estable, tanto a nivel literal como figurado. Su reacción frente a tal experiencia es una auto-observación tajantemente honesta. Frente a las adversidades de la ciudad neoliberal, que asalta los sentidos humanos (sabor amargo, sonidos enceguecedores, ilusiones ópticas y táctiles), el yo solo puede sentirse parte de “la erosión de esta tierra”, sentir la experiencia espacial en el propio cuerpo ya que éste se ha convertido en parte del espacio circundante. Lo que le queda al yo es un mero sentirse para cerciorarse momentáneamente en su dolor, ya no como entidad subjetiva, sino como cuerpo metonímico del archi-cuerpo urbano en violenta transformación y erosión. La palabra poética atrapada en este mundo de las construcciones es concebida como enunciación quebradiza a punto de desfondarse.

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Los breves ejemplos de Crisólogo, Ghersi y Guerrero son textos líricos en el sentido de obras que interrumpen el fluir del hablar supuestamente transparente que nos llevan a una lectura lenta, repetida y meditativa. En su Poetry as Experience, Philippe LacoueLabarthe describe la poesía como interrupción en el lenguaje y remite a la definición clásica de Friedrich Hölderlin del poema como cesura, o, a la más reciente de Jean-Luc Nancy como espasmo del hablar (Lacoue-Labarthe 1999: 49). En un contexto hispanoamericano, añadimos la poética propuesta por Antonio Cornejo Polar como relación concreta que se erige en contra del lugar común (Cornejo Polar 2000). Con sus imágenes y yuxtaposiciones sintácticas inusuales, la enunciación lírica frena toda lectura casual y unidireccional y por ende extraña a sus lectores del mismo texto que están leyendo. Es a menudo un hablar en acertijos, que invierte los sentidos literales y figurados de unas palabras. El momento poético como interrupción de la lógica semántica convencional puede surgir de la lectura de “la abrupta arruga de mi hondo dolor” (Vallejo 1994: 46), circunscrita por César Vallejo en su hermético “Heces” de Los heraldos negros (1918). Puede deslizarse también en los versos de su compatriota Crisólogo, en un poema en el cual una hablante, en un “triste traje de baño cantonés” medita sobre “un lenguaje

una obsesión

que no termina” (Crisólogo 2006:

50). El explícito enfoque en la realidad contemporánea marcada por prácticas neoliberales por parte de Crisólogo, Ghersi y Guerrero enfatiza el pulso apresurado del vivir en tiempos que se presentan como acelerados, sin cercanía física positiva y con constante falta de tiempo. El reto de la voz poética al narrarlo y narrarse consiste en un frenar el apuro sistémico exterior con sus metonímicos martillos neumáticos, gestos desesperados de reciclaje de lo orgánico y las constantes dosis de terokal. El yo en esos versos es una entidad precaria, alejada de la noción de voz enunciativa estable y desprovista de la antigua división de interioridad y exterioridad. Incluso indaga acerca de su ser inorgánico, cuando se percibe como parte de los materiales de construcción urbana. La voz lírica dentro de la ciudad neoliberal se gesta a partir de un sentir/se momentáneo y perecedero y una atenta observación de escenas cotidianas densas de significación. La labor poética transforma estas experiencias crudas, las hace “pasar por varios filtros, semejante[s] a.. rayo[s] refracto[s]” (Ollé 2007: 8) antes de devolverlas a la

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comunidad de lectores en sus respectivos contextos vitales. Ese proceso consiste primero en una observación atenta, luego un movimiento de distanciación de la experiencia (individual o plural) inmediata, para llegar a un espacio alternativo en donde se convierte en un reflejo. En un último paso, vuelve de este lugar de experimentación crítica a la comunidad de lectores, con la intención de ayudarles a ver e interpretar esa realidad a partir de una nueva óptica. El poema, según esta poética, en vez de ser un fin en sí, es un chronotopos de (auto-) concientización y de comunicación en tiempos precarios. Se enfoca en la realidad vivida de espacios urbanos y referencias constantes (hasta obsesivas) a los objetos de uso y de lujo para poder desenmascarar las mentiras de una supuesta libertad económica como condición para la libertad política y social. Crisólogo, Ghersi y Guerrero insisten en el pensar de la angustia existencial a través de la experiencia diaria para poder vislumbrar las represiones sistémicas y, muy de vez en cuando, poder trazar un espacio alternativo de un posible explorarse, que es el poema.9

NOTAS 1

La noción de agente volátil es mía. La desarrollo a partir de la discusión de nuevas percepciones de creadores

y creadoras e incluso y narradoras de obras artísticas quienes se perciben como agentes, voces o instancias marcadas por el intercambio social en Spreadable Media. Creating Value and Meaning in a Networked Culture (2013) de Sam Ford, Joshua Green y Henry Jenkins. Concuerdo con la crítica de los autores en cuanto a “how industry logic and academic critiques alike focus too often on the value of sovereignty of the individual rather than on the social networks” (xiii). 2

Para dar un ejemplo, el blog de poesía peruana urbanotopía registró unas 275.000 visitas en el mes de julio de

2014. 3

Según la noción de lo “maravilloso-cotidiano” surrealista, la imaginación poética tiene el poder de crear

instantáneas y generar percepciones nuevas dentro del vivir monótono.

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Ghersi escribió su tesis de doctorado titulada “Pensamientos y prácticas feministas en el Perú (La poesía

limeña de los 80 y 90)”, sobre la violencia de los años ochenta y noventa en el Perú y sus repercusiones en la poesía. 5

Sigo la definición de neoliberalismo latinoamericano de Walter Mignolo, desarrollada en La idea de América

Latina (120). 6

En su poema “Parque universitario” de Abajo sobre el cielo, Crisólogo traza una narrativa poética muy similar

a la de “Cuando las luces no tienen intenciones” de Ghersi. En vez del ilusorio paraíso de las drogas, la evasión fracasada en el texto de Crisólogo es la posible participación especulativa de la hablante en los negocios de una “agencia oscura / que compra y vende dólares falsificados” (Crisólogo 2005: 66), otra directa referencia a los abusos sistémicos neoliberales. 7

En otro poema, “Baile” de su reciente En un mundo de abdicaciones, Guerrero describe el corazón del yo lírico

como “corazón de sapo… que no sabe hacia dónde más saltar” (Guerrero 2016: 85). 8

Véase al respecto la introducción de David Scott Palmer a The Shining Path of Peru (págs 1-17). Como destaca

Lewis Taylor, en Shining Path – Guerrilla War in Peru’s Northern Highlands, 1980-1997: “According to the ‘Truth and Reconciliation Commission Report’ [de 2003]… an estimated 69,280 people lost their lives. Some 54% of fatalities occurred at the hands of the PCP-SL” (1). 9

Este ensayo tuvo sus comienzos en una videoconferencia que di en diciembre del 2017 en la Universidad

Autónoma de Campeche, México. Doy las gracias a la profesora Kenia Aubry Ortegón por su generosa invitación y por haber facilitado y organizado este encuentro y a los participantes del mismo por sus comentarios críticos y fructíferos. Gracias también al profesor Burghard Baltrusch, director del proyecto de POEPOLIT (Poesía actual y política), por incluir las videoconferencias en la lista de actividades de investigación del mismo. Agradezco los comentarios críticos de lo/a/s lectores de este ensayo. Y last, but not least, or more precisely first of all, gracias a Roxana Crisólogo y Victoria Guerrero por su fe en mis habilidades de traducción. Véase al respecto la selección de traducciones al inglés de diez poemas de ambas poetas publicadas en Review: Literature and Arts of the Americas (Guerrero 2017, 116-120 y Crisólogo 2017, 100-106).

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Ilka Kressner es profesora titular de español en la Universidad de Albany, State University of New York, EEUU. Sus áreas de investigación y de enseñanza son la literatura, el cine y las artes visuales hispanoamericanos, concepciones de espacio en el arte, y viceversa, de arte en el espacio y más recientemente la ecocrítica. Su libro Sites of Disquiet: The Non-Space in Spanish American Short Narratives and Their Cinematic Transformations (Purdue UP, 2013) analiza representaciones de espacios alternativos, entre estos, sitios desplazados, perspectivas entrecruzadas, oscuridad y vació en obras de la narrativa breve latinoamericana y varias de sus adaptaciones cinematográficas. Es también co-editora de Walter Benjamin Unbound (Vols 15.1 y 15.2, Annals of Scholarship, 2015).

, 11, 06/2018: 193-212 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely11e7

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Acrobacia dialéctica hacia un principio de esperanza: crítica, poética y toma de posición política en la obra de Cristina Burneo Salazar

Acrobacia dialéctica hacia un principio de esperanza: crítica, poética y toma de posición política en la obra de Cristina Burneo Salazar

Joseba Buj Universidad Iberoamericana Ciudad de México

Resumen: Este artículo hace un recorrido por la obra de Cristina Burneo Salazar. En él, se propone que, partiendo de una investigación en la que se trata de analizar lo que supone la acrobacia bilingüe que traza la poesía de Alfredo Gangotena en términos poéticos y políticos, la autora comienza a desarrollar una obra en la que, como operación fundamental, se impone un ejercicio de situación corporal y política. Su obra, que recorre el ensayo académico y la poesía, acaba optando por una nueva forma que, por su mayor complejidad dialéctica, expresa mejor ese ejercicio de ubicación, de toma de partido: la crónica poética. El artículo analiza como una crónica poética que trae al debate, dialécticamente – en el sentido lukacsiano –, polémicamente, significaciones profundas sobre las cuales el imaginario actual ejerce violencia, ocultándolas: las luchas de la sexualidad diversa, las de la militancia antiminera, las ancestrales del pueblo shuar. Palavras clave: Cristina Burneo Salazar, poesía, política, dialéctica, acrobacia, cuerpo Abstract: This article investigates the work of Cristina Burneo Salazar. Departing from a research in which she tries to analyse the meaning of bilingual acrobatics, a term she created to analyse Alfredo Gangotena´s poetry in political and poetic terms. Burneo builds up a strategy where poetry analysis imposes both corporal and political settings. Her work is both academic and poetic, due to the dialectical complexity, the stylistic hybrid ends up expressing that setting whilst accounting for a political position: the poetic chronicle. The article analyses how her poetic chronicle brings into the table, dialectically – in the Lukacsian sense -, controversially, the debate of the current imaginary, which exercises violence by hiding: the struggles of sexual diversity, antimining and recognition of the shuar people. Keywords: Cristina Burneo Salazar, poetry, politics, dialectics, acrobatics, body

, 11, 06/2018: 213-237 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely11e8

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1. Este trabajo toma como punto de partida las condiciones de posibilidad crítica que se abigarran en la noción de contradicción dialéctica entre lo que Georg Lukács denomina “formas de comunicación interhumanas” en el diálogo filosófico dramatizado Acerca de la pobreza del espíritu, escrito en su primerísima juventud (1911: 12), y que aquí llamaré, algunas veces, desprendiéndome en parte de la pátina neokantiana, mediaciones culturales. Interesa, entonces, en lo que aquí concierne, defender como tesis principal que dicha noción de contradicción y, por ende, de movimiento dialéctico, aplicada al vínculo dinámico tendido entre ciertas mediaciones culturales en las que juega un papel especialmente relevante, claro está, la poesía, propicia el advenimiento de determinadas preguntas pertinentes y, con él, la pesquisa de un sentido profundo que culpablemente se nos oculta (desde los usos discursivos del capitalismo tardío), y, con él, la asunción de cierto posicionamiento político e histórico a nivel de forma de conciencia, junto con cierto acto de situación del cuerpo desde coordenadas resistente/revolucionarias en el todo histórico/social. Tomaré, como principal eje de reflexión el libro Acrobacia del cuerpo bilingüe: la poesía de Alfredo Gangotena de Cristina Burneo Salazar. Hago particular énfasis en el momento de la recepción del lector, en este caso la mía, para poner en claro la constelación de movimientos que propongo. Aquella que se plantea entre mediaciones gramático/objetuales, formas de conciencia y materialidad situada. Es decir, aludo al libro de Burneo en el que la mediación ensayística se apropia de la mediación poética: periplo iniciático del que la forma de conciencia de la autora regresa nítidamente resuelta en lo que a la toma de una posición política se refiere (ubicada material y, por tanto, corporalmente hablando) y en lo que a la gestación de ciertas poéticas de la escritura creativa respecta (una crónica incisiva que arriesga una poética insumisa, esto es, una nueva forma de poetizar que discute con los marcos encorsetados en los que habitualmente se produce la poesía, marcos que, en el contexto del capitalismo tardomoderno, tienden, per se, a hipostasiarla, desradicalizarla y, por ende, a despolitizarla). Es decir, aludo a la apropiación que mi forma de conciencia lectora lleva a cabo de la mediación poética mediada, a su vez, por la mediación ensayística, y a cómo, , 11, 06/2018: 213-237 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely11e8

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tras esta odisea/anábasis (por aquello de las fuerzas centrífugas y centrípetas que compromete), la forma de conciencia de uno retorna, en un primer instante, más que situando su cuerpo en la arena política e histórica, con una serie de cuestiones que conlleva el cuestionamiento hondo sobre el proceso de constitución de la propia subjetividad –que abordo sólo de modo somero, en el acápite último de este punto primero-, pero también, en un momento ulterior –casi crepuscular en la reflexión sostenida a lo largo de este artículo-, en una suerte de operación de segundo orden, que retoma al Lukács rescatado por Fredric Jameson en Valences of the Dialectic (2009: 202-222), sobre la irónica probabilidad que contiene la obra de Burneo de, desactivado su antuvión crítico por una lectura simploide, perfectamente viable desde las paupérrimas condiciones de posibilidad con que el capitalismo tardío constriñe las formas contemporáneas de articular los procesos subjetivantes, cancelar la senda crítica por ella misma inaugurada: suceso que demostraría, una vez más, la capacidad desradicalizadora, reconductiva y anulante que posee la ‘cultura tardocapitalista’ a la hora de confrontar y domesticar a aquellos que pretenden criticarla. En este párrafo último de este punto primero, aventuro la cuestión de que las inquisiciones que serán colofón de este ensayo -cuestiones que emplazan desde un viso crítico la obra de Burneo sin otro fin que incoar una lectura radicalmente dialéctica de esta que impida su rendición a los usos domeñantes y reconductivos con que se comporta, siempre artero, el capital tardío- son producto de un proceso resubjetivante que es obsecuente a la interpelación dialéctica que la potencia de la obra y la capacidad receptiva de mi subjetividad contienen. Es decir, el proceso resubjetivante responde a que la interrogación por la politicidad de la lengua y de la poesía, por la función política del crítico cultural, está atravesada por el vínculo castrado (procedimientos diglósicos y represivos mediante) con el bilingüismo que nos tocó padecer a muchos de los vascos de mi generación (salimos, de todo aquello, convertidos en pertinaces monóglotas), está atravesada por una relación conflictiva con la “acción política” perpetrada por la generación de nuestros padres que, partiendo de la radicalidad militante y de las luchas reivindicativas, (evo/invo)lucionó hacia la construcción de una realidad tan políticamente sojuzgada como el gentrificado corredor turístico donde se yergue el Guggenheim, otrora escenario de violentas y reivindicativas y denodadas huelgas obreras. Un contexto tan desolador nos legó una noción de la “no acción” y del acto de lectura (en muchas , 11, 06/2018: 213-237 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely11e8

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ocasiones, en un acto de esforzada lucha con la ininteligibilidad, en la lengua preterida: Gabriel Aresti, Joseba Sarrionaindia…; en muchas ocasiones, en un acto de aproximación a creaciones que desde la lengua extraña y contradictoriamente propia desplegaban el conflicto, pienso en Euskera egin dezagun de Blas de Otero) entendidos como verdaderas fuerzas de disenso: que demandaban una guerra en la memoria, en contra del aplanamiento edulcorado de la conflictividad de ésta (la memoria) que nos imponían nuestros progenitores, que nos ubicaba (la guerra en la memoria), aunque fuese imaginariamente, en el para nosotros etéreo momento social, mucho más polémico y dinámico, de nuestros abuelos. Acaso este apartamiento, retraído, inmóvil, resistencia de pensamiento encerrada en una biblioteca, deficiente en términos de situación política, gran hotel abismo, pueda aportar algo a la mucha más osada toma de partido de intelectuales activistas como Burneo, dialectizando con ellos para mantener, contra el peligro de una probable aprehensión, prendida la llama indómita, indetenible, inaprensible, que su propuesta posee.

2. Hago hincapié, por consiguiente, en que el concepto de mediación cultural, y la jerarquización representativa del mundo que éste comporta, no debe ser en ningún caso hipostasiado en cuanto solución crítica del problema, más bien a la contra, dicha hipóstasis estatuye el problema en sí desde mi óptica, clausurando el camino de la crítica: es, por lo tanto, el movimiento dialéctico (con el que envida Burneo a modo de acrobacia), a un tiempo opuesto y resuelto (pienso, en este punto, con Jean Hyppolite, que cada una de las estaciones ‘identitarias’ de la dialéctica es estructuralmente, de manera intrínseca, un desencuentro: un vórtice en el que se cataliza un vaivén interior de dimensiones centrípetas y centrífugas), entre las mediaciones y su exterioridad quien auspicia la indagación perpetua de una significación profunda que va abriendo, de seguida, indetenible, las actualizaciones críticas. La acrobacia dialéctica -embate crítico contenido de manera explícita en el trabajo de Burneo-, una insistencia empecinada, radical y militante en el dinamismo contradictorio a que esta compele que continuamente la reactualice, es la única que puede salvar a esta obra de precipitarse, como tantas otras, en la hipóstasis de su propia mediación, esto es, en el triste universo de las lecturas domeñadas por la adormidera tardocapitalista: las inquisiciones con que este trabajo culmina responden a esta necesidad sempiterna de redimensionar la acrobacia, la , 11, 06/2018: 213-237 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely11e8

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dialéctica, de activar, recursivamente, los argumentos que la propia Burneo esgrime para que su obra sea entendida como un catalizador de fugas a, de sublevaciones contra, cualquier conato de domesticación. Conviene arriesgar de una vez entonces, teóricamente, el cruce que propongo entre la noción de acrobacia que, como veremos y explicitaremos con hondura a lo largo de este texto, alude a un movimiento en la medicación estructural que, en virtud de un viaje subjetivo por el bilingüismo, deviene situación corporal revulsiva, esto es, inscripción otra del cuerpo en una materialidad otra, o que empieza a verse –militantemente- como otra, y la teoría dialéctica de Lukács que envida proponiendo el movimiento dialéctico en el seno de las mediaciones culturales, y entre éstas y la materialidad objetiva: movimiento dialéctico que, en la búsqueda revulsiva de la totalidad, se rebela, de seguida, contra las hipóstasis falsarias y absolutizantes de las propias mediaciones restituyendo un sentido emancipatorio (de plenitud libertante, sin carencias ni represiones) en la historia material que quiere restañar el déficit que provoca la cultura en cuanto mediación. Luego el cruce que propongo entre la noción de acrobacia y de movimiento dialéctico lukacsiano comportará, desde mi punto de vista, una evolución genérica en la autora –del ensayo académico, de la poesía en prosa, hacia la crónica poética-

y, entendidos dicho

movimiento dialéctico y dicha acrobacia con la suficiente radicalidad, algo que finalmente la rescata de la hipóstasis del lirismo, del vanguardismo sometido por la industria cultural, de las formas constriñentes a que obligan los medios de comunicación masiva y del identitarismo inteligido como absoluto secular.

3. Desde el indigenismo superficial y vulgar que, en nítido contubernio con usos políticos muy perversos, muy utilitarios y muy terrenos, ha permeado la enunciación histórica y política de muchos de nuestros países latinoamericanos, erigiendo arquetipos tan broncíneos como impenetrables e inapelables, la figura del poeta ecuatoriano Alfredo Gangotena resulta muy problemática. Esto es, uno puede descubrir en él a un poeta, en la estela de la lectura que se ha cernido sobre el cubano José María de Heredia, embelesado por la aristocracia criolla que se fascina ante las luces de un París idealizado, un poeta que, en su epigonía, mimetiza los atildamientos europeizantes hasta el grado de mudar de lengua. El reduccionismo totalizante y violento de esta lectura, lo digo para que aquilatemos su poder y su chovinismo, impone este viaje subjetivo/creativo, de una , 11, 06/2018: 213-237 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely11e8

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manera absolutamente injusta y forzada, a poetas como Jules Laforgue, Jules Supervielle e Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont), cuando su circunstancia vital y sus relaciones con la lengua francesa son muy otras. Acaso, habría que rescatar al propio Heredia de esta lectura: siempre ubicado en un lugar liminar, ‘interlingual’, fascinado por el acto de una traducción que alcanza el latín y el inglés, que se arroba vertiendo al francés los espíritus de la latinoamericanidad y de la hispanidad. La lectura de la obra de Gangotena que propone Burneo recorre el camino inverso: no pesquisa el descubrimiento de una epigonía sino de una revulsión, no averigua la clausura semántica de un proceso de imitación y asimilación sino un trastocamiento perturbador que se fuga siempre hacia noveles cadenas de significación (o por qué no, acaso de modo más radical, de no significación o de una significación visceralmente alterna) abiertas a lo contumaz, a lo irreductible, a lo que resulta decididamente profundo y revelador porque ha sido ignorado por las violencias de las lecturas simples y absolutizantes. El camino a seguir para permearse por esta lectura arriesgada y remozante es a mi juicio, ya lo he subrayado, activar la contradicción entre diversos niveles de mediación. Quizá, por ponerle un orden a lo que sería una constelación no secuenciada, lo primero sería apelar a la vivencia del bilingüismo experimentada, de una manera formal y personal, por la propia Burneo, a saber: por su formación como crítica y traductora, y por su residencia por largos períodos fuera de su país. Esta vivencia conduce, de modo necesario, a la pregunta por el momento primigenio de la enunciación en una lengua activado desde una episteme que (aun cuando es epigónica) no se sitúa para nada en las condiciones de posibilidad imaginarias y simbólicas consignadas en esa lengua en cuanto producto histórico (porque esa lengua prevé una episteme del centro y se asume como tal). Cuanto Burneo sostiene es que esta tensión originaria revierte en una tensión adversa que es el descolocamiento, el desmontaje de la propia episteme en cuanto epigonía. Devela, en consecuencia, en la poesía de Gangotena, en cuanto objeto y gramática, un momento de abigarramiento dialéctico que no sólo descoloca la subjetividad enunciante y receptora, sino que empieza a abrirse peligrosamente a un espacio donde se desmonta y disecciona todo el dispositivo cosmovisional que vertebra las jerarquías del centro y de la periferia epigónica:

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Acrobacia dialéctica hacia un principio de esperanza: crítica, poética y toma de posición política en la obra de Cristina Burneo Salazar El desfase de los escritores bilingües andinos se convierte así en una potencia dual que se expresará por medio de una impregnación en el poema. <<Acaso no soy yo el acróbata sobre las geodésicas y los meridianos>>, se pregunta Alfredo Gangotena en <<Cuaresma>> en donde ese movimiento acrobático se concibe como una fuerza extraña que <<hace crujir los dientes>>. Ni Gangotena ni Vicente Huidobro responden a la figura del escritor transculturado en el sentido que le dio Rama. En absoluto se pueden considerar antecedentes de José María Arguedas, por ejemplo, y sin embargo cuestionaron como él la estabilidad de la tríada, lengua, nación y cultura. Arguedas lo hizo más tarde desde el quichua, ellos, décadas antes, desde el francés. (2017:49)

Este momento de enunciación lingüística primigenio, subvertido por el no/lugar contradictorio acrobática y dialécticamente hablando respecto de la episteme en que se desenvuelve la propia lengua enunciante, se engrandece, en cuanto momento de sublevación, en el instante de estructurar el tejido poético. Lo diré de un modo muy sencillo, para no desviarme de la ruta trazada para este artículo. Poetizar es, en literatura, alterar la inercia natural con que el sistema lingüístico fija una equivalencia entre imagen y afuera a representar. Acontece, entonces, una desatención a las funciones referenciales y sincrónicas de la lengua que, activando una dirección lingüística no evidente -aquella que tramonta hacia dimensiones arquetípicas y diacrónicas donde se consignan/despliegan deseos y temores atávicos-, crea un imaginario otro que se relaciona con ese afuera no en términos de representación y exégesis sino de exploración y activación: o sea, se incursiona en determinados registros del cuerpo, los dominios de la sensibilidad (del pathos: inexorable reverso del ethos cultural), no constreñibles a logicidad alguna y con ello, de alguna manera, se los activa, se los cartografía y se los (des)ordena. Es decir, poetizar es, en cierto sentido, develar lo que no decimos en las formas habituales de decirnos. Siguiendo este argumento, podemos colegir el potencial emancipatorio del acto poético, pero también su potencia opresiva. Esto es, podemos descubrir en él, en razón del adentramiento que plantea en un ‘más allá’ de los límites del conocimiento, un sitio para referir la pluralidad irreductible de la experiencia, pero también un sitio para someter dicha pluralidad a los coseletes de la unidimensionalidad, o dicho de otra forma, un sitio donde esa incursión en territorios ignotos del cuerpo y de la cultura se transfigura en una coerción virulenta, en un acto de dominio. Si nos situamos en un período anterior a aquél del que parte la crítica de Burneo, y no únicamente en un período sino en una función del lenguaje distinta a la estrictamente poética,

se nos revela que los artefactos representativos

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preponderantes a la hora de dar cuenta de los territorios americanos han participado, desde Bernal Díaz del Castillo (aquel que encandilara a Heredia) hasta Alejandro de Humboldt pasando por Giovanni Battista Ramusio (tan caro a la prosa tibia, domesticadora del paisaje y del gusto, de Alfonso Reyes), de una textura tropológica que combina una operación binaria; en ésta se abigarran la exotización y la analogía. Aquélla fomenta el deseo; ésta permite la aprehensión, el dominio. Si desplazamos esta articulación tropológica de los usos lingüísticos representativos a los estrictamente poéticos, es posible echar mano de la teoría de Edward Said (2001) para comprender que los usos lingüísticos estrictamente poéticos, pese a estar activando registros materiales e imaginarios muy singulares y complejos, pueden por igual estar incoando dinámicas de aprehensión y de sojuzgamiento: cuanto se aprehende es, en efecto, algo muy diferente, pero esta diferencia se ‘acopla con’ y ‘participa de’ la maquinaria que aprehende y reduce la multiplicidad del todo por igual. Con lo que los juicios de Said, ceñidos al imperialismo surgido de las revoluciones ilustradas que acaban por desdoblarse históricamente, a su vez, como revoluciones técnicas1, podrían extenderse, sin ser reduccionistas en extremo, a las epigonías poéticas criollas, donde el gusto es colonizado por el significante vacío del poder: una ubicación simbólica que siempre da noticia de una posición relacional hegemónica, que puede ser ocupada por diferentes cuerpos y formas de conciencia. En esta dirección argumentativa, idénticamente hegemónicos resultan el conquistador/evangelista, el criollo, el mestizo o el indigenismo vulgar. El ataque de Burneo al indigenismo vulgar y a su preceptiva poética que acusa a la vanguardia de despolitización parte de este punto. Así, indagará, refiriéndose a las poéticas del lado de allá, en el Ecuador de Henri Michaux (en las latitudes méxicanas, desde las que yo escribo, el correlato sería Antonin Artaud), una disposición tropológica adversa a la configuración de lo otro como lo deseable, de lo todo como lo mismo. A través de una estética del asco mórbido, de la fragmentariedad digresiva, de la anécdota deshilvanada respecto de la trama, Michaux perfora las violencias de las mímesis totalizantes y simplificadoras, informa de una experiencia de la totalidad como lo siempre contradictorio, lo siempre sorpresivo, lo siempre en fuga: aquello que transgrede, de seguida, la noción de lo real hipostasiada.

