José Saramago: "História e Ficção" e "O Autor como Narrador"

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Um grande escritor português, de'projecção internacional, trata um tema ;com o qual asua obra romanesca tem muito aver

Históda e'f;icção

,José Saramago ertos livros, que mesmo nas horas de mais benevolentes condescendência para com as debilidades próprias e as fraquezas. ",lheias . nunca ou­ incluir no gIémio das ohm­ primas. têm _artes~ não raro, -c· sem que saibamos explicar porquê; de resistir às'altera­ ções do gosto, às perspectivas da idade. e, incluso, o que não é dizer pouco;'às transferências das biblio­ tecas. De um modo ou outro. todos já .xperi­ mentámos. ao mudar de casa. essa espécie de fatali­ dade que nós obriga.a deixar' para trás volumes e .!!Iais volumes. a prete"to de que deixaram de inter­ essar-nos ou deque•.siinplesmente..ni!o iriam caber' nos novos espaços. E contudo. ao amImar os livros , sobreviventes, sempre um ou,outro nOS surpreendem ':_ pôr urpa incompreensível Persistência em continua­ rem ali. Tomamo-los rias mãos, pergunlamos: «Que devo faz"'; contigo?», porém, de antemão sabemos que não haverá resposta:, a não se'.colocá-Io no seu Ipgar,; quase supersticiosamente, como se a nossa ,;:, Vida; pOIa It!atlter-se em equilibrio. tivesse necessi­ ':,~ dade desse'pol\to de ápoio. Quanto ao livro, lido, ;;"íiumaremota idade por aquela difereote pessoa que •.,' :éntão éramós, é bem posslvel que não' volte a ,,"'aberto. " l,:.....: Ou sim, Chega um dia, 000 ode hóje, em que sé • ~, :'.torna preciso, por exemplo, explicar por que bulas .:me vêm acompanhando, desde bá longos anos, um ~utor de tilo pouca importãocia como Xavier de :~aistre e um livro'seu que punca teve maior aspira­ .ção que se, acolhido por aquilo que é, um amável e ·liumorístico:. objee!O: 'Voyage" anl/lur de ma ··chambre.'Sei que t't!i levado a eles por um outro , livro e por um oulrO aÍltor, estes da minba pátriaeda' ~ri)inlill língua; colTl ~ quais, aproveito para'dizê-Io, · , de algum modo se podê afirmarque nasceu ó pom­

,guês moderno, liberto da.- sanefas e dos reposteiros

lletecentístas, solto de 'respiração e ágil como um

· gato: Almeida Garrettsechamou o homem, Viagens

· na minha terra se intitula aobra. Num caso como no

· outro, éde viagens quese trata, mas distintas, porque

não será o mesmo viajar deritro dos estreitos limites . .:'99 quarto em quevivemos, ou ir buséaT'o mundo lá ' " :~, onde ele estiver, á'contar da porta da nosSacasa. 100 '..'distintos lambém quanto se acredita que possam. ter : ';;:sido um liberal português dó "éculo 'XIX um' , . lf.mcês reaccionário que tendo vindo a morrer no :'mesmo século, trouxe e conservo.u do anterior as .', ,.co.nvicções absolutistas que pôde fazer prosperar na R6ssia imperial deenlão. Xavier de Maistie viveu ;~':::m Turim, Almeida Gam:tt nunca viajou a Itália. .

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que seria viajar à roda de um quarto? Como podí. Turim. no Sul, ser quase tão frio como São P.t.!'z, burgo., ali pertinho do círculo árctico'! E esse Xav,er

Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolheu, para asua ficção, os caminhos da História: uma, discreta e respeit~ consistirá em reproduzir ponto por ponto . os factos conhecidos, sendo a ficção merà servidora duma' fidelidade que se quer. inatacável; a outra, ousada, leva-lo-á . entretecer dados históricos não mais que suficientes num tecido ficcional que se manterá . .predominante. Porém, .

estes dois vastos mundos, o mundo

dasvenfades hislóricas'eo.mundo

.das íenIáíIesficcionaiS;' " . à primeira vista inconciliáveis,. . podem vir a ser harmonizados ·na instância narradora

de Maistre, quem era, para ser assim citade, ri€" passagem e sem outras informações. Como Si" o

leitor comum tivesse rigorosa obrigação de conhece­ lo? Falta. dizer. e talvez seja isso, de tudo. o maiS importante, que a estas inquietas interrogaçõ<lS "" juntava uma memória, um. lembrança. a qual aCiUa­ va no meu espírito como uma espécie de cãmaru de

eco. o ressoante nome dç Turim, tal como o r!n:la en~ontraâo. ainda criança, para com ele inventar uma cidade, no Cuore de Edmondo de Amícis.

Sabemos que o nossoJ!tundo mental está cheio~: quadros assim, paradosnadistilncia, mal resistin1" à erosãodo esquecimento. Éesse, pois. o quadro yU~ vos trago do fundo do tempo. p'ara convosco ti reviver, para nele tentar desenhar, a par das velbas imagens, daqueles, autores .passados, e do vulto, também ele irrecuperável"do adolescente que fui, o perfil de alguém, esleque aqui veio.hoje, que apren­ deu a ler. depois cOm outros olhos, que. perdeu a ' inocência das sua primeiras letras~ mas que. espere­ mo-Io, estará longe ,a.ind~. ~ ~uas últimas.

a

Tempo informe

­

O· rema que~ me proponho. tratar «História, Ficção»-aparece já,se nãome engano, em filigrana, nas palavras da introdução, E eu conto que, chega- . dos ao fim' do nosso percU!So, se tenha podido 'dissipar nos vossos,espíritos a por agora· muito

provável suspeita de ter eu trazido aqui não mais do

, .que um mero. exerclcio de .funambulismo verbal, É

..cetto'que nós... romapds~ e mais ainda os poetas,

, não resistimos, muitàs vezes, à tentação de jogar com

, . as palavras: para usar uma expressão que provavel­

mente não é só porrugu~.está,nos na massa.do sangue. Masójogo., o. jogo das palavras, é sério, vem confirmar a razão daqueles quedefenderil que o jogo' é, talvez, a mais séria das actividades humanas: um ritual, por exemplo, não é assim tão diferente de um jogo, mas q,s·rituais, quaisquer que sejam, sempre foram apresenta,!os como expressão de uma serie­ dade suprema, .

