DOIS SIGNOS DUMA TERRA SONÂMBULA.Comparação entre o romance de Mia Couto e o filme de Teresa Prata.

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DOIS SIGNOS DUMA TERRA SONÂMBULA. Comparação entre o romance de Mia Couto e o filme de Teresa Prata.

DAVID GONÇALVES DA CRUZ Graduação em Ciências da Linguagem e Estudos Literários Seminário de Literaturas e Culturas Lusófonas 2017-2018


ÍNDICE I. II. III. IV. V. VI. VII. VIII. IX.

Introdução. Alguns apontamentos sobre a literatura de Moçambique. Mia Couto e o seu primeiro romance Terra Sonâmbula. Alguns apontamentos sobre o cinema de Moçambique. Teresa Prata e o filme Terra Sonâmbula. O “fantástico” no livro e no filme. Conclusões. Bibliografia e webgrafia. Anexos


I. Introdução. Em todo o mundo, as pessoas convivem no dia-a-dia com uma dualidade composta por realidade e imaginário fantástico. Dois elementos que muitas vezes se cruzam tornando a classificação dos acontecimentos quotidianos numa missão quase impossível em alguns casos. E se muitas vezes já resulta difícil de por si, se se trata de África, pode resultar ainda mais complicado porque, para alguns desses povos africanos, todos os elementos fantásticos e seres sobrenaturais são vistos com naturalidade, são parte integrante da sua vida. Esta é só uma das atrações destas culturas desconhecidas para muitos. Essas diferenças culturais são a razão pela qual gosto de fazer este tipo de trabalhos. E a verdade é que tenho a sorte de poder estar numa graduação e num módulo 1 que, para além de me permitir descobrir aspetos importantes da cultura portuguesa, também me permite investigar e conhecer um pouco mais essas culturas tão ricas ainda que, como disse antes, tão desconhecidas para muita gente. Encontrei com muita frequência trabalhos sobre Brasil e Portugal mas observei que eram menos frequentes os trabalhos sobre Moçambique, Angola, etc. Por essa razão, tenho investigado um pouco sobre diversos temas (cinema, música, gastronomia, literatura, crenças e rituais) no âmbito da lusofonia, centrando-me principalmente em Moçambique e, em menor medida, Macau e Goa. Em realidade não há nenhuma razão concreta pela qual me tenha centrado mais em Moçambique e não o tenha feito em relação a outros países. Mas o certo é que gostei tanto do que descobri que decidi continuar. Talvez dentro de algum tempo me interesse por outros países mas, de momento, queria deixar-vos outro trabalho relacionado com Moçambique: Dois signos duma Terra Sonâmbula. Comparação entre o romance de Mia Couto e o filme de Teresa Prata. Porém, antes da comparação entre o romance Terra Sonâmbula e a adaptação cinematográfica homónima da realizadora Teresa Prata, aparecem alguns apontamentos sobre a literatura e o cinema moçambicanos, Mia Couto e a sua obra, o

livro Terra Sonâmbula, a realizadora Teresa Prata e a sua adaptação

cinematográfica daquele que é o primeiro romance de Mia Couto.

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Módulo de Estudos Lusófonos. Graduação em Ciências da Linguagem e Estudos Literários.


Enquanto à comparação entre a obra literária e a adaptação cinematográfica, tiveram-se em conta neste trabalho as dificuldades que existem à hora de analisar esta relação intersemiótica, isto é, entre dois signos diferentes: livro (literatura) e filme (cinema). Desta ideia provém o título deste trabalho. Como livro e filme são signos diferentes, quando um realizador adapta uma obra literária está a levar a cabo uma tradução intersemiótica 2 “porque os filmes são novos signos baseados em outros signos e, consequentemente, produtores de novos Interpretantes que, por sua vez, produzem outros signos em um processo infinito que Peirce chama de semiose” 3. Em todas as análises de adaptações cinematográficas de obras literárias encontramos, como mínimo (já que o processo é infinito), 6 semioses: 1ª) Livro Terra Sonâmbula. 2ª) Leitura do livro. 3ª) Adaptação cinematográfica de Teresa Prata 4. 4ª) Visualização do filme 5. 5ª) Comparação entre o livro e o filme. 6ª) Interpretação que o leitor fará dessa comparação. A forma como cada realizador atua ante a obra literária varia. Há quem tenta que o filme seja idêntico ou muito parecido à obra literária e quem se distância bastante dela. Porém, muitos cineastas e críticos concordam com a ideia de Andre Bazin de que “a tradução literal não vale nada, a tradução livre demais parece ser condenável e de que a boa adaptação deve ser capaz de “restituir o essencial do texto e do espírito” da obra literária 6. Porque se deve ter em conta as peculiaridades de ambos signos, que obrigam o realizador a recorrer a interpretações, apropriações, redefinições de sentido e inclusive atualizações do livro, já que quando um escritor

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Uma das três traduções estabelecidas por Jakobson: interlinguística, intersemiótica e intralinguística. Maria Eugênia Curado, “Literatura e cinema: adaptação, tradução, diálogo, correspondência ou transformação”, Revista Temporis[ação], vol. 1. (2007), Universidade Estadual de Goiás, p. 8. Disponível em linha: http://www.revista.ueg.br/index.php/temporisacao/article/view/5990/4093 (último acesso: 29/05/2018). 4 Tradução intersemiótica de Teresa Prata. Aparece aqui um novo interpretante, um novo significado. 5 No caso de quem leu o livro, porque para quem só viu o filme esta seria a segunda semiose. 6 Maria Eugênia Curado, “Literatura e cinema…", p. 13. 3


escreve a sua obra, o normal é que não esteja a pensar “em termos de roteiros cinematográficos; seu objetivo é, evidentemente, literário” 7. Ainda que pautados nas obras literárias, os cineastas mostram nos seus filmes “as suas crenças, seus objetivos e sua estilística” de acordo com o que desejam expressar, que para nada tem de ser o que quis expressar o autor da obra literária 8.