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Gangotena, por su punto de partida inverso (desde el lado de acá), concentra en su obra lo que podríamos denominar una dialéctica de segundo orden o una suerte de contradicción superlativa que informa de un dinamismo mayor al interior de su ejercicio poético: a este dinamismo Burneo lo llama acrobacia. Veámoslo. Gangotena parte de la epigonía criolla y sus pacatas formas sensibles vinculadas a las complejidades andinas de manera siempre paupérrima. Sorprende, con lo que las ópticas obtusas podrían motejar de gesto aristocratizante: la mudanza de lengua en el acto poético, donde, como ya hemos adelantado, Burneo pone en claro un desplazamiento que va de la epigonía criolla al lenguaje elegido, y que del lenguaje elegido retorna hacia la epigonía criolla para profanar las clausuras de ésta, para horadarla disipando sus neblinas, preparando la visión para miradas mucho más profundas. Incorpora (Gangotena), a guisa de su íntimo Jules Supervielle, un debate con el automatismo vanguardista (a diferencia de, por ejemplo, César Moro, mucho más plegado a los manierismos vanguardistas) del que, como el propio Supervielle, regresa cambiado: en el rastreo de una dimensión humana que, más allá del gesto onírico y fragmentario, produzca sentidos renovados, una hermenéutica rejuvenecida desplegada hacia unas ideas de hondura y totalidad verdaderamente acontecimentales, extranjeras a lo que las coordenadas simbólicas de la cosmovisión central y periférico/epigónica podrían producir en términos de condiciones de posibilidad, no puede desconocer algunas de las sendas exploratorias trazadas por los exabruptos vanguardistas. Esto es, Gangotena vuelve del diálogo con el vanguardismo con una posición removida subjetivamente hablando en la que se alteran la epistemología como sitio de enunciación, igual que en la Naturphilosie o en el Canto a un dios mineral de Jorge Cuesta la poética es ciencia y la ciencia es poética, y la corporalidad como lugar de ubicación: postula una concepción de vida y enfermedad indisoluble que, semejante a la de Georges Canguilhem (1978), parecería cancelar los maniqueísmos dualistas que, trasladados a otros niveles culturales, son matriz de ciertas operaciones políticas jerarquizantes y discriminatorias. La acrobacia postrera de Gangotena lo devuelve, además, al español (odisea idiomática registrada en fragmentos culminatorios del poemario Absence, en su último poemario y en su Ars poetica que hace también las veces de testamento: la Hermenéutica de perenne luz). Esta tríada -del cambio de idioma, la

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poética que tensa la vanguardia con una hermenéutica de la totalidad y de la hondura, y el regreso a la lengua nativa- que se ensortija en un vórtice dialéctico y acrobático se constituye en un filo creativo propiciatorio: suscita una emergencia crítica en la forma de conciencia que le permite a esta, situada en el contexto andino, un modo renacido de relacionarse con el afuera a poetizar, esto es, una diataxis renacida que, haciendo gala de una virtuosa arte combinatoria, permite conjurar una diégesis enrarecida en extremo a un tiempo da pie a una mímesis otra. Corroborémoslo de la mano del propio Gangotena en ese poemario Absence (recogido en su Poesía completa) donde se abigarra con especial contundencia el viaje idiomático. Empecemos con un fragmento poético del francés traducido por Gonzalo Escudero: VII. Muchos insectos en torno de un solo pensamiento, Pero el mío está ausente bajo un cielo de lluvia. ¡Y tú has venido un día Pizarro, acicateado por una gran pasión! Como tú, fantasma, enciendo mi alma cerca de la floresta, donde tú amabas antes aspirar el tenaz aliento. Pero cuántas de estas pupilas nauseabundas me envuelven asimismo, Como en la hora de angustia, pesada y mala para tu espíritu. Y se demoran en dejarme languidecer. ¡Morir! Lejos de aquí los ojos Y el noble espíritu tan cerca de las cadenas que mi corazón han ceñido. Me llama la sangre. La sangre de los días de éxtasis, más acompasada que la mar, La sangre que no olvida jamás y que me invade con su color terrible. ¡Que este inútil viaje de los ojos termine pronto! Así el paciente corazón anhela volver a ver su sangre Y gozar de una codiciada sombra, más dulce y más propicia en su temblor de quejumbre ¡Mas que regrese pronto! Porque ella me espera, mi Esposa, con la mirada al viento allá lejos. Blanca y secreta como la nieve de una estrella nueva. […] La noche se torna más grande y más densa, buscando perdidamente sus sombras. Grande es mi infortunio. Abriré mi corazón a las bestias bravías que recorren el mundo como fuego de las arenas. ¿En qué nuevo espíritu buscaré alojamiento?

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El opio desperdiga mis sombras derramando sobre todo párpado su melancolía de ausencias. Y añade el corazón desesperado: “¡La ausencia! La ausencia sin límite. Oh cómo está lejano mi hogar de gloria. Oh labios amadores, las lágrimas no son tan profundas como para llorar tanto vuestro /alejamiento”. ¡El cielo endurecido no resuena! Flores sin tallo que tienen el peso de la sangre. Y la noche se vuelve más dulce, más próxima y más estrujadora: “¡Abrete! Abre tu sueño a mis alientos, Porque soy la libertad de las brisas.” (1978: 114,115)

Desde el francés va preparando entonces el vertimiento acrobático al español, periplo iniciático del que la lengua autóctona no sale indemne: se abre a nuevas connotaciones, descubre una semántica inusitada, una comprensión novel de la realidad circundante. Veámoslo en estos fragmentos culminantes del poemario Absence: XVII: (Texto original en español) Y yo seré la ardiente espina Cuyo nacimiento buscadle en las arenas del desierto. Iré por consiguiente sangre adentro y de soslayo, como van las tempestades. Y en mi ansiedad viajaré también en ondas graves Hacia aquel país lejano de toda mente, país de Khana, […] ¡Oh selva transparente, oh selva, tus vientos primordiales Han amanecido en mi recinto! […] Adelanta, alma mía, adelanta nemorosa en cielo bien profundo. […] Y más ventajas de tu sangre, Y tus cristales primorosos en los ríos elocuentes del espíritu. […] “Profesores, ya no vivo de vuestra ciencia cenagosa y de ignominia:

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[…] “Y tú, versificador inmundo, considera en mis pupilas esta terrible luz de inteligencia. […] “Miradme todos con asombro: en verdad, hasta entonces, no habréis visto soledad y faz más puras”. […] Para vosotros, digo: el cubil, los andrajos y como rótulo, un laberinto. […] Mis arterias, en la noche de mi cuerpo, se acrecientan de agonías. […] Aquí, en mi destierro, escuchando el vuelo de las breñas, en alas del torrente y el velamen caudaloso del espíritu, Te imploro y me estremezco, ¡oh bella del espíritu! (1978: 130-132)

Como el ademán naturalista de Buñuel en Las Hurdes o Los olvidados se sirve de una distorsión onírica -que abreva en La edad de oro o Un perro andaluz- para encender una inequívoca denuncia política que abre un abanico de semánticas históricas y estéticas alternativas, como la destrucción idiomática que César Vallejo emprende en Trilce activa una lectura bisoña de la singular novelística de este escritor peruano…; la tergiversación -en los ires y venires idiomáticos y en la tensión con el sinsentido, la fragmentariedad y el automatismo- de la subjetividad poetizante –hacia una hermenéutica científico/poética y hacia una situación del cuerpo como dialéctica enmadejada de vida y enfermedad- de Gangotena se nutre de la desnaturalización de la cultura consustancial al vanguardismo para catalizar una serie de contradicciones entre diversas mediaciones culturales que posibilita una apertura del dispositivo cultural hacia parajes insospechados y vedados de la vida como realidad (del lado de acá al lado de allá: para penetrar, entonces, hacia otros lados). Sin embargo, en ningún caso -se infiere de las argumentaciones de Burneo-, debe etiologizarse lo anteriormente argumentado. Esto es, historizarse en una secuencia de causas y efectos. La obra de Gangotena, su enclave poético situado en una suerte de retaguardia como señala Burneo de la mano de William Marx (2017: 86), no es causa inmediata de un indigenismo profundo sino la potencia de una activación lectora, activación lectora que, en colisión dialética con la experiencia del vanguardismo europeizante y de un singular vanguardismo quichua (como el del Boletín Titicaca), con pensadores y escritores

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heterodoxos (como José Carlos Mariátegui y Pablo Palacio) y con los modos de articular la dicción naturalista en Latinoamérica, se constituye como vértice de una cartografía donde se asientan condiciones de posibilidad crítica para fugarse consteladamente hacia formas de confrontar las violencias de lo construido como veracidad andina. Veámoslo en el ejercicio que efectúa Burneo a la hora de leer Huasipungo: […] bien podría ser un principio para la construcción del universo de Huasipungo. Allí el cuerpo en descomposición, untado por heces, llagado por gusanos, es sobre todo, el cuerpo social, y esto constituye la creación de una realidad que rebasa la mímesis demandada por el realismo, porque nos muestra un exceso, una capa menos de piel y una capa más de fluidos amalgamados con el lodazal. Ese cuerpo colectivo abierto, con una capa menos de piel, hará de su vulnerabilidad su fuerza. Es justamente el cuerpo lo que posibilita una aproximación vanguardista a Huasipungo: hay una materialidad a lo largo de la novela que hace del cuerpo el signo por excelencia para nombrar la crueldad. El mundo de la novela es un mundo bajo pegado al fango y sujeto a tempestad, lo que hace de la denuncia algo que rebasa lo social para interpelar a la vida misma, la vida desnuda. […] Asociar a Michaux con Icaza, por ejemplo, permite abordar lo literario fuera de esa suma, examinando una sensibilidad contemporánea que no se conforma con obedecer los regímenes de la representación y que busca decir otra cosa sobre la vida y sobre la resistencia, como es el caso de Huasipungo. (2017: 83, 84)

Quizá la tesis más valiente del libro de Burneo sea sugerir que la poesía de Gangotena, enmarañada en violentas acrobacias dialécticas, establece condiciones de posibilidad crítica que, fugándose consteladamente, sin ser un antecedente etiológico, devienen perspectiva y horizonte para relacionarse, en un acto de situación corporal, con los espacios culturales y materiales de un indigenismo no vulgarizado, no sometido política ni estéticamente: el que surge, en el contexto andino, de la voz acusatoria de Huasipungo y de El tungsteno, de la dialéctica inconciliable de los zorros que se inscribe en la mente y el cuerpo torturados de José María Arguedas; y, por qué no, en mi latitud mexicana, el que surge del indio profundo de Guillermo Bonfil Batalla, de las descripciones corporales tequitqui de los personajes rurales en la obra de José Revueltas, de los polvosos terregales anegados por la violencia de un origen que sólo puede ser (in)comprendido, a guisa de Mariátegui, como conflicto- de una ‘indianidad güera’ contenidos en los frescos literarios de la obra rulfiana:

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[…] cabe considerar aquí la crítica a un modo inmovilizante de representación que pretendía congelar al indígena dentro de una falsa cromática que negaba la complejidad de su circunstancia. Ésta es otra forma de relacionarse de manera múltiple con la modernidad: ir siempre hacia el espacio liminal de las formas imperantes, rechazar el indigenismo carnavalesco e ingenuo pero pensar en lo indígena, mirar hacia Francia pero apropiándose de sus estéticas, trabajar en las fisuras de los grandes relatos, incluido el del indigenismo. (Burneo 2017: 51)

4. El torbellino dialéctico en que la sume su investigación nos devuelve a una Burneo resubjetivada que regresa, más allá del visaje academizante, a una toma de partido poética. Lo ha hecho, empero, enmbozada en cierta timidez que, privándonos de la estatura de su lírica, ha preferido atrincherarse en el silencio de lo inédito. Transcribo, sin ánimo de incurrir en una indiscreción (teniendo en cuenta que ella me los compartió) unos fragmentos de sus Doce pasos de frontera. Fragmentos para doce cuadros de David Santillán, de su serie Fronteras que no precisan de glosa alguna para poner en claro su fuerza lírica. Una prosa (prosa poética o, sin más ambages, poesía) que despliega un contradictorio ritmo que no oculta su querencia al verso y que, en virtud de dicha contradicción, resulta mucho más feraz poéticamente hablando. Una potencia tropológica que hace casi palpable su verdad otra, que penetra hacia una dimensión alterna de una plasticidad casi tangible; más allá de los conceptos estancos…, hacia los pulsos indómitos del cuerpo, pulsos otros que se debaten entre la historia material, el tiempo y el espacio: Enero Hemos caminado por la tierra para buscar agua, para huir de la muerte, para acudir al amor que nos llama. Migramos porque imaginamos otros mundos para la vida y para otras vidas en el reino de este mundo. No tenemos otro. Primero fue migrar, luego la ley. Primero el movimiento, luego la frontera. Primero fue nuestro paso. Siempre nuestro paso. […] Abril ¿Cuántas fronteras puede guardar un cuerpo? Aquella que se pierde entre mi piel y tu territorio poroso. La babel membrana de nuestras lenguas. La cuerda que vibra en tu garganta. Aquella que bordea mi nombre para alcanzar, quizás, el tuyo. La que se abre, oceánica, entre el agua de tu paso y los ríos que atraviesan mis ancestros. Las cruzaremos una por una. Que lo sepan: las cruzaremos todas con nuestros papeles falsos. (Burneo, texto inédito)

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Sin embargo, lo que podrían parecer las dudas de un carácter huidizo, que prefiere rodear la pregunta antes que enfrentarla poéticamente, que prefiere esconderse tras otras formas más inscritas en las lógicas del valor de cambio y de la comunicación pedestre como la crónica periodística, no resultan ser tales, a mi juicio si se las aquilata intentando develar la transparencia profunda de dicho gesto, gesto que rehúsa el abandono completo en las arenas de la afectividad lírica. En una bellísima crónica sobre Leonard Cohen escribe, ofreciéndonos claves sobre la hondura de su gesto, “la poesía le pertenece al que no tiene nada, no a aquél que ha pensado conquistarla”, “la poesía se opone al poder como se opone a quienes han desechado la imaginación para situar el dato, la estadística y el concepto seco por sobre la fuerza de la palabra” (Burneo 16/11/2016) y, parafraseando a Badiou: “la relación entre poesía y comunidad es real […] un tenso, paradójico, violento amor por la vida en común; el deseo de lo que debe ser común y accesible a todos no debería ser apropiado por parte de los sirvientes del capital” (Burneo 16/11/2016). Burneo nos interpela con ideas como el deseo del comunismo y el comunismo del deseo, como la posibilidad de una imaginación democrática. Dichas ideas son introducidas de la mano de la inquisición poética. Esto guarda relación con el modo de enunciación que ella elige: aquel que mixture, como en el poema de Cernuda, pureza y amargura. La crónica poética. Es decir, el empeño de Burneo radica en desprender de las formas de la poesía el enclaustramiento en un falso lirismo, hipóstasis de un yo -que tamiza y desvirtúa el momento objetivo- tan rotundo como enclenque a la domesticación. Es decir, el empeño de Burneo radica en desprender de las formas de la crónica el enclaustramiento en una objetividad falsaria, hipóstasis de una idea de verdad que, fácilmente domable, interrumpe y cancela de seguida la posibilidad de formular la pregunta por otras capas de significado, la interrogación por otros ríos profundos de sentido. De nueva cuenta la dialéctica, la acrobacia de un funámbulo enunciante que, transfigurado en clavadista, horada la superficie del lago, aparentemente tranquilo, pero en realidad abatido por corrientes profundas. Introduce, así, la poesía en la crónica para rescatar a esta última de los circuitos de la reproducción de la subjetividad, una subjetividad que se autoconcibe en coordenadas de autonomía y libertad, pero que en verdad es únicamente una taylorización de la forma de conciencia, o sea, masa (la principal característica de la masa parece ser, entonces, ocultar su verdadera naturaleza, que

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albergaría la condiciones de posibilidad para el salto dialéctico hacia una nueva forma de conciencia, en una perversión que replica maquínicamente, técnicamente, la fantasmagoría de la subjetivación, de la individuación). Introduce, así, la crónica en la poesía para redimensionar a esta última más allá de la hipóstasis de la subjetividad vez con vez más ensimismada, más encerrada en sí misma, y, por tanto, vez con vez más transfigurada en idiolecto sectario, y, por tanto, vinculada, por otra vía, a la pura reproducción de la forma de conciencia, réplica que, en este caso se traduce en el ergástulo de la innovación formal, el cual, lejos de innovar, tan sólo reproduce y homogeneiza, y encapsula en un detenimiento escolástico, un gusto deficitario que no lucha por resolver su déficit en la historia. Burneo nos recuerda, como Lukács en el prólogo que redactó en 1962 para una reedición de su Teoría de la novela (2010: 18), que el auténtico arte no está comprometido con el cambio de la forma en un sistema de enunciación singular y recursivo, sino con el cambio del mundo comprendido en coordenadas de absoluto. El cuestionamiento que se hace desde esta crónica poética es el cuestionamiento por la emancipación del ser humano en todos y cada uno de los aspectos, éticos y patéticos, de esa totalidad que llamamos vida, emancipación que habita en la modernidad, a modo de promesa, desde los albores de ésta en cuanto cosmovisión y materialidad histórica.

5. La crónica poética de Burneo envida con una constelación dialéctica que apela a la dinámica contradictoria entre cuerpo, mujer, pueblo ancestral y territorio. Las fuerzas centrípetas y centrífugas que dimanan de este movimiento indetenible nos precipitan hacia paisajes inextricables para el sentido común y la vulgaridad de la cultura de masas, del torpe progresismo de una modernidad corrompida: las modos de ser de la sexualidad diversa, una configuración del cuerpo en contubernio orgánico con el mundo que desemboca en una neoconceptualización materno/territorial que, remontando un cauce cuasi umbilical, sanguíneo, visceral, telúrico, vernáculo…, alcanza una ancestralidad reprimida que se subleva, un modo de ser en la tierra monista, solidario, no agresivo, podría decirse que ‘sagrado’, que la cultura hegemónica ha apeado de su tren histórico/destructivo, pervertido y vetado… Y estos paisajes, que ansían desplegarse a lo largo y ancho del orbe como justicia y emancipación, encarnados en vindicaciones feministas, LGBTQ, denodadamente

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militantes, exhortan a una lucha que se translitera en anticapitalismo radical, antiextractivismo minero, reivindicación de la ancestralidad shuar, defensa de una contigüidad con la naturaleza sin concesiones (planteada en un marco que platica de hermandad y mutuo nutrimento, no en un marco secuestrado por las mímesis violentas del dominio y de la aniquilación disfrazadas de un progreso mendaz). Escribe y denuncia: El pueblo shuar es mucho más antiguo que Ecuador y Perú, países donde ha sido incorporado en el curso de las siempre conflictivas historias territoriales. Sus cerca de ochenta mil habitantes de hoy provienen de una larga historia de resistencia, primero, contra el imperio inca, luego, contra las invasiones coloniales del imperio español. Ahora, el pueblo shuar, sus federaciones y centros hacen política en sus propios territorios y en la ciudad para resistir los avances de la minería que destruirá sus territorios luego de haberse apropiado de ellos. (Burneo 23/04/2017)

Escribe y denuncia: El barquero del Hades se llamaba Caronte. El mito griego dice que era el encargado de guiar las sombras de los difuntos de un lado al otro del río Aqueronte, el río de las aflicciones. Hoy, en Azuay, aparecen estos otros Carontes anónimos. Son barqueros de mujeres asesinadas. Son ellos quienes han rescatado cuerpos de la presa Mazar. En Azuay – me dice cada persona con la que hablo en Cuencacada vez tiran más cadáveres al río, es algo que se sabe. (Burneo 25/09/2017)

A inicios de mayo, esta escena: hay bolsas de basura en el suelo, cerradas y acumuladas para tirarse. Dos niñitas de no más de cuatro años han abierto una de esas bolsas y han sacado una lata de atún vacía. Quieren comer de allí. Esas niñas pequeñitas están escarbando en la basura. En Tsuntsuim hay hambruna, pero nadie va a declarar estado de emergencia. (Burneo 19/03/2017)

6. Deseo cerrar este artículo retomando aquellas cavilaciones sobre mi lugar de enunciación en las que intentaba ahondar en el punto primero de este opúsculo. Deseo situarme en mi ensimismamiento detenido, en mi gran hotel abismo, no exento de cierta culpabilidad, al encarar el activismo arrojado de Burneo Salazar. Deseo traer a colación ese bilingüismo castrado, ese apartamiento de la vida, en el claustro de la ‘no acción’, ese encierro en la

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biblioteca de un viejo abuelo comunista del que quizá nunca he salido: porque esa era mi posición de resistencia, porque eso fue cuanto hizo que arrumbase, contra las presiones del mundo que circundaba, por derroteros bien diferenciados a los que ha caminado parte de mi generación, debatida entre el conformismo y el reclamo desarticulado. Y deseo volver a esto, porque como apuntaba al principio dialectizar la posición de mi conciencia receptora, de esta asunción del apartamiento contemplativo, desde su inutilidad, con el resuelto ejercicio de situación corporal y escritural que adquiere la obra de Burneo, acaso pueda tener un sorpresivo rendimiento, como profetizaba aquel ubérrimo Settembrini de La montaña mágica (Mann 1997: 389) que defendía una oxiomorónica contemplación activa, para que el pulso indómito que late en ésta sea, de continuo, reactualizable, impidiendo una probable reconducción en mecánicas más dóciles para los usos del capital tardío. Quiero seleccionar algunas de las tesis sostenidas en las páginas de Jameson sobre Lukács referidas en los acápites inaugurales de este texto. Éste sostiene que las preguntas sobre el sentido profundo de la vida que formula Lukács, desde la óptica de la inteligibilidad y la totalidad, han sido hipalagéticamente desvirtuadas: se ha confundido semánticamente totalidad con totalitarismo. La inquisición de Lukács, propendente a las ideas de unidad y de absoluto, es más bien un vector que activa la contradicción dialéctica en cuanto continua dinamización que imposibilite el quietismo falseante de la hipóstasis en la mediación vacía. Su defensa del realismo crítico, encontrada al vanguardismo, obedece a una fe que cree con firmeza en las posibilidades dialécticas de esta mímesis/diégesis, frente a lo que él considera el e(s/x)tatismo embelesado en la forma y el subjetivismo de la vanguardia. Podemos pensar, contra Lukács, que el vanguardismo es dinámico, radical y dialéctico, incisivo hasta la hondura requerida, pero esto lo único que trueca es el objeto en el que se actualiza la demanda de la dimensión crítico/dialéctica al artefacto estético y no la demanda en sí. Jameson agrega, también, algo muy interesante en lo que a esto concierne: lo que se le criticaba al realismo, por parte de los apologetas de la vanguardia adversarios de Lukács, es decir, el no tener la radicalidad política e irreverente canónicamente hablando del estrépito vanguardista, hoy es predicable de la vanguardia misma al estar aprehendida por el canon: se la lee de manera escolarizada y como clásico; sobre esto volveré más adelante. La teoría

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de Lukács, explica un muy atinado Jameson para las mentes obtusas, adalides de las bibliografías actualizadas, amigas del fácil carpetazo a los grandes pensadores, del descuidado y superfluo olvido de éstos, sería una especie de Standpoint Theory en la que el anhelo de una justicia/totalidad interdicta la quietud en el instante identitario como sutura simbólica (sutura que quiere imponer su huera mediación como único tamiz de la totalidad). La probable aprehensión y reconducción del trabajo de Burneo vendría de dos malintencionadas lecturas: 1) en una época en la que, como le ha sucedido a la vanguardia, la fragmentariedad, el psiquismo, la incursión de lo grotesco, el sinsentido, lo inútil, lo inacabado, lo enigmático, lo distópico…, han extraviado su embate crítico, se han metamorfoseado en aséptico entretenimiento, en pan y circo, una obra que combina muchas de estas poéticas podría ser idénticamente dúctil para los caprichos del capital tardío; 2) su nítida ubicación a favor de los márgenes, de las diferencias, de lo que no ocupa el sitial de lo ensalzado por los bienpensantes y por la hegemonía en turno, podría ser interpretado como la cerrazón en un discurso identitario, talibán, autopoético que, enceguecido, vela nuevas vislumbres, nuevas aristas del significado. Creo que la altura ética de Burneo se basta por sí misma para evadir unas probables lecturas reconductivas, ‘docilizantes’, ‘desradicalizantes’, que pretende descubrir (de modo bienintencionado, tratando, justo, de interdictar este género de lecturas) una forma de conciencia apartada de la acción, por la circunstancia, es cierto, pero apartada al fin y al cabo, como la mía; dicha forma de conciencia, por lo demás, es perfectamente consciente, valga la redundancia, de que la asunción de una postura resistente jamás será comparable a la actividad revolucionaria. Sin embargo, de lo que se trata es de, desde ese apartamiento, desde esta postura resistente, contribuir con una contradicción dialéctica que despierte en la propia obra de Burneo la línea de fuga que le permita escapar de todo conato de sojuzgamiento, y no del mero reconocimiento de una superioridad moral. Y para ello hay que desempolvar el concepto de retaguardia en la obra de Gangotena. Tras la acrobacia bilingüe y el fatigoso diálogo con una vanguardia obsesionada en la ruptura más que en la propuesta, que regresan un cuerpo situado en la tesitura andina, Gangotena –lo colijo del trabajo de Burneo- inquiere por una totalidad que despliega, anchurosa ante sus ojos, la ignota

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inmensidad de los Andes, que empata ciencia y poesía, que hermana vida, muerte y enfermedad. Esta retaguardia de Gangotena que propende a la totalidad, la hermenéutica de su perenne luz, nos hace pensar el camino errado que ha recorrido gran parte de la crítica contemporánea: ésta, sumida en su gran hotel abismo particular, se obstina en la pesquisa de la radicalidad de la pregunta, descuidando la radicalidad del posicionamiento, en la radicalidad especulativa, en vez de en la radicalidad de la situación. La retaguardia de Gangotena, subsumida de la investigación de Burneo, contesta a este desvío teórico. Es la pregunta por el todo la que auspicia la emergencia de lo distinto. La pregunta por lo distinto tenderá a imponer su diferencia, su mediación cultural, su forma que, a fuerza de autoproducirse, se torna vacía: en resumidas cuentas, la pregunta por lo distinto genera la afirmación hipostasiada en lo distinto como todo. En la ruta crítica que instaura esta inquisición utópica por la restauración de una totalidad vetada, la crónica poética de Cristina Burneo Salazar -fragmentaria, lírica y objetiva, a veces de un crudo naturalismo, distópica, prejuiciada por los coseletes estructurales en que acogota un medio de comunicación masiva que, por ende, reproduce la forma de conciencia masivamente- se redime a perpetuidad en noveles luchas, como principio de esperanza para todos, nosotros, sus lectores.