.o,

Vejamos;•.~ ~m~íro lugar, a História co~o . , . ficção. Trataêse'de,uma:fórmul .. qu~ transporta nao" cc' pouOOs riscoi com a qualse proerlá mesmo, imagi­ namós, introduzir de um modosub-repfi'cio a afll'll1a­ ção, acaso temerária, acaso irresponsável, de ser" História, em última análise, urrla pura fieção, Acol­ her cegamente tal fÓlmula, levar-nos-ia a concluir­ desta maneira se gerando um novo caos -'que tud" nu mundo seria ficção, que nós próprios somos OS produtos sempre cambiantes de todas as ficções, ao tempo ~utOrese personagens delas: cada um lugar;'a história de tO<lOS na, História tona. Afll'll1á-lo, é facflímo, demonstrá:lo será, prova­ velmente, impoSsível. Mas, ainda ,que neste outn" jogo sejam.mais.do que evidente as seduções do espintode paradoxo; não resisto à tentação de pórno , meu ladO alguns argumentos, acaso dignos de cons;- . déração.

e

. Aó recordar, habilmenie, se me é permitido o. 10uvorembocaprópria,aestadadeDeMaistrenesta , cidade. a cuja Academia das Ciência apresentou, nu dizer da enciclopédia; «sapientes memórias sobre a .oxidação do ouro e a aplicação do óxido de ouro 11 pintura», dou enfim o passou que faltava pàm a . explicação da relação do meu autor com o conde de · .Chambéry, e também da minhá própria relação, a

primeira, com Turim. Diz Garretl no princípio das

, ·,.súas Viagens, de algum modo tão evocador como'O

,.começo do Quixote cervantino: Que viaje à roda

do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de

· Inverno, em Turim, que li quase tão frio como são

Petersburgo . , .;. COm este ar que Deus nos deu, 'cresce na horta, e o mato é de murta~ o Xavier de Maistre, que aqui escrevesse,3o menos ia até ao quintal. '

;~(j~l~~!~:~~segUndo este modo de emender, o .1i como sua primeira tarefa., seJeccio­ '--'C-" .-'''----'--

sobre aquilo que denominarei

" quer dizer, esse passado ti "lue chamar puro e simples. se não fosse isso uma contradição .em termÓS. De posse do> dados

, FeC!)lhidos, a

s~gunda tarefa "'organizá~los, de uma maneira

do historiador seria coerente e de acordo, .

.com wna intenção prévia, transmitindo--nos, assim ~. ;,. uma ideia de necessidade inelutável, como a expres­ . são de um destino. Por Outro lado, essa escolha de· " 1

Lidas no princípio da adolescência, estas pala­

· Y""! tiveram o efeito, que hoje mal posso compreen­ "'. der, de encher-me cabeça de devaneios e mistérios: , · '/" -'f'" . ,­

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JoséSaramago:

Viagens através do tempo

••• factos exerce-se, quase sempre, sobre um consenso ideológico e cultural que leva a História, se me é autorizada a expressão, a mostrar-se como O menos surpreendente, ou o menos surpreendedor, dos ramos do conhecimento~ ";."'l~., ........,.:{ t

Um escolhedor de factos

que precisamente utilize agora a Viagem para conti­ nuara falar de História, de Ficçãoe,já que assim tem de ser, de Romance Histórico. Proponho-vos, pois, um divertimento. Sou autor de um livro que se chama Viagem a Portugal, Trata-se de uma obra que não deve ser vista como um guia ou um roteiro, porquanto não é mais do que uma narrativa de viagem, como tantas queseescreverarnnosséculosXVlleXVlII,quando a Europacomeçoua viajarpor dentroda Europa. e os viajantes narravam as suas experiências e avennu'aS. produzindo de caminho alguns documentos precio­ sos, inclusive para o estudo da história das mentali­ historiador sempre fará, ele próprio, outras viagens dades. Foi com um espírito sfim que se fez a viagem ao tempo por onde antes viaJara, esse tempo que por a Porrugal, foi também com esse espírito que a sua intervenção deixara de ser infonne, que passara Viagem a Por.tugal se escreveu. a ser História, e que, graças a visões novas, a novos pontos de vista, a novas interpretações, irá tornando sucessivamente mais densa a imagem histórica que o livro não se propõe, pois, como um guia para do passado nos vinha dando. Restará sempre, contu­ viajantes, mas necessariamente contém muito do do, umagrande zona de obscuridade, e éaf, segundo que sempre se espera encontrar nesse género de entendo, que o romancista tem O seu campo de obras. Fala-se de Lisboa, de Porto, de" Coimbra, das trahal!l0' cidades importantes do meu Pafs, fala-se das aldeias, das paisagens, das artes, das pessoas. Imaginemos Creio bem que o que subjaz a esta inquietação é agora que o autor viii fazer outra viagem para, a consciência da nossa incapacidade final para re­ terminada dela, escrever outro livro, mas que. nessa constituir o passado. E que, por isso, não podendo reconstiVJí';'lo•. ~mos tentados - sou...o eu;pelo menos - a corrigi-lo. Quando digo corrigir, corrigir a História, não é no sentido de corrigir os MOS da Quando digo corrigir, corri­ História, pois nunca poderia ser tarefa de r0­ gir a História, não no sen­ mancista, mas sim de introduzir nela pequenos car­ tuchos que façam explodir o que até então parecia tido de corrigir os factos da indiscutfvel: por outras palavras, substituir o que foi História, pois essa nunca pelo que poderia ter sido. Certamente se argumen­ taráque se trata de um esforço gratuito, pouco menos pOderia ser tarefa de rOlDan­ que inútil, uma vez que aquilo que hoje somos não é . cista, IDas silD de introduzir do que poderia ter sido que resultOu, mais do que efectivamente foi. Simplesmente," se a leitura nela pequenos cartuchos histórica, feita porviado romance. cfiegar a seruma leimra crítica, não do historiador, mas da História, que façalD explodir o que então essa nova operação introduzirá, diga:mos, uma então párecia indis­ instabilidadet uma vibração, precisamente causadas pela perturbação do que poderia ter sido,. quiçá tão custível: por outras pala­