II. Alguns apontamentos sobre a literatura de Moçambique. Tal como acontece frequentemente à hora de analisar a literatura de um país, encontramos uma literatura oral transmitida durante gerações e a literatura escrita que recorre muitas vezes à literatura oral. Também é frequente, principalmente em países onde houve ou há uma guerra, que os autores e as autoras usem esses acontecimentos históricos nas suas obras. Muitas literaturas do mundo estão, assim, ligadas de forma direta ou indireta à história desse país. É o que acontece na maior parte dos países africanos e, obviamente, em Moçambique. Nestes países africanos, e não só, a dominação colonial, portuguesa no caso de Moçambique, é desde logo o que mais afeta a vida destes povos e, por isso, é normal que muitas obras literárias girem à volta dela. Para além do “jugo colonial”, e como se isso não fosse suficiente, muitos países viveram guerras civis posteriores. No caso de Moçambique, por exemplo, a literatura foi “uma das mais vivas formas de resistência e repúdio à dominação colonial portuguesa”9. Depois da independência a literatura moçambicana recolhe “a exaltação da moçambicanidade, a difusão da ideologia política e a aflição devido ao flagelo da guerra civil”10. Por outro lado, a literatura de Moçambique não se pode classificar só em literatura oral e escrita, mas aparecem também outros tipos e subtipos. Podemos falar de pelo menos quatro: a literatura oral produzida em línguas africanas, a literatura dos descobrimentos, a literatura colonial e a literatura

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Maria Eugênia Curado, “Literatura e cinema…", p. 2. Maria Eugênia Curado, “Literatura e cinema…", p. 2. 9 Félix Filimone F. Tembe, Literatura Moçambicana: Uma trajetória que se funde e se confunde com a história do país, UVigo TV, disponível em linha: https://tv.uvigo.es/es/video/mm/17930.html (último acesso: 15/05/2018). 8

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Félix Filimone F. Tembe, Literatura Moçambicana…


neo-africana 11. A literatura dos descobrimentos baseava-se “no relato de viagens feito por navegadores, escritores ou comerciantes e narrava factos ocorridos ao longo dessas viagens” enquanto que a colonial “retratava a vivência de portugueses/as no além-mar” e caraterizava-se, em muitos casos, por ser uma literatura direta ou indiretamente racista onde se retratava o ser humano negro como inferior ao branco e por reduzir África a uma linda paisagem ou paraíso onde o protagonista era o branco 12. Enquanto ao quarto tipo: a literatura neo-africana, também está escrita em línguas europeias, o que a diferencia da oral, mas introduz algumas expressões em línguas africanas e, nela, aparece como protagonista o ser humano africano e as preocupações destes povos. Com ela também ganha força a negritude, isto é, uma “ontologia existencial que o sujeito ocidental não é capaz de entender ou recriar” 13, segundo Léopold Sédar Senghor, e na qual encontramos, por exemplo, uma busca de identidade, uma defesa do património e do humanismo dos povos negros, uma consciência dos contributos da aculturação (p.ex. da urbanização) e a criação dum estilo próprio para desmarcar-se dos modelos ocidentais 14. Se nos centramos agora nas fases da literatura moçambicana encontramos, para além dessa fase inicial ligada à literatura dos descobrimentos e a toda a literatura em língua portuguesa escrita até 1925 ( ano da publicação do livro A voz de dor do escritor e jornalista João Albazini, que pôs fim a este período), outras quatro fases. Posterior a esta primeira fase existiu uma segunda fase que se estendeu desde 1925 até aos anos 60, e na qual apareceram “as primeiras manifestações sobre a condição do colonizado, a contestação da presença colonial e a resistência à opressão” 15. É nesta fase onde ganha maior protagonismo o jornalismo, presente desde sempre na literatura moçambicana porque, ao não haver editoras para a produção literária, eram os jornais o meio usado pelos escritores (jornalistas em muitos casos). Entre os autores principais desta fase encontramos nomes como o de

11 Apud Burghard Baltrusch, Introdução à Literatura Africana Lusófona, Blogue de Estudos Lusófonos, disponível em linha: https://estudoslusofonos.blogspot.com.es/p/africa-lusofona.html (último acesso: 22/05/2018). 12

Burghard Baltrusch, Introdução à Literatura…, diapositivos 4 e 5. Burghard Baltrusch, Introdução à Literatura…, diapositivo 13. 14 Burghard Baltrusch, Introdução à Literatura…, diapositivo 15. 15 Félix Filimone F. Tembe, Literatura Moçambicana… 13


Rui de Noronha, NoĂŠmia de Sousa, Fonseca Cabral, Orlando Mendes, JoĂŁo Dias ou o do considerado “poeta-morâ€? de Moçambique, JosĂŠ Craveirinha. Em 1963/4 e atĂŠ ao ano 1975, desenvolveu-se a terceira fase, caracterizada pela “intensificação da atividade cultural e literĂĄria no “guetoâ€?, da negação Ă dominação colonial e de apoio e incentivo Ă luta armadaâ€? 16 encabeçada pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) que nasce em 1964 como â€œĂşltimo recurso encontrado para se chegar Ă independĂŞncia depois de esgotadas todas as saĂ­das conversacionais e diplomĂĄticas com o regime colonialâ€?17. As figuras principais foram escritores e artistas como EugĂŞnio Lisboa, 5XL .QRSIOL o portuguĂŞs AntĂłnio Quadros, Luiz Bernardo Honwana, JosĂŠ Craveirinha de novo e autores que, ao contrĂĄrio do que fizeram muitos, ficaram em Moçambique e assumiram a nacionalidade moçambicana, como, por exemplo, Leite de Vasconcelos, Mia Couto e Heliodoro Baptista. Enquanto que na primeira fase nĂŁo havia uma literatura moçambicana feita por autores moçambicanos senĂŁo literatura portuguesa escrita em Moçambique na segunda e terceira fases ĂŠ quando começa a existir uma verdadeira literatura de Moçambique. Mas sĂł na quarta e quinta fases ĂŠ que esta literatura se consolida verdadeLUDPHQWH. A quarta fase vai desde o ano 1975 (proclamação da independĂŞncia) atĂŠ 1992 (fim da guerra civil em Moçambique e introdução do multipartidismo democrĂĄtico). Produz-se uma verdadeira extensĂŁo da literatura moçambicana graças a que muitas obras e textos que estavam guardados e escondidos saĂ­ram ao pĂşblico. Quanto Ă temĂĄtica, a literatura continua muito ligada Ă guerra e Ă FRELIMO que “detinha o monopĂłlio de publicaçþes e consequente controloâ€? 18. Uma literatura de exaltação patriĂłtica, do culto dos herĂłis da luta de libertação e de temas marcadamente doutrinĂĄrios e militantes que sĂł se começou a abrir a outros temas com obras de autores pertencentes Ă denominada Geração Charrua: Ungulani Ba Ka Khosa, HĂŠlder Muteia, Pedro Chissano, Juvenal Bucuane e Paulina Chiziane, que se juntam a outros autores da fase anterior como, por exemplo, Mia Couto,