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NOTA 1

Al referirme al imperialismo surgido de las revoluciones ilustradas, parecería que estoy malpensando uno de

los argumentos del libro, aquél en el que Burneo retoma las reflexiones de Marco Thomas Bosshard en La reterritorialización de lo humano: “Para ello, es necesaria una redención de la modernidad, sobre todo en los Andes: <<resulta poco adecuado seguir percibiendo la modernidad latinoamericana como una especie de modernidad deficiente […] hay que admitir la existencia de modernidades múltiples y alternativas, de modernidades muy diferentes de la modernidad occidental normativa>> (2013: 11)” (Burneo 2017: 49). Es decir, en el despliegue de mi argumentación, trayendo a las mientes términos como “epigonía” y sentencias como “el imperialismo surgido de las revoluciones ilustradas” estaría sugiriendo y connotando la existencia de una modernidad deficiente en latitudes latinoamericanas. Lo hago de manera por completo deliberada. Juzgo que la metáfora rizomática de la multiplicidad moderna desatiende la sintaxis jerarquizada, en perpetua lucha, que despliega la modernidad en su desenvolvimiento histórico. En esta sintaxis jerarquizada resultan por igual torales la idea de tiempo o estación y la de lugar o posición hegemónica. Dicho de manera acelerada en demasía: Latinoamérica es el lenguaje discreto del montaje discursivo de la primera estación de la modernidad, esto es, el lugar subalterno sobre el que se erige la posición hegemónica de España (la España cruzada, evangelizadora y extractiva). Este dispositivo cosmovisional, epistémico, de la primera estación cede el lugar de la hegemonía a aquél urdido por las revoluciones ilustradas de la segunda estación que se convertirán en revoluciones técnicas en la tercera (iluministas, civilizatorias y extractivas). Estas revoluciones parasitan el orbe con un segundo tipo de imperialismo. Latinoamérica, sí, experimenta una advocación de la modernidad, pero de seguida en calidad de negativo de la fotografía, es más, yo añadiría: en calidad de un alambicado y barroco negativo del negativo (al ser primero dominio de España, y al quedar desplazada ésta en el concierto de la hegemonía, verse obligada a incardinarse –Latinoamérica-, en calidad de economía dependiente, ofreciendo su potencial extractivo, en el novel concierto de negativos; todo lo anterior, además, con la enmarañada complejidad de que ella misma es protagonista de una revolución ilustrada que podríamos catalogar de fallida en términos de la incorporación al tejido de la hegemonía, curiosamente, por rebelarse contra un amo en franca decadencia), para acuñar un tropo que trate de dar cuenta de una historicidad y de una ubicación material particularmente complejas. Que sea Joseph Conrad, deliquio de Said, un escritor que comparte con los autores dilectos de Burneo la experiencia del descentramiento bilingüe, en una novela como Nostromo, que coquetea con la posibilidad de ser trasunto literario de Ecuador (o de Colombia, o de otras latitudes latinoamericanas), semeja ser un feliz albur. Al análisis de Conrad realizado por Said que descubre, por supuesto, la mirada trastocada del polaco sobre este imperialismo moderno de segunda ola, pero sustentando el descolocamiento mencionado en una perspectiva más bien cosmovisional, habría que añadir un escrutinio efectuado a guisa de Burneo, es decir, desde el arte textual confeccionado materialmente desde la experiencia bilingüe (de seguida pienso que un escrutinio de este tipo debe extenderse por razones obvias, en los terrenos de la ciencia social, a una obra tan imprescindible como la de Bronislaw Malinowski): convirtiendo los artefactos literarios de Conrad en un sitio

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propicio para el desmontaje de la sintaxis moderna. A los delirios de Marlow y Kurtz (en un Congo al que se alumbra con promesas emancipatorias y civilizatorias: es decir, se lo subyuga y se lo expolia), arrostrando una manifestación de la ‘otredad más otra’ en su extrema desnudez y crudeza a la hora de revelarse (este arrostramiento de la ‘otredad más otra’, por otra parte, es traducido magistralmente por Conrad a la estratificación, consciente/inconsciente, en que se desenvuelve la forma de conciencia oriunda de la modernidad; Kurtz y Marlow confrontan la liberación esquizoide de su represión, de la otredad que les es intrínseca, esto es: de la locura), una suerte de negociación con la violencia divina en sentido benjaminiano, Conrad contrapone, en Nostromo, un trato con una otredad que proviene de uno de los pliegues negativos de la modernidad en su desdoblamiento histórico, esto es, en él se agavillan tensiones dialécticas menos maniqueas, quizá, pero mucho más enmadejadas. Conrad cuenta la historia de un paraje latinoamericano, o sea, inscrito a manera de negativo en el montaje discursivo/material de una modernidad que fue hegemónica pero que, con el avance del tiempo, resulta ser deficitaria. El conflicto de este paraje reside en que, a través de un modelo de economía dependiente, como cualesquier colonia asiática o africana recién incorporada al concierto del imperialismo industrial, se debate por incardinarse en nuevo tipo de modernidad. En él (el conflicto), juega un papel importante el dispositivo de la revolución ilustrada fallida en términos hegemónicos que encabezaron los países latinoamericanos. Esto es, hablamos de una posición negativa que pugna por erigirse en positividad frente a una positividad (la de España) que comienza a ocupar una posición negativa. Por tanto, desde esa espiral de la doble negatividad, intenta trabar relaciones con una nueva positividad hegemónica (ya resuelta en términos de la tercera estación de la modernidad, esto es: iluminismo, neotécnica e imperialismo industrial) a través de la oferta extractiva de su riqueza material. Los ideales antaño insurgentes, ilustrados y populares, se convierten en tiranía esbirra que facilita las políticas de extracción: la voz de la soberanía popular se transfigura en salvoconducto de la rapiña. Por consiguiente, no hay, a mi juicio, parataxis rizomática de modernidades (positivas) que cohabitan, sino una hipotaxis jerarquizada que libra una lucha a muerte, por razones de posición (positiva o negativa), en cada uno de los pliegues de una ardua constelación, no propiamente secuenciable etiológicamente hablando, de afirmaciones, oposiciones, resoluciones y fugas no resueltas.

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Joseba Buj

Horkkeimer, Max / Theodor W. Adorno (1994), Dialéctica de la ilustración. Fragmentos filosóficos, traducción de Juan José Sánchez, Madrid, Editorial Trotta. Jameson, Frederic (2009), Valences of the Dialectic, Londres, Verso. Lukács, Georg (01/03/2009), “Acerca de la pobreza del espíritu” [1911], Introducción y traducción de Miguel Vedda <http://www.herramienta.com.ar/teoria-critica-y-marxismooccidental/el-joven-lukacs-y-las-tentativas-de-superacion-de-la-etica-trag> (último acceso el 10/04/2018). -- (2010), Teoría de la novela. Un ensayo histórico filosófico sobre las formas de la gran literatura épica, traducción de Micaela Ortelli Buenos Aires, Ediciones Godot, Colección Exhumaciones. Mann, Thomas (1997), La montaña mágica, México D.F., Editorial Porrúa. Marcuse, Herbert. (1969), El hombre unidimensional. Ensayo sobre la ideología de la sociedad industrial avanzada, quinta edición, traducción de Antonio Elorza México D.F., Editorial Joaquín Mortiz. Said, Edward W. (2001), Cultura e imperialismo, traducción de Nora Catelli, Barcelona, Anagrama. -- (2016) Orientalismo, traducción de María Luisa Fuentes, México D.F., Penguin Ramdom House.

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Acrobacia dialéctica hacia un principio de esperanza: crítica, poética y toma de posición política en la obra de Cristina Burneo Salazar

Joseba Buj es doctor en Letras por la Universidad Iberoamericana Ciudad de México, en cuyo departamento de Letras se desempeña como profesor de tiempo completo. Entre sus publicaciones académicas ha coordinado los libros (y escrito en ellos) La fábrica del porvenir (UIA, 2011), Universidad Desbordada (UIA, 2013), Im/pre-visto. Narrativas digitales (Ariel, 2016), El colapso de la representación. Violencias maquínicas en América Latina (UIA/Fractal, 2018), y coordinado ( y escrito en ella) el número monográfico de la revista Fractal Euskadi después de ETA (Fractal No 65, 2012). Recientemente, ha publicado el libro Cartografía del desencuentro (Universidad Veracruzana, 2017), los artículos Carlos Blanco Aguinaga: de la crítica a la creación (Ínsula No 851, 2017), La poesía de Ramón Xirau y Jaime Gil de Biedma: dos alejadas expresiones de la posguerra española (Revista Sincronía 72, 2017), y editado el libro Viajes de ida (novela histórica) del autor Carlos Blanco Aguinaga (Renacimiento, UIA, UCSD, 2018).

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Poesía carcelaria, repertorio poético y subjetividades en conflicto: el poemario Alde erantzira nabil de Ekhiñe Eizagirre

Poesía carcelaria, repertorio poético y subjetividades en conflicto: el poemario Alde erantzira nabil de Ekhiñe Eizagirre 1

Iratxe Retolaza Gutierrez Universidad del País Vasco / Euskal Herriko Unibertsitatea UPV/EHU

Resumen: En el campo de la literatura vasca la poesía carcelaria ha alcanzado una considerable incidencia desde que el conocido poeta Joseba Sarrionandia fuera encarcelado, y publicara Kartzelako poemak [Poemas desde la cárcel] (Susa, 1992). Tras ese hito literario, se han publicado con regular idad poemarios carcelarios tanto en editoriales literarias como en plataformas alternativas; pero hasta el 2016, año en el que Ekhiñe Eizagirre presentó Alde erantzira nabil [Camino del revés] (Susa, 2016), no se publicó ningún poemario carcelario de autoría femenina. En este artículo se analiza el poemario de Ekhiñe Eizagirre, comparándolo con los símbolos e imaginarios construidos en poemarios carcelarios anteriores, para mostrar cómo ha renovado ese imaginario colectivo tanto desde una perspectiva femini sta, como desde lo comunitario. Para ello, se analizan los discursos y posiciones genéricas de los sujetos encarcelados, y a su vez, se reflexiona sobre la posición de estos repertorios poéticos en el campo literario vasco. Palavras clave: Poesía carcelaria, construcción de género, campo literario vasco, incidencia política

Abstract: Prison poetry has had a considerable impact in the Basque literary field ever sincethe well -known poet Joseba Sarrionandia published Kartzelako poemak [Poems from the jail] (Susa, 1992) during his imprisonment. Since that literary milestone, several prison poetry books have been published both by publishing companies and by alternative platforms.; However, it was not until 2016, when Ekhiñe Eizagirre published Alde erantzira nabil [I walk upside down], that the first prison poetry book by a female author was published. In this article, the poetry collection by Ekhiñe Eizagirre is analyzed through a comparison with the symbols and imagery from previous examples of prison poetry. The analysis shows how she innovated this

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collectively produced imagery from a feminist perspective and from within the community. To this end, this paper analyses the gender discourses and opinións of the imprisoned subjects, and reflects on the position of these poetic repertoires in the Basque literary field. Keywords: Prison poetry, gender construction, Basque literary field, political

1. Introducción This too I know ─ and wise it were If each could know the same─ That every prison that men build Is built with bricks of shame, And bound with bars lest Christ should see How men their brothers maim. With bars they blur the gracious moon, And blind the goodly sun: And they do well to hide their Hell, For in it things are done That Son of God nor son of Man Ever should look upon! Oscar Wilde, The Ballad of Reading Gaol, 1897.

Las prisiones, como dispositivos disciplinarios, instauran el cautiverio de las personas condenadas, a la vez que regulan las subjetividades de esas personas encarceladas, a quien 193 se les niega la voz pública, o se les obstaculiza la comunicación con el exterior. Como declamó Oscar Wilde, toda prisión está construida con el objetivo de ocultar la violencia física y simbólica que se ejerce tras los muros, y para ello, la institución penitenciaria entorpece todo discurso testimonial de los sujetos encarcelados. Como gesto de resistencia o subsistencia, han sido muchas las personas encarceladas que han hecho uso de la palabra escrita para dar testimonio de su cautiverio, para intentar despojarse de esa posición

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subalterna. Como advierte Estibaliz de Miguel (2016), escuchar esas voces y esas experiencias silenciadas nos ayuda a comprender y aprender: Siguiendo a Gayatri Spivak, se trata de romper con el silenciamiento que padecen determinados grupos sociales, un silenciamiento del que todos y todas de alguna manera somos cómplices, y empeñarnos en ‘la labor de ir descifrando las palabras ajenas desde una institución académica´ (2002: 213) o desde el lugar político que cada cual ocupe, podríamos añadir . (De Miguel 2016: 16)

Estos testimonios escritos, aun plasmándose muchas veces en géneros literarios (crónicas, narraciones, poesía, etcétera), habitualmente se han situado fuera del campo literario (Lourido 2012, 2015). Sin embargo, como expondré en este artículo, en la literatura vasca se han publicado con regularidad poemarios carcelarios tanto en editoriales literarias como en plataformas alternativas, y la poesía carcelaria ha obtenido una cierta posición de campo, gracias a la consolidación de ese repertorio poético. No obstante, hasta el 2016, año en el que Ekhiñe Eizagirre presentó Alde erantzira nabil [Camino del revés] (Susa, 2016),2 no se había publicado ningún poemario carcelario de autoría femenina. Estibaliz de Miguel subraya que en el caso de las mujeres presas, el silenciamiento y el aislamiento es mayor, y por tanto, es necesario activar una escucha política que reconozca su capacidad de agencia: “Se trata no sólo de aliviar sus padecimientos sino también de crear cauces para que ellas puedan colaborar activamente en la descripción de la realidad, en la propuesta de alternativas al actual sistema punitivo y en el camino hacia una sociedad sin cárceles” (De Miguel 2016: 30). En ese contexto, en este artículo activaré esa escucha política, para comprender cómo ha contribuido este poemario a repensar el imaginario genérico que se había consolidado en los poemarios carcelarios anteriores.

2. La institución penitenciaria y las experiencias carcelarias Antes de centrarme en dicho acontecimiento literario, esbozaré unas breves notas sobre los estudios antropológicos y sociológicos. Desde que Michel Foucault publicó su estudio sobre las instituciones penitenciarias, Surveiller et Punir: Naissance de la prison, en 1975, el interés por las experiencias carcelarias ha ido en aumento. En esta conocida obra, analiza la evolución de los sistemas penales occidentales durante la era moderna, y

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concretamente, en el cuarto capítulo trata con detenimiento los mecanismos disciplinarios y represivos de la institución penitenciaria. Como afirma Foucault (2012: 159), la prisión asume la función de aparato del Estado para transformar a los individuos, y para ello reproduce, acentuados, todos los mecanismos disciplinarios que aparecen en la sociedad. Entre ellos, la regulación de género. De hecho, en la actualidad las prisiones son uno de los lugares donde la segregación de género se instaura con mayor rigidez, y los roles de género están fuertemente marcados. En consecuencia, en los estudios antropológicos y sociológicos feministas se han desarrollado múltiples investigaciones sobre esos mecanismos disciplinarios patriarcales, y sobre las experiencias carcelarias de mujeres presas (y sus formas específicas de resistencia). En las dos últimas décadas diversos trabajos (Bosworth 1999; Almeda 2002; Matthews 2003; Hernández Holgado 2011; Juliano 2011) han criticado la visión histórica foucaultiana, puesto que al describir la evolución de los sistemas de cautiverio, no atiende a las instituciones que históricamente mantuvieron cautivas a mujeres, ni a experiencias carcelarias propias de las presas (apud Ruiz Torrado 2017: 43-56). Gracias a todos esos trabajos, se han detectado las discriminaciones a las que se ven sometidas las mujeres por parte del sistema penal y penitenciario (dispersión territorial, actividades formativas feminizadas, régimen de visitas orientado al cuidado, etcétera). Concretamente, en esa línea teórica se han desarrollado en los últimos años varias aportaciones del grupo de investigación de Antropología Feminista (AFIT) de la UPV/EHU, dirigido por Mari Luz Esteban. Destaca entre los trabajos realizados, la tesis de María Ruiz Torrado (2017), que aborda las formas de resistencia de las presas en cárceles vascas; y entre las que se mencionan tanto la creatividad como la escritura (Ruiz Torrado 2017: 235-276). Ese interés de la antropología feminista por aproximarse a las experiencias de mujeres presas, ha confluido con el proceso de resolución del conflicto político-armado del País Vasco. Desde que en 2010 ETA anunciara el alto el fuego definitivo3, se han desarrollado diferentes foros para elaborar una revisión del pasado y atender las consecuencias del conflicto. Como es conocido, en los Estudios de la Memoria o en los procesos de reconciliación, al analizar pasados bélicos o pasados en conflicto, se han desarrollado investigaciones y trabajos específicos tanto de cárceles de mujeres, como de las situaciones

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de violencia específica contra las mujeres (Hernández Holgado 2011; Grau Biosca 2014). Desde esa perspectiva feminista, en el País Vasco se han activado en los últimos años diferentes foros para realizar un análisis con perspectiva de género tanto del conflicto armado como del proceso de resolución. Se han generado espacios de debate dinamizados por movimientos sociales, como por ejemplo Euskal Herriko Bilgune Feminista, el movimiento feminista independentista 4; o foros articulados en instituciones públicas, como por ejemplo Emagune (2014), en la UPV/EHU, que ha hecho públicas varias reflexiones sobre el proceso de pacificación desde una perspectiva de género.5 E incluso, se han activado espacios de encuentro entre agentes académicos y militantes del movimiento feminista. Cabe destacar la aportación de las Jornadas de Metodología de Investigación Feminista organizadas por Hegoa (UPV/EHU) [Instituto de Desarrollo y Cooperación Internacional] y SIMReF [Seminario de Metodología en Investigación Feminista], que tanto en la edición de 2014 como en la edición de 2018 abordaron el tema de la violencia y los contextos políticos en conflicto desde una perspectiva metodológica feminista, y gracias a los que se socializaron las investigaciones e intervenciones feministas realizadas en otros procesos de resolución contemporáneos, como Colombia (Grau Biosca 2014). Esas dinámicas han generado un interés y una necesidad de ahondar en esas realidades, y algunas investigadoras han dirigido sus tesis doctorales a analizar desde una perspectiva feminista experiencias carcelarias en el contexto del conflicto armado (entre ellas destacan las aportaciones de Olatz Dañobeitia, 2018). Considero que es concretamente ese humus sociopolítico y sociocultural el que alentó la propuesta poética de Ekhiñe Eizagirre, y el que favoreció la publicación de este primer poemario carcelario de autoría femenina. Ekhiñe Eizagirre fue detenida y encarcelada en el Estado francés en mayo de 2013, acusada de ser miembro de ETA; y estando a la espera de juicio, escribió ese poemario en la cárcel de Fresnes (a las afueras de París). La juzgaron en 2017, y la condenaron a seis años de prisión por pertenencia a banda armada. En la actualidad está en libertad, tras haber cumplido íntegramente su condena. Cabe destacar que Ekhiñe Eizagirre antes de estar en busca y captura (desde 2010), era militante feminista en Euskal Herriko Bilgune Feminista. Tras su detención, retomó esa militancia feminista, y participó activamente desde la cárcel

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en el movimiento feminista (dentro de sus posibilidades), escribiendo textos de opinión o creando imágenes para chapas, carteles o trípticos de jornadas feministas 6. Para poder comprender el contexto en los que emergen los poemas de Eizagirre, a continuación reuniré las discriminaciones a las que fue sometida en su encarcelamiento en el Estado francés, partiendo de las reflexiones y consideraciones desarrolladas en los estudios antropológicos y sociológicos feministas: La dispersión territorial: generalmente hay pocas cárceles específicas para mujeres, las presas están normalmente en módulos dentro de las cárceles para hombres. (Manzanos 2016: 42)

El enfoque resocializador de género: La mayoría de programas educativos, formativos y laborales, así como la oferta cultural y recreativa , refuerzan su papel tradicional a través de actividades y cursos como tintorería, costura, maquillaje, cerámica o macramé, que parecieran más encaminadas a su feminización que a una teórica resocialización (De Miguel 2016: 20).

El enfoque moralizador, una doble condena: Dicho de otro modo, históricamente las mujeres han sido penadas por conductas no castigadas en los hombres, tales como el adulterio, el concubinato, la separación, el divorcio o la prostitución (Yagüe 2006). Así las cosas, las penas impues tas a las mujeres tienen un carácter moralizador: son una mezcla entre castigo y pecado. La sanción sufrida por las mujeres va más allá de la infracción legal, pues también se le impone un castigo por haberse alejado de los roles que le impone la sociedad. (Martínez Pérez 2016: 56)

Sentimiento de desarraigo familiar: “En las cárceles de hombres las familias son sentidas como el apoyo y el sostén de los presos durante la condena. Sin embargo, en las cárceles de mujeres las familias son sentidas como aquello que se ha abandonado y causa de culpa permanente” (Sainz de Rozas 2016: 77-78). La privación de la sexualidad: si en toda cárcel la sexualidad está regulada y vigilada, en el Estado francés se agrava la situación, porque no están permitidas las relaciones

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sexuales en los vis a vis (EMAGIN/EHBF 2017: 28). Evidentemente, el hostigamiento es mayor en el caso de las relaciones homoeróticas: Por último no podemos obviar, otro de los exponentes más destacables del carácter heteropatriarcal de la cárcel como es l as situaciones de discriminación que frecuentemente sufren las mujeres por el hecho de tener relaciones afectivas no heterosexuales a la hora de poder acceder a comunicaciones vis a vis e íntimas con sus compañeras sentimentales. (Manzanos 2016: 46)

Las presas de ETA, regímenes de cautiverio extremos: por el carácter del delito, a las presas de ETA se les aplica la legislación antiterrorista 7, y por consiguiente, la experiencia carcelaria es más extrema: control mucho más severo (se les intervienen todas la s comunicaciones, y se determina cuántas cosas y qué cosas pueden tener en la celda), constantes cacheos, mayor aislamiento, y cumplimiento íntegro de la condena (Martínez Pérez 2016: 62-64). Como reivindica Angela Davis (2016: 103-104), es necesario concebir esas capas de violencia a las que son sometidas las mujeres presas, para poder comprender las complejidades de los procesos de represión política. En el caso que nos ocupa, comprender esas capas de violencia a la que ha sido sometida Ekhiñe Eizagirre, es crucial para comprender cómo ha articulado la resistencia poética y la agencia política.

3. Literatura carcelaria, repertorios poéticos y campo literario En el ámbito de la teoría literaria todavía escasean los estudios exhaustivos sobre la literatura carcelaria, pero en las últimas décadas se han desarrollado importantes aproximaciones críticas. Comenzando por los primeros estudios sobre la literatura francesa (Brombert 1976), influidos por la repercusión de los estudios foucaultianos, hasta la obra pionera de Maria José de Queiroz (1981), que realiza una revisión histórica minuciosa de la literatura carcelaria, atendiendo a autores de diferentes épocas y sociedades. 8 En estas aproximaciones críticas, han recibido especial atención los textos publicados por escritores consagrados 9 o por reconocidos militantes sociales y políticos. Es decir, se ha prestado atención a los sujetos encarcelados que ya dotaban de cierto capital simbólico (cultural o político), que avalaba bien el interés literario bien el interés testimonial de dichas obras.

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Según Ioan Davies (1990: 7), algunas culturas han mostrado más interés por la literatura carcelaria (como Francia, Rusia o Sudáfrica). Evidentemente, en las últimas décadas, los Estudios de la Memoria que se han centrado sobre todo en conflictos políticos, se han aproximado a la literatura carcelaria (como literatura testimonial). De esa manera, se ha extendido el interés por la literatura carcelaria: por ejemplo, en la literatura brasileña (Ovídio Poli Junior 2009), la literatura argentina (Amandine Guillard 2015), la literatura irlandesa (McCann 2012, 2015), etcétera. En algunas de estas aproximaciones literarias también se ha desarrollado una perspectiva de género, sobre todo en los contextos en que se han generado dinámicas sociales para analizar el conflicto desde una perspectiva feminista. En la mayoría de estos trabajos se menciona la necesidad de definir y delimitar la literatura carcelaria, como un género literario que se expresa en diferentes tipologías textuales (cartas, crónicas, diarios, manifiestos, poesía, narrativa, etcétera). En estas aproximaciones críticas se enumeran las siguientes características de la literatura carcelaria. En lo que a la difusión se refiere, los escritos carcelarios no se suelen publicar en plataformas literarias de prestigio, muchas veces sufren la censura, y muchas otras, se publican en plataformas alternativas de movimientos sociales o políticos, por su carácter contestatario (Lourido 2012). No suelen compartir el mismo circuito que otras obras literarias. Maria José de Queiroz afirma que: Não convém, isso posto, abordar-lhes os escritos do cárcere com o mesmo interesse estético com que nos aproximamos de suas obras. Tolhido na sua liberdade, colido na rede do poder, o escritor aliena se ao mando que o subjuga. Estranho à própria inteligência, destituído da identidade pessoal, que o situa no espaço e no sistema: de infrator, inicialmente, transmuda -se em delinqüente; de detento ou subversivo, em dissidente ou revolucionário […]. Por isso, as páginas escritas nas celas estreitas e mal iluminadas, à míngua de todo estímulo intelectual, nem sempre instruem acerca de autores, enquanto artistas e criadores. Instruem-nos, sim, na disciplina monstruosa cujo exercício se funda nas prerrogativas do mando. Seu interesse? O protesto, a denuncia, o desabafo […] Ao réu, ou vítima, destituído de direitos, não se concede palavra. E, proferida, continuará inédita. Sem qualquer ressonância. A literatura do cárcere – memórias, cartas, confissões, libelos, denuncias, manifestos – dificilmente logra, por essas e mais graves razões de sigilo, censura ou segurança nacional, divulgação imediata. Se publicada, a distância que a separa do tempo e lugar de origem age em detrimento da

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sua eficácia. Destituído do vigor da atualidade, o testemunho político adquire, compensadoramente, importancia histórica, arqueológica às vezes, de nefa sta memória. (Queiroz 1981: 20)

En lo que a la posición enunciativa se refiere, el encarcelamiento del escritor / de la escritora marca fuertemente el pacto de lectura. Como afirma Ioan Davies (1990: 9), la persona presa es una otra marginalizada, una subalterna que según el sistema penal y penitenciario no tiene capacidad o legitimidad para representarse a sí misma. En opinión de Davies (ibídem: 9), es una tradición cultural a tener en cuenta y a analizar: porque los sujetos encarcelados lejos de admitir silenciosamente su destino, han luchado por erigirse en sujetos carcelarios, alzando la voz, para mediante la palabra, crear espacios de resistencia. A su vez, la circunstancia vital del escritor / la escritora condiciona la experiencia lectora, porque nos remite a un sujeto privado de libertad, con quien podemos compartir o no compartir experiencia, pero cuya credibilidad biográfica no cuestionamos, y cuyas palabras, por el mero hecho de haberse enunciado en cautiverio y haber transcendido los muros, portan una carga tanto testimonial como performativa. Toda literatura carcelaria, toda palabra carcelaria, nos interpela directamente, generándonos preguntas sobre la libertad, sobre nuestra posición social y espacial, sobre el sistema penitenciario, sobre la subalternidad. En lo que a las formas discursivas se refiere, en todas estas aproximaciones críticas se subrayan ciertos mecanismos que son constantes en obras escritas en prisión. La literatura carcelaria es principalmente autorreflexiva y autoafirmativa (ibídem: 235). La experiencia carcelaria es tan fuerte que al sujeto carcelario le es imposible tratar la experiencia con objetividad y distancia: O prisioneiro, dominado pelo sentimento de impotência, desligado do passado e do futuro, obrigado a assumir, no presente, uma nova identidade, nem sempre consegue recuperar o grau de objetividade (ou de lucidez) indispensável para transformar dúvidas e contradições em verdade – a sua verdade. O que vale dizer, a sua versão, equilibrada e real, da experiência vivida. Daí, a falência de muitos. E, sobreleva notar, mesmo o escritor de ofício, inibido pelas condições que o exoneram do papel de espectador, transformando-o em ator, sofre a influência desmoralizadora da prisão. À mercê da máquina carcerária, num diferente aglomerado humano e social, sujeita -se, ao expressar-se, a bem distintas exigências [...]. Acreditamos que a maior dificultade do artista, ou criador, em atingir um conhecimento equilibrado do que é e de quem é, resulte na situação anômala em que se encontra,

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sendo ele próprio parte integrante do todo que determina a significação dos fenômenos e dos mecanismos de comportamento dos seres que com ele convivem (Queiroz 1981: 21).