útil a um entendimento do nosso presente como ade­ vras,sulistitult o que foi

monstração efecriva, provada e comprovada do que realmente aconteceu. pelo que poderia ter sido.

Parece indiscutível que o historiador tem de ser, em todos os casos, um escolhedor de factos. Mas cremos ser igualmente pacífico que, ao escolber, abandona dehõetadamente um nómero indeleJ:tIJina,. do de dados, ein nome de razões de classe ou de Estado,oo denarureza política conjunmral, ou ainda em função, e por causa das conveniências duma estratégia ideológica que necessite, para juslificar­ se, não da História. mas duma História. Esse bisto­ riador, na realidade, não se limita a esaevor História: faz; a HislÓriá; Por outras pa1avrns: o historiador perfeitamente consciente das consequências politi­ co-ideológicas do seu trabalho, sabe que o tempo que assim esteve organbando se produzirá como uma liçllo magistral a quantos o vierem a ler. Essa lição é porvenl1ml a mais magistral de todas as lições,. já que o historiador surge" como "criador de um mundo outro, ele éaquele que vai decidir o que do passado éimportan!e e o que do passado não merece

" atenção.

Algumas vezes, porém, esse poder autoritário

parece não ser" bastante,para nos libertar daquele borror ao vazio que, sendo característica dos povos primitivOS; vem. afinal, a encontrar-se também em não poucos espíritos cultivados. Um historiador

comoMax Galloresolveu um diacomeçaraescrever "" romances históricos por uma necessidade de equiJi- " brar pela:ficção a insatisfação qUe lhe produzia o que considerava uma impotência real para expressar na História o passado inteiro. Foi buscar às possibilida­ des da fieção, à imaginação, à elaboração livre sobre Um tecido histórico perfeitamente definido, o que sentira faltar-Ibe enquanto historiad9r: a comple­ mentaridade duma realidade. Não estava muito longe deste sentimento, suponho eu," o grande Georges · Duby, quando escreveu: Imaginemos que ~ na

primeira linha de um dos seus livros. Precisamenre · aquele imaginarque ante. foraconsiderado op<icado mortal dos historiadores posithdstas e seus conti­

nuadores de·difemJtes.Ie'ildências.

Tenho ouVido que existe uma crise da História. segunda viagem, leva como "preocupaçãeÍ absoluta Se assim é -e eu não sóü ninguém para pronunciar- " não visitar nenhum dos luga:res por onde tivesse me sobre uma questão tão grave -, interrogo-me se passado antes. Quer dizer, nesta segunda viagem o tal crise não será causadirecta, ainda que não única, autor não irá a Lisboa. não irá ao Porto, não irá a desta espécie de ressurreição a que assistimos, em Coimbra, não irá aonde já tínha ido, e, contudo, condições diferentes e com diferentes resultados, parece-Ihe aele que, com todaalegitimidade, podecl daquilo a que, a meu ver erradamente, continuamos tomar a dar~ a esse nOVo Jivro~ o título de Viagem a a chamar romartC<\ histórico. E, também, se não se Portugal, pois que de Porrugal continua a tratar-se. tratará. afinal, de expressão particular duma outra

crise mais ampla: a da representação, a da crise da Levemos mais longe ainda a nossa sugeslão, e ima­ · própria linguagem cOmO representação darea1idade. ginemos que OaUlor faz uma terceira, uma quana, . - bra.se a crise existe (adaHis!6ria, ou outra mais uma quinta. uma sex~ uma centésima viagem. obe­ geral, de que aquela seria apenas manifestação par­ decendo ao mesmopriucípiode não passarpor onde celar), se em tudo podemos idenlificar uma rela:ção ~sou antes, equeescreveráoutros tantos JwfOS, em como esta sensa:ção de fim de tempo que estamos que, finalmente e inevitavelmente, deixará de haver experimentando, então tomar-se-á mais claro por qualquer referência a lugares "habitados, nada a não que nos estamos voltando para o romance dito ser uma pura imagem, sem pomos de identificação histórico, com esta espécie d~ ansiedade que certa­ aparentes com essa entidade a quedamos o nome de mentefatiasorrircomalgomdesprezointelectual,se "Porrugal. A pergunta derradeim será esta: Pode o aindafossem deste mundo, os fervorosos crentes no centésimo livro chamar"e ainda Viagem a Portu­ Progresso do século passado. Olhar-nos-iam com gal? Respondo que sim: podemos e devemos cha­ piedade e perguntar-se-iam como, havendo sidoeles mar-lhe Viagem a Portugal,mesmo que o leitor seja nossos mestres, das tantas certezas que eles tinham incapaz de reconhecer, por mais atento que esteja à veio a n~,gsta'in~gurança que temos~ leitura, o País que nO título lhe prometeram,