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FĂŠlix Filimone F. Tembe, Literatura Moçambicana‌ FĂŠlix Filimone F. Tembe, Literatura Moçambicana‌ 18 FĂŠlix Filimone F. Tembe, Literatura Moçambicana‌ 17


autor do romance que marca o fim deste período, Terra Sonâmbula, e que vai ser objeto de análise neste trabalho. Mas é na quinta fase onde se observa uma maior variedade temática, fruto das mudanças sociais, económicas e políticas de Moçambique que começaram a aparecer a partir de 1992 e chegam até à atualidade. Nesta última fase, a possibilidade de uma maior criatividade levou autores como Paulina Chiziane, Aurélio Furdela, Adelino Timóteo, Sónia Sultane e Lucílio Manjante, entre outros, a tratar temas como o sentimentalismo, a sexualidade, a transnacionalidade e outras temáticas da vida do país.

III. Mia Couto e o seu primeiro romance Terra Sonâmbula. Como se pode observar no capítulo anterior, um dos principais nomes da literatura moçambicana é Mia Couto (António Emílio Leite Couto) 19. Este filho de portugueses emigrados em Moçambique a meados do século XX, nasceu em 1955 na cidade da Beira.

lmagem nº 1: Mia Couto

Tal como vimos antes, a literatura de Moçambique esteve sempre muito relacionada com o jornalismo e Mia Couto não foi a exceção. Já aos catorze anos publicava alguns dos seus poemas num jornal da cidade. Enquanto aos estudos universitários pode-se observar uma clara tendência para o âmbito da Medicina,

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“António Emílio Leite Couto ganhou o nome Mia do irmãozinho, que não conseguia dizer “Emílio”. Segundo o próprio autor, a utilização deste apelido tem a ver com sua paixão pelos gatos, e desde pequeno dizia a sua família que queria ser um deles”. “Ele disse uma vez que não tinha uma “terra-mãe”- tinha uma “agua-mãe”, referindo-se à tendência daquela cidade baixa e localizada à beira do Oceano Índico para ficar inundada”. José de Sousa Miguel Lopes, “Mia Couto no cinema: alguns apontamentos a partir da obra ficcional Terra Sonâmbula”, Revista Mulemba (2013), Universidade Federal de Río de Janeiro (UFRJ), p. 12. Disponível em linha: https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4985/3652 (último acesso: 21/05/2018).


carreira que inicia na Universidade de Lourenço Marques (atual Maputo), mas que abandonou algum tempo depois para se dedicar à luta pela independência de Moçambique tornando-se membro da FRELIMO. Só depois da independência de Moçambique e de algum tempo no qual Mia Couto trabalhou em órgãos de comunicação social 20 , é que ele decide voltar à Universidade mas, desta vez, decide estudar Biologia com especialização em Ecologia. Completou estes estudos com êxito tendo-se dedicado, nos últimos anos,

à

docência

de

Ecologia

em

diversas

faculdades

de

Moçambique. Paralelamente ao trabalho como docente, Mia Couto foi, e ainda é, autor de um número importante obras literárias sendo, hoje em dia, “o escritor mais divulgado de seu país, tendo a sua obra traduzida e publicada em mais de 24 países. É o autor estrangeiro mais vendido em Portugal e o único escritor africano a possuir a honra de ser membro da Academia Brasileira de Letras”21. À continuação aparecem duas tábuas: uma com as obras de Mia Couto e outra com os prémios que ele recebeu pela sua produção literária. Obras Título Raiz de Orvalho (poesia) Vozes Anoitecidas (contos) Cada Homem é uma Raça Cronicando (crónicas) Terra Sonâmbula (o seu 1º romance) Estórias Abensonhadas A Varanda do Frangipani Contos do Nascer da Terra Vinte e Zinco O Último Voo do Flamingo Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra A Confissão da Leoa

Ano 1983 1986 1990 1988 1992 1994 1996 1997 1999 2001 2002 2012

Tabela 1: Obras de Mia Couto.

O jornal A Tribuna, a Agência de Informação de Moçambique (AIM), a revista Tempo e o jornal Notícias. 20

21 Pedro Puro Sasse da Silva, “Mia Couto e a ideologia moçambicana: realidade e fantasia em Terra Sonâmbula”, Blogue Revista Biografia (2013), p. 1. Disponível em linha: http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.es/2013/05/mia-couto-e-ideologia-mocambicana.html (último acesso: 22/05/2018).


Prémios Denominação do prémio Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos Prémio Vergílio Ferreira (pelo conjunto da sua obra) Prémio Mário António (pelo livro O Último Voo do Flamingo) Prémio União Latina de Literaturas Românicas Prémio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura Prémio Eduardo Lourenço 2011

Ano 1995 1999 2001 2007 2007 2011

Tabela 2: Prémios que Mia Couto recebeu pela sua obra

Mia Couto foi um autor que soube juntar nas suas obras os dois elementos dessa dualidade da qual se falou na introdução, “fez um trabalho minucioso e externo na descrição da realidade da guerra no interior de Moçambique” 22 ao mesmo tempo que introduziu nas suas obras todos os mitos, lendas e crenças da ideologia do seu povo, reunidos por ele durante os anos em que estudou Biologia e que se podem encontrar, por exemplo, no seu primeiro romance, Terra Sonâmbula.

lmagem nº2: Capa do livro Terra Sonâmbula.

Trata-se de uma obra que ganhou o Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995 e que foi considerada um dos doze melhores livros africanos do século XX por um júri criado pela Feira do Livro de Zimbábue, tendo sido reeditado posteriormente pela Companhia das Letras no Brasil. Este romance está constituído de dois focos narrativos: a história de Muidinga e Tuahir e a de Kindzu. Porém, dentro da de Kindzu, há mais uma história, a de Farida. Aparecem mais algumas mas as principais são estas três.

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Pedro Puro Sasse da Silva, Mia Couto e a ideología…, p. 9.