Asimismo, la escritura carcelaria tiende a la siguiente dualidad: la posición autorial es tanto solitaria como grupal. Según Queiroz (ibídem: 54), aunque el grupo no esté organizado, la pertenencia a una comunidad (los sujetos encarcelados, los sujetos privados de libertad) está muy presente en la escritura carcelaria. De esa manera, el bien personal se identifica con el bien común: el ansia de libertad identifica a todo ser humano. Las topoi propios de la producción carcelaria en general son: las comunicaciones codificadas con las demás personas detenidas; la domesticación de los insectos; las tentativas de escribir con medios improvisados; las inscripciones murales, etcétera (Brombert 1975). También son recurrentes las temáticas existenciales más generalistas: la pérdida del tiempo ─ se representa un interminable aquí y ahora ─ (Queiroz 1980: 21), y la predominancia de lo espacial (Davies 1990: 60); la contemplación de la muerte (ibídem: 68); el poder, la dominación y la transcendencia (Gelfand 1983: 20). En ese afán de transcender la prisión, el sujeto encarcelado se despoja de su cuerpo (separando lo espiritual de lo material), y se refugia en la mente, en el alma. No es así en el caso de la s mujeres encarceladas: su corporalidad es enfatizada (Gelfand 1983: 21). Muchas de las mujeres encarceladas se definen como doblemente oprimidas: en primer lugar como mujeres, y en segundo lugar como prisioneras, en ambos casos, presas de un sistema que regula y controla sus cuerpos. En el caso de las presas, por tanto, la escritura siempre es un acto subversivo (Gelfand 1983: 35), porque socavan las expectativas culturales que les ha impuesto la sociedad que las tiene encarcelada.

4. El campo literario vasco y el repertorio poético-carcelario En el ámbito de la literatura vasca la poesía de temática carcelaria ha sido una constante desde el siglo XVI; pero durante siglos se publicaron básicamente poemas o versos integrados en obras más extensas. En 1992, un acontecimiento posicionó en el centro del campo literario vasco la poesía escrita en la cárcel: el conocido poeta Joseba Sarrionandia publicó Gartzelako poemak [Poemas carcelarios] (Susa, 1992). 10 La aportación de Joseba Sarrionandia es fundamental para entender esta posición de campo. La andadura poética de

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Sarrionandia comenzó en la década de los 70 en el grupo de poesía Pott banda [Banda fracaso]. En este grupo literario se reunieron escritores y artistas tan reconocidos o conocidos actualmente como Bernardo Atxaga, Jimu Iturralde, Jon Juaristi o Ruper Ordorika. Por lo tanto, Sarrionandia era un poeta de renombre cuando lo detuvieron: fue encarcelado en 1980 acusado de ser miembro de ETA, y se escapó de la cárcel en 1985, escondido en un bafle. Tras ese hito literario se han publicado con regularidad obras de temática carcelaria escritas tanto por presos de ETA como por presos de movimientos políticos y sociales: poemas 11, narraciones 12, novelas 13, crónicas 14, cómics 15, e incluso una obra teatral 16. A partir de 2002, la mayoría de esos testimonios se han publicado en Ataramiñe [Sacar el dolor], una plataforma editorial creada para publicar las obras literario-artísticas de los miembros del Colectivo de Presos Políticos Vascos. Esta plataforma, además de obras de autoría individual, promueve una publicación colectiva anual. En

esa

producción

carcelaria

ha

destacado

el

género

poético,

tanto

cuantitativamente, como cualitativamente, por ser el género que más se ha difundido en editoriales literarias (Elkar, Maiatz, Susa). De hecho, muchos de esos poemarios carcelarios se han publicado en la editorial Susa 17, una de las editoriales más prestigiosas en lo que al género poético se refiere. Recuérdese que fue en esa misma editorial donde se divulgó el poemario de Joseba Sarrionandia, que se publicó con el aval de sus compañeros del grupo poético Pott banda, Ruper Ordorika y Jimu Iturralde, que escribieron un prólogo y un epílogo respectivamente (Rodriguez 2014: 93-94). Aunque destaca el repertorio poético, la editorial Susa ha publicado literatura carcelaria en otros géneros literarios, e incluso publicó un ensayo sobre la literatura carcelaria vasca 18, y a su vez, algunos miembros destacados de la editorial han organizado recitales poéticos de literatura carcelaria, o han ofrecido charlas sobre literatura carcelaria, generalmente en círculos y programaciones literarias. En la poesía carcelaria vasca se aprecian todas las características discursivas mencionadas (véase apartado 3). He aquí unos poemas que ejemplifican algunas de esas características. En el poema “II. Galdera” [IIº Pregunta]19 de Joseba Sarrionandia (1992), se aprecian la domesticación del insecto y el paso del tiempo. En otro poema, “Lau bost sei horma” [Cuatro cinco seis muros]20, Sarrionandia (1992) alude al poder, la dominación y la

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transcendencia. En el poema tan conocido y difundido “Aspaldian utzitako celda” [La celda que dejé hace tiempo]21, muestra las comunicaciones codificadas, las inscripciones murales y la dualidad entre individuo y colectividad. Pero en lo que a la difusión y posición sistémica se refiere, adquiere unos rasgos distintivos. El poemario Gartzelako poemak (1992), reúne algunas características que no reunían los poemas carcelarios publicados o difundidos hasta entonces: es un poeta preso (y no un preso poeta) quien publica la obra; abre una tipología poética que tendrá seguida en la literatura vasca, al ser un poemario que trata exclusivamente de la experiencia carcelaria; y se publicó en la editorial Susa, que como he mencionado, es una de las editoriales más prestigiosas en lo que al género poético se refiere. Por otra parte, todas las personas presas que han publicado en editoriales literarias obras poéticas son miembros de un colectivo articulado bajo este nombre: Colectivo de Presos Políticos Vascos 22. Son personas encarceladas por ser miembros de ETA, o por participar en movimientos políticos ilegalizados. En consiguiente, esa dualidad entre soledad y experiencia colectiva es más acentuada si cabe en estos poemarios: por ejemplo, se dedican poemas a compañeros y compañeras que han muerto en prisión23. Esa articulación colectiva en algunas ocasiones parece dificultar la creación de un sujeto poético individual (un yo poético), puesto que en la mayoría de los poemarios predomina un sujeto que representa a una colectividad (un nosotros poético). Únicamente al tratar la temática amoros a predomina esa posición individualizada, y un sujeto lírico que se ajusta a la poesía de corte romántico. Esa impronta romántica se aprecia tanto en los códigos amorosos como en el recurrente imaginario marino, que es consecuencia de la influencia de Sarrionandia. En su poética, el imaginario marino es una constante (Rodriguez 2014: 91-104), ecos de la navegación, de marineros errantes y de los naufragios, que nos evocan a la simbología romántica, pero que en el caso de Joseba Sarrionandia, en el poemario Gartzelako poemak, se vinculan estrechamente a la experiencia carcelaria: el preso, cual naufrago en el mar, navega a la deriva. La influencia de Sarrionandia es tal, que en todos los poemarios de Susa (excepto en el de Ekhiñe Eizagirre), se hace uso de esa metáfora y de esos símbolos 24. Por otro lado, los poemarios publicados en lengua vasca, se han escrito en cárceles del estado español o del estado francés. En ambos casos, aunque especialmente en las

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cárceles del estado español, los escritos en lengua vas ca están especialmente censurados y vigilados (cuando no prohibidos). En ese contexto, la práctica de la escritura en euskera es un acto más de resistencia, es un territorio de libertad. Como el propio Joseba Sarrionandia (1992) escribe en el poema “Territorio librea” [Territorio libre], “euskara da gure territorio libre bakarra” [el euskera es nuestro único territorio libre].

5. Alde erantzira nabil, de Ekhiñe Eizagirre Como he mencionado, hasta el 2016, año en el que Ekhiñe Eizagirre presentó Alde erantzira nabil, no se había publicado ningún poemario carcelario de autoría femenina, ni en la editorial Susa, ni en ninguna otra plataforma alternativa. 25 En 2016, año en el que Ekhiñe Eizagirre publica el poemario, en el Colectivo de Presos Políticos Vascos había 51 presas (EMAGIN/EHBF 2017: 30).26 El 15% de ese colectivo son mujeres, dato reseñable si se compara con otras realidades: en el Estado francés el 3% de la población recluso es mujer, y en el Estado español el 7% (EMAGIN/EHBF 2017: 30). Considero que son varias las circunstancias que han demorado la escenificación público-literaria de voces de mujeres encarceladas. Por una parte, el imaginario genérico vinculado a la organización armada ha facilitado la escenificación pública de sujetos corporales masculinos (y de voces que representan esa posición masculina). En la década de los 80, un grupo de investigación coordinado por la antropóloga feminista Teresa del Valle analizó los imaginarios genéricos de la cultura vasca, y en esa aproximación también analizaron la imagen genérica que transmitía ETA. Un análisis que tres décadas más tarde está en plena vigencia, o así ha sido por lo menos hasta el alto el fuego de ETA. Me remito al análisis de dichas antropólogas feministas, porque disciernen claramente entre i maginario y realidad, que considero es primordial: El espacio de ETA es [era] un espacio masculino. La imagen proyectada de ETA en escritos, carteles, pintadas y pegatinas es [era] una imagen de fuerza, de resistencia, simbolizada siempre por un elemento masculino: un puño de hombre, un brazo masculino sosteniendo en alto una metralleta. Aunque haya [hubo] algunas mujeres actuando en ETA, la presencia de la mujer no se refleja [reflejaba] a ningún nivel; se sabe [sabía] que existe [existía], que está [estaba], cuando se la detiene [detenía]. La idea de resistencia, de héroe que es capaz de dar su vida, no parece compatible con la idea de mujer. Esta separación de espacios es más patente en campañas a favor de los presos o

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exiliados […]. Nada hace suponer o pensar en la existencia de mujeres entre los presos; rara vez aparecen `presas’ en algún comunicado o la imagen de una mujer en algún mural o cárcel. Hay presas de ETA en las cárceles; sin embargo en la mentalidad popular, sobre las presas políticas se ci erne un silencio absoluto. Las cárceles no son su espacio. Por el contrario, y aquí la dicotomía dentro-fuera es perfecta, las mujeres están archipresentes entre quienes organizan las campañas pro-presos; la imagen de los familiares de presos, es una imagen de mujeres, son las madres, aunque también y cada vez más, las novias de ETA (Del Valle 1985: 243-244).

En reflexiones más actuales sobre el tema, se reitera esa predominancia del imaginario masculino: “De hecho, en el imaginario colectivo, se imponen el relato y la experiencia vital de los presos masculinos, y las vivencias de las mujeres presas permanecen más ocultas” (Martínez Pérez 2016: 54). 27 Ese imaginario masculino ha dificultado la escenificación de voces de mujeres encarceladas, no tanto por órdenes expresas, sino porque la representación colectiva se vinculaba simbólicamente a la figura del gudari, del guerrero, figura predominantemente masculinizada, y ese contexto no favorecía la toma de posición de diferentes sujetos genéricos: bien por no identificarse con tal imaginario, o bien por considerar que la posición representativa y pública debía encarnarla un cuerpo y voz que se aproximara al imaginario modélico. Asimismo, el Colectivo de Presos Políticos Vascos se ha pronunciado públicamente siempre mediante portavoces. En ese sentido, tanto el imaginario como la representatividad se han erigido en condiciones determinantes a la hora de pronunciarse públicamente. Evidentemente, el imaginario genérico (que no realidad) se ha descentrado con la disolución de ETA. Cabe destacar que fue una voz femenina quien anunció el alto el fuego definitivo en 2010, y que el Colectivo de Presos Políticos Vascos decidió en 2013 facilitar un proceso de excarcelación escalonado e individual (que en cierta medida, atenuaba la presión de la representatividad). Pero sobre todo, ese imaginario masculino y patriarcal se ha revisado gracias a las dinámicas feministas que se han generado (véase apartado 2). Teniendo en cuenta las especificidades de la poesía carcelaria en lengua vasca (véase apartado 4), a continuación expondré cómo se ha renovado ese imaginario en Alde erantzira nabil. Los poemarios sobre la cárcel constituyen muchas veces un universo complejo e incluso contradictorio, en el interior del cual se entrecruzan memoria e imaginación, y donde

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el discurso asume varias formas y tonos: de crítica y denuncia, de resistencia y de reflexión, de autoconmiseración y de acusación, de testimonio y de ironía, de sarcasmo y de resignación. Es ésa una la característica discursiva de todos los poemarios carcelarios en lengua vasca, también el de Eizagirre (2016). La poesía actúa como una herramienta de resistencia en donde plasman su afán de libertad, reconstruyendo el mundo externo que representa una fuente de deseo inagotable. Cualquier fisura en los muros y ventanas activa la imaginación.

Cada elemento, visible o no, adopta una dimensión proporcional al

persistente anhelo que genera la simple posibilidad de estar fuera de la cárcel: los otoños, el vuelo de los pájaros, el viento, las nubes… mediante esa evocación constante se expresa el deseo de encarnarse en esos elementos que vienen a materializar la libertad ansiada. En ese sentido, esos elementos tan cotidianos para las personas no encarceladas, en estos poemas adquieren un significado bien distinto. Concretamente esta huida mediante los elementos de la naturaleza también se aprecia en el imaginario poético de Ekhiñe Eizagirre. No obstante, al evocar a amantes, amistades y familiares, la propuesta poética de Ekhiñe Eizagirre difiere del resto. En los poemarios de autoría masculina, se hace referencia de esta manera al entorno afectivo: dedican poemas a sus amadas, recordando partes de sus cuerpos (sobre todo ojos, manos, pechos) (cuerpos troceados); expresan el deseo de habitar en los ojos de sus amadas o madres, e incluso, la certeza de habitar en los ojos de esas amadas y madres.28 Se presentan como sujetos dignos de ser cuidados, y representan a las mujeres tal cual penélopes que esperan a su guerrero. El amor romántico como fuerza y estrategia redentora. No se presentan como sujetos activos en el entorno afectivo, ni como partícipes de una red de cuidados. No hay en los poemarios de autoría masculina referencia alguna a la amistad, salvo al nombrar a compañeros presos: en un marcado discurso de alabanza a la fraternidad militante. En el poemario de Ekhiñe Eizagirre, por el contrario, el entorno afectivo se articula de una manera bien diferente: por un lado, se representa a sí misma como sujeto activo en el cuidado, que no solamente es cuidada (por amigas, amantes y familiares), sino que también cuida de su entorno, con sus límites, evidentemente. En el poema “Ukan nazazu” [Cógeme] se aprecian todas esas temáticas:

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UKAN NAZAZU / Ukan nazazu / behar bai baina ez nagoenetan. / Bete ezin izan ditugun / gure bizitzako etenpuntuetan, / denboraren minutu luzeek /puzten duten parentesian / uki nazazu, / ukan nazazu. / Putzu gabeko oasi handi honetan / bila nazazu / eta ikusiko nauzu zelai idorrenak ere /ase ditzaketen oroitzapen goxoetan. / Ukan nazazu / behar bai baina ez nagoenetan. / Maitasunaren hariari jarraituz / aurkituko nauzu / etenpuntuak lerro zuzen bilakatzen dituzten /bihotz ttakun azkarretan. / Ukan nazazu / atzo, gaur eta biharko gauetan. /Bila nazazu hegan, / gaua argi tzen duten eta /hainbeste maite ditugun ilargi beteetan, / distantzia sekulakoek ninirik nini /ahitzen dituzten izar iheskorretan. / Ez nagoenetan, behar nauzunetan, / hitz sorgindu hauen bidez / senti nazazu gertu. / Heldu gogoz gerritik / eta eramango za itut erratz gainean / denbora eta urruntasuna /laburtzen diren unibertsora, /absentziak sutan errez /ametsak egia bihurtzen diren akelarrera. / Ukan, usain, laztan nazazu. / Senti nazazu, eta elkartuko gara / irri, xirri eta muxuen lurralde askean” [CÓGEME / Cógeme / Cuando me necesites y no esté. / En los puntos suspensivos / de nuestra vida que no pudimos completar / en las paréntesis de los largos minutos / tócame, / cógeme. / En este Oasis sin pozo / búscame / y me verás en los recuerdos / que sacian incluso los prados más áridos. / Cógeme / cuando me necesites y no esté. / Me encontrarás / siguiendo el hilo del amor / en las rápidas palpitaciones / que hacen de los puntos suspensivos líneas directas. / Cógeme / en la noche de ayer, hoy y mañana. / Búscame al vuelo / en las lunas llenas / que alumbras las noches, y / tanto queremos, / en las estrellas huidizas / que consumen la distancia de pupila a pupila. / Cuando no esté, cuando me necesites, / siénteme cerca en / estas embrujadas palabras. / Cógeme con fuerza de la cintura / y te llevaré en mi escoba / al universo donde se acortan / el tiempo y la lejanía / quemando las ausencias / en el aquelarre que convierte los sueños en realidad. / Cógeme, huéleme, acaríciame, / Siénteme, y nos juntaremos en el libre / territorio de sonrisas, mimos y besos] (Eizagirre 2016: 36-37). [Traducción de la autora]

Por otro lado, hace una crítica a la institución familiar y a la monogamia. En los poemarios de autoría masculina, la monogamia es una constante encarnada en la figura de Penélope, que es a quien pertenece el corazón del poeta. Ekhiñe Eizagirre (2016: 41) expresa lo siguiente: “Bihotza / lur eremu zabalegia / jabe bakar bat izateko” [El corazón / un territorio demasiado extenso / para tener un únicx propietarix].29 En ese sentido, los poemas que tratan sobre la afectividad distan mucho de una visión romántica e idealizada del amor, e incluso lo cuestionan expresamente. En esa revisión feminista también encarna un discurso homoerótico, festejando el placer lésbico, pero también la masturbación, el autoplacer, el autodescubrimiento. Visibiliza las relaciones lésbicas, tanto fuera como dentro de la cárcel. De esa manera, visibiliza el

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lesbianismo dentro del sistema carcelario, pero también visibiliza el lesbianismo dentro del Colectivo de Presos Políticos Vascos. En ese colectivo, la homosexualidad ha sido una realidad que se ha invisibilizado (aunque en los últimos años expresos y expresas hayan hablado sobre sus experiencias en foros feministas). En este caso concreto, por tanto, se repite la constante mencionada, en la que las mujeres presas recrean un sujeto corporeizado (Gelfand 1983: 21). Este sujeto corporeizado desea y goza, se proclama a sí mismo como sujeto sexuado y sexualizado, reivindicando esa posición política y erótica que la prisión le niega. En los poemarios de autoría masculina no se presenta placer alguno en el encarcelamiento, es por ello, que esa posición es subversiva: el placer, el goce y la sexualidad son un espacio de resistencia para hacer frente a la opresión y la muerte en vida que representa la prisión. Como ejemplo, el poema “Goiz gorri, arrats euri”: GOIZ GORRI, ARRATS EURI / hire ezpainen samurra / zetorkidan akordura / eguna esnatzear den / goiz gorri honetan / inkontzienteak kosk egi n zidan / ezpainetako haragian / ebaki lizun hori ageri zainan / zoko horretan bertan” [AMANECER ROSADO, ATARDECER LLUVIOSO / Recuerdo / tus labios tiernos 30 / en este amanecer rosado / cuando el día está por despertar / el inconsciente me mordió / en la c arne de los labios / en ese mismo rincón / habita ese lujurioso corte] (Eizagirren 2016: 90). [Traducción de la autora]

Ese posicionamiento feminista, lleva a la poeta a integrar en los poemas referencias y discursos feministas: reivindica su agencia, al afirmar que va a hacer de la celda su habitación propia (en clara alusión a Virginia Woolf) 31; retoma la genealogía de las sorgiñas o brujas y del aquelarre (expresa su conexión con esas brujas que quemaron y persiguieron) 32; se identifica sobre todo con el colectivo feminista (y en segundo lugar, con el colectivo de presos), e incluso dedica un poema al feminismo, esa gran compañera: FEMINISMOARI / zu zaitut / lau hormaren artean morfina / arintzen didana egonezina / jakin -min atsegina / itxaropen vitamina / egin dezadan aitzina / zu zaitut / bozkario eta samina / bizitzako pipermina / lagun ukaezina / adiskide nekaezina / maitale aseezina / zu zaitut / kontraesanak xuxurlatzen / dizkidan sorgina [AL FEMINISMO / Tú eres / entre estas cuatro paredes mi morfina / curiosidad apacible / vitamina de la esperanza / para que avance / Tú eres / alegría y dolor / la

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guindilla de la vida / amiga innegable / compañera incansable / amante insaciable / Tú eres / la bruja que me susurra / mis contradicciones (Eizagirren 2016: 68). [Traducción de la autora]

Cabe destacar esa construcción de una genealogía feminista, porque en los poemarios de autoría masculina se construye básicamente una genealogía de la resistencia nacional (son constantes las alusiones al pueblo, a la guerra y a la fraternidad militante). También escribe un poema desde la voz de una esposa maltratada, que se defiende de la violencia machista. De esa manera, sugiere una relación entre esposa maltratada y violencia carcelaria. Cesar Manzanos ha reflexionado así sobre la relación entre violencia machista y sistema penitenciario: En este contexto, lo que resulta más grave en relación con la violencia que se ejerce en nuestra sociedad y con la complicidad de sus instituciones es que de un modo paradógico y per verso estamos poniendo en manos del sistema penal, del estado penal, la lucha contra la violencia hacia las mujeres, en manos de una institución que viola los derechos de las mujeres presas y que no establece dispositivos para combatirla . (Manzanos 2016: 50)

Por otra parte, se autodefine como puta, y no crea una brecha entre las diferentes reclusas, e invita a sus amistades a viajar al infierno, espacio propicio para la transgresión. En ese sentido, a diferencia de los poemarios de autoría masculina, no describe la prisión como un infierno, sino que el infierno simboliza la rebeldía, la brujería y el aquelarre, la desobediencia, la libertad, etcétera. En los poemarios de autoría masculina el sujeto encarcelado se representa como un sujeto helado, detenido en el tiempo, como un muerto en vida (y la celda como una sepultura). Ekhiñe Eizagirre aboga por un sujeto nómada, en continua construcción, en movimiento: en un poema que reivindica la reconquista del cuerpo, expresa lo siguiente: “Horregatik gorputz ahaldunak. / Horregatik kontzientzia arriskutsuak. / Horregatik gure gorputzen birkonkistan / dihardugun nomada feministak” [Cuerpos empoderados / consciencias peligrosas / somos nómadas feministas que luchamos / por la reconquista de nuestros cuerpos] (Eizagirre 2016: 46). Así dictan otros versos: “Normala norma bada / hobe izan nomada”

[Si lo normal es norma / mejor ser nómada] (Eizagirre 2016: 56). Una

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subjetividad nómada feminista, que se vincula a la conciencia nómade de Rosi Braidotti (2004): La conciencia nómade es una forma de resistencia política a toda visión hegemónica y excluyente de la subjetividad […]: una forma de resistirse a la asimilación y la homologación con las maneras dominantes de representación del yo. Las feministas – u otros intelectuales críticos que adoptan la posición de sujetos nómades – son aquellos que poseen una conciencia periférica; no se permiten olvidar la injusticia y la pobreza simbólica, pues su memoria se activa contra la corriente; representan la rebelión de los saberes sojuzgados. (Braidotti 2004: 216)

Esa reivindicación del sujeto nómada sugiere que la poeta considera que la cárcel también es un espacio de autoconocimiento, de socialización, de construcción de identidad, de transición y movilidad. Si observamos las portadas de los poemarios publicados en la editorial Susa, se aprecia claramente la diferencia.

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Como apunta Eider Rodriguez (2014: 91-92), la porta de Gartzelako poemak nos evoca al expresionista “Grito” de Munch, simbolizando la angustia y la deses peración. Tras la figura humana, se aprecia una geometría cúbica, que podemos vincular al espacio rígido carcelario (Rodriguez 2014: 92). En las siguientes portadas se representan o figuras corporales rotas y estáticos, o no hay cuerpo alguno representado, y simbólicamente se representa la sujeción o la tormenta. En Alde erantzira nabil, por el contrario, se representa un cuerpo en movimiento, un paso ligero y difuso, sin contornos tan rígidos y más fundido con el entorno. En estos poemarios de autoría masculina son abundantes las reflexiones sobre la escritura, la palabra y la poesía, en un continuo gesto de autoafirmación poética. En todos los poemarios se han generado actos performativos que autodefinen los textos y discursos como poemas, e incluso se citan a poetas. En el poemario Alde erantzira nabil no se hace mención alguna a lo poético, ni a la escritura, ni a poeta alguno. Esta posición también se aprecia en los paratextos: en la mayoría de los poemarios publicados por la editorial Susa, se han añadido prólogos escritos por poetas, contextualizando los poemarios en la tradición literaria vasca. De hecho, la mayoría de los poemarios de autoría masculina se han difundido básicamente en circuitos literarios (ferias, recitales poéticos, encuentros literarios, etcétera). En el poemario de Ekhiñe Eizagirre no hay prólogo ni paratexto alguno, y fueron activistas feministas conocidas (e íntimas amigas de la poeta), quienes presentaron el poemario, y principalmente se difundió en recitales de círculos feministas.

6. Breves conclusiones En conclusión, la propuesta poética de Ekhiñe Eizagirre ha renovado ese imaginario carcelario desde una perspectiva feminista, y ha propuesto una nueva subjetividad carcelaria, e incluso, ha generado nuevas lógicas literario-políticas. Para que la incidencia política de la poesía sea efectiva, es necesario generar una red cultural y social que constituya esa práctica poética en acto performativo. En ese sentido, el poemario Alde erantzira nabil se ha inscrito en otro circuito: el movimiento feminista. La red de apoyo de Ekhiñe Eizagirre se ha organizado para que esta obra poética tenga incidencia en el ámbito político-ideológico del que ha emergido, y al que interpela. De esa manera, esta obra no

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únicamente ha renovado el imaginario poético carcelario en lengua vasca, sino también los mecanismos de incidencia poético-política. Al haber incidido en el movimiento feminista y en debates y actos feministas, el sujeto carcelario ha logrado transcender el sujeto colectivo al que está adscrito (Colectivo de Presos Políticos Vascos), posicionándose en relación a otro sujeto colectivo (el movimiento feminista), gracias al que puede repensarse y redefinirse, más allá de su condición de reclusa.