é

essa:

até

Viagem a Portugal

Estejogo,aindllqueimediatamenteonãopareça, ,_ " . tem muito que ver COm a relação que mantemoS com :'-:' "_" "." __ "_ . ,. a História. Diria eu que.a Histórioa, tal como se Foi a viageín de Almeida Garrett que me condu- escreve, ou - repetindo a provocação- tal comoafez ziu à viagem de Xavier de Maistre, uma e outra" "O historiador, é primeiro livro, não mais que Ó pri­ trouxel3m-meaTurim,nãopareceráforadepropósito meira li!ffll. Claro que não esqueço que o mesmo .

As duas atitudes do romancista Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolbeu, para a" sua IícÇão, os caminhos da

História: uma, discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto por ponto os factÇlS conhecidos, seado a ficção mera servidora duma fidelidade que se quer inatacável; a outra, ousada, leva-Io-á a eDlIe­ tecer dados históricos não mais que suficientes num tecido ficcionaJ que se manterá predominante. Po­ rém, estes dois vastos mundos. o mundo das verda­ des históricas e o mundo das verdades ficcionais. à primeira vista inconciliáveis, podem vira ser harmo­ nizados na instância narradora. Reside aqui, a meu ver, a questão essencial. Conhecemos o narrador que se comporta de um modo imparcial. que vai dizendo escrupulosomame o que aconteCe, conservando sempre a sua própria subjectividade Ihra dos conflitos de que é especta­ dor. Mas há um outro tipo de narrador, mais com­ plexo, que não tem uma voz única: é um narrador substimfvel, um narrador que o leiror vai reconhe­ cendo como constante ao longo da narrativa. mas que algumas vezes lhe causará a estranha impressão de ser outro. Digo ontro porque ele se colocou num diferente ponto deviota, a partir do qual pode mesmo criticar o ponto de vista ·.do primeiro narrador. O narrador será também, inesperadamente, um narra­ dor que se assume como pessoa colectiva. Será igualmente uma voz que não se sabe donde vem e que se recusa a dizer quem é. ou usa duma arte maquiavélica que leve o leitor a sentir~se idenrifica~ do com ele, a ser. de algum modo, ele. E pode. rmaimente, masde um modo não explícito, sera voz doproprio autor, dado que o autor, c.pazde fabricar todos os narradores que entender, não está limitado a saber apenas o que as suas personagens sabem, porquanto ele sabe, e não. o esquece nunca. tudo quanto tiver acontecido depois da vida delas. Graças a este modo de conceber o I1m1po histórko . - projectando-o em todas as direcçaes - t aurorizo~ me a pensar "que o meu trabalho literário, no campo

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pel~ comrário. que é precísomente a consciência

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intensíssima. quase dolorosa. do presente que leva o romancista a olhar na direcção do passado (insisto: na direcção do passado). não como um refúgio. mas corno algo radicalmeme necessário J.QS homens de hóje para que eles possam conhecer-se melhor.

É interessante verificar que '. certas escolas históricas

Um ime'nsótempo perdido .

recelites sentiram como que .. é ­ uma eSp cie de inquietaçao' .' Não estou a dizer nada de original. e, ainda por.. sobre a legitimidade' da cima, digo-o de maneira imperfeita. No seu livro O ':H'st" '" t i ' I.. " h '. d'. "... :Mediterráneo, Fernand_Braudel escreve, com a I orla a 'qua VIR asen .. 0_.: :.;.simplicídade dumá revelaçãó,. algumas linhas que feita, introduzindo nela, . resumem e dão densidade a estas preocupações:' A História '~ão é outra coisa que uma constante como forma·'·de.. esconjllro, se ·,c·.· interrogaçjio dos tempos passados, em nome dos me'é permitida a palavra não'" problemas, das curiosidades, e rambértldasin- . . , . . ",.' <júieiaçóes e Ílngústías com que nos rodeia e cerca . apenas alguns.. processos ..' o tempo presente_ expressiVOS da ficção, mas . Observe,se como esta defini,Jo poderia ser tmns­ da' pr'Op.. r"la poes"la ". . posta. palav", por palavra, para o Romance. Diríamos , . ieualmente que o romance histórico - para conti­ ' ~ Lendo esses historiadores nuar-mos. chamar-lhe assim-nilo é ourra coisa que temos' a imopressão de estar- uma constante interrogação dos tempos passadOs, .em nome dos problemas. das curiosidades. e também perante um romancista das inquietações e angústias com que. nos rodeia e ." d' H"st' " ..cerca o lelll Po presente. : ,~.;:;o ass!~li,,;il" a . J orla,,-, .~.;,~"<" . Romance seriam tão-somerite":(]lressões da mesma

,.. :::.,,:._.. '-.::' ..2:' ...- - ._..