No primeiro caso, encontramos a Muidinga e a Tuahir, que saíram dum campo de refugiados e caminham por uma estrada onde predomina a morte. Exemplo disso são o autocarro queimado em cujo interior estão corpos carbonizados e onde Tuahir decide ficar a viver, e as minas que estão espalhadas pelo mato e que causam, ainda hoje, muitas mortes em África. Muidinga foi o nome que Tuahir lhe deu ao menino quando o conheceu. “Era o nome que tinha sido dado a seu filho mais velho, ido e esvaído nas minas do Rand” (forma popular de nomear a África do Sul)23. Não se conhece o nome verdadeiro de Muidinga porque, antes de o encontrar, no campo de refugiados, Tuahir não o conhecia e o próprio Muidinga, por culpa duma doença, perdeu a memória. A causa dessa doença fora a ingestão de mandioca contaminada pelos ratos24. Uma doença que quase o mata. Foi Tuahir quem o salvou da morte na hora em que o iam enterrar, mesmo estando o menino vivo, “haver um vivo nada altera”, porque “Aqui se enterram os moribundos em viagem sem regresso”25. Tuahir foi quem lhe ensinou tudo de novo, exceto a escrever e a ler porque isso, curiosamente, Muidinga demonstrava que ainda o sabia fazer. A criança tinha três preocupações: a guerra, a fome e o desejo de conhecer os seus verdadeiros pais. Um desejo que ganha dimensões ainda maiores quando ele e Tuahir encontram uns cadernos dentro da mala de um dos defuntos (Kindzu), vítima dum ataque dos bandos. Nem a insistência de Tuahir para que Muidinga esqueça essa ideia é suficiente. Tanto pediu o menino que, finalmente, decidem procurar Farida, protagonista de uma das três histórias das quais se falou antes e a quem Muidinga identifica como sua mãe. Com a leitura desses cadernos (as memórias autobiográficas de Kindzu), passamos de um narrador heterodiegético a outro autodiegético. É nesses cadernos onde aparecem as histórias de Kindzu e Farida. Kindzu era de uma família pobre que vivia perto do litoral e que convivia, como todas as da região, com o medo da morte. Foi por essa razão que meteram o filho mais novo, Junhito, no galinheiro com a esperança de que quem viesse o confundisse com as

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Mia Couto, Terra Sonâmbula (Lisboa: Caminho, 1992), p.57. Mantakassa: “nome por que é conhecida, no Norte de Moçambique, a neuropatia tropical, doença causada pela ingestão de certas variedades de mandioca” como, por exemplo, a Maquela. Mia Couto, Terra Sonâmbula…, p. 56. 25 Mia Couto, Terra Sonâmbula…, p. 55. 24


galinhas e o deixasse em paz. Mas, um dia, encontraram a capoeira aberta e Junhito não estava dentro, tinha desaparecido. O pai de Kindzu, um pescador chamado Taímo e adito à sura (aguardente feita a partir dos rebentos de palmeira) morreu por causa dessa adição. Kindzu decidiu fugir de casa porque já não aguentava ver o estado no qual estava a sua família e pela perda de tudo o que lhe importava, principalmente do seu amigo indiano Surendra e do seu professor, o pastor Afonso. No primeiro caso Surendra foi-se embora depois de terem atacado o seu estabelecimento enquanto que no segundo, o pastor Afonso foi assassinado. Durante a viagem descobre que há um navio naufragado e decide ir lá. Ao chegar encontra uma mulher, Farida, que esperava com ânsia a chegada de alguém que consertasse o navio e a levasse dali. A vida de Farida foi complicada desde que nasceu. Era filha-gémea e isso era sinal de uma grande maldição na aldeia onde vivia. Foi por causa dessa maldição que a mãe dela morreu. Depois da morte da mãe, Farida partiu da vila e foi acolhida por um casal português. Mas, com o tempo, Romão (o dono da casa) começou a assediá-la e Virgínia (a esposa dele) levou Farida para um convento com o objetivo de afastá-la do seu marido. Algum tempo depois, Farida volta e é violada por Romão. Fruto dessa violação, nasceu Gaspar 26. Ao ver que o seu filho era mestiço e que não o podia criar sozinha, Farida decidiu levá-lo a um orfanato do qual, anos mais tarde, Gaspar fugiu. Mas agora ela deseja encontrá-lo e levá-lo. Por essa razão, Kindzu, apesar de sonhar com converter-se num naparama27, decide procurar Gaspar e começa uma viagem que o levará até ao machimbombo (autocarro) no qual, pouco tempo depois, vão acampar Muidinga e Tuahir.

IV. Alguns apontamentos sobre o cinema de Moçambique Maria Eugênia Curado recolhe no seu trabalho uma citação de Flávio Aguiar na qual se afirma que “grande parte das produções cinematográficas do

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Muidinga identifica-se com Gaspar e a verdade é que na obra tudo leva a pensar que ele é, efetivamente, Gaspar, ainda que não se resolve a dúvida em nenhum momento. Naparamas: “Eram guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que lutavam contra os fazedores da guerra. Nas terras do Norte eles tinham trazido a paz. Combatiam com lanças, zagaias, arcos. Nenhum tiro lhes incomodava, eles estavam blindados, protegidos contra balas”. Mia Couto, Terra Sonâmbula, p. 27.

27


século XX seguiu ou perseguiu enredos e personagens consolidados primeiro na literatura” 28. Mas isto não aconteceu só durante o século XX senão que também se observa em muitos filmes do século XXI 29 . Um bom exemplo é a adaptação cinematográfica Terra Sonâmbula que Teresa Prata fez a partir da obra literária homónima de Mia Couto. Esta coprodução portuguesa e moçambicana de 2007 é um dos filmes mais famosos que se realizaram em Moçambique. Outros exemplos são: A Costa dos Murmúrios, Kuxa kanema-O Nascimento do Cinema, Virgem Margarida, O tempo dos leopardos e Voces desde Mozambique.

Tabela 3: Dados de alguns filmes realizados em Moçambique 30

Estes seis filmes talvez sejam os mais conhecidos mas não são os únicos. Em realidade, Moçambique é o país africano de língua portuguesa que “tem a filmografia mais variada”. Conta também com um “conjunto de realizadores de caraterísticas diversas que continua, até hoje, a produzir apesar de não ter mais o apoio do Estado” 31. Este último dado é interessante se temos em conta que o cinema foi muito importante durante os anos de guerrilha. “A FRELIMO convocou cineastas de Cuba, de Europa e dos Estados Unidos para registar a revolução, documentando e divulgando em imagens os avanços e conquistas de território” 32.