NOTAS 1

Este trabajo se enmarca tanto en el proyecto de investigación “Poesía actual y política: Análisis de las

relaciones contemporáneas entre producción cultural y contexto sociopolítico” (POEPOLIT), financiado por el Ministerio de Economía y Competiti vidad del Gobierno de España (FFI2016-77584-P, 2016-2019), y dirigido por Burghard Baltrusch, como en proyecto de investigación “Análisis de género de las representaciones de los conflictos en la literatura vasca”, financiado por la UPV/EHU (EHUA 16/26), y dirigido por Ibon Egaña. 2

El título del poemario no se puede traducir fielmente, porque en euskera tiene este triple significado: por un

lado, “Camino del revés”; por otro lado, “Camino al desnudo” e incluso, “Camino por el lado desnudo”; y por último, “Camino hacia atrás”. Por consiguiente, el título original aúna todas esas connotaciones que no se han podido expresar en la traducción. 3

ETA entregó las armas el 8 de abril de 2017, y anunció su disolución el 4 de mayo de 2018.

4

En 2012 Euskal Herriko Bilgune Feminista y Herrira organizaron varias mesas redondas para tratar el tema de

“La mujer y la cárcel”. Esas mesas redondas se organizaron en diferentes localidades del País Vasco (EMAGIN/EHBF 2017: 11). En julio de 2015, militantes y simpatizantes del movimiento feministaindependentista, Euskal Herriko Bilgune Feminista, organizó un curso de verano en la Udako Euskal Unibertsitatea [Universidad Vasca de Verano], para compartir experiencias y crear un foro de discusión: Euskal Herriko gatazkaren irakurketa etorkizuneko bake feministaren bidean [Lecturas sobre el conflicto vasco, en el

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camino hacia una paz feminista]. Tras ese foro, la asociación Emagin organizó en 2016 Pamplona y Bilbao una Escuela Feminista, para compartir experiencias e interpretaciones en el contexto del conflicto vasco. En 2017 Euskal Herriko Bilgune Feminista organizó una marcha de mujeres a la cárcel de Valladolid, para denunciar las discriminaciones a las que se somete a las presas. 5

Véase www.ehu.eus/es/web/ehugune/emagune.

6

Es significativo que Ekhiñe Eizagirre realizara las ilustraciones para el diseño del informe publicado por Euskal

Herriko Bilgune Feminista sobre la situación de las presas políticas vascas (EMAGIN/EHBF 2017), y algunas de esas ilustraciones se utilizaron pa ra decorar estas jornadas feministas: Emakume Abertzaleen VII. Topaketa Feministak (Berriozar, 6 de mayo de 2017) [VII. Encuentros Feministas de Mujeres Abertzales]. 7

En el Estado español se les aplica el grado de FIES-3 (Ficheros de Internos de Especial Seguimiento), y en el

Estado francés se les aplica el grado DFS (Detenu particuliarement signale) (EMAGIN/EHBF 2017: 30). 8

La escritora Maria José de Queiroz en las últimas páginas de su ensayo A literatura encarcerada (1981: 149-

152) presenta unas notas sobre voces femeninas encarceladas, y presenta los testimonios de la boliviana Domitila Barrios de Chúngara y de la brasileña Flávia Schilling. Cabe recordar que liberaron en 1980 a Flávia Schilling, tras años de lucha por su liberación y por la amnistía. En 1978 Flávia Schilling publicó las cartas a su familia en el volumen Querida família (Editora Coojornal), y en 1980 escribió sobre su experiencia carcelaria en Querida Liberdade (Editora Global). Es posible que ese contexto sociopolítico y sociocultural avivara el interés de Maria José de Queiroz por el estudio de la literatura carcelaria. 9

La mayoría de estudios sobre literatura carcelaria, parten de esa premisa, y analizan el corpus de temática

carcelaria o de experiencias carcelarias generadas por autores literarios. Ejemplo de ello es la compilación Nueve poetas encarcelados (Mandala Ediciones, 2011) de Áurea Galán de Silva. 10

Anteriormente el poeta Joseba Sarrionandia publicó un poemario carcelario: Intxaur azal baten barruan /

Eguberri amarauna (1983), pero no se publicó en una editorial literaria, sino que lo publicó el movimiento antirrepresivo Gestoras pro-amnistía (Rodríguez 2014: 63-72), y además, fue una colección anónima (no se responsabilizó públicamente de la autoría del poemario). 11

Imanol Txabarri Hitzak naroa (Maiatz, 1985); Urtzi Zubizarreta, Kartzelako neurriak (Ataramiñe, 2008); Mikel

Etxaburu, Zu zara orain txoria (Elkar, 2011); Ibon Muñoa, Ametsen txokoan bizi naiz (Ataramiñe, 2011); Oier Goitia, Fakin xokona (Ataramiñe, 2012); etcétera. 12

Jon Gaztelumendi, Haizea mindu gabe (Susa, 1999); Jokin Urain, Gatibu sortu nintzen (Susa, 2000); etcétera.

13

Jokin Urain, Izaina (Amnistiaren Aldeko Batzordeak, 1990); Jokin Urain, Adlotse (Txalaparta, 1992); Mikel

Antza, Ospitalekoak (Susa, 2010); Carmen Gisasola, Gaur zortzi (Alberdania, 2012); etcétera. 14

Jokin Urain, Errotarria (Susa, 2006); Mikel Antza, Bakarmortuko kronikak (Ataramiñe, 2011); Markel

Ormazabal, Hemen naiz, ez gelditzeko baina (Txalaparta, 2014); etcétera.

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15

En el cómic destacan las tiras autoficcionales y humorísticas de Mikel Orbegozo: Preso nago y Preso nago 2

(Ataramiñe, 2013). Pero también se ha publicado algún otro álbum de cómic que retratan la experiencia carcelaria: Borxa Urberuaga, Espetxetik at (Ataramiñe, 2011). 16

De momento, se ha publicado una única obra teatral de temática carcelaria, escrita por un preso: Mikel

Antza, Z ber bi (Ataramiñe, 2013). 17

Joseba Sarrionandia, Gartzelako poemak [Poemas carcelarios] (Susa, 1992); Mikel Ibarguren, Hemen gauak

lau ertz ditu [Aquí la noche tiene cuatro esquinas] (Susa, 1996); Xabier Izaga, Bart irakurtzeko gaur idatziak [Escrito hoy para leer anoche] (Susa, 1998); Mikel Etxaburu, Hodeiak zapatetan [Nubes en los zapatos] (Susa, 2014); Mikel Antza, Ametsak ere zain [Los sueños también a la espera] (Susa, 2015); etcétera. 18

Jokin Urain, Ez dago etxean [No está en casa] (Susa, 2010).

19

“II. GALDERA / Presoa zelda bazterrean, / bakarrik mintzatzen bezala. / Baina ez, armiarma bati / galdetzen

dio `Noiz arte?´. / Armiarma, berehala, / zintzilikatu eta haria / luzatzen jeisten da. / Eta badirudi hari luze hori dela / armiarmaren erantzuna”. [IIº PREGUNTA / En un rincón de la celda, / como si hablase a solas. / Pero conversa con una araña, / le pregunta, ¿hasta cuándo? / La araña, al instante, / se cuelga y desciende / alargando el hilo. / Ese largo hilo semeja ser / la respuesta de la araña] [Traducción de la autora]. 20

“LAU BOST SEI HARRESI / Lau, bost, sei harresi gure inguruan / bihotz bat bestearen barruan bezala. / Euriak

zorionari eragindako kantua / laku zaharren batean ito zen, / haizeak ez dakar ezer. Begiratu hegaztien / itzal atzeman ezinak lurrean. / Zer egin dezakegu? Paseatu, urrats / bakoitzean errauts apur bat utziz; / mundua ere geure antzera biratzen da / bere buruaren gi ltza aurkitu ezinik” [CUATRO CINCO SEIS MUROS / Cuatro, cinco seis muros entre nosotros / como un corazón en el interior de otro / El canto que hizo la lluvia a la felicidad / Se ahogó en un viejo lago, / el viento no trae nada. Observa las sombras / inac cesibles de las aves en la tierra. / ¿Qué podemos hacer? Pasear, dejando un poco / de polvo a cada paso; / El mundo también vira como nosotros, alrededor de sí mismo, sin poder encontrar su llave] [Traducción de la autora]. 21

“Aspaldian utzitako zelda / Jakin nahi nuke nork betetzen duen orain / nik utzitako zelda. / Ea entelegatzen

duen hormako izkribu tipia: /`Eroria burrukara´. / Ea alboko zeldatik inork hots egiten dion / komuneko plastikozko / tuberia soltatuaz / telefonoz bezala mintzatzeko. / Ea hango egunak eternal dirauen, gauak izotzezko, / egunsentiak esne garratza diren. / Ea errekuentoan mirilatik soegiten duen begiak / —surveillir et punir— / inor ikusten duen edo iadanik inor ez / —denak ala inor ez—. / jakin nahi nuke ihes egin genuenok / benetan ihes egin genuen / ala ihes egitearena bizitzen irauteko / atxakia hutsa izan zen” [La celda que abandoné hace tiempo / Quisiera saber quién ocupa ahora / la celda que abandoné. / Si comprende el pequeño escrito de la pared: / ´Caído en la lucha´. / Si alguien de la celda próxima le llama, / soltando del baño la tubería de plástico / para hablar cual teléfono. / Si los días allí permanecen eternales, las noches de hielo, / si los amaneceres son leche ácida. / Si en el recuento el ojo observa por la mirilla / —surveillir et punir— / si ve a alguien o ya no hay nadie / —todos o ninguno—. /

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Iratxe Retolaza Gutierrez

Quisiera saber si los que escapamos, / lo conseguimos de verdad / o lo de escapar fue una simple excusa / para poder seguir viviendo]. [Traducción de la autora] 22

Hay presos condenados por ser miembros de ETA o pertenecer a algún movimiento político ilegalizado que o

bien han dejado el Colectivo de Presos Políticos (por no estar de acuerdo con las líneas políticas del colectivo), o bien no se han incorporado nunca al col ectivo. 23

Los testimonios sobre prisioneros muertos en la cárcel es constante en la literatura carcelaria (el mismo

Oscar Wilde dedicó su poemario a la memoria de C.T.W., prisionero muerto). En este caso, la diferencia estriba en que esos muertos son compañeros y compañeras de un colectivo articulado, con el que se comparten postulados, vivencias y redes afectivas y políticas. 24

He aquí un poema de Mikel Etxaburu (2014), como ejemplo: “BELDUR / Itsasoa bare dagoenean / edonork

izan nahi du kapitain, / bai na behin naufragatuz gero / beti izango da itsasoaren beldur. / Horregatik ez naiz kapitain, / bi bider naufragatu ez dezadan. / Horregatik ez daukat ontzirik, / bi bider ito ez nadin. / Horregatik ikaratzen naiz / ukabilak harrotzen dituen enbatarekin” [TEMOR / Cuando el mar está sosegado / cualquiera quiere ser capitán, / pero en cuanto se naufraga / siempre se tendrá miedo al mar. / Por eso no soy capitán, / para no naufragar dos veces. / Por eso no tengo embarcación, / para que no se hunda dos veces. / Por eso tengo pavor / ante la tempestad que sacude los puños]. [Traducción de la autora] 25

Las presas políticas vascas han publicado algunos textos sueltos en las publicaciones colectivas de Ataramiñe,

pero hasta 2012, año de la publicación de la novela Gaur zortzi [Hace una semana] de Carmen Gisasola, no se publicó en euskera un libro autónomo de autoría femenina. Por consiguiente, Carmen Gisasola fue la primera presa de ETA que ha desarrollado una voz literaria de temática carcelaria en lengua vasca. Cabe mencionar que Carmen Gisasola fue expulsada de ETA y del Colectivo de Presos Políticos Vascos en 1998, por cuestionar la violencia de ETA, y acogerse a la vía de reinserción. 26

“Las primeras presas fueron las del Proceso de Burgos. Después, a partir de 1989, se triplicó el número de

presas políticas vascas, y se produjeron dos cambios: por una parte, el cuantitativo; y, por otra, el cualitativo (las mujeres pasaron de ser las compañeras de los militantes de ETA, a ser miembros o colaboradoras de la organización armada” (Martínez Pérez 2016: 60). 27

Trabajos recientes han analizado ese imaginario masculino y patriarcal (Rodriguez / Etxebarrieta 2016;

EMAGIN/EHBF 2017). 28

He aquí como ejemplo, dos poemas. El primero, un poema muy conocido de Sarrionandia (19 92), dedicado a

su madre: “Oroitzen zaitudanean, ama,/ sukaldean egoten zara / mahaia bostentzat atondu, / aulkian eseri eta leihotik / kristala lausotzen duen / lurrina / ezabatu gabe neguari begira / eta ni —badakit— / zure begien hondoan nagoela” [Siempre que te recuerdo, mamá, / estás en la cocina. La mesa está puesta para cinco. / Sentada en la silla, miras por la ventana, /sin quitar el vaho que empaña el cristal. / Y yo -lo sé muy bien- habito en tus ojos.]. El segundo, un poema de Mikel Ibarguren (1996), dedicado a su amada: “Patioari bueltak eman

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Poesía carcelaria, repertorio poético y subjetividades en conflicto: el poemario Alde erantzira nabil de Ekhiñe Eizagirre

dizkiodan heinean / Zutaz oroitzen naiz / Ez dakit zergatik kontatzen dizudan / Ahanztura geltoki abandonatua da ez dago trenbiderik / Ezin hel naiteke zugana baina zutaz oroitzen naiz / Gauaren uremean oheratzen naizenean / Ez nau beldurtzen denbora azkengabeak galdera ainguratuek / Urratsez urrats nongura dabilen joalea nauzu / Patioaren ertz batetik beste ertz batera / Liburu bat zabaltzen dudanean zutaz oroitzen naiz / Sentitzen zaitudanero nola ezagut zaitzaket Bitartekaritzarik gabe maite nahi zaitut / Distantziak sortu lubaki honez gaindi bihotz hustuak jendezta ditzagun / Bihotza deserria da orain / Itsasoak ez dakarren uhin bakoitza zure oinatz galdu bat da / Minez oroitzen naiz eta zugana arribatu nahi dut” [Mientras doy vueltas al patio / te recuerdo / no sé por qué te lo cuento / el olvido es una estación abandonada sin vías / no puedo llegar a ti / pero me acuerdo de ti / cuando me acuesto en las aguas de la noche / no tengo miedo del tiempo sin final, de las preguntas ancladas / soy un caminante que anda donde quiere paso a paso / de un rincón del patio a otro / al abrir un libro te recuerdo / como puedo conocerte cada vez que te siento /quiero quererte sin intermediarios / más allá de esta trinch era creada por distancias / poblar corazones vacíos / el corazón ahora es un destierro / cada onda que no trae el mar es un rastro tuyo desvanecido / te recuerdo con dolor y quiero arribar en ti]. [Traducción de la autora] 29

En euskera no hay género gramatical, y por lo tanto, en la traducción no se ha marcado el género.

30

En euskera hay una forma de tuteo informal, que se utiliza entre amistades, o entre personas que tienen una

relación cercana, de intimidad o de confianza. Ese tuteo informal o afectivo es una de las pocas marcas gramaticales donde sí hay diferencia genérica. En este poema, mediante ese tuteo afectivo se dirige a una mujer, y expresa un deseo lésbico. 31

“GELA BAT NORBERARENA / gorrotoa tatuatuta daramat begi ninietan / ahanzturan galduta da ude begirada

samurrak / ito egiten nau errepresioaren reality show honek /aztoratu behatxulo eta klakaden neurrigabekeriak / triku itxurako katu amorratuak bezala / ezin diet beste era batera so egin uniformeei / gorrotoa ez da konpainia ona ezleku honetan / ahanztura ez da solaskide aproposa bahitegian / eraikiko dut gela propio bat zulo honen barruan / laztan nazazuen begiradez eta irribarreez / malkoz itsasoratuko dut gorrotoa eta / samurtasunari egingo diot txokoa / metro karratua / gutxienez” [UNA HABITACIÓN PROPIA / Tengo el odio tatuado en las pupilas / están perdidas en el olvido las miradas tiernas / Me ahoga este reality show de la represión / me turban la desmesura de las mirillas y las clacadas / como enfurecidos gatos que semejan ser erizos / no puedo mirar de otra manera a los uniformados / el odio no es buena compañera en este no-lugar / el olvido no es un buen interlocutor en prisión / construiré una habitación propia dentro de este agujero / para que me acariciéis con miradas y sonrisas / echaré en lágrimas el odio a la mar / haré un rincón a la ternura / un metro cuadrado / al menos] (Eizagirre 2016: 82). [Traducción de la autora] 32

Las alusiones continuas a las brujas, como sujetos rebeldes, se aproximan mucho a la lectura histórica que

Silvia Federici (2010) desarrolla sobre la regulación de los cuerpos de las mujeres . La bruja como posición política, se encarna en una mujer que es dueña de su cuerpo.

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Iratxe Retolaza Gutierrez

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Poesía carcelaria, repertorio poético y subjetividades en conflicto: el poemario Alde erantzira nabil de Ekhiñe Eizagirre

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Iratxe Retolaza Gutierrez

Iratxe Retolaza Gutierrez es profesora de la Facultad de Ciencias Sociales y de la Comunicación de la UPV-EHU. Sus investigaciones se enmarcan principalmente en estas dos vertientes: por un lado, se ha especializado en crítica literaria feminista, analizando principalmente aportaciones de la literatura vasca actual; y por otro lado, investiga tanto dimensiones performativas como dimensiones políticas de las prácticas poéticas. En el ámbito de la cultura vasca ha publicado estos dos libros de referencia en investigación feminista:

junto

a

Isa

Castillo

ha

coordinado Genero-ariketak.

Feminismoaren

subjektuak (Edo!, 2014) [Ejercicios de género. Sujetos del feminismo]; junto a Edurne Epelde y Miren Aranguren ha publicado Gure Genealogia Feministak (Emagin, 2015) [Nuestras Genealogías Feministas]. A su vez, ha colaborado en dos capítulos en el volumen A New History of Iberian Feminisms (University of Toronto Press, 2018), coordinado por Silvia Bermúdez y Roberta Johnson. Es miembro de Emagin, Centro de Formación e Investigación Feminista.

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Poesia, política e resistência: feminismo e língua galega do grupo Cinta Adhesiva

Poesia, política e resistência: feminismo e língua galega do grupo Cinta Adhesiva

Maria Gislene Carvalho Fonseca Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)

Resumo: Este trabalho apresenta aspectos percebidos nos textos de Silvia Penas para as performances do grupo poético Cinta Adhesiva. Trabalhamos, assim, com conceitos que discutem a performance a partir de Zumthor e a linguagem para Bakhtin para tratarmos dos aspectos ideológicos da poesia. O grupo Cinta Adesiva se manifesta politicamente em suas apresentações ao usar o galego como língua principal e ao tematizar questões de gênero, chamando atenção para a função culturalmente transformadora e de resistência da ar te. Palavras-chave: Poesia Política, Cinta Adhesiva, Silvia Penas, Língua e literatura galegas, Feminismo, Performance

Abstract: This articles presents aspects observed in poetry compositions of the Galician poet Silvia Penas and the performances of the poetic project Cinta Adhesiva. We use concepts of performance by Zumthor and terminology by Bakhtin, to discuss ideological aspects of poetry. Cinta Adhesiva politicizes its work and its poetics by way of using the Galician language and by incorporating feminist perspectives, thus contributing to cultural resistance and transformation through art. Keywords: Political poetry; Cinta Adhesiva; Silvia Penas; Galician language and culture; Feminism; Performance

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Maria Gislene Carvalho Fonseca

Introdução Combarro: a pequena cidade celta, com suas ruas medievais e bruxas decorando 193 lojas, cafés e restaurantes. O mar azul da Galícia alcançando os muros e o som de Cinta

Adhesiva fazendo poesia com aquele momento. “Azul é a cor mais triste”, declama Silvia Penas, poeta e vocalista. Combarro era aquele azul forte, escuro, quebrado pelas pedras em tons terrosos no dia de sol intenso.

Foto: Gislene Carvalho

Silvia Penas é poeta e vocalista do grupo Cinta Adhesiva, a quem acompanhamos apresentações realizadas em parceria com Jesús Andrés. O grupo apresenta declamações poéticas, performadas em sintonia com sons, músicas eletrônicas, imagens projetadas e que produzem, em um movimento sinestésico, um conjunto de sentidos vividos e experienciados simultaneamente na produção poética. Além de poeta, Silvia é professora de língua e literatura galega, e tradutora de português. Sua poesia é declamada em língua galega e costuma abordar temas do universo feminino em seus desafios e contextos de luta. Trata-se de uma poesia que busca acionar afetos e sentimentos através de todo o corpo do público, não somente pelos ouvidos. Este trabalho é parte de uma pesquisa realizada em 2017 como etapa de estágio de doutorado sanduíche, desenvolvida na Universidade de Vigo, Espanha, que está inserida no trabalho de tese em processo de elaboração, realizado na Universidade Federal de Minas

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Poesia, política e resistência: feminismo e língua galega do grupo Cinta Adhesiva

Gerais, Brasil sobre narrativa e performance na poesia de cordel. Como similaridades e aproximações de caráter genético da poesia de cordel, a poesia oral galega, suas práticas e definições têm muito a contribuir com nossa compreensão. Na Galícia, especialmente em Vigo, realizamos atividades de pesquisa com diversas artistas e entrevistamos cinco sobre suas atividades de poesia e performance. No mesmo período, houve o evento PoemaRía 2017, em que se apresentaram artistas de várias origens, tanto em ambientes privados, como em espaços públicos, que ampliavam o alcance das performances. Dentre as poetas entrevistadas, que participou da curadoria do evento, e a qual tivemos a oportunidade de acompanhar em apresentações, estava Silvia Penas e sua Cinta Adhesiva. E é sobre ela que discorremos aqui. A poesia do grupo Cinta Adhesiva é feita para ser pronunciada. Acompanhada por música, é declamada em idioma galego. A partir de Bakhtin (2012), refletimos neste trabalho os aspectos ideológicos da linguagem ao falarmos sobre a poesia de Silvia Penas, que, além de marcar um tipo de reivindicação identitária, marca uma resistência cul tural. Outro marco político que emerge na poesia do grupo Cinta Adhesiva é relacionado ao gênero feminino. Ainda que haja homens na composição do grupo, é a imagem da poeta Silvia Penas, que, além de vocalista, é compositora, que evidencia e performa os sentidos. A Galícia é um lugar em que, ao buscarmos poetas, encontraremos mulheres com muita facilidade. Há visibilidade para suas atividades, o que podemos perceber em eventos e pela própria indicação de conhecedores da poesia. Além disso, os anos 1990 acompanharam o chamado “boom feminino”, que aparece na literatura galega, tanto em prosa quanto em poesia, e que configura uma espécie de movimento literário em que mulheres reivindicam um lugar para as suas produções e de um eu lírico feminino que não será percebido em produções mas culinas. Trata-se de uma poesia e cunho social e político, no sentido de deslocamentos de lugares de poder: uma transitoriedade dos lugares e das formas de representação destinados às mulheres. Mulheres escritoras, personagens, pesquisadoras reescrevem a historiografia da literatura e rearranjam os sistemas de poder estabelecidos previamente. Desta forma, a discussão sobre os aspectos políticos da poesia do Cinta Adhesiva será centrada nesses dois eixos, ambos relacionados a poesia como resistência: gênero e língua.

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Maria Gislene Carvalho Fonseca

Para isso, analisamos as performances acompanhadas em 2017, em aspectos narrativos, que levam em consideração o que Zumthor (2014) chama de texto e obra.

Trajetos metodológicos Este trabalho é escrito tendo o campo de estudos da Comunicação como ponto de partida. Pontuamos esta observação fundamental para que o caminho analítico aqui desenvolvido seja conduzido a partir de um contrato de leitura conformado em aspectos e estilos que podem parecer conflitantes com os modos de escrita acadêmica formal e dos tradicionais estudos literários. Na Comunicação, desenvolvemos nossas pesquisas considerando não um afastamento entre sujeitos e objetos, mas tratando-nos como variáveis nas relações que estabelecemos com os fenômenos que analisamos. Assim, tomamos, como referenciais metodológicos, propostas epistemológicas que considerem a afetação que indivíduos pesquisadores implicam nos fenômenos que observam e nas narrativas que constroem e escolhemos permanecer com nossos processos de subjetividade e hermenêutica – compreendida a partir de Ricoeur (2010) e Gumbrecht (2010), em vez de nos distanciarmos e construirmos um olhar externo para a poesia que tratamos neste trabalho. Deste modo, a narrativa aqui apontada decorre de uma série de observações realizadas ao acompanharmos apresentações do grupo Cinta Adhesiva, de entrevistas estruturadas com Silvia Penas e Jesús Andrés, e de conversas assistemáticas que tivemos em intervalos ou deslocamentos para as apresentações. De modo que não há um rompimento, uma chave virada ao ligarmos o gravador. Mas tanto as conversas como as entrevistas são um híbrido entre formalidades e afetos que foram se construindo entre pesquisadora e artistas. Trata-se, então, de uma virada afetiva na pesquisa, como define Clough (2008), que se refere a um reconhecimento das influências e afetações mutuamente geradas em pesquisadores e fenômenos quando postos em relação. The affective turn invites a transdisciplinary approach to theory and method that necessarily invites experimentation in capturing the changing co-functioning of the political, the economic, and the cultural, rendering it affectively as change in the deployment of affective capacity. (Clough 2008: 3)

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O que implica em um reconhecimento de nossa participação subjetiva na produção da interpretação que se deu ao acompanharmos as apresentações do Cinta Adhesiva. Trata se do que Gumbrecht (2010) sugere como epifania, em um movimento que ele chama de “não hermenêutico”, como uma crítica à busca de sentidos definitivos, ou mais precisos, para as narrativas.1 Nem o domínio institucional mais opressivo da dimensão hermenêutica poderia reprimir totalmente os efeitos de presença da rima, da aliteração, do verso e da estrofe. Apesar disso, é significativo que a crítica literária nunca tenha sido capaz de reagir à ênfase que a poesia confere a esses aspectos formais - exceto para instaurar "repertórios" extensos, entediantes e intelectualmente nulos que listam por ordem cronológica as diferentes formas poéticas nas diferentes literatura s nacionais, e exceto na chamada "teoria da sobredeterminação", que defende, contra a evidência mais imediata, que as formas poéticas sempre duplicam e reforçam estruturas de sentido prévias. (Gumbrecht 2010: 40)

Assim, para Gumbrecht, mais do que uma “interpretação correta”, cuja autoridade estaria atribuída a autores e públicos de maneira separada, distanciada, o trabalho de análise emerge de uma relação entre todos os indivíduos que participam da performance. São os sentimentos e sentidos, as formas de afetação mútua na materialização da poesia declamada: “em vez de estarem sujeitas ao sentido, as formas poéticas estão numa situação de tensão, numa forma estrutural de oscilação com a dimensão do sentido” (Gumbrecht 2010: 40). São esses “efeitos de sentido” que descrevemos aqui, a partir de nossa experiência com a performance poética do grupo Cinta Adhesiva. Condensamos essas interpretações de cunho poético, em estilo livre, no espaço de Combarro, a vila galega onde acompanhamos uma das apresentações do grupo. O método da observação tomado a partir desses pressupostos nos permite desenvolver nossa análise transitando entre conceitos teóricos em torno da performance e de fruições ‘epifânicas’ que dizem de nossa relação como pesquisadores com o fenômeno analisado. O que trazemos aqui, então, é uma análise que conta com interpretações afetivas como operadores.