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Olhand,;~'passado;aniinhai";;p~;;-;n~fon{

é a de que estamosperaílleum inien.sotemp!>pÉmido. Allístó"a, e.iambém o Romance·quo·procura. para <eu têfuiifuiid;imeriful a_HiSiOria, são, lIe-alguma" maneira; viageris"atravé.;daqliele'tétfi]ió;tentativas . de itinerários; todas cQm um Sõ.objectivo, sempre iguaI::.o::êonfi~cil1'!ç·~io:do que .~m"cada ,momenrQ vamos se~db.,;Porêm; . ap~sar' de toda.. ~,,História escrita. apesar de tantos roniances escritos sobre' casas e coisas do passado, é essetempo enigmático, a que chamei perdido,. Que continua a fascinar-me. do romancê, produ~irá lima espéciedejogoco~tínuo em qUe' o.. l~itor partiCipa·:<iirectamente. por meio· . ' . ' d uma Slste~!l.uca,p~oyocaçãb_que C'Onsiste~ ser:: ' lhe negado;-pela irónia,o que lhe for:rditoantes, levando-o à:~rceber .que·se vai criando'.no,seu".. espírito' úiná sens..çllo .·de·."dispersào -da'. matéria histórica n~.ml\té)ia ficcionada."o que, nilo.. signifié cando desorganização duma e outra, preie!Jde Ser uma . Admito.q. ue.aminhadeé·laraç!ió iniciaf,a de Ser o .:: historiador ~leécion4dorrle filetos. a~ como mstóri.

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inquietação dos homens:osqu.is, éomo múltiplo . ,depepder, o~ 'óã~, a.História d~ Eúropa oILdo M';n- .. Ja!lP~' !>ifroílte;"y'oltados a um. e outra pane, e. do dema"ia_~&e.;;'.it.."""es~-c~~té':'Digil','éIl!ãiJ;qúe":; insatisf~ão'l.ã~·· . do, e, ainda, de que é que . depende a História, que .."esmo modo' que tentam desvendar o oculto rosro o historiador realiza umo:mrefacção do referencial, v.esse.de abrir~se à . . .' peqqenás h"istóriásdeperiderani.da Grande História, ....io fut~~,.t~iniarn em procurar, ná impalpável névoa.. criando, uma espéCie d~ malha ~arga. perfeitamente mantém como suporte os "mas, que ccilDpre~nsi!O'a1canç~os a ter das inúmera~. e ",ió, temP9; urt:' passàqo 'que constantemente se, lhes tecida. mas '1ueenvolve.~pa.ços tleobscurecimcnto .. abandona a sua antiga relação com eles, de..sujeição.··· ínfimas histórias pessoais, desse tempo angustiosa-· . "scapa e que hoje.. talvez mais do que nunca, quere­ ou de redução dós .fácto.... DeSto ângulo, 'páréce .resignada ao imp€llo el!'. q~e tinham c~stitufdo,::. mente perdido, o tempp que nãq retemos;.o tempo . riamíníegrar no presênto que aindasão... · . legítinio' dizer ·quo a·:.f1istóri. se 'apresentá como praticamente incontornável. Não faltará quem en: que não aprendemos a reter como aquilo que é .. B';';~eÍtó Croce esc;';~eu. ~m dia: Toda a . História é 1!is16ria contemporânea...É.h luz. ram' parente prõ~!nl~}1a fi~S~!?,d~!!9;ilue, ..o rarefazer '?: )<:nda,ilueAesta manei~, a Hist~ria~e tomou ~enos" ·tam9ém: uma parte de nós próprios.. ref"!enctal., I'ro;:ede â.omlssoés~.portanto a mOdifi" ;>CI~~Wca. E umaquestao,emcuJadlsc~s&ão.nao me' E fácil dizer-e eu próprio cedi algumas vezes à béin.âestas reveladoras palavras que tenho vindo·á. cações, estabelecendo âssim com o,acontecimentos ". ·.atreve!iá a participar. Basta:me pensar qué'sempre comodidade de tão f1agrame tautologIa-que, sendo . fazeq) mêu trabálh'o de escritor, emborá;'ai de mim, : relações qu~~ão novas namel!i~~,em_'1~e incoI)lPl~< . :será ."leJhorciência.. aquela que foreapaz de me cerro que nada existe fora da· História, !odo. o TO- i?steja prontó a i'econhecerque o Mestre merecia um tas se. estabeieceram. E éJ,nt~ressarlte verificar que ,p~oporclo~~. uma .co~preensão dupli~da: a do, rnanceé,enãopodedeixar-de ser~ histórico. Mas não ) aluno mais capaZ e que a lição justificaria um mais certas' """olas históricas. recentes sentiram conio .....H.omem pelO Facto, a doFacto pelo Homem. faltarão ai espíritos .sarcásticos para insinuarem que ; saboroso fruto . Seja como for. Sê é verdade que tive que ~m~',~Fie de in~uie~~ç~o, ~~ ~!egttim~~*j:1~'. ;...,,::; f~ ,;~:.~:.~_;;;-, .:- "o: '..' ", "* ' . ,. um I:0111ancistaque se coloqúe em tal postur3;. fazen- i emAlmeida Garrelt eXavierde Maistre os primeiros da RI'tóna tal qual VIOM sendo.fo.",- mtroduzlOdo' lnteressa,me.clarriestá;abatalhadeAusterlttz, mas. .. do4a História tema preferido, procede assim. por . guias que me trouxeram a ost", cidade, não podem

nel14 como ~orma de.çsconjuro 7 se, me é permitida a 'inte~sat-me:iá lam.bém~'~e não'mais~ saber como, necessidade de evasão~ por incapacidade de corn~ I ,caber dúvidas de que Senedeno Croce está entre'

palavra; nãó apenas alguns prOceSsos e~pressivos dá. .eia aquela -pais~gem~ se bavem casas por .ali, quem· preender o presente~ por impossibilidadede se'adap- . aq~eles tantos, .que me ajudaram a chegar à pona

.

ficção, mas da..própria poesia. Lendo esses historia: vivia nelaS; que histófiasforam as das péssoas que . !ar aele,sendo, porconse@linte,oromancehis!órico " ddl1l Universidade. d,?res, tem?s a 1,~pr~Sãorl~ estatperante u:n,ro~~n: tiVeramdefllgírparadeixar despejado Ocampo onde' Oexemplo mais acabado da fugâ à reaiidad~ E uma ~

ClSta da·.Hlstóna,. na~. . no, IOcotw;tq_sent!do d~lJla . os soldad(!s iam travar.a batal~a "de 'que viria a acusação ~o fácil quanto habitual. Mas eu penso" '. "Titulas e subtítulos da Redacç.lIo .

se

. PRÉMIO CAMiNHO

,DE LITERATURA POLICIAL

E. DEJ?18Ç~?911~N:rí!,,195, ........... ,,1>.

.