28

Maria Eugênia Curado, “Literatura e cinema…, p.2. “Mais de dois terços dos longas produzidos por Holliwood são adaptações”. José de Sousa Miguel Lopes, Mia Couto no cinema…, p. 3. 30 Legendas 1) Kuxa Kanema-O Nascimento do Cinema. 2) Susana Guardiola e Françoise Polo. 3) IU, MZ: Jugoslávia e Moçambique. 4) PT, BE, FR: Portugal, Bélgica e França. 5) MZ, FR,PT: Moçambique, França e Portugal. 29

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Alex Santana França, “O cinema moçambicano pós-colonial: outros olhares, outros discursos”, Revista (2013), Universidade de São Paulo, p. 1. Disponível em linha: Crioula, http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/64732/67350 32

Gustavo Soranz Soranz, “O Instituto Nacional de Cinema e outras experiências audiovisuais em Moçambique no seu período pós-colonial”, Revista Contemporânea (2014), Universidade Federal da Bahia, p. 149. Disponível em linha: https://rigs.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/8790/7537


Este foi o período de auge do cinema em Moçambique, impulsado pelo presidente Samora Machel porque era consciente do poder que tinha a imagem. Tão importante foi o cinema como meio de propagação do ideal revolucionário que a primeira ação cultural do novo governo foi a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC). Mas em 1991 produziu-se um incêndio que destruiu quase todo o INC, que suspendeu as suas atividades esse ano deixando num anexo as imagens recolhidas durante 14 anos e que são o único testemunho dos onze primeiros anos da independência. Desde esse dia, o cinema moçambicano deixou de receber muitas das

ajudas

que

o

governo

concedia

e

os

cineastas,

que

continuaram, ou são estrangeiros (a maioria) ou são moçambicanos que assumem todos os gastos. Estes últimos são muito poucos. Já desde o inicio, o cinema realizado em Moçambique era produzido por estrangeiros33. Uma boa prova disso é o considerado “pai do cinema moçambicano”, Licínio Azevedo. Um cineasta brasileiro nascido em Rio Grande do Sul que emigrou a Moçambique em 1975. Foi o criador da estrutura de produção Ébano Multimédia e o seu filme Virgem Margarida é uma das poucas longas-metragens de ficção moçambicanas. À continuação aparecem excertos dum artigo publicado na Visão no qual se podem observar algumas das dificuldades que Licínio Azevedo teve de superar: "Não me interessa o filme político, mas sim o drama humano." "Não há atores profissionais de cinema. E eu tenho dificuldade em trabalhar com atores de teatro, por isso fiz os casting em grupos de dança, porque têm uma expressão corporal diferente." Quando a Guerra Civil começou, os intelectuais partiram, e Licínio deixou-se ficar, enquanto funcionário do Instituto Nacional de Cinema. Foi para o norte de Moçambique junto à fronteira com a Tanzânia, uma das primeiras zonas libertadas do colonialismo, para recolher informação para escrever o guião de um documentário. Ficou por lá três meses: "Naquelas aldeias não estavam habituados a ver brancos, conta, mal eu chegava desatavam a fugir apavoradas gritando 'muitos brancos!' Não viam um branco desde o princípio da guerra". Foi ali que escreveu o argumento para o primeiro filme de ficção moçambicano, O Tempo dos Leopardos, produzido em parceria com a Jugoslávia. "Eles tomaram conta daquilo e

33

Ver Listagem de filmes e documentários (inícios cinema em Moçambique) no anexo nº1.


fizeram à maneira deles, estragaram tudo"34.

Imagem nº 3: Licínio de Azevedo

V. Teresa Prata e o filme Terra Sonâmbula. Podíamos escrever páginas e páginas sobre todos os filmes realizados em Moçambique mas preferimos centrar a atenção num deles, Terra Sonâmbula.

Tabela 4: Dados sobre o filme Terra Sonâmbula.

Tal como lhe aconteceu a Licínio, a realizadora deste filme, Teresa Prata 35, também teve de trabalhar com amadores. Este filme conta “apenas com dois atores profissionais no elenco: a moçambicana Ana Magaia e a portuguesa Laura

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Manuel Halpern, Licínio de Azevedo. O pai do cinema moçambicano. Visão, 2013. Disponível em linha: http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/cinema/licinio-de-azevedo-o-pai-do-cinema-mocambicano=f760886 35 “Teresa Prata passou a infância em Moçambique e a adolescência em Minas Gerais e no Rio de Janeiro (Brasil), onde estudou piano. Graduada em Biologia em Coimbra (Portugal), fez curso de teatro- integrando o grupo CITAC durante seis anos- e trabalhou em rádio e numa galeria de arte. Formou-se em Roteiro e Direção em Berlim”. José de Sousa Miguel Lopes, Mia Couto no cinema…, p.13.


Soveral” 36 . O resto, incluindo o menino de 12 anos que protagoniza Muidinga (Niko Lauro Teresa), foram pessoas que responderam a anúncios de jornais e da televisão. Esta adaptação cinematográfica foi a primeira longa-metragem de Teresa Prata mas antes já tinha realizado vídeos experimentais e diversas curtas-metragens, como por exemplo, Leopoldo e Partem tão tristes os tristes, ambos de 1999.

Imagem nº 4: Teresa Prata

O filme Terra Sonâmbula, tal como o livro homónimo de Mia Couto, pode ser apresentado como político-social. Para além da parte política, representada pela guerra, encontramos uma parte social na qual aparecem temas como a importância dos antepassados para os africanos ou o racismo (se bem que estes também estão relacionados de algum modo com a política). Uma parte social na que Tuahir ensina a Muidinga a dura realidade da vida com conselhos como o seguinte: “ Não meta o coração em nada”. Outro tema importante do filme e do livro é o racismo. Relacionada com ele está a exclusão de Farida dentro do seu próprio grupo social por dar à luz uma criança mestiça, e os seguintes fragmentos: -Não gosto de pretos, Kindzu. -Como? Então gosta de quem? Dos brancos? -Também não. -Já sei: gosta de indianos, gosta da sua raça. -Não. Eu gosto de homens que não têm raça. Um monhé não conhece amigo preto.