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Performance poética em Paul Zumthor Para pensarmos a performance poética do grupo Cinta Adhesiva, seguimos, a partir daqui, a ideia de Zumthor (2014: 34-35), que a define como um saber-ser que implica uma presença e uma conduta com coordenadas espaço-temporais encarnadas em um corpo vivo – os corpos dos artistas. É o único modo da comunicação poética. Zumthor fundamenta seu conceito de performance a partir de quatro traços propostos por Dell Hymes: 1. A performance faz passar algo do virtual ao real; 2. está situada em um contexto cultural e situacional, aparecendo como uma emergência; 3. é uma conduta na qual o sujeito assume responsabilidade e 4. a performance modifica o conhecimento. Para captar a performance trata-se de captar uma ação, percebendo o texto que é realizado por ela, ou seja, o texto que emerge, que se torna real ao ser performance. Assim, o texto para Zumthor (1993: 220) é uma “sequência linguística que tende ao fechamento, e tal que o sentido global não é redutível à soma dos efeitos de sentidos particulares produzidos por seus diversos componentes” (1993: 220), do qual a voz em performance extrai a obra, cuja definição está alinhada ao que Ricoeur trata como “texto”. Esta, por sua vez, pode ser compreendida como o que chamamos aqui de texto em ação, ou ainda a totalidade dos elementos que compõem uma performance. Segundo Abril (2014), o texto remete a um universo semântico e simbólico complexo, cuja pergunta pelo sentido nos leva a questionar os limites e o estatuto de objetividade do texto, pensando então as relações entre formas simbólicas e contextos sociais. A partir do pensamento bakhtiniano, Abril sugere que o texto deve ser pens ado a partir de uma noção de rede textual, ou seja, “un devenir de solapamentos, hibridaciones y ósmosis entre fragmentos textuales previos, lenguajes y perspectivas sociosemióticas, de tal modo que la problemática intertextual y la intratextual vienen en gran medida a superponerse” (2014: 158). Assim, para pensarmos a poesia do grupo Cinta Adhesiva, não podemos nos deter aos versos isolados de sua declamação e dos elementos pré-textuais que o compõem. Aqui, focamos em aspectos políticos que reverberam na poesia: o nacionalismo, pela língua galega e o feminismo, no conteúdo das composições. O texto poético de Silvia Penas corresponde a

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esse diálogo entre fenômenos socioculturais e experiências que, a princípio, aparecem fora dos textos, mas que são fundamentais para conformá-los. Nossa compreensão de performance toma o texto em movimento, no momento em que ele emerge e se materializa em comunicação – o momento da declamação nas apresentações do grupo Cinta Adhesiva. A obra performatizada é por natureza um diálogo, uma troca na qual a existência de um público é fundamental: “A comunicação oral não pode ser monólogo puro: ela requer imperiosamente um interlocutor, mesmo se reduzido a um papel silencioso” (Zumthor 1993: 222), porque é na relação que ela se constitui. Para compreender uma performance, não podemos segregar os seus elementos constituidores, porque, assim como os indivíduos participantes instituem a performance, o texto também institui os indivíduos e se integra ao repertório. Partimos, então, desta definição que nos permite articular os indivíduos e elementos constitutivos da performance como estratégia comunicacional: A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios linguísticos as represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis. Na performance se redefinem os eixos da comunicação social: o que junta o locutor ao autor; e aquele em que se unem a situação e a tradição. (Zumthor 2010: 31)

Interessam-nos os processos que se articulam no momento das performances e, por isso, olhamos para seus componentes de tempo, ambiente e indivíduos. A performance é o momento em que o texto acontece, que ele é ação. Seja impresso, declamado ou cantado. É o momento em que o texto emerge na relação entre indivíduos que negociam referências e sentidos, a partir da simbolização significada pela voz. Para Zumthor (2010), a performance põe atores em presença e os meios em jogo, considerando como “circunstância” as especificidades de tempo e de lugar. Sendo a performance definida como o momento (e o lugar) em que os atores do processo comunicacional se encontram, o tempo sócio-histórico não é indiferente e comporta valores próprios que devem ser levados em consideração:

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O tempo conota toda a performance. Esta regra diz respeito à natureza da comunicação oral, e não pode ter exceção. Na performance ritual, a conotação é tão poderosa que pode constituir por si só a significação do poema. Na performance de tempo livre, aleatoriamente situada na cadeia cronológica, o efeito tende a se diluir; ele jamais se apaga inteiramente: o fato de que, de súbito, sem razão aparente, eu seja tomado pelo impulso de cantar ou recitar versos às 9h da manhã, ao meio-dia ou ao crepúsculo, em um dia de férias ou indo ao trabalho, não pode ser ignorado, e modula, de certa forma, o sentido da palavra poética que passa pela minha boca. (Zumthor 2010: 171)

A presença dos corpos dos atores coloca em relação a voz e a audição. Trata-se de uma co-presença, que pode ou não ser mediada pelo texto impresso. A performance oral é instantânea. A co-presença é física. Junta cenários, poetas e públicos em um mesmo ambiente e momento comunicacional. É o momento em que o texto emerge e constrói a obra. É uma interação imediata, que não depende de esperas ou de mídias que possibilitem “a mobilidade e temporal da mensagem” (Zumthor, 2010: 27), que aumenta a distância entre produção e consumo. Distância que é quase apagada no momento da performance oral, quando Silvia Penas declama e o público responde e aplaude. Os ambientes em que as performances acontecem são parte do fenômeno comunicacional e são, também, elementos produtores de sentidos. Poetas e públicos se relacionam com o cenário onde realizam as cantorias. As cidades, praças, eventos, bares fazem parte dos sentidos compostos nas performances, que variam de acordo com o lugar onde serão realizadas. Espaços por onde as pessoas circulam dotados de cores , sons, cheiros, possibilidades de sentidos. E as características dos espaços são parte dos sentidos poéticos que emergem na performance: Situada em um espaço particular, a que se liga numa relação de ordem genética e mimética, a performance projeta a obra poética num cenário. Nada, do que faz a especificidade da poesia oral, é concebível do outro modo, a não ser como parte sonora de um conjunto significante, em que entram cores, odores, formas móveis e imóveis, animadas e inertes; e, de modo complementar, como parte auditiva de um conjunto sensorial em que a visão, o olfato, o tato são i gualmente componentes. (Zumthor 2010: 174)

Os corpos interagem, são atores postos em presença e em diálogo em tais ambientes. Corpos que escrevem, que cantam, que se vestem, que se movimentam, que

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caminham, que escutam, que leem, que se distraem, que param para escutar, que pegam os celulares para gravar. Corpos que performam sentidos. Se a performance é a emergência de sentidos que são emitidos e percebidos, realizados pelos corpos, é importante que eles sejam considerados conceitual e metodologicamente como o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à imagem do meu ser; é ele que eu possuo e eu sou, para o melhor e o pior. Conjunto de tecidos e órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro. Eu me esforço, menos para apreendê-lo do que para escutá-lo, no nível do texto, da percepção cotidiana, ao som dos seus apetites, de suas penas e alegrias. (Zumthor 2014: 27)

Os corpos fazem emergir os textos. Os realizam em escritura ou na voz. Os textos dependem dos corpos para existirem. Como materialidades, são parte dos sentidos e das interpretações possíveis. São elementos fundamentais das performances. A definição de uma comunicação como poética depende da atividade do corpo e dos efeitos possíveis, dos sentimentos particulares, dos indivíduos e de suas maneiras “de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, aos tatos das coisas” (2014: 38). O corpo sente a poesia e a transmite, considerando que a performance também está na dimensão do gestual. É pelo corpo que a performance está ligada ao espaço, que emerge e constrói narrativas. O corpo detém a voz e o ouvir, é o que materializa a comunicação poética oral, que caracteriza a presença da performance. Corpos em presença de textos. Gestos que partem dos corpos e que compõem os processos de textualidades. Estabelecem contatos entre si e com os ambientes em que acontecem as performances. Corpos de poetas, corpos de públicos, corpo da pesquisadora, que é também afetada pela dimensão sensível que emerge das feiras e que também performa comportamentos e modos de observação. Os gestos relacionam-se com a oralidade. Com as modulações da voz, interpretam o texto poético, enfatizam palavras, atribuem sentidos. São a forma de corpos estabelecerem relações com outros corpos. Podem ser de rosto, membros superiores, cabeça e busto e de

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corpo inteiro, produzindo as mensagens de forma figurativa e manifestando uma ligação entre corpo e poesia, produzindo sentidos e significados (Zumthor 2010: 220): “O que o gesto recria, de maneira reivindicatória, é um espaço-tempo sagrado. A voz, personalizada, ressacraliza o itinerário profano da existência” (232). Associada ao corpo, mais um elemento figurativo que também produz sentidos e compõe a performance são as vestimentas. O figurino “neutro” confunde o recitante e o público, sendo distinguido pela voz (Zumthor 2010). Mas há também o figurino que marca um lugar de separação, contribuindo para uma caracterização associada a estereótipos ou a elementos identitários, construindo personagens a serem interpretados e performados. Além dos corpos dos poetas em performance, os corpos leitores, de ouvintes e de transeuntes que compõem os cenários das feiras são importantes em um processo de efeitos sensoriais: “O texto poético significa o mundo. É pelo corpo que o sentido é aí percebido” (Zumthor, 2014: 75). Corpos que tocam o mundo e por ele são tocados. E que se tocam entre si a partir das performances. São corpos que transitam, que escutam as cantorias, que compram nas feiras, que comem, que ativam todos os sentidos e os processos de cognição. São os corpos de poetas e públicos. Os poetas podem assumir vários papéis, desde a composição até a declamação dos poemas (Zumthor 2010). Intérprete e públicos são fundamentalmente produtores de sentidos, significados e referências em um texto, a partir da compreensão da textualidade como um processo. E no caso da performance, a obra emerge das relações entre atores, tempos e cenários. A composição é um papel que importa menos que o do intérprete: “O intérprete é o indivíduo que se percebe na performance, a voz e o gesto, pelo ouvido e pela vista. Ele pode ser também o compositor de tudo ou parte daquilo que ele diz ou canta” (2010: 239). Silvia Penas assume ambos os papéis. A ação do compositor seria anterior à performance, e esta acontece no momento em que o intérprete declama a poesia e é ouvida pelo público. São apontadas três formas de atividades dos intérpretes: 1) canta sozinho para um auditório; 2) dois intérpretes cantando alternadamente; e 3) canto de um solista acompanhado por um coro. Silvia Penas transita entre várias formas de interpretação, dependendo da eventualidade de cada performance.

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Esta se impõe ao texto como um referente que é da ordem do corpo, ou seja, “é pelo corpo que nós somos tempo e lugar” (Zumthor 2010: 166). Além da encenação de Cinta Adhesiva, que é parte da declamação, o corpo é percebido também pela presença da voz na poesia: “oralidade significa vocalidade” (2010: 26). São as formas comunicacionais que transitam pela voz e são ouvidas por um público que não necessariamente precisa estar parado atento à declamação para ser capaz de ouvi-la.

Resistência e oralidade A partir das reflexões de Bakhtin (2011), partimos da ideia de que a linguagem é ideológica. Os sentidos que emergem em diálogos, declamações, narrativas, argumentações, e mesmo de cada palavra é dotado de significados que são transformados continuamente em cada enunciação, que, por sua vez, têm condições conformadas pelas eventualidades do instante comunicacional em que acontecem. Em um movimento de divulgação da língua, de utilização em variados espaços, de produção poético-literária, midiática, inclusive afetiva, há grupos de poetas, artistas, jornalistas, professoras e professores dedicados a negarem a falsa ideia de que não se f ala mais galego nas ruas e que a língua estaria morrendo. Silvia Penas, do grupo Cinta Adhesiva, faz parte dessas pessoas e tem em sua performance uma forma de afirmação e de resistência. Tanto do idioma, que ela considera como a língua materna, aquela que ela fala no cotidiano com seus pais, filho, marido, amigos, mas também a que ela estudou na universidade e a língua na qual realiza suas produções artísticas. As formas orais não estão restritas apenas à transmissão de mensagens diversas, mas são partes de processos cognitivos e formas culturais de grupos sociais que têm nessa materialidade seus modos de transmissão tradicionais. É o caso da poesia galega, transmitida pelos impressos, mas também pela oralidade que reforça e reverbera tradições e memórias de uma língua, de uma cultura, de práticas artísticas. Há níveis de oralidade, pois há comunidades que nem reconhecem a escrita como forma de registro e de comunicação. Segundo Ong (1990), é muito difícil para pessoas cuja formação acontece inserida na cul tura letrada, entenderem como se dá o pensamento que se abstém das imagens das palavras escritas: “Atualmente, centenas de línguas em uso ativo nunca foram escritas: nenhuma tem

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um modo efetivo de escrita. A oralidade básica da linguagem é permanente” (Ong 1990: 7, trad. minha). A transição entre as fases da oralidade acontece, envolvendo questões sociais, políticas, econômicas, culturais, religiosas e relacionadas a outras estruturas ( cf. ibid.). Daí a importância da poesia oral galega para o reforço de uma resistência da língua como identidade. Isso porque tais modificações que alcançam as formas de comunicação e de produção e transmissão de conhecimento repercutem em várias áreas da vida socia l e individual. As formas corporais, impressas, digitais e online de diálogos entram nas rotinas das pessoas e transformam o mundo e sua compreensão. Por isso é tão importante considerarmos, no contexto da oralidade, não apenas a voz em si, mas as implicaç ões socioculturais que emergem dela. A oralidade também é um contínuo entre produzir-se e perder-se (Havlock 1996). É a efemeridade comunicativa que, no momento em que emerge, a poesia galega imediatamente deixa de existir como presença e passa a ser memória – e assim, se faz permanência. Sendo que, depois de declamada, sai do âmbito da memória da poeta e alcança a dimensão de uma memória compartilhada. Daí uma forte relação de coexistência com a escrita. É a combinação que agrega potencialidades de permanência, circulação e memorização com as dimensões da performance do corpo e a co-presença. Acontece que a voz é um “instante sem duração" (Zumthor 2010: 12). É efêmera e acaba quando se realiza. O que também aponta Ong (1990) referindo-se ao som, que só acontece quando deixa de existir. O que dificulta os processos analíticos, que nos impedem de voltar ao som para refleti-lo. Uma vez ouvido, ele termina. Torna-se passado. Mas, assim, também se faz continuidade: All sensation takes place in time, but sound has a special relationship to time unlike that of the other fields that register in human sensation. Sound exists only when it is going out of existence. It is not simply perishable but essentially evanescent, and it is sensed as evanescent, when I prono unce the word ‘permanence’, by the time I get to the ‘-nence’, the ‘perma-’ is gone, and has to be gone. (Ong 1990: 32)

A oralidade como modo de comunicação e troca de conhecimentos, como uma forma que se estabelece ao “falar”, apoderada pelos públicos na ação de escutar, teria uma função “exteriorizadora”, assegurando uma circulação desses conhecimentos por diversos modos,

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entre eles a poesia oral: “toda comunicação poética em que, pelo menos, transmissão e recepção passem pela voz e pelo ouvido” (Zumthor 2010: 32). Trata-se de uma poesia com regras de musicalidade que coloca em relações de trocas de sentidos e afetos os atores que se comunicam por este processo. As potencialidades desta poesia se realizam na performance. A poesia galega é múltipla. Como toda poesia. Não falamos de forma unificada, tampouco tentamos esquecer as especificidades de cada movimento poético, de cada artista. Mas, ao atentarmos para a performance, consideramos aspectos históricos e, portanto, políticos e circunstanciais. Falamos de uma poesia realizada e vivida em uma dimensão do presente ocasionada pela produção viva, efervescente e pulsante do grupo Cinta Adhesiva. As eventualidades as performances são fundamentais para a compreensão da ação política da poesia. Falamos, então, de uma poesia galega oral. Performática. E como performance, está articulada pela linguagem e pelos demais elementos do entorno poético que lhe atribui sentidos, conforme discutido amiúde. Os elementos ideológicos estão presentes desde a posição tomada pelos artistas, passando pelos ambientes e eventos em que se apresentam, no público que os acompanha, nas relações estabelecidas socialmente através a arte, na repercussão das apresentações. Um enunciado puro ou "absolutamente neutro" é impossível, pois as es colhas de recursos lexicais, gramaticais e composicionais possuem relações valorativas no discurso (Bakhtin 2011). O indivíduo atribui às palavras significações às quais apreendeu em outros diálogos. O juízo de valor das palavras é atribuído em cada enunciação e está vinculado às condições de uma situação social que produz estes significados. Por isso destaca a relevância da ideologia na construção dos enunciados e em sua significação: "Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia" (Bakhtin 2012: 31). A linguagem se materializa em enunciados. E "a enunciação enquanto tal é um puro produto da interação social" (2012: 126), decorrendo da relação entre indivíduos socialmente organizados e que dispensam a obrigatoriedade de um interlocutor real que pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor

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(2012: 116). Deste modo, o enunciado é determinado pelas condições reais da enunciação, pela situação social imediata. Compreendemos, ainda, que o contexto não é um plano de fundo para a produção, mas é um elemento fundamental que a configura. A significação dos enunciados não está situada em um único indivíduo, mas na forma como a linguagem, como ponte que interliga as consciências, é enunciada e interpretada pelo público. Os enunciados são significados como produtos da interação entre locutor e ouvinte, por isso, o processo de comunicação não pode ser compreendido em apenas um momento, mas deve considerar todos os seus elementos constituintes. E o diálogo é uma das formas mais importantes da interação verbal e significa "toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja" (Bakthin 2012: 127). O poeta é um sujeito social que não está situado em um lugar único - ser poeta não é uma identidade fixa, aliás, a própria ideia de identidade é múltipla, a partir desta concepção - mas que, ao transitar entre seus diversos lugares, produz diálogos distintos que se transformarão em enunciados, seja em poesia, seja nas demais formas de experiências vividas. Assim, os diálogos se constituem em uma rede de produção de significados, pois "qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação ininterrupta" (2012: 128). Os diálogos são constantes e cada enunciação fornece novos elementos para novos diálogos que produzirão novos enunciados, como uma espiral em que não somos capazes de identificar nem sua origem nem seu fim. As interações estão todas encadeadas e dizem respeito à formação dos indivíduos que inclui todos os diálogos e cargas ideológicas que oferecem significados às enunciações estruturadas pelos contextos nos quais se inserem. Por meio da linguagem há uma explicitação ideológica do status social daquele que fala (2012: 121). Porém, como este lugar social não é estanque, tampouco consegue ser determinante de ideologias e discursos. A "atividade mental do nós", ou seja, uma orientação coletiva do discurso, é dotada de contradições internas. Isso porque os indivíduos por mais que sejam influenciados pelo seu lugar social, este não é único. Diversos papéis atravessam o indivíduo e dialogam na constituição de uma consciência ideológica que se materializa em linguagem e se estrutura em enunciado. No caso de Silvia Penas, que é mulher, galega, poeta, professora,

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tradutora, cantora, são diversos os atravessamentos que constituem sua linguagem e sua produção como políticas. Como diálogo, essas ideologias são formas de compreender o mundo que não partem exclusivamente da individualidade dos sujeitos, mas das relações sociais que, inclusive, estruturam os enunciados e permitem graus diferentes de modelagem ideológica, o que implica na impossibilidade de falarmos em determinismos de ideologias de classe social (cf. Bakhtin 2012). Consideramos aqui que as classes e grupos aos quais se vinculam os indivíduos são elementos que dialogam com o contexto da enunciação e que constituem a ideologia manifesta linguisticamente. A escolha de falar e declamar em idioma galego não é determinante de quem nasce e/ou vive na região da Galícia. Trata-se de uma escolha política de Silvia Penas como indivíduo, mas que responde às questões socioculturais vividas em comunidade, para a qual sua atividade artística como ação política retorna na forma de memória e resistência. A chamada ideologia do cotidiano, entendida como "o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados de consciência" (2012: 123), cristaliza os ditos sistemas ideológicos constituídos - a arte, a moral, o direito - nas formas de expressão linguísticas e exercem forte influência sobre as manifestações culturais. Como a atividade de enunciação é de natureza social e não se pode isolar a atividade linguística de sua lógica de diálogo, portanto, do contexto ao qual está inserido, temos a ideologia como elemento fundamental, que compõe todo signo e objeto artístico-simbólico. Neste caso, mais uma vez, reafirmamos a poesia do grupo Cinta Adhesiva como objeto ideológico em sua constituição e em seus conteúdos. Segundo Hall (2013), que reflete o conceito de ideologia de Athusser, as ideologias estão relacionadas à linguagem, que lhes oferece registro material (cf. Bakhtin 2011, 2012) e constituem estruturas de avaliação e compreensão do mundo: "É por isso que devemos analisar ou desconstruir a linguagem e o comportamento para decifrar os padrões de pensamento ideológico ali inscritos" (Hall, 2013: 191). Pensamos, então, nas ideologias presentes tanto na definição do idioma quanto na própria inspiração de Silvia Penas, que ela afirma passarem por questões do feminino – ser mulher, as relações afetivas e familiares,

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em especial com sua mãe. Isso faz parte de seu olhar, de sua percepção, de sua compreensão do mundo. Prefigurado no vivido, configurado na narrativa e refigurado a partir das declamações acompanhadas por públicos que reiniciam o processo mimético. É dentro da cultura e de seus sistemas de representação que experimentamos o mundo, construindo nossos códigos de inteligibilidade e esquemas de interpretação (Hall 2013). Consequentemente, a cultura faz parte das categorias ideológicas de produção de significados e é nela e a partir dela que se dão os diálogos produtores de linguagem, pois não existem culturas isoladas a partir de um determinismo histórico: "As culturas de classe tendem a se entrecruzar e a se sobrepor num mesmo campo de luta" (2013: 290). Assim, sendo a cultura um lugar de produção de sentidos, a cultura popular pode ser definida como um lugar onde transformações sociais são operadas, onde há um duplo movimento de contenção e de resistência. Não é a produção de conteúdos "autênticos", até porque nem as "classes populares" são perfeitamente limitadas em sua constituição e produção e também porque as atividades humanas estão em um constante diálogo, influenciando-se mutuamente. Considerar essa "autenticidade" da cultura popular seria subestimar o poder da inserção cultural: O essencial em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a "cultura popular" em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata se de uma concepção de cultura que se polari za em torno dessa dialética cultural. Considera o domínio das formas e atividades culturais como um campo sempre variável. Em seguida, atenta para as relações que continuamente estruturam esse campo em formações dominantes de subordinadas. Observa o processo pelo qual essas relações e subordinação são articuladas. Trata -as como um processo: o processo pelo qual algumas coisas são ativamente preferidas para que outras possam ser destronadas. Em seu centro estão as relações de força mutáveis e irregulares que definem o campo da cultura - isto é, a questão da luta cultural e suas muitas formas. Seu principal foco de atenção é a relação entre a cultura e as questões de hegemonia. (Hall 2013: 285)

A língua galega está em uma posição de subordinação com relação à dominação do Castelhano como idioma principal. Escolher falá-la no cotidiano e nas produções artísticas – essencialmente atividades culturais – é um ato de resistência. De negação das imposições

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centrais e de valorização da língua como fundamental para uma construção identitária legítima e complexa. A resistência é compreendida como uma linha de força que liga polos distintos: da dominância à subalternidade. Os sujeitos estão posicionados no decorrer desta linha entre os polos. Os indivíduos não se encontram divididos entre dominantes e subalternos, numa separação rígida e restrita, mas oscilam a partir de suas práticas concretas. Estando dominância e subalternidade ligadas de modo a criar interseções e divisões sempre moventes. E sua localização depende das práticas de resistência que exercem, flutuando por esta linha, aproximando-se dos polos em momentos distintos. Em nenhuma situação o indivíduo é englobado completamente por um extremo do polo, justamente porque as situações sociais diversas produzem sujeitos que se localizam em lugares distintos, de acordo com cada contexto. E o contexto do Cinta Adhesiva é a resistência que emerge, como já mencionamos, na linguagem tanto pela definição do idioma quanto pelo aspecto feminista marcado por Silvia Penas. A poeta não reivindica o título político do feminismo, mas, como discutimos mais adiante, é uma ação de reconhecimento, de valorização, de conquista de espaço dos trabalhos artísticos realizados por mulheres. É resistência diante do privilégio masculino de visibilidade, de referência e de reconhecimento – que muitas vezes não precisa de defesa, como o trabalho das mulheres. Essa resistência é manifesta na linguagem, como definida por Bakhtin (2011), na performance, conceituada por Zumthor (2010), nas práticas culturais, discutidas por Hall (2010), que são os operadores apresentados teoricamente até aqui e que direcionam metodologicamente nossa observação analítica.

O sentir político-poético de Silvia Penas O grupo Cinta Adhesiva é um coletivo independente formado pela vocalista e poeta Silvia Penas e o músico Jesús Andres. Os artistas se apresentam em eventos públicos ou em espaços fechados, realizando declamações acompanhadas por música. As composições são de Silvia Penas e todas as poesias são em língua galega – exceto algumas músicas estrangeiras que são, eventualmente, incorporadas aos shows.

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Silvia Penas faz parte do que podemos chamar de poesia contemporânea galega, ou seja, poetas que estão em plena atividade de criação e de manifestação política, que vive a poesia em ação, sem prendê-la em escritos fechados em livrarias, gabinetes e bibliotecas. Poetas como Yolanda Castaño, María Lado, Lucía Aldao fazem parte dessa poesia que encontramos nas ruas, em bares, em praças pela Galícia. Os escritores que inician a súa andaina literaria a comezos da década dos noventa seguen polo tanto a reescribir a tradición, aínda que botando man, as máis das veces, da crítica, o humor e a reivindicación, cando non dun complexo sistema de deconstrución do discurso herdado. (Pereira, 2006: 101)

Essa tradição é reelaborada pela própria atividade poética que questiona, incita discussões, provoca desconfortos e faz com que, a partir das contradições remexidas, a poesia seja viva e permaneça em ação e elaborando transformações, como Pereira (2006: 94) aponta ao refletir sobre os movimentos de intertextualidade nas poesias pós 1975. A poesia pós-noventa, em que Silvia Penas e o grupo Cinta Adhesiva estão temporalmente situados, aparece “contra os excesos do culturalismo e contra unha práctica da intertextualidade inmobilizadora dos procedementos de creación, contestada polas voces novas cun discurso máis directo baseado na naturalidade e na comunicación” (ibid.). Por isso, nos interessa observar os aspectos de performance que configuram a política como processos comunicativos, artísticos e textuais. A apresentação de Combarro, em junho de 2017, em Pontevedra, Galícia, parecia mística, encantada pelas bruxas do ambiente. Silvia Penas carregava um livro de Clarice Lispector para “oferecer”de presente a uma amiga. A professora Ria Lemaire, emérita da Universidade de Poitiers, da faculdade de Letras, especialista em poesia medieval em língua portuguesa, estava presente. Fascinada pelas bonecas de cabelo assanhado e acompanhadas de vassouras, pelas ruas estreitas e de pedra, que marcavam as características da Idade Média na arquitetura. Igrejas, bares, lojas, casas, hórreos. Havia poesia em cada espaço daquele lugar.