1991

REGULAMENTO

reperco~o

em:~9ã2peb'

F"~o

, ,,:Oaoo a aicançadaPl'émio Caminho de literatura PoOCiale de ; . <~ie~mc;a; a Editorial,Camlnh~ déeldiu 1985 manter as suas caracteristicas e tomar esse , _Prémío bien~l Assim. após os préniios concedidos em 19E1S, 1987 e 1989~ promove agora o 'i premio para o.an()00."1991 . 2. Est~ p(ém~ destina·se a estimular, a criação em português de literatura policial e de ficção

,GaleiÚ!i MArté; Rúa'Dr. Albeno So~io, 7

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3800'AVElRO ~ PORTÚGAL .

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6: As: obras coo,.COO'entes deyerão terum minimo de 160 pã.ginas dactilografadas nascond~d'o

".~ 7: ~~~t!e!~~~~~l~~·300 ~ p~ra~~~'mod~l~ade. No aclO da ;"Otr~tbva!~'do" " 'prêmio o a'ulOrptemiado considerarA çom isso pago1ios direitos autorais da primeira. edição 'da "­ , • respectiva obra: com uma tiragem máxima- de 3000 exemptares, oU, no ca$O-de se optar por ,. ,~çào_d~ bol$O.com uma tlra:gemmãximade 15 000 éXemplares.,'" '" 8.·~ Editorial Caminho reserva-seodlreltode publicação dõprimeiraedição da Obra premiada..Ps das ediç6es $eguinles perteneem,inlegralmenteao auto".. concedendo-este á·Editorial .....;.,w Camjn~"o~~~emiguàldaêfe~~-~icun5tâ~ias. ,,'.' ,:' ". • A ~tC?riaI Caminho reserva-se o direno de'opç-ão para pubrlCaÇãO de obras nâo pn:miadas. i 9. ~,decisôes do ~6, cuja compo~ição será tomada pPbJ1c3 oportunamente; serão tomadas por

,Obras recentes':ólêos, pastéis e "aguar~las j~~~1 *~: "

17 a 28 d~ Março' -, l

... repart~ por duas ou ff!iJísobras. Q júri poderá lambémreoomendar a publ'K:aÇâo de obcasqUe " " ·,consíde"reeomméritoparatal." : " •. ;. ~;- .:.'" , :<, ~" '~ -,:" ," : 10"~ obr§is 'COnc::crnentes dever~ enviadas:ccm il. Ind~'i da 'modalidade respectiVa., à . ,E<l_ Camínl'o, PREMIO CAMINHO DE LITERATURA ~UCIAL EDE FicçÃO ClENTIRCA,· . Ala~edad~~~~IóArn6nlodas Capuchos, 6.8.3100 Lisooa. dactilogratadas emtrês exemplares, ~ 'adots espaços.empapeUormatoM, até31 de Dezembrode 1990. ESfesexe~resnãoserão . 'd~fvtdoS.OjúQ.lom~rá_.p(lblica.a ~"uadecisãoaléaodia31 de Maio de 1991. ~ -. '.> "". ' • 11. O~ ex:~lares óevém ser assinados com t.lm pseudônimo e 'acomPanhados de um envelope" , ~Çfado cont~ a jc!enlidade do respedivo autOl",O nãocurf,;Jrimenoo destadáusula implica a • :, ,e~nação do .(~')llCOrtenle, Só serão abef!.os os en~h?~:,,~attvos aos autores poernlados ~ àque~,S: obras as quais a ~ijora deçida ex~ó de opção para f.tJb4icaçâo, 12: Para lOdosos efeitosCD~idera·$eque. apartir do mom'ente em que enlregamos seus orig~js "

