Isabela Figueiredo na Galiza 28 de abril a 2 de maio de 2017
Dossier
FOTO NUNO FERREIRA SANTOS ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 9719 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Sexta-feira | 25 Novembro 2016 | publico.pt/culturaipsilon
“Este é o meu corpo, amem-me, dêem-me pancada. Estou aqui para fazer barulho”
Um romance selvagem: A Gorda, de Isabela Figueiredo
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Rui Catalão
Sete anos depois de se estrear com Caderno de Memórias Coloniais, Isabela Figueiredo publica aos 53 anos o seu primeiro romance 4 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016
“E
u, Isabela Figueiredo, saí do armário no momento em que fiz a gastrectomia. Passei a ter fat pride [orgulho em ser gorda] no momento em que deixei de ser gorda. Antes de fazer a operação não aceitaria. Faria o que sempre fiz, que foi gozar com a minha gordura, com o meu corpo, com o meu aspecto. Faria os outros rirem-se de mim. Porque é que precisei de me amputar para renascer? Não sei, é como a terra, precisa de ser queimada para ficar fertilizada, não sei. Depois de fazer a gastrectomia e de perder todo aquele peso senti que estava preparada para falar. Fiz a operação em 2010 e em 2011 comecei a prepararme. Queria escrever sobre solidão, sobre dor, sobre perda. É curioso que o livro seja divertido.” Sete anos depois de se estrear com Caderno de Memórias Coloniais, livro em que infância, poder, desejo e violência se conjugam em pequenos episódios, Isabela Figueiredo publica aos 53 anos o seu primeiro romance. A protagonista de A Gorda fala na primeira pessoa e tem um nome: chama-se Maria Luísa. É uma personagem tão genuína, tão inteira que não duvidamos tratar-se de uma pessoa. A forma como se expõe é como um pneu a deformar a cintura literária. É alguém que aparece, e que nos diz coisas tão cândidas e desarmantes como: “Digo a verdade
por me custar desperdiçar a sua extrema pureza.”
Não é comer é ter fome Estava um lindo sol de Inverno quando Isabela apareceu em Cacilhas, no largo em frente ao embarcadouro. Vinha com o rosto pintalgado, marcas de uma operação para tirar os sinais da cara. Não quer ser entrevistada no exterior, a luz ferelhe a vista. Avançamos por uma rua onde abundam esplanadas. Da Cacilhas operária restam as fachadas: mantém-se o pequeno comércio, mas de cara lavada e ao gosto turístico. Fazemos várias tentativas, mas somos barrados: esta estalagem é só para hóspedes, este bar de petiscos está ainda limpezas, só abre ao fim da tarde. Pedimos licença para entrar num café e Isabela, depois de se sentar, troca de lugar: a luz vinda da porta continua a feri-la. “Perdi a visão central num olho. Tenho alguma visão periférica, mas, se fechar este olho, não te vejo. Contudo, consigo ver algumas coisas que estão à roda de ti. Se focar aquele balcão, não vejo aquele balcão. Contudo, consigo ver as luzes em cima. Tenho uma degenerescência macular causada por descolamento de retina. Tudo aquilo que quero ver não vejo, só vejo aquilo que não quero ver. Só vejo o que é periférico.” Os problemas de vista, assim como a luz e os seus efeitos em objectos e superfícies, é um motivo recorrente
em A Gorda. Diz Isabela: “Eu descrevi uma luz que tenho na memória. Agora não suporto a luz, tenho de fugir dela.” Quando a protagonista apresenta a casa que herdou dos pais, somos logo avisados do hall “sem claridade” e dos restantes compartimentos onde recebe “chapadas de luz impiedosa, quer na frente, virada a poente, quer nas traseiras, para nascente”. “A luz dói nos olhos. Custa-me suportá-la, mas amorna o espaço e alegra os dias.” Já perto do fim, na iminência de rever o seu primeiro namorado, outro aviso: “Ele não sabe que os meus olhos já não lêem letras de jornal