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Foto: Gislene Carvalho

Os versos declamados por Silvia Penas, como uma performance trabalhada por Zumthor (2010), fazem emergir, tornam real uma série de ideias, transformadas em sons que se espalham pelo ambiente e, portanto, o constituem. A montagem dos equipamentos de som parece destoante do cenário medieval, mas o grupo não é uma encenação de passado, mas um presente que carrega tradição – da língua, da cultura – que torna híbrido e real a experiência poética que, portanto, é também política. Na performance, ao declamar em galego, Silvia marca seu posicionamento ideológico nem precisar falar sobre ele. Ao passo em que traz à presença do público uma manifestação artística que tem o idioma galego como presença do tempo. Não é uma língua do passado, mas está ali, utilizada por um grupo contemporâneo, que é político para além das temáticas políticas. Trata-se de uma manifestação que é política em seu contexto cultural e situacional, o que lhe atribui sentidos políticos e ideológicos a partir da escolha do idioma em que a declamação acontece. São os elementos extratextuais, o mundo prefigurado da narrativa, o que oferece os elementos para que ela se apresente de determinada forma e não de outra, e a partir da qual emergem os sentidos. E é como parte do contexto que a performance se faz de um determinado modo: a escolha da língua se faz política pelo contexto de exclusão pela qual os falantes de galego passam no cotidiano. Ou como as artes estão expostas dentro da Espanha e fora da Galícia, havendo uma segregação e um julgamento em torno da língua não hegemônica. Essa situação faz emergir o sentido político da poesia do Cinta Adhesiva.

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Ao mesmo tempo em que, por essa produção, o grupo cria um universo de sentidos possíveis – no âmbito do real, do mundo refigurado e prefigurado novamente da narrativa – e, assim, é resistência e luta. A poesia é formada e formadora do real, que lhe dá elementos para a composição e onde a composição emerge. A performance, como ação, é uma conduta afirmativa. Uma encenação, uma forma de posicionar-se diante do público, em que os atores – sejam na composição ou interpretação – assumem a responsabilidade de personificar-se, de darem nome e imagem às ideias que realizam. É necessário que haja a figura do artista, emprestando sua face à arte que empenha. A face como elemento do corpo, no caso da declamação. Ou o que poderia ser o movimento da escrita em outras formas narrativas. Mas, no caso do Cinta Adhesiva, ali acontece uma manifestação ideológica e cultural que é imediatamente ligada à imagem de Silvia Penas, como a artista que assume a responsabilidade pela obra que desenvolve. E, assim, há uma modificação nos conhecimentos de todos os indivíduos envolvidos na performance. Como ação, são todos participantes das relações emergentes na narrativa, na declamação. E, a partir dela, entra na refiguração do mundo, sendo, então, novos objetos de conhecimento a circular no mundo, que passa a ser prefigurado para novos círculos narrativos. A performance é a troca de conhecimentos que acontece na relação entre artistas e públicos. Silvia Penas e Jesús Andrés têm o idioma galego como a língua dessa circulação de conhecimentos, que carrega toda uma poética das vivências e emoções cotidianas. A poesia é uma forma de experiência da língua. Os elementos internos, que compõem a tessitura narrativa dos versos do Cinta Adhesiva são, como define Jesús Andrés, sinestésicos. São os sentidos alcançando percepções distintas e realizando associações, a princípio, incoerentes. Mas essas formas são associações que o pensamento constrói, justamente por meio das percepções, que convocam cores, aromas, temperaturas e a elas atribuem memórias. Jesús considera que a poesia de Silvia é sinestésica. E é nesse contexto de sentidos híbridos que Silvia aponta que “azul é a cor más triste”, em um de seus poemas declamados e acompanhado pela música “Blue Velvet”. A cor associada a sentimentos, a sabores, a perfumes parece uma confusão de sentidos tácteis, mas seus significados estão no campo das interpretações e daí a possibilidade de sinestesias

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por parte da poesia. E é justamente por essa sinestesia que importa a aura mítica das “meigas”2 de Combarro, porque faz emergir, amiúde, sentidos referentes à importância da declamação feminina, em língua galega, carregando uma obra de Clarice Lispector, cujas produções também passam por uma grande reflexão interna. São elementos que parecem externos ao texto, mas são fundamentais para os sentidos que emergem da obra poética performada. Porque a performance é resultado da integração de cada um dos elementos. E isso aparece, inclusive, na forma como o grupo se define: Disciplinas como poesía, música, videoarte e posta en escena reméndanse unhas ás outras nun espectáculo pensado para o directo, para acción, pois xorde da intención de apelar á escoita e á visión pero tamén a outras partes sensibles e sensoriais do corpo de maneira que o que se produza sexa unha “vivencia”. (CINTA ADHESIVA 2018)

Mais uma vez, reforça-se a importância do lugar em que a performance acontece. As apresentações do grupo incluem sons de ecos, músicas cujas batidas permitem outros movimentos sinestésicos e a apresentação de vídeos que acompanham os versos, mas que não têm condições físicas de serem apresentados em espaços abertos e iluminados, tampouco combinam com as cores do verão europeu, que chega a ter sol até as 22h. Então, explora-se outros elementos do cenário para permanecer-se uma composição que associa audição, visão e as diversas formas de sensibilidade do público.

Foto: Gislene Carvalho

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O que se manifesta também dentro dos textos, que, mais uma vez, apresentam uma forma de hibridismo político-poético, que tratamos como mais uma forma de expressão sinestésica: na poesia em língua galega, declamada por mulheres, também se fala sobre o feminino. Desafios, lutas, sentimentos, resistências. Que abraçam as ouvintes falando um idioma que lhes é materno – mais uma vez a ideia da mulher no centro. Declamar em galego é uma acolhida às mulheres de posicionamento nacionalista declarado e àquelas que, sem refletir de forma consciente dos sentidos políticos, também estão ideologicamente abarcadas como público e tendo sua importância reconhecida e valorizada. Assim, as temáticas trabalhadas incluem as relações de gênero e suas dimensões de resistência às opressões. Reiteram a força das lutas das mulheres no cotidiano, no amor, na criação dos filhos, inclusive, para continuarmos existindo, diante das violências de gênero tão recorrentes: había varios elementos que revelaban a inconsistencia da declaración: que aquel día algúns rostros, un rostro, ese rostro traía nas papilas un sabor que non se correspondía co corazón de ananás atopado na bolsa do lixo no papel ditado pola muller dos tacóns que fala da chuvia ou da auga da lavadora e do óxido da guitarra do óxido das cordas vocais a muller, unha muller, esa muller lila dos tacóns o lila sobre a pel florece dunha maneira especial aínda que aquela tarde

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o río cursase dentro da casa e non funcionase ben a lavadora nin fose primavera. (Silvia Penas, “Muller Lila“)3

Nestes versos de “Muller Lila”, Silvia traz uma dimensão da violência que transita entre a física e a simbólica, quando, ao relatar uma agressão, a mulher não recebe crédito por sua denúncia. E permanece na “escuridão” da dor, sem acolhida, sem justiça. Uma situação do cotidiano das mulheres, que passa despercebida nos relatos, na mídia, mas que declamada, interpretada, performada, toma uma dimensão política de visibilidade e sensibilização. Ao fazer-se em língua galega, grita duas vezes por um olhar que se engaja e se faz enxergar. Outro poema que traz uma dimensão do cotidiano feminino cantado pelo Cinta Adhesiva é “A miña nai”, em que Silvia Penas afirma referir-se às invisibilidades de mulheres na indústria da moda. E, principalmente, às invisibilizações de mulheres que trabalham em casa, que cuidam dos filhos, que têm como profissão serem mães e que, portanto, estariam afastadas da vida sociocultural externa ao ambiente doméstico. A miña nai tamén era unha costureiriña bonita como a de Rosalía e como túa nai e tamén hai algo dela que non me parece bonito cando a vexo: as uñas tan gastadas [...] A elas que nos edificaron polas marxes do Lagares con pantalóns de pinzas e chaqueta ben cortada [...] A elas que non saben deses libros que non lemos

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nin coñecen a isoglosa que atravesan Que non falan con metáforas que ese vídeo de youtube no que apareces lles resulta inservible porque non che fai xustiza [...] A elas nómades deste anaco de historia que as oculta a vida débelles [...] (Silvia Penas, “A miña nai") 4

Estes dois poemas são exemplos de versos em que temas femininos aparecem em tons de questionamento. Escancaram-se realidades que são apagadas e, muitas vezes, ignoradas como violências simbólicas que terminam por subjugar os papéis sociais das mulheres. Ao abordar o tema com um recorte que aciona aspectos de incômodo e de tentativa de transformação dessas situações, Silvia Penas marca sua posição ideológica de resistência e combativa. Traz uma forma estratégica de uso da poesia para tratar de um tema que é tão caro à sociedade. E, assim, dá visibilidade às questões de gênero e, a partir disso, pode gerar um movimento de mudança – pelo menos de percepção. A performance da declamação convoca esse acionamento político, um engajamento entre artistas e públicos que, naquele momento, compartilham o mesmo espaço e tempo – estão em co-presença. Em uma perspectiva hermenêutica, a experiência da declamação de tais poemas em um espaço que convoca imagens de “meigas” – associadas no mundo ocidental a uma hierarquia masculina, cristã, que condenava como hereges as mulheres que ousassem ser donas de sua própria vida, ou que tivessem conhecimentos sobre tratamentos fitoterápicos, tratados feitiços mágicos – como é o caso de Combarro, nos traz sentimentos e afetos que não podem ser ignorados como produtores de sentidos. As mulheres que ousam sair de seus espaços definidos pelos homens, como as declamadas por Silvia Penas, transformam-se nas “meigas” que compõem o cenário da declamação. É neste espaço que circulam os corpos de Silvia, de Jesús, do público. Silvia usando preto, Jesús de máscara, público transitando entre as lojas de souvenirs, parando para ouvir,

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crianças dançando ao som da música que acompanhava os versos, declamação pausada para que o grupo de dança galega atravessasse a praça onde acontecia a declamação. Fazia calor ao sol e o vento do mar esfriava os corpos à sobra. Todos aqueles corpos estavam em performance, compondo sentidos possíveis, produzindo conhecimentos que circulavam pelas palavras, pelas cores, pelas roupas, pelo ambiente. Os corpos do público têm relação direta com a performance pré-elaborada e com o seu andamento. As percepções com relação à concentração, à atenção e ao interesse do quem assiste à declamação são percebidas e vividas pelos artistas. Antes da apresentação de Combarro, por exemplo, Silvia Penas sabia que eu, brasileira, estaria no público. Então, ela escolheu uma música de Adriana Calcanhoto para incluir no repertório da apresentação, criando, assim, uma identificação mais próxima. Isso aconteceu também em outros momentos, quando o Cinta Adhesiva foi contratado para uma apresentação em uma escola, a escolha dos poemas passou por uma avaliação de adequação do espaço e das preferências das professoras que assistiriam a apresentação. Mas durante a apresentação, o público é constantemente observado. Silvia incorpora a performance de poeta e seu corpo parece crescer em direção ao público que mergulha em sua voz, em seus sons, em seu azul. É como se as borboletas que compõem a identidade visual do grupo voassem em meio às apresentações, carregando mais elementos da aura mística e forte da montagem musical. A voz galega em cenários marcantes da Galícia – como Combarro ou a praça central de Ourense – gritando as dimensões cotidianas das vidas das mulheres reverbera em cada prédio, igreja, monumento, em cada pedra das ruas. Reverbera como o som musical pulsando nas entranhas do público e acompanha a todos no fim de cada apresentação. Nos próprios artistas, nas pesquisadoras, nos transeuntes, nos organizadores dos eventos, nos garçons dos bares e no público que está atento e que, querendo ou não – sendo a audição um sentido involuntário, vai ter uma experiência de ouvir poesia feminista em língua galega.

Considerações finais Estre trabalho trouxe uma espécie de movimento metodológico das epifanias da observação participante da pesquisadora em apresentações do grupo Cinta Adhesiva na

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Galícia, concentrados na apresentação realizada em Combarro, em junho de 2017. Esta análise, realizada conceitualmente a partir da proposta teórica sobre performance em Zumthor (1993, 2010, 2014) traz apontamentos sobre aspectos políticos na poesia feminista de Silvia Penas. Um achado fundamental do caminho percorrido até aqui faz referência à não necessidade de autoafirmação por parte de poetas de seus posicionamentos políticos. A partir de nosso posicionamento metodológico em Gumbrecht, os movimentos nãohermenêuticos possibilitam que as interpretações variem e que os sentidos que emergem dos textos são resultantes dos conjuntos de operadores que tornam possível sua materialização enunciativa, como aponta Bakhtin (2011). Deste modo, temos que tanto o uso da língua galega em festivais apresentações e eventos como a abordagem de temas relacionados a questões de gênero, nesse caso específico sobre universos simbólicos femininos, dispensam o engajamento consciente das e dos artistas. Porque as ações que suas obras alcançam na afetação do público e em um movimento de ressignificação destas obras no ambiente da recepção, estão além da dimensão da autoria. Mas essas questões apontam para o início de uma nova reflexão teórica em torno da dimensão da autoria nas narrativas que não compete a este texto agora. Mas deixa o trabalho de reflexão aberto para uma continuidade futura. Em decorrência das reflexões apontadas até aqui, percebemos que a poesia de Silvia Penas apresentada no grupo Cinta Adhesiva contribui para uma valorização simbólica e cultural da língua galega como patrimônio coletivo. E que as poesias de temas femininos/feministas carregam sentidos de incômodo com os lugares ocupados político, social

e

culturalmente

pelas

mulheres. Sendo,

então,

potente

mobilizador de

transformações sociais.

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NOTAS 1 “Nem o domínio institucional mais opressivo da dimensão hermenêutica poderia reprimi r totalmente os efeitos de presença da rima, da aliteração, do verso e da estrofe. Apesar disso, é significativo que a crítica literária nunca tenha sido capaz de reagir à ênfase que a poesia confere a esses aspectos formais - exceto para instaurar "repertórios" extensos, entediantes e intelectualmente nulos que listam por ordem cronológica as diferentes formas poéticas nas diferentes literaturas nacionais, e exceto na chamada "teoria da sobredeterminação", que defende, contra a evidência mais imediata, que as formas poéticas sempre duplicam e reforçam estruturas de sentido prévias.” (Gumbrecht, 2010: p.40). 2 Tradicionalmente, não só no sentido de bruxa, mas também de mulher velha, sábia, conhecedora da medicina popular, feiticeira. 3

Letra transcrita do poema oral “Muller Lila” a partir de áudio gravado em arquivo pessoal.

4

Letra transcrita do poema oral “A Miña Nai” a partir de áudio gravado em arquivo pessoal e disponível em

https://soundcloud.com/cintaadhesiva/01-a-minha-nai. Acessado em: 20 de julho de 2017.

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Maria Gislene Carvalho Fonseca

Maria Gislene Carvalho Fonseca é doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) com estágio de Doutorado Sanduíche em Estudos Literários na Universidade de Vigo-Esp/Cátedra José Saramago. Mestre em Estudos da Mídia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com pesquisa na linha de Estudos da Mídia e Produção de Sentido. Foi professora do curso se Jornalismo da Universidade Federal do Ceará. É graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo (UFC). É pesquisadora na área de comunicação, memória e cultura com ênfase na poesia de cordel. Membro do grupo de pesquisa Tramas Comunicacionais e da Cátedra internacional José Saramago. É autora da dissertação “Folhetos de cordel entre realidade e ficção cotidiana” e de vários artigos e capítulos de livros sobre poesia, performance e jornalismo.

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±MAISMENOS± (Miguel Januário) Artista, performer e designer. Doutorando na FBAUP.

Como é que definirias o teu trabalho artístico? Como um trabalho de intervenção que usa as mais diversas formas, suportes e linguagens para estimular o pensamento crítico do público, por vezes de uma forma mais observadora, outras vezes mais provocadora. Como se estabelece a relação entre o poético e o político no teu trabalho? Penso que no meu trabalho a relação entre os dois é simbiótica - relacionam-se e vivem entre si. O uso da imagem (seja na performance, na fotografia, vídeo ou na instalação) ou da palavra (eixo central do projecto e da maioria das intervenções) são o princípio, não só para a crítica, mas para a criação de imaginários e de diferentes realidades e leituras por parte de quem vê as obras. A própria ideia do 'maismenos', expressa no símbolo que assina todas as intervenções do trabalho (±), é ela própria ambígua e ambivalente, procurando promover a discussão, diferentes perspectivas e leituras. Como valorizas o impacto real e a influência política da tua obra na sociedade? Acredito que o impacto mediático seja o mais palpável a par do crescimento do próprio projecto, que é também em si resultado desse impacto. Apesar disso o resultado mais significativo penso que esteja na forma como as pessoas se relacionam com o projecto: querendo fazer parte, contribuir, participar. Principalmente a partir do momento em que decidi transformar o maismenos em partido político - a forma como muitas pessoas se aproximaram e quiseram fazer parte.

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±MAISMENOS± (Miguel Januário)

Em termos de intervenção política no espaço público, existem numerosos casos de criação artística de elevada ressonância. Há algum exemplo que consideres especialmente significativo na actualidade? Existem muitos artistas a trabalhar nestes campos e com diferentes abordagens tanto a nível estético como conceptual. Alguns para mim são uma grande referência, ora pela estética e temática do seu trabalho, ora pela forma como conseguem através das ferramentas de divulgação passar a sua obra para o público e dessa forma ter impacto. Isac Cordal, Icy and Sot, Banksy ou Bordalo II são alguns artistas que valorizo muito e que conseguem chegar próximo do público. Apesar de estes autores terem grande valor para mim, penso que neste momento o maior impacto e escala vem dos movimentos artísticos feitos por anónimos: grupos, movimentos, associações, indivíduos que se exprimem de uma forma global e constante e utilizam as redes sociais para passar a sua mensagem. Vimos exemplos disto nas últimas eleições norte-americanas, nas marchas das mulheres, nos protestos anti-guerra, etc.

±MaisMenos± (i.e. Miguel Januário) é um artista, performer e designer portuense. Estudou 294 design gráfico e desenvolve, desde 2005, o projecto ±MaisMenos± de forma profissional como se fosse uma marca comercial, mas com uma mensagem crítica em relação aos sistemas político, económico e artístico. O projecto, que entende a arte (urbana) como uma actividade política, combina diferentes acções de street art (graffiti, performances, objectos artísticos), que depois são documentadas na internet e/ou em exposições e conferências. Recentemente, Januário transformou o projecto ±MaisMenos± em partido político que participará nas próximas eleições ao parlamento europeu. Documenta o seu trabalho no Facebook e em Instagram.

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Isabela Figueiredo Escritora e professora.

Como é que definirias o teu trabalho artístico? Interessa-me a mudança, a evolução, o crescimento cívico e humano. O meu trabalho parte de mim, mas é virado para fora, para o outro, que é onde quero chegar. Quero pôr os dedos nas feridas, não para as fazer doer, mas para dizer “atenção, está aqui uma ferida, vamos observá-la, cuidar dela.” Há um sentido pedagógico nisto. Eu adoro Portugal. Ao contrário do discurso comum, observo que somos um povo muito forte, cheio de nervo, criatividade e com uma capacidade de adaptação enorme. Tenho muito a dizer-nos neste aspeto, até porque como sou um bocado estrangeirada, por ter nascido e vivido os primeiros anos em África, consigo ver-nos de fora para dentro. O meu trabalho é sobre o que fomos, o que somos enquanto indivíduos e povo. É uma reflexão e uma procura de caminho. E aquilo que vejo é bom. O meu trabalho é muito honesto, idealista e um bocado inocente, mas não faz mal que assim seja. Como se estabelece a relação entre o poético e o político no teu trabalho? Por osmose, exatamente como na minha vida. A minha vida está condenada a ser muito política, porque observo, penso, opino, insurjo-me, sou voluntariosa e decidida. Estou sempre em conflito, mas é um conflito positivo, que procura soluções. É a luta própria de quem está a viver e se recusa a uma posição passiva. A poesia surge de todo o lado, porque ela vive connosco. É uma energia despreconceituosa, de uma verdade que vê bem demais e corre o risco de cegar. Se não a descobrimos é porque não estamos despertos, porque não

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Isabela Figueiredo

fomos ensinados a vê-la. A minha vida quotidiana, a minha pequena vida, as coisinhas excêntricas que faço, o que digo às minhas cadelas quando estamos sentadas ao sol, está tudo cheio de poesia. No outro dia, sentei-me na varanda a ler poemas a um pombo que recolhi com a asa partida, para ele não se sentir só. Quando me apercebo da poesia, sorrio e fico feliz. A minha escrita bebe aí. Como valorizas o impacto real e a influência política da tua obra na sociedade? Faz-me essa pergunta daqui a dez anos. Agora consigo só dizer isto: o Caderno de Memórias Coloniais pôs a questão da memória recente na agenda política. Hoje, todos falam sobre colonialismo, racismo, descolonização, mas não antes do Caderno. Já é alguma coisa, mas não me basta. Em termos de intervenção política no espaço público, existem numerosos casos de criação artística de elevada ressonância. Há algum exemplo que consideres especialmente significativo na actualidade? Gosto muito do movimento street art. Este país está cheio de jovens talentosíssimos. Os bairros da Margem Sul guardam tesouros. Mas há um artista que faz arte mural com restos de lixo, de quem gosto muito. Chama-se Bordalo II.

Isabela Figueiredo é escritora e professora. Nascida em Lourenço Marques, Moçambique, veio para Portugal em 1975 na condição de retornada. Os seus primeiros textos foram publicados em 1983 no DN Jovem, suplemento já extinto do Diário de Notícias. Além de numerosos contos em revistas, publicou até agora: Conto é como quem diz (1988, Prémio da Mostra Portuguesa de Artes e Ideias), Caderno de Memórias Coloniais (2009) e A Gorda (2016, Prémio Urbano Tavares Rodrigues 2017). É autora dos blogues O Mundo Perfeito e Novo Mundo.

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Inquérito

Arturo Casas Professor de Teoria da Literatura na Universidade de Santiago de Compostela

Como é que definirias o teu trabalho artístico? A tarefa tem as suas complexidades. Sobretudo porque em todo relato desta índole – um balanço do por ti feito – se propende acho à legitimação da voz enunciadora e à validação do que supostamente se fez ou se deixou de fazer. No meu caso, para além do anterior, dá-se a dupla produção que se consigna na questão formulada, embora a primeira (a artística) cessou há mais de vinte anos como prática com alguma continuidade. Publiquei três livros de poesia nos anos 90, poder-se-ia dizer que atentos à exploração do descentramento dos sujeitos que representam a ação de conhecer, nomeadamente de conhecer o outro, ou também de autoconhecer-se e depois descrevê-lo ou contá-lo dalguma forma. Na minha perspetiva atual, pouco disso, como poética pessoal ou pública, conserva maior validez ou interesse. De facto, a poesia que escrevi posteriormente, de forma sempre casual, sem propósito de formalizar-se como obra, teve um tom de retificação em certa medida política; e, por seguir com o trocadilho, quis ser desobra. Alguma coisa tem a ver isto que comento – o da mudança, também o de tentar deslocar-se – com a atividade dita académica, tanto a crítica como a de signo mais sistemático, com as óbvias perguntas pelo método e o objeto dos estudos sobre o literário, o artístico, o político (Mouffe)…; também com as perguntas sobre as condições funcionais dos sistemas culturais e políticos, pela dialética entre os campos de produção ideológica e do poder, pela correlação entre o local e o global através duma questionada esfera pública mundial (Fraser)… Outro pano de fundo quanto ao trabalho artístico veio marcado por unha desafeição séria a respeito da ideia ser-autor, que nalgum momento teve igualmente umas coordenadas políticas ligadas, por uma parte, à

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Arturo Casas

duvidosa legitimidade/utilidade de tomar a palavra (sendo alguém o que é, em diversos planos, que até dá apuro detalhar, mas que conduzem à velha questão de a quem e que representa a voz com a que enuncias/intervéns) e, por outra, às condições de ser partícipe duma cultura ‘menorizada’ que se debate entre um programa político dissoluto (que conta com o poder do Estado e com os dispositivos em que delega, muito potenciados nas regras do jogo impostas pelo neoliberalismo e pelo controlo dos meios de comunicação) e, na (suposta) outra beira, a ausência da força e da coesão precisas para tratar de virar essa situação terminal, coisa que afeta aos espaços não só institucionais mas também aos de base, embora este seja o enorme mérito histórico do associacionismo cultural galego já desde os tempos da ditadura franquista. Um setor, nem excessivamente amplo nem relevante, do trabalho crítico e teórico desenvolvido nestes anos por mim é possível que tivesse aspirado a contribuir modestamente a assinalar essas evidências a fim de que uma massa crítica contra-hegemónica se reconheça a si própria, no meu país e noutros, como alternativa. Outro setor, também reduzido, orientou-se a outra funcionalidade que acho problemática: tratar de determinar, sempre que possível assinalando-o, aquilo que contemporiza ou ampara o que julgo negativo para superar o estado de coisas descrito. E aí é onde entram, por exemplo, as práticas (dominantes) duma crítica improdutiva. Como se estabelece a relação entre o poético e o político no teu trabalho? Nos dias de hoje contemplo essa relação sob unha perspetiva de fundamento sociológico, que, entre outras coisas, segundo acabo de manifestar, resitua a dimensão autoral e faz que esta se interprete à luz das também velhas questões – procedentes da pragmática e da análise crítica do discurso, mas já antes da retórica – sobre o que se pode pensar e o que se pode dizer e publicar; algo sempre bastante condicionado, também no campo académico, segundo resulta óbvio. Em qualquer caso, coincido em boa medida com as propostas que diferentes teóricos atuais têm exposto sobre o assunto, com certeza de forma nem sempre coincidente. Por exemplo, no referido a quem seja o sujeito da produção artístico-literária, que eu acho – por exemplo com Badiou – que deixou de ser aquele indivíduo dotado de determinadas capacidades, posições, influências, consagração…, para passar a ser realmente um sistema de obras como configuração. Interessa-me especialmente também, sem nos sairmos deste plano, a observação devida a Bourdieu sobre a leitura ou receção dos textos

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Inquérito

literários. Em algum modo converge com o que acabo de assinalar. Ler uma autora consistiria assim no básico em determinar em favor de quê e em contra de quê escreveu (nem só em sentido ideológico, mas no plano geral duma política estética, a modo de Rancière). Dito doutro modo, consiste em entender a sua agencialidade no espaço dos possíveis dado no momento da sua intervenção. E a verdade é que isto parece válido quer para falar de poesia quer de escultura, de crítica ou de teoria literária. Como valorizas o impacto real e a influência política da tua obra na sociedade? Seria ingénuo pensar que essa influência exista numa dimensão puramente positiva, medível, quantificável. Porém, e sem me deter agora – em consequência com o antecipado há um momento sobre a individualidade criadora ou produtora – nem no meu caso particular nem em nenhum outro de maior entidade que a minha, desconfio do facto de que a produção artística, e também em concreto a literária, possua capacidades relevantes para modificar o reparto do sensível, os processos de subjetivação e, em definitiva, as possibilidades efetivas de cambiar isso que na pergunta se formula como “sociedade”, mas que também poderia ser chamado de “mundo”. No entanto, e volto ao de antes, será o sistema de obras e a agência múltipla, sempre relacional, não necessariamente coordenada em sentido estrito embora si disposta a (e suscetível de) procedimentos de tradução ou inteligibilidade mútua (no sentido de Boaventura de Sousa Santos), a que atinja essa influência dadas as circunstancias favoráveis. O processo histórico desse desenvolvimento, desse logro, poder-se-ia comparar ao que supõe hoje em dia a presença iniludível do pensamento feminista, ele mesmo múltiplo e em permanentes reformulações. Hoje não se pode pensar dum fora absoluto do feminismo, como ainda se podia fazer (digamo-lo assim) há por exemplo um século. Digo isto, por suposto, tendo presentes as diferenças geoculturais, de escala histórica, coloniais ou neocoloniais e de toda índole que afetam o assunto. A literatura não pode modificar o mundo nos metros e escalas que correspondam a uma duração breve, imediata, experimentável ao vivo e em direto. A arte também não. Nem sequer a filosofia política pode fazê-lo. Hoje há toda uma classe de ‘portavozes’ a tentar inculcar-nos que nem a própria política pode mudar as coisas... Os programas das vanguardas históricas e das neovanguardas ainda tinham a confiança, em alguma medida, de que isso podia ser logrado. Eu prefiro pensá-lo no médio prazo. Pensando todo o anterior

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Arturo Casas

em termos de discursividade, está claro. Porque o mundo não só o mudam os discursos. Existem outros métodos, que não entram num livro de poemas nem só no que se diga ou pense. Em termos de intervenção política no espaço público, existem numerosos casos de criação artística de elevada ressonância. Há algum exemplo que consideres especialmente significativo na actualidade? Tudo o que for arte e intervenção públicas acho que tem de seu um interesse particular no plano que aqui estamos a debater, em especial de se vincular nalgum sentido com movimentos emancipatórios e de liberação, do signo que for. Sigo com especial interesse o labor de quem é capaz de articular discursos teóricos com produção crítica e atividade artística. O caso de Mieke Bal, por exemplo, parece-me paradigmático. Aqui entra de novo, de todos as formas, algo que antecipei na primeira questão. O assunto não tanto das legitimidades como das necessidades. Continuamos a precisar do discurso hegemónico, em perspetiva hegemónica, ditado por agentes hegemónicos, nos diversos níveis que se queiram contemplar, incluído o do mercado? Eu, particularmente, acho que não. É sempre mais oportuno e efetivo o contra-hegemónico nos planos epistemológico, político, artístico…? Também não teria a certeza, embora contenha práticas associadas com uma vantagem importante, a de serem como mínimo presuntivamente novas na sua modulação e concreção material. São assuntos complicados, porque poderiam conduzir, em definitiva, a manifestarmo-nos contra o acesso ao discurso público de determinados indivíduos, ou pelo menos a expressar que nada do que possam dizer interessa em excesso para tratar de modificar as coisas num sentido mais justo, razoável, sustentável… o mundo (por exemplo, por eles serem brancos, ou varões…), ou nem sequer as práticas artísticas saídas da sua mão. Em todo o caso, e como regra geral, acho que haveria que ir deixando passo nesse terreno da produção artística a todas as vozes e olhadas que até ao presente viemos, por ativa ou por passiva, silenciando, apagando.