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Falto de mapas, abandonado de guias, com o temor contempla nao há outra mediayao que nao seja a do respectivo autor, e portanto nao é possível identifireverencial de quem pisa terra estranha, urna terra onde os sistemas de comunicayao estáo habitualcar ou sequer imaginar, por exemplo, a figura de um narrador na Gioconda ou na Parábola dos Cemente redigidos em línguas que, nao raro, só vagas gos, o que se me responde é que , sendo as artes difesemelhanyas guardam ainda com a linguagem comum, atrever-me-ei a expor-vos urnas poucas ideias rentes, diferentes teriam igualmente de ser as regras dementares, as únicas que poderia autorizar-se um que as traduzem e as leis que as governam. Esta peremptória resposta parece querer ignorar o facto, simples prático da literatura como eu. Por experiencia própria, tenho observado que, fundamental no meu entender, de que nao há, obno seu trato com autores a quem a fortuna, o desti- jectivamente, nenhuma diferenya essencial entre a no ou a má-sorte nao permitiram a gramao que guia o pincel ou ya de um título académico, mas que, o vaporizador sobre a tela, nao obstante, foram capazes de produe a mao que desenha as leno seu trato corn autores a quern tras sobre o papel ou as faz zir obra digna de algum estudo, a atitude das universidades costuma ser de beaparecer no ecra do coma fortuna, o destino 011. a má sornévola e sorridente tolerancia, muito putador, que ambas sao , parecida com a que costumam usar as com adestramento e eficáte nao permitirarn a grara de um cia similares, prolongapessoas sensíveis na sua relayao com as crianyas e os velhos, uns porque ainda men tos de um cérebro, título académico, mas que, nao nao sabem, outros porque já esqueceambas instrumentos mecaram. É grayas a táo generoso procedinicos e sensitivos capazes obstante, Joram capaz.es de promento que os professores de Literatura, de composiyóes e ordenaem geral, e os de Teoría da Literatu.ra, yÓes sem mais barreiras ou duzir obra digna de alg1pn estuem particular, tem. acolhido com simpáintermediários que os da tica condescendencia - mas sem que se fisiología e da psicologia. do. a atitude das u1úversidades deixem abalar nas suas convicyóes cienNesta contestayao, claúficas __.:. a minha ousada declarayao de ro está, nao VOU ao ponto rostuma ser de benévola e sornque a figura do narrador nao _existe, e de negar que a figura do de que só o autor exerce funyao narratidrnte tol~ráncia muilo parecida que denominamos narrava real na obra de ficyao, qualquer que dor possa ser demonstrada ela seja, romance, conto ou teatro . E com a qur costumam usar as pes- no texto , ao menos, com o devido respeito , segundo quando, indo procurar auxílio a urna duvidosa ou, pelo menos, problemática soas sensívei~ na sua relarii.o urna lógica bastante similar a das provas definitivas correspondencia das artes, argumento romas crin111;as f' os i lffho.1 da existencia Deus formuque entre um quadro e a pessoa que o


ladas por Santo Anselmo .. . Aceito, até , a probabilipensamento do autor, seu próprio e exclusivo (até dade de variantes ou desdobramentos de um narraonde é possível se-lo ) ou deliberadamente tomado dor central , com o encargo de expressarem urna de ·empréstimo, de aco rdo com os interesses da narpluralidade de pontos de vista e de juízos considerarac;:ao. E também me pergunto se a resignac;:ao ou inda útil a dialéctica dos conflitos. A pergunta que me diferenc;:a com que os autores de hoje parecem aceitar a «usurpac;:ao», pelo narrador, da matéria, da cirfac;:o é se a obsessiva atenc;:ao dada pelos analistas de cunstancia e do espac;:o narrativos que antes !he texto a tao escorregadias entidades, propiciadora, sem dúvida, de suculentas e gratificantes especulaeram pessoal e inapelavelmente imputados, nao sec;:óes teóricas, nao estará a contribuir para a reduc;:ao rá , no fim de cantas, a expressao mais ou menos do autor e do seu pensamento a um papel de perico nsciente de um cerro grau de abdicac;:ao, e nao gosa secundaridade na apenas literária, das suas responsabilicompreensao complexiva dades próprias. da obra. Que fazernos , em geral, nós, os que Um livro ndo está formado rnQuando falo de pensaescrevemos? Contamos histórias. Conmento, estou a incluir nele tam histórias os romancistas, contam mmte por /Jersonagens, conjlilos, histórias os dramaturgos, contam históos sentimentos e as sensac;:óes, as ideias e os sonhos, rias os poetas, contam-nas igualmente sitiwfofs, lances, pmpéán.s, 1uras videncias do mundo exaqueles que nao sao, e nao virao a ser terior e do mundo interior nunca, poetas, dramaturgos ou romanJ1resas, efeitos de estilo, f'XiM(ofs sem as quais o pensarnento cistas. Mesmo o simples pensar e o simse tornaria ern puro pensar gi.násticas de técnicas de narra- ples falar quotidianos sao já urna históinoperante. Abandonando ria. As palavras proferidas, ou apenas qualquer precauc;:ao retórircio - um livro é, acima di' tu- pensadas, desde o levantar da cama, pela manha, até ao regresso a ela, chegaca, o que aqui estou assumindo, afina!, sao as mido. a expressrio do .1eit aulot: PPr- da a noite, sem esquecer as do sonho e as que ao sonho tentaram descrever, nhas próprias dúvidas e perplexidades sobre a gzmto-mP até. 1e o r¡ue delfrmina constituem urna história com urna coeidentidade real da voz narrencia própria, contínua ou fragmentao /p¡tor a /,er nrio sprrí Cl.\f'CTffa f \- da, e poderao, como tal , em qualquer radora que veicula, nos limomento, ser organizadas e articuladas vros que tenho escrito e j1Pranra de descob1ir no intmor em história escrita. ern todos quantos li até O escritor, esse, tuda quanto escreagora, aquilo que derradeido livro a pessoa invisive/ mn.1 ve, desde a primeira palavra, desde a ramente creio ser, caso por primeira linha, é escrito em obediencaso e quaisquer que sejam 11mlll/HflfnlP do \fll rmlm: cia a urna intenc;:ao , as vezes clara, as as técnicas empregadas , o