36

José de Sousa Miguel Lopes, Mia Couto no cinema…, p. 6.


Para finalizar este capítulo queríamos ressaltar o papel dos cadernos que Tuahir e Muidinga encontram já que funcionam como nexo entre as duas histórias principais.

Imagem nº 5: Cartaz do filme Terra Sonâmbula

VI. O “fantástico”no livro e no filme. “A fidelidade ao romance de Mia Couto, que já aprovou e elogiou a adaptação, acaba tornando o filme preso demais à matriz literária e à sua estrutura interligada com viradas emocionais já aguardadas”. “Tudo tange o lado fantástico” 37. Nestes dois excertos aparecem duas das principais características do filme Terra Sonâmbula: a fidelidade ao romance homónimo de Mia Couto e a presença de elementos fantásticos. É certo que o “fantástico” está presente no filme e que este não se afasta muito da obra literária. Mas também se podem observar umas quantas diferenças importantes entre ambos sistemas de signos (livro e filme). O argumento e os protagonistas são os mesmos mas no livro aparecem personagens secundários que não estão presentes no filme e vice-versa. Como é lógico, Teresa Prata, ao mudar alguns personagens, teve de alterar algumas cenas ou até mesmo eliminá-las. Enquanto a introdução de quatro personagens38

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Segundo José de Sousa Miguel Lopes, Mia Couto no cinema…, p. 11. Quase todos os personagens que aparecem no filme estão também presentes no livro. As exceções são Josedo e a sua filha, e a mulher que está com o seu bebé ao colo perto da estação de comboios.

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no filme não altera muito o argumento, a supressão de alguns dos personagens do livro leva a alterações consideráveis. Personagens que só aparecem no livro Nhamataca (fazedor de rios) Taímo Assane "Idosas profanadoras" 39 Juliana Bastiana Quintino Fantasma de Romão Pinto Carolinda Shetani Estêvão Jonas (administrador) Salima Abdul (marido de Salima), etc. Tabela 5: Personagens que só aparecem no livro.

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“Contempla o miúdo, lhe adivina a idade de começar namoros. E sorri recordando a cena das velhas violentando o rapaz. O rapaz merecia outras iniciações” Mia Couto, Terra Sonâmbula, p. 134. No livro, esta é a justificação que se dá para que Tuahir masturbe Muidinga. Para além disso, para que Muidinga se excite, Tuahir pede-lhe que se lembre das mulheres do campo de refugiados. No filme, se a realizadora queria manter esta cena e eliminar as idosas da lista de personagens, tinha de aparecer também uma razão para Tuahir masturbar Muidinga. É aí quando Teresa Prata recorre à filha de Josedo. Como Tuahir ve que Muidinga gosta da menina decide que é hora de que este se inicie e decide que a masturbação é a melhor forma de iniciação nesse momento.


Tabela 6: Diferenças de conteúdo entre o livro e o filme.


Teresa Prata encontra-se com um problema porque, por um lado quer manter-se fiel ao filme mas, pelo outro, elimina alguns personagens e cenas. Ante esta situação, talvez deveríamos perguntar porque Teresa Prata não inclui estes personagens e cenas no filme? Esta pergunta é importante porque todas as alterações analisadas até agora provêm em grande parte da resposta a esta pergunta. Voltemos por um momento à dualidade da qual falamos anteriormente (realidade e fantasia, o sobrenatural). A forma como Mia Couto atua ante esta dualidade é diferente da de Teresa Prata. No romance, o autor combina bem realidade e fantasia. Porém, no filme de Teresa Prata a realidade está muito mais presente do que a fantasia. Como dissemos anteriormente, o “fantástico” está presente no filme mas em muito menor medida do que no romance de Mia Couto. Esta é a maior diferença entre a obra literária e a sua adaptação cinematográfica40. E porque é que, apesar de, como diz José de Sousa Miguel Lopes, tudo estar envolto em fantasia, esta está muito menos presente no filme do que no livro? Não há uma única resposta possível, pode-se dever a muitas razões. Uma das possíveis respostas é a da falta de recursos, uma vez que fica muito mais caro recorrer a efeitos especiais. Se a esta resposta juntamos o facto de Teresa Prata contar só com duas atrizes profissionais e que teve de recorrer a um grande número de amadores, entendem-se as decisões que tomou a realizadora. Para além destas razões, pode-se observar em Teresa Prata uma preferência por mostrar a dura realidade da vida, principalmente por causa do tratamento do tema da guerra. Bons exemplos disto são a morte do cabrito ao pisar uma mina, o recrutamento para o exército das crianças do campo de refugiados, o assassinato da mãe e dos irmãos de Kindzu a mãos dos bandos, e o assassinato de Kindzu no final do filme, quatro cenas que não aparecem no livro. Com estas três respostas encontramos, não só o porquê de a parte fantástica estar menos presente no filme do que no livro, senão também a razão pela qual Teresa Prata eliminou algumas cenas e alguns personagens.

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Dos trinta e um rituais, seres fantásticos e crenças extraídos do livro e reunidos por mim na listagem nº 2 dos anexos, no filme só aparecem quatro crenças. Não aparece nenhum ser fantástico nem nenhum dos rituais do livro.


Por último, gostaria de falar das diferenças de estrutura causadas pelas decisões de Teresa Prata, anteriormente mencionadas. Todas as alterações levam a uma mudança de estrutura. Para além da eliminação de algumas cenas (no livro há vinte e dois capítulos, no filme dezasseis), também se observam deslocamentos de algumas cenas. Partes que no livro aparecem num capítulo, no filme são colocadas mais adiante ou até mesmo antes. Por exemplo: O assalto á tenda de Surendra e posterior despedida entre este e Kindzu, no livro aparece na leitura do primeiro caderno. No filme, esta cena aparece na leitura do segundo caderno, substituindo assim a viagem “fantástica” de Kindzu pelo mar, cena que no filme aparece muito reduzida na leitura do terceiro caderno41.