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Inquérito

Daniel Salgado Poeta e jornalista galego.

Como é que definirias o teu trabalho artístico? Escribo poemas. Quero que se inscriban na longa e diversa secuencia artística que, desde inicios do século XX, intenta acompañar ou nace do movemento real que pretende suprimir o estado de cousas existente. Como se estabelece a relação entre o poético e o político no teu trabalho? Como inevitábel. O político forma parte da miña existencia cotiá, ben en sentido forte, ben en sentido laxo. Daquela, acaba por se introducir tamén na escritura -ben en sentido forte, ben en sentido laxo. A escritura tamén forma parte da existencia cotiá. A partir desta realidade fundacional, a relación entre o poético e o político presenta numerosos ángulos. Non sempre é posíbel atender a todos. Na actualidade, e na esfera da escrita -é dicir, sen repararmos na esfera da produción e distribución do obxecto libro, por caso- obsesióname procurar poemas en que a súa política dea conta da opresión cotiá, doméstica, do traballo -é dicir, do vector fundamental da vida- nun país da periferia do centro capitalista que acaba de sufrir unha brutal devaluación social. Quero evitar o discursivismo e certa retórica -que busquei en certos tramos da miña obra-, ademais da lingua de madeira, e dar cun ton menor, cunha política e cunha poética humildes pero intransixentes. Coido que non estou sendo capaz. Como valorizas o impacto real e a influência política da tua obra na sociedade? Son incapaz de valoralo. Só agardo que os meus poemas actúen sobre a conciencia de quen os le. Pero tamén son incapaz de valorar se o fan.

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Daniel Salgado

Em termos de intervenção política no espaço público, existem numerosos casos de criação artística de elevada ressonância. Há algum exemplo que consideres especialmente significativo na actualidade? Ás veces considero que o importante é manter unha ollada política emancipadora sobre o que sucede. É dicir, sobre todo ser quen de descifrar a intervención política reaccionaria no espazo público. Decatármonos de como, por exemplo, a cidade é cada vez máis un lugar unicamente destinado a creación e acumulación de plusvalía por parte dos propietarios. Velaquí unha brutal intervención política no espazo público, continuada e teimuda. Cómpre que esta realidade tamén compareza nos poemas.

Daniel Salgado estudou Ciências da Comunicação e realizou uma tese de doutoramento em Filologia Galega na Universidade de Santiago de Compostela. É director de Ariel. Boletín quincenal de cinema en galego e colaborador de A Trabe de Ouro, A Nosa Terra, Dorna e Xistral. Traduziu Allen Ginsberg ao galego e é coautor do documentário O río é noso (2004), que critica as barragens no Alto Ulla. Formou parte do grupo de música Das Kapital e, desde 2018, do projecto musical Vietcong. Como poeta recebeu, em 2001, o Premio de Poesía O Facho; o Premio de Poesía Uxío Novoneyra (2002) com Sucede; o Premio Esquío de poesia (2004) com Días no imperio e o Premio de Poesía Gonzalo López Abente (2013) com Os tempos sombrizos (diario). O seu último livro de poesia é O Gran Rexeitamento. Flores para Albert Ayler (2017).

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Inquérito

Luz Pichel Poeta galega.

Como é que definirias o teu trabalho artístico? Pensei: definir o traballo artístico propio vén a ser algo así como auscultarse a unha mesma e ata diagnosticar a propia enfermidade, un imposible, os médicos nunca o fan. Pronto me decatei da trampa para preguiceiras na que eu mesma me estaba metendo: quen pretenda ser artista non debería deixar de preguntarse nunca polo seu traballo. De non ser así, o pintor repetiría sempre o mesmo cadro e a poeta repetiría eternamente o mesmo poema. As persoas que facemos poesía traballamos coa lingua como quen pinta traballa coas cores. Reflexionar sobre o noso material de traballo, a linguaxe, ten que ser tan natural na poesía como é na pintura a reflexión sobre as cores. Quero que na miña poesía se aprecie esa reflexión, trátase dunha vontade firme de que así sexa e esta vontade foise acrecentando ao longo dos anos. Quérese mover, non repetir poema, non repetir libro. Copiar, aínda cando nos copiásemos a nós mesmas, non é crear. “Dicir” cousas diferentes non é o mesmo ca “facer” poemas diferentes, libros diferentes. Quero que o poema, a súa gramática no sentido máis amplo, a maneira de ser feito e de facer, atenda á linguaxe, ás falas, aos sons, aos corpos que as soportan. Tamén aos conflitos lingüísticos entre falantes, os hibridismos do mundo actual, os hibridismos que ocorren nas fronteiras entre linguas próximas. Todo isto pode resultar moi incómodo, polo menos para min. A poesía non ten por que ser cómoda. Quero que a través do poema se saiba de que lado estou (unha fronteira é un lado?), como pronuncio a palabra “augha”, en que contexto poño a palabra “pan”. Importa a memoria, a colectiva; moi especialmente porque hai unha

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Luz Pichel

lingua nosa e máis un mundo contido nela que non queremos borrar. Cando veño a Alén 1 (o lado de acá) falo cos meus mortos e asegúrovos que non estou tola, aínda non. Busco, busco moito e buscar dáme moito pracer. A miña poesía foise afastando cada vez máis das formas retóricas tradicionais que se seguen ensinando aos rapaces na escola en forma de listaxes por mor de afastalos da lectura e da escritura e, así, mesmo de pensar e outros praceres. Miro ao movemento L=A=N=G=U=A=G=E, miro humildemente ao Seminario Euraca, María Salgado, Ángela Segovia, Sandra Santana... Pero tamén máis lonxe: Gertrude Stein, Rosalía de Castro. Como se estabelece a relação entre o poético e o político no teu trabalho? Entendo as linguas como espazos políticos fortes, onde o discurso acontece con un marcadísimo carácter performativo —no sentido pragmático do termo— hexemonías, subalternidades, exclusións, empoderamentos, homofobias, autofobias etc. Crieime nun deses espazos políticos fortes. O mundo actual é un espazo político forte, escandaloso. A quen traballe coa lingua como material artístico non lle será posible evitar entrar en relación, en colisión máis ben, con algunha desas forzas. Pode haber poetas que non se decaten desa súa posición, eu atópome entre aquelas persoas que escollen conscientemente un lugar desde onde escribir e desde alí escriben, sen pretensión pero sen inocencia. Destapar eses efectos da lingua sobre as persoas, os usos interesados por parte duns e outros, os comportamentos lingüísticos manipuladores ou ocultadores ou despectivos ou eufemísticos ou tranquilizadores etc. paréceme un bo traballo para a poesía e un comportamento político coherente coa miña vida. Como valorizas o impacto real e a influência política da tua obra na sociedade? Se acompaño pancartas na rúa o 8 de marzo, o primeiro de maio, o luns dos pensionistas etc. non me pregunto polo impacto ou pola influencia dese feito. Se trato de ser unha boa profesora, tampouco. Se crío fillas e netiños coa mellor intención de que saian persoas responsables, tampouco. Se escribo poesía, tampouco, pero a tarefa é igual de importante ca as outras e coherente con elas. Canto me gustaría influír moitísimo e cambiar o mundo! Pero sei que non é así.

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Inquérito

Em termos de intervenção política no espaço público, existem numerosos casos de criação artística de elevada ressonância. Há algum exemplo que consideres especialmente significativo na actualidade? España abusou da poesía de contido “social”, é ben sabido. Ou non abusou senón que errou a maneira. O resultado foi un rexeitamento brutal dos contidos políticos. Algún exemplo temos hoxe na poesía que se fai chamar “poesía da conciencia” (Riechmann, Falcón...) que son ben coñecidos, gozan dunha certa resonancia. Penso que tamén teñen interese certas formas de traballar coa linguaxe retorcéndolle o colo ao cisne da lingua da poesía comunmente aceptada (que non é máis que unha poesía que se repite a si mesma) pois esa maneira de traballar implica xa unha actitude política. Dentro do sistema galego, este sería o caso de Chus Pato. Dentro do actual sistema en castelán, en España, teñen moito recoñecemento entre as novas xeracións as poetas María Salgado e Ángela Segovia. Na tradición latinoamericana —Perú, Chile e Arxentina son os casos que eu coñezo algo mellor— xurdiu nos 90 unha poesía de forte contido político nos temas, asociada a unha firme vontade de innovación formal. Algúns exemplos, non sei se os máis recoñecidos, serían Fernanda Laguna e Martín Gambarotta (Arxentina, dúas estéticas opostas) e Yanko González (Chile). Son estes exemplos de “grande resonancia” á altura de Rosalía de Castro, Miguel Hernández, Lorca, Gamoneda, Vallejo, Perlonguer, Nicanor Parra, Montalbetti, Juan Gelman? Non. Non o son. Haberá que deixar pasar o tempo? Non sei. Ademais, que entendemos por “grande resonancia”? Porque actualmente a resonancia está noutra parte, outro espazo “político”, chámanse youtubers.

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Luz Pichel

Luz Pichel é uma poeta galega que escreve tanto em galego como em espanhol. Até 2007 foi professora de língua e literatura espanhola em Madrid e de 2002 a 2009, junto com Guadalupe Grande, directora do Centro de Estudios de la Poesía, da Universidad Popular “José Hierro” de San Sebastián de los Reyes. Em 2004, recebe o Premio Internacional de Poesía Juan Ramón Jiménez com La marca de los potros e, em 2006, o Premio Esquío de poesía em língua galega com Casa pechada. Em 2013 publica uma versão pessoal desta obra em “castrapo”, a língua de contacto entre o espanhol e o galego, com o título Cativa en su lughar. O seu último livro de poemas foi Tra(n)shumancias (2015).

NOTA 1

A aldeia galega onde nasceu Luz Pichel.

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Inquérito

Manolo Pipas Poeta galego.

Como é que definirias o teu trabalho artístico? compas de Elyra escribo poemas crónikas poéticas e posibles letras de cancións que algúns solistas e grupos ás veces musican e cantan e fago recitais persoais e con músicos participo en recitais colectivos e fago outras variadas intervencións poéticas fixen radio autoeditei libros e cadernos … e publico a diario no blogue envolventesaspalabras.info e a chamada escrita social e mesmo política e a poesía de intervención é unha parte importante da miña obra Como se estabelece a relação entre o poético e o político no teu trabalho? pasei de dar palestras sobre algúns movimentos ou procesos sociais a dar recitais sui generis sobre os mesmos formo parte da sociedade e desde abaixo conto dela considérome un animal político pero me movo nas marxes porque é o meu medio natural e porque me excluen

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Manolo Pipas

doutros espacios por descoñecemento ou porque molesto e non teño contas nas mal chamadas redes-sociais virtuais do noxento capital Como valorizas o impacto real e a influência política da tua obra na sociedade? o meu impacto na sociedade é moi pequeno acompañar aos colectivos e os procesos divulgar un pouco os seus eventos contar de propostas loitas resistencias… Em termos de intervenção política no espaço público, existem numerosos casos de criação artística de elevada ressonância. Há algum exemplo que consideres especialmente significativo na actualidade? a poesia cantada ten un impacto maior que a escrita pero no meu caso pouca máis repercusión ten e destaco a resonancia dos rapeiros especialmente as voces represaliadas no antidemocrático estado espanyol

Manolo Pipas é um poeta galego que se mantém intencionalmente nas margens do sistema e que se define como “comunicador da palavra escrita e oral”. O seu estilo poderia ser descrito como crónica poética, sempre com um claro conteúdo político. Viaja continuamente e partilha a sua vida com povos esquecidos e oprimidos. Publicou os seguintes livros como edições de autor: marzo abril e outros naufraxios (1999), viaxe ao pais das nubes as comunidades o consello indixena e a outra campaña (2006), a milpa e o paliacate nos camiños do outro mexico. Poemas e crónicas (2009), historias das travesas e do bar hipólito (2014), o barco a rotonda e nós (2015). Também publica regularmente poemas no seu blogue envolventesaspalabras.

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Inquérito

María Rosendo Poeta galega.

Como é que definirias o teu trabalho artístico? O meu trabalho artístico define-se basicamente pola produçom poética. Nom comecei a escrita polo amor à arte mais bem foi por umha necessidade de supervivência, como canle para fazer a continuidade possível. De formaçom sou filóloga e educadora social e trabalho de jeito remunerado e nom remunerado- dinamizando espaços e grupos desde a perspetiva feminista. Do mesmo jeito, a minha escrita está atravessada por umha olhada feminista e radical de ver para o mundo. Como se estabelece a relação entre o poético e o político no teu trabalho? Ao escrever, a minha poesia é política porque nom concebo outro jeito de estar no mundo. Dalgum jeito suponho que em tanto toda subjetividade é política, também toda poesia é política. Porém, podemos ser mais ou menos ativistas ao escrever. Nestes momentos interessa-me a palavra simples que chegue a todxs e que seja direta. Eu olho para a poesia como umha ferramenta para denunciar qualquer opressom possível e para criar um novo imaginário, umhas outras realidades nas que caibamos todxs. Como valorizas o impacto real e a influência política da tua obra na sociedade? Esta parece-me umha pergunta complicada que acho corresponde responder a essa “sociedade” a que se faz referência. No entanto, o que sim podo comentar é que do mesmo jeito que a minha poética bebe doutras artes e referências, outros cenários artísticos tenhem empregado a minha poesia para nutrir-se; penso agora em grafittis de rua ou nas

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María Rosendo

composiçons musicais que tem feito Menina Arroutada em rap ou Manu Paino em música clássica a raiz de poemas dos meus livros. Em termos de intervenção política no espaço público, existem numerosos casos de criação artística de elevada ressonância. Há algum exemplo que consideres especialmente significativo na actualidade? Do último que tenho visto, destacaria os diretos de Menina Arroutada (Galiza) ou o Cabaret Gordo do Comando Gordix (Catalunya): impossível ficar indiferente depois de assistir aos seus shows.

María Rosendo é uma poeta galega e educadora social. Recebeu, em 2010, o XXIII Premio Nacional de Poesía Xosé María Pérez Parallé com Nómade, e em 2017, junto com Andrea Nunes Brións, o Premio de Poesía Erótica Illas Sisargas com Diáspora de amor balea. envolventesaspalabras.

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Inquérito

Ester Xargay Poeta catalã, vídeo-artista e agitadora cultural.

Como é que definirias o teu trabalho artístico? Tot seguit et poso un text que m'acaben d'encarregar per a la Revista de Girona, on em demanen, justament, d'explicar com i per què (o quan i on, o alguna cosa així) vaig començar a escriure. Aquesta és la meva resposta: UTOPIA, LLIBERTAT I LLENGUATGE Amb aquestes tres paraules podria resumir el perquè escric, el com i fins i tot el quan vaig començar a fer-ho, car conformen, ineludiblement, la base del que sóc. Sempre he sentit molt endins una veu que anava repetint aquests mots, fins a viure'ls en pell, sense entendre ben bé en un començament el que volien dir, tot i sabent prou bé que ja formaven part del meu temperament. I és que el capteniment que aquests tres mots impliquen només me'l consenteixen aquestes dues pràctiques, l'art i la poesia. Per això puc escriure poemes com aquest: EVASIÓ / I l'alfabet desgavellat / bo i defugint l'ordre establert / delata que hem rosegat / el fre que clava l'univers / a la lletra que ens ha tocat. L’única utopia rau en el llenguatge, en l’acte poètic, afirma Roland Barthes, qui, bo i llegint l'escrit des de l'estètica, ens colga en els paràmetres de la creació mateixa. Però, ben segur que és en l'íntima revolta de no voler ser res, fent de la dissidència una realitat, ni sent apocalíptics, ni tampoc integrats - citant Humberto Eco -, que alena el desig d'un cert desintegrar-se, amb una negació que acreix l'energia i per mà del llenguatge pot contradir la lògica, el seny i la raó, fins al sentit comú (raó d'estar per casa, com diu

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Ester Xargay

Carles Hac Mor), i així, perquè sí, perquè m'agrada riure per subvertir-ho tot, amb un humor pregó que ataca de valent sense donar un sol cop, escric: (...) sense perdre l'humor / reeixir incoherent / il·lustrar-se amb l'absurd / lliure d'inconveniències / amb un riure ardent / la boca ben oberta / tot ensenyant les dents. De petita feia uns poemes que sorprenien molt la meva mare, no gens infantils, segons ella -llegits amb molta estima- tenien un caire metafísic. Érem a França, a Bourges, allà vaig viure les dècades dels seixanta i setanta, un període ben reivindicatiu, revoltat, existencialista i sartrià. A aquest entorn sociopolític, s'hi afegia un món educatiu inquiet, que em duia, dia sí, dia també, a La Maison de la Culture de Bourges, un centre experimental de tot, de l'art -s'hi feien accions i happenings-, de la literatura, del teatre, del cinema, de la música -seu internacional de la música electroacústica-. Allà vaig aprendre a entendre la recerca artística i musical, els conceptes i les actituds hereves del dadaisme, de la mà d'artistes i músics com ara John Cage o del moviment Fluxus, noms i tendències que vaig retrobar i contextualitzar molt més tard, fent Història de l'Art a Barcelona i en conèixer l'escriptor Carles Hac Mor que ha sigut el meu mestre. Como se estabelece a relação entre o poético e o político no teu trabalho? Aquesta resposta justament ja me la vaig fer a mi mateixa, en certa manera ho explico al meu darrer llibre Desintegrar-se amb el qual aquesta primavera he guanyat el Premi de Poesia Cadaqués Rosa Leveroni. El text de més avall enceta una part d'aquest llibre, amb el títol A veu alçada que consta d'una la sèrie de poemes crítics, polítics i reivindicatius. LLETRES DE BATALLA Immersos en un context sociopolític com el que ara vivim, resulta difícil d'abstreure-se'n. A l'hora d'escriure poesia hi ha una certa ràbia que empeny a denunciar la pèrdua inadmissible dels drets aconseguits fins ara, amb tantes lluites a l'esquena. Ja més enllà de la rebel·lia existencial, hi ha també la reivindicació de tots els drets humans, dels drets dels animals i fins i tot dels de la terra, que hi van lligats de manera ineludible. Són qüestions ideològiques concretes, i també abstractes, les que ocupen els poemes que s'apleguen tot seguit, escrits per ser cantats o bé cridats a veu alçada i àdhuc alçurada, els quals, tot incitant a la protesta

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Inquérito

i no gens exempts d'humor i sàtira, s'erigeixen polítics i reivindicatius. Com diu Joan Brossa, «l'art, la poesia, no és una força d'atac, sinó una força d'ocupació». El «Cançoner pensamenter» que introdueixo, i que va adjectivitzat amb un mot, ben significatiu, inventat per Perejaume, al·ludeix a problemàtiques sociopolítiques agudes, com ara la Troika ¬–rebel·lar-se per no pagar el deute–, reclamar la Renda Bàsica, el dret de votar per la independència, els drets dels animals, denunciar el masclisme, els polítics, la guerra i etcètera. I sí!, són com poemes que s'han de llençar a l'aire bo i conferint-los cos i garrots. És a dir, cal emprar el llenguatge com una fonda que llença els mots contra l'enemic i l'opressor. Com bé diu la cançó de Jacques Brel: «Quand on n´a que l´amour / Pour parler aux canons / Et rien qu´une chanson / Pour convaincre un tambour ”. (Quan hom tot just té amor / Per parlar als canons / I una simple cançó / Per convèncer un tambor). Així mateix, aquest “Desintegrar-se” vol ser, ben apocalípticament, la veu de l'individu que amb el llenguatge s'encara als instints d'una condició humana estructuralment presonera, en la mesura que és un subjecte, subjecte al llenguatge mateix. I és en aquesta tensió que la idea de llibertat es converteix en una utopia, potencialment nihilista, en la qual bateguen tots els imaginaris, fins els més inimaginables. Tot rau en la voluntat de capir aquesta paradoxa per fer de la llibertat contradictòria que suposa escriure, pintar, esculpir, fotografiar, filmar, etcètera, una font d'energia inesgotable per a l'engranatge de la pensa, tot atorgant a l'individu la força i l'enginy per remoure i commoure, així com el poder per invocar-ho tot amb un vers, amb una pinzellada o amb qualsevol llenguatge que s'empri. I és que en l'art, el joc –«el goig de perdre's per trobar, o el de trobar per perdre's», parafrasejant Maria Mercè-Marçal– ve a ser el mateix que assenyalar, a les palpentes, ja sigui allò desconegut, ja sigui tot el que colpeix o tot el que indigna, i fent-ho amb les paraules a la punta dels dits, o amb «els dits a la punta dels mots», per dir-ho més barthesianament. Como valorizas o impacto real e a influência política da tua obra na sociedade? Doncs, ben sincerament, no t'ho se dir.

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Ester Xargay

Em termos de intervenção política no espaço público, existem numerosos casos de criação artística de elevada ressonância. Há algum exemplo que consideres especialmente significativo na actualidade? Em sap greu dir-ho, però ja fa temps que veig que l'art social ha esdevingut una moda, és ben evident que els moments que vivim ho reclamen, però crec que amb la sistematització que això comporta, doncs, molts artistes i poetes (no pas tots) acaben formulant una obra benpensant, trivial i que, en definitiva, s'erigeix amb la desgràcia que implica el context sociopolític que pretén qüestionar. Aquesta tendència de l'art social que ara s'imposa, segons com, la veig esfereïdorament hipòcrita. Ara bé, dit això, tal com dius, sí que hi ha artistes molts bons en aquest camp, com ara Francesc Torres o bé Eulàlia Grau, que ho han fet sempre i, pel que fa als artistes més joves ,vull destacar l'excel·lent, combatiu i arriscat treball de Núria Güell.

Ester Xargay Melero é uma poeta, vídeo-artista, performer e agitadora cultural, cuja obra é de referência no panorama poético catalão actual. A sua poesia tem sido caracterizada como “provocadora e transgressora” (Jaume Aulet). Também foi ficcionista, guionista e tradutora. Representou os Países Catalães em numerosos festivais e exposições internacionais. Em 2000, recebeu o Premi Espais a la Crítica d'Art, pelo documentário El Grup de Treball e, em 2018, o Premi Poesia Catalana Cadaqués a Rosa Leveroni. Publicou 15 livros de poesia, sendo o último Infinitius (2017). Em 2009, Xavier Garcia realizou em Tàrrega uma exposição bibliográfica retrospectiva em homenagem a Carles Hac Mor e Ester Xargay.

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Fotografia

Políticas do Olhar

Figura 1: Almada, 2016. Foto: B. Baltrusch

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Políticas do Olhar

Figura 2: Lisboa, 2007. Foto: B. Baltrusch

Figura 3: Bruxelles, 2016. Foto: Alba Cid

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Fotografia

Figura 4: Paris, 2017. Foto: Alba Cid.

Figura 5: Montevideo, 2015. Foto: B. Baltrusch

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Políticas do Olhar

Figura 6: Paris, 2017. Foto: Alba Cid

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Fotografia

Figura 7: Paris, 2017. Foto: Alba Cid

Figura 8: Paris, 2017. Foto: Alba Cid

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Políticas do Olhar

Figura 9: Paris, 2017. Foto: Alba Cid

Figura 10: Montevideo, 2015. Foto: B. Baltrusch

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Fotografia

Figura 11: Salamanca, 2016. Foto: Alba Cid

Figura 12: Colonia Sacramento, 2015. Foto: B. Baltrusch

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