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De fingimentos de verdade e de verdade de fingivezes escond!da - porém, de certo modo, visível e mentos se fazem, pois, as histórias. Contudo, em mióbvia, no sentido de que ele está sempre obrigado nha opiniao, e a despeito do que, no texto , se nos a facultar ao leitor, passo a passo, dados cognitivos que sejam comuns a ambos, para chegar finalmenaprese nta como urna evidencia material, a história te a algo que , querendo parecer novo , diferente , que ª º leitor mais deveria interessar nao é a que, liminarmente, !he é proposta pela narrativa. Um livro nao original, já era afina! conhecido, porque , sucessivaestá formado somente por personagens, conflitos, simente, ia sendo reconhecível. O escritor de histótua\:Óes, lances, peripécias, surpresas, efeitos de estilo, rias, manifestas ou disfar\:adas, é portanto um mistificador: conta histórias e sabe que elas nao sao exibi\:óes ginásticas de técnicas de narra\:ªº - um livro é , acima de tudo , a expressao de urna parcela mais do que urnas quantas palavras suspensas r. o que eu chamaria o instável equilíbrio identificada da humanidado fingimento , palavras frágeis , assustade: o seu autor. Perguntodas pela atrae\:ªº de um nao-sentido me até, se o que determina O escritor de histórias, rnanifesque constantemente as empurra para o o leitor a ler nao será urna caos de códigos cuja chave a cada mosecreta esperan\:ª de descotas ou disfarradas, é portanto mento amea\:a perder-se. Nao esque\:abrir no interior do livro mos, porém, que assim como as verdamais do que a história que um rnistificador: canta histórias des puras nao existem, também as pulhe será narrada - a pesras falsidades nao podem existir. Pore sabe que elas niio siio mais do soa invisível mas omnipreque se é certo que toda a verdade leva sente do seu autor. Tal coconsigo, inevitavelmente, urna parcela que urnas quantas palavras sus- mo o entendo, o romance de falsidade , quanto mais nao seja por é urna máscara que esconinsuficiencia expressiva das palavras, pensas no que eu chamaria o ins- de e, ao mesmo tempo, retambém certo é que nenhuma falsidavela os tra\:OS do romancisde pode ser tao radical que nao veicutável equilíbrio do fingi men to, ta. Com isto nao pretendo le, mesmo contra a inten\:aO do mentisugerir ao leitor que se enroso , urna parcela de verdade. A mentipalavras frágeis, assustadas pela tregue durante a leitura a ra conterá, pois, duas verdades: a próum trabalho de detective pria sua, elementar, isto é , a verdade da atraa;iio de um mio-sentido que ou antropólogo , procuransua própria contradi\:aO (a verdade esdo pistas ou removendo catá oculta nas palavras que a negam ), e constanlemenle as empurra para madas geológicas, ao cabo a outra verdade de que, sem o querer, das quais, como um culpase tornou veículo , comporte ou nao escaos de códigos cuja chave a do ou urna vítima, ou como ta nova verdade, por sua vez, urna parum fóssil , se encontra1ia esrada momento arneara jJerder-se. condido 0 auto r... cela de mentira.

º


Muito pel o contrário: o autor está no livro todo, o O que o autor vai narrando nos seus livros é, taoautor é todo o livro, mesmo quando o livro nao consi-sornen te , a sua história pessoal, Nao o relato da sua vida, nao a sua biografia, quantas vezes anódina, ga ser todo o autor. ao foi simplesmente para ch oquantas vezes desinteressante, mas urna outra, a secar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert declarou que Madame Bovary era ele próprio. Parecreta, a profunda, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente ousaria ou saberia ce-me , até , que , dizé-lo , nao fez mais d o qu e arrombar urna porta desde sempre aberta. Sem faltar contar. Talvez porque o que há de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber nas ao respeito devido ao autor de Bouvard et Pécuchet, poder-se-ia mesmo dizer que urna tal afirmai;:ao nao pepalavras com que ele a si mesmo se define e nas suca por excesso , mas por defe ito: faltou a Fl a ubert cessivas figuras -de si mesmo que povoam um passaac r e scentar qu e e le e r a do que nao é apenas seu, e por isso !he também o marido e os escapará sempre que tentar isolá-lo e amantes de Emma, que era isolar-se nele. Talvez, também , porque Pergu11to-me até. se o quf detera casa e a rua, que era a ciaquilo em que somos mesquinhos e pedade e todos quantos, de quenos é a tal ponto comum que nada mina O /,eitor a /,er nao SfTá UTTlfl toda as condii;:oes e idade novo poderia ensinar a esse outro des, nela viviam, casa, rua e ser pequeno e grande que é o leitor. secreta esperan~a df descobrir no cidade reais ou imaginaFinalmente, talvez seja por alguma das , tan to faz. Porque a intmor do livro - mais rlo que destas razoes que certos autores, entre imagem e o espírito, o sanos quais julgo dever incluir-me, privilegue e a carne de tudo isto, a história qnP Ihe será narrada giem , nas histórias que contam , nao a tiveram de passar, in te iros, história que vivem ou viveram, mas por urna só pessoa: Gustave - a pessoa invisível mas omni- a história da sua própria memória, com Flaubert, isto é, o autor, o as suas exactidoes, os seus desfalecimenhomem , a pessoa. Também prfsentf do seu autor. Com isto tos, as suas mentiras que também sao eu , ainda que sendo tao verdades, as suas verdades que nao popouca coisa em compara1ui.o pretendo sugerir ao lfitor r¡ue dem impedir-se de ser mentiras. Bem i;: ao , sou a Blimunda e o vistas da coisas, sou só a memória que Baltasar de M emorial d o se entregue a um trabalho de dr- tenho , e essa é a história que conto. Convento, e em O Evangelho Omniscientemente. Segundo Jesus Cristo nao sou trctive ou antroj1ólo¡;o, prorumnQuanto ao narrador, que poderá ele apenas Jesus e Mari a Madase r senao urna personagem mai s d e do pista \ wh 0 1 q11ru 1 ~r' r11ro11- urna história que nao é a sua? • le na. ou J osé e Maria, porque sou tam bém o Deus e trriri" r>.1m11rÍlf/1, '' r1111m ... Diabo ou ~ lá esta.o ..

ªº

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