VII. Conclusões. Há quem diga que uma imagem vale mais do que mil palabras. Sobre esta afirmação encontram-se opiniões diversas mas o que sim fica claro é que muitas vezes o filme nos dá uma perspetiva diferente da que tínhamos como leitores. No meu caso, ao ler o romance Terra Sonâmbula, o que mais me impactou foram as cenas “fantásticas” com as aparições de espíritos ou os diferentes rituais e crenças (recolhidos por mim numa lista42 para outro dos meus trabalhos). Também havia cenas relacionadas com a guerra e a complicada realidade socio-política dos moçambicanos mas estavam eclipsadas pelos elementos “fantásticos”. Com o filme passou-me justo o contrário. Teresa Prata, ao eliminar essas cenas sobrenaturais e centrar-se mais em temas como a guerra, permitiume ver com mais claridade essas partes que também estavam no livro mas que não receberam da minha parte a atenção que merecem. Por essa razão penso que o filme é um bom complemento da obra literária, independentemente da questão de ser mais ou menos lograda do que ela. Enquanto a este trabalho, devo dizer que me permitiu conhecer um pouco melhor a literatura de África e, em concreto, a de Moçambique; tal como a vida e

41

Este é só um dos muitos exemplos destes deslocamentos de cenas nos quais esas partes “fantásticas” desaparecem e, por isso, é necessário substituí-las por outras. 42 Ver listagem nº 2 dos anexos.


obra de Mia Couto. Também repassei dados sobre o cinema realizado em Moçambique, que já tinha de outro trabalho anterior e aproximei-me um pouco à vida e filmografia de Teresa Prata. Pór último, este trabalho deu-me a oportunidade de fazer algo que sempre desejei levar a cabo e que nunca tinha feito antes: comparar uma obra literária com a sua adaptação cinematográfica. A experiência foi muito boa e espero repeti-la em futuros trabalhos.

VIII. Bibliografia e webgrafia. Baltrusch, Burghard, Introdução à Literatura Africana Lusófona, Blogue de Estudos Lusófonos, disponível em linha: https://estudoslusofonos.blogspot.com.es/p/africalusofona.html (último acesso: 22/05/2018). Couto, Mia, Terra Sonâmbula. Lisboa: Caminho, 1992. Curado, Maria Eugênia, “Literatura e cinema: adaptação, tradução, diálogo, correspondência ou transformação”, Revista Temporis[ação], vol. 1 (2007), Universidade Estadual de Goiás. Disponível em linha: http://www.revista.ueg.br/index.php/temporisacao/article/view/5990/4093 (último acesso: 29/05/2018). Halpern, Manuel, Licínio de Azevedo. O pai do cinema moçambicano. Disponível em linha: http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/cinema/licinio-de-azevedo-o-pai-do-cinemamocambicano=f760886 (último acesso: 29/05/2018). Miguel Lopes, José de Sousa, “Mia Couto no cinema: alguns apontamentos a partir da obra ficcional Terra Sonâmbula”, Revista Mulemba (2013), Universidade Federal de Río de Janeiro (UFRJ). Disponível em linha: https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4985/3652 (último acesso: 21/05/2018). Santana França, Alex, “O cinema moçambicano pós-colonial: outros olhares, outros discursos”, Revista Crioula (2013), Universidade de São Paulo. Disponível em linha: http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/64732/67350 (último acesso: 28/05/2018). Sasse da Silva, Pedro Puro, “Mia Couto e a ideología moçambicana: realidade e fantasia em Terra Sonâmbula”, Blogue Revista Biografia. Disponível em linha: http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.es/2013/05/mia-couto-e-ideologiamocambicana.html (último acesso: 22/05/2018). Soranz Soranz, Gustavo, “O Instituto Nacional de Cinema e outras experiências audiovisuais em Moçambique no seu período pós-colonial”, Revista Contemporânea (2014), Universidade Federal da Bahia, Disponível em linha: https://rigs.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/8790/7537 (último acesso: 28/05/2018). Spook, Paranoid, Terra Sonâmbula, Youtube. Disponível em linha: https://www.youtube.com/watch?v=iukiUyEU-tw (último acesso: 29/05/2018).


Tembe, Félix Filimone F., Literatura Moçambicana: Uma trajetória que se funde e se confunde com a história do país, Uvigo TV, disponível em linha: https://tv.uvigo.es/es/video/mm/17930.html (último acesso: 15/05/2018).

IX. Anexos 1) Listagem de filmes e documentários (inícios do cinema em Moçambique). -A primeira produção cinematográfica realizada em Moçambique foi Chaimite, do diretor português Jorge Brum do Canto, em 1950. -Cinejornal mensal denominado “Atualidades de Moçambique” e alguns documentários (Antonio Melo Pereira). -Cinejornal, o “Visor Moçambicano” e alguns documentários (Courinha Ramos, segunda metade da década de 1950). -Em 1971, uma produtora luso-espanhola, a Telecine-Moro estabeleceu-se em Moçambique investindo no mercado publicitário. Nesta mesma época, Courinha Ramos produziu o filme Limpopo. -Deixem-me ao menos subir às palmeiras (Courinha Ramos, 1973). -Franco Cigarini produziu o primeiro documentário sobre a guerrilha em Moçambique, denominado Venti giorni con i guerriglieri del FRELIM . -O primeiro filme de Moçambique independente foi Do Rovuma ao Maputo, do cineasta jugoslavo Popovic, etc. 2) Listagem rituais e crenças de Moçambique no livro Terra Sonâmbula MORTE 1) “Venha, são mortos limpos pelas chamas”. “Não faça essa cara, miúdo. Os

falecidos se ofendem se lhes mostramos nojo”. [P.11] 2) O pai foi sepultado no mar e “o mar todo secou, a água inteira desapareceu na porção de um instante. No lugar onde antes praiava o azul, ficou uma planície coberta de palmeiras” com frutos que os homens cortaram, pese a uma voz, (a de Taímo) que lhes rogava que não o fizessem, e “de golpe espirrou a imensa água e, em cataratas, o mar se encheu de novo, afundando tudo e todos”. [P.20-21] 3) Cerimónias prestadas ao defunto: matar uma galinha e oferecer farinha, panos, bebidas, etc. [P.46] 4) “[…] quando morresse, para encontrar caminho do céu, o miúdo devia escolher só os carreirinhos. Os grandes caminhos nunca lhe levariam lá. Procurasse sim, os caminhinhos, trilhozitos entre as nuvens, feitos por pé de pouca gente”. “Dobra as pernas, depressa. Não podes morrer de pernas esticadas”. [P.57] FEITICEIROS, FANTASMAS, ESPÍRITOS, ADIVINHADORES E CURANDEIROS 5) “Os espíritos se ofendem se lhes mostramos nojo”. [P.12-13]


6) “Meu pai sofria de sonhos”/ “Taímo recebia notícia do futuro por via dos

antepassados”/ “[...] esse não é o pai, são os medonháveis bichos”. [P.16-18]

7) “Consultamos o feiticeiro para conhecer o exacto da morte de meu pai”. [P.21] 8) “Motivo do barco, dentro de casa: meu pai poderia regressar vindo do

mar” [P.22]

9) Fantasmas, espíritos que aparecem e perseguem os vivos, principalmente

durante sonhos. [P.30] 10) NGANGA: adivinhador, aquele que atira “ossículos divinatórios”. [P.32] 11) NHAMUSSORO: feiticeiro. [P.47] 12) “Se rir muito alto você afasta os maus espíritos” [P.135] 13) Tuahir levou Muidinga ao feiticeiro para que este lhe borrasse a memória. [P.135] 14) “Os recém-mortos têm suas devidas iniciações, devemos deixá-los em sossego”. “Esses defuntos estão ainda a aprender a serem mortos”. [P.156] CRIAÇÃO DO MUNDO, MUNDO(S) E CRIAÇÃO DO HOMEM E DA MULHER 15) Mãos que saíam debaixo da terra (“o chão deste mundo é o tecto de um mundo

mais por baixo”). Pesadelo no que lhe aparece a Kindzu um Xipoco ou Psipoco: um fantasma que se contenta com os nossos sofrimentos. [P.42-43] NASCIMENTOS, RECÉM-NASCIDOS E RITUAIS DE INICIAÇÃO 16) “Farida era filha do céu, estava condenada a não poder nunca olhar o arco-íris.

Não lhe apresentaram à lua como fazem com todos os nascidos da sua terra. Cumpria um castigo ditado pelos milénios: era filha-gémea, tinha nascido de uma morte. Na crença da sua gente, nascimento de gémeos é sinal de grande desgraça. No dia seguinte a ela ter nascido, foi declarado chimussi: a todos estava interdito lavrar o chão. Caso uma enxada, nesse tempo, ferisse a terra, as chuvas deixariam de cair para sempre”. [P77] 17) A mãe de Farida continuou impura mesmo depois das cerimónias: “Queimaram a palhota, juntaram todas suas coisas numa grande fogueira. A mãe ficou ali, sofrendo culpas por ter subido ao céu, único lugar onde se podem encontrar meninos gémeos. Chorou então o que ela não pôde chorar no enterro da filha. A tradição ordena: ninguém chore em luto, o lamento não pode senão chamar mais desgraça”. Depois das cerimónias frustradas ela teve de se ir embora com Farida para não contagiar os outros habitantes. Veio uma maldição, culparam a mãe de Farida, foram-na buscar e fizeram mais cerimónias para a purificarem: meteramna num buraco e foram-no enchendo de água. “A mãe de Farida visitara o céu e se ela estivesse molhada, certamente as nuvens também se encharcariam”, choveria e acabaria com a seca. Com a morte da mãe (congelada) a maldição acabou. [P.78-79] 18) Os albinos nascem dessa cor porque o ventre da mãe fora atravessado por um relâmpago segundo crença do povo. Ter um albino levava a que ninguém bebesse do mesmo copo, nenhuma mulher se deteria no caminho para lhe trocar os bons-dias. “Nascida gémea primeiro, agora mãe de um albino: ela era a pior das leprosas, condenada para sempre à solidão”. [P.86-87]


SERES “FANTÁSTICOS” E DEUS 19) MAMPFANA: a ave que mata as viagens. [P.46] 20) TCHÓTIS: anões que descem dos céus. [P.64]

OUTROS 21) “O miúdo devia mudar, alma e corpo, na aparência de galinha”. [P.19] 22) “ [...] ela comendo terra vermelha para segurar os sangues dentro do

corpo” [P.23] 23) CHISSILA: maldição, mau-olhado/ Deitava uma pena branca para trás e “da pluma nascia uma gaivota que, ao levantar voo, fazia desaparecer o buraco”./Dos pedaços rasgados da vela formaram-se peixes que me rodavam sobre a cabeça. A madeira dos remos começou a verdejar, brotaram-lhe folhinhas, etc. Consequências da maldição. [P.41-42] 24) “Maldiçoava minha sina: os cornos da lua sempre apontavam para cima!” “Aquelas pontas, viradas para o alto, eram o sinal que a desgraça continuava apostada em mim”. Ler as luas. [P.44] 25) “[...] toda a hora os ossos disputavam lugar nos seus antigos corpos. Na confusão, eles se baralhavam todos e se combinavam em desordem, ossos de uns em corpos de outros. No resultado, se pariam desencontrados monstros”. [P.45] 26) “Minhas desavenças, os tropeços que sofria, provinham de eu não ter cumprido a tradição. Agora, sofria castigos dos deuses, nossos antepassados”. [P.45-46] 27) Rochas gigantes que, por intervenção indígena, aparecem, nascem “em menos de um instante”. [P.60] 28) A escuridão faz-nos nascer muitas cabeças. [P.102] 29) Cerimónia para afastar os gafanhotos que assaltam as plantações. “Traziam ramos nas mãos e com eles iam batendo no chão”. “Elas estavam a enxotá-los, a esconjurar a maldição. A chegada de um intruso quebrou os mandamentos da tradição. Nenhum homem pode assistir a esta cerimónia. Nenhum, nunca”. [P.110-111] 30) “Vinha à mente era a voz da crença, condenando aquele que ama uma mulher em estado de impureza. Também o português punha crédito em tais africanas maldições: nele os sangues haveriam de escorrer, transbordantes”. [P.160] 31) “Há um grande problema. É que esta manhã, quando as crianças acenderam o fogo, as panelas começaram logo a rachar”. “Se as panelas começaram a rachar é porque alguém andou namorando esta noite”. “[...] num lugar novo, como aquele, ninguém pode fazer namoros, nos primeiros tempos. Para os que chegavam, aquele campo era recente, cheio de interdições. Violar essa espera iria trazer grande desgraça”. [P.203]


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