em papel.” O enredo amoroso que atravessa o livro é uma paixão de juventude em que Maria Luísa é sujeita a um surtido de humilhações e vilanias a que só o sexo escapa. Desde ter de se esconder dos amigos e familiares, para não o envergonhar com a sua gordura, até se tornar seu amante, quando já está casado e com filhos, até espiar-lhe a rotina doméstica, enquanto fantasia aquela vida para si. E, no entanto, um carteiro, tão parecido com o Jude Law a ponto de só poder ser o Jude Law, haverá de aparecer com uma carta para que a felicidade ainda seja possível com aquele mesmo rapaz da Arrentela, de seu nome David, que a trocou por uma colega de escola e que entretanto ficou careca. Como é possível a felicidade depois de tanta baixeza? Isabela: “Ela tem muitas contradições
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Isabela Figueiredo usa a sua vida para construir outra vida. “Este é o meu corpo e o meu corpo está aqui para tudo, amem-me, dêemme pancada, façam o que quiserem. Estou aqui para fazer barulho.” Lê-se A Gorda como os gordos comem, sofregamente, sem pensar no amanhã. Ou como um febrão em que toda a sordidez e delicadeza da vida íntima é suada. Este livro é um cometa. Cheio de humor selvagem.
Fat power
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fá da sala da tia, durante a transmissão de um episódio da série juvenil Fama. Mais outro exemplo: a colega Tony, uma mitómana angolana a quem Maria Luísa se devota como uma escrava, lavando-lhe a roupa, massajando-lhe o corpo, num jogo de submissão cujo fim último é apoderar-se do desejo que o corpo da amiga inspira, desejo a que o seu próprio corpo não pode aspirar. A Gorda abre com a frase: “Quarenta quilos é muito peso.” Com a gastrectomia, quarenta quilos são eliminados, mas ser gordo é também ter memória de ser gordo. Maria Luísa começa “a ficar leve, quase a levantar voo”, mas ainda pensa como gorda: “Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim. Continuo a ter o defeito, mas não se vê tanto; tornou-se menos grave. Há momentos em que me parece ter ganhado uma nova vida, como os que passaram por experiências de quase morte, viram o túnel para o outro lado, com a atraente luz branca no final, chamando-os, mas escolheram voltar. Eu também tenho escolhido, e mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida. Conheço muito bem os meus limites.” A gorda entra no elevador, mira-se ao mesmo espelho onde já teve vergonha de se ver reflectida e agora usufrui da sua “beleza madura”: “Por vezes considero que perdi muito tempo, no passado, desgostando de mim, mas reformulo a ideia concluindo que o tempo perdido é tão verdadeiramente vivido na perdição como o que se pensa ter ganho na possessão. E volta o sossego.” A Gorda é sobre a experiência de ser gorda e é também sobre deixar de ser gorda. É sobre aquilo que se tem e aquilo que se perde. É sobre aquilo que se quer ter e, não podendo, encontrar um substituto. E depois também o substituto tem de se perder. Na segunda metade do livro, Maria Luísa relata uma doença misteriosa, de uma “qualquer morte” que dura uma semana, e da qual regressa “esfomeada, sedenta, descomposta”. Depois disso, vai parar a Alcobaça “no tempo dos marmelos”. A roupa que trouxe de Moçambique deixa de lhe servir e não há outra; as mamas não cabem no soutien e não há dinheiro para comprar um novo; as cuecas apertam as virilhas e deixam marcas roxas na pele. Enquanto isso, come marmelada, com ou sem pão, de preferência às escondidas: “Poderia dormir num colchão de marmelada, enfiar-me num poço dela até a vida melhorar e valer a pena acordarem-me da fome insaciável.” Isabela: “Eu comia para além da fome. Havia uma necessidade grande de encher o estômago. A comida sossegava-me. O meu corpo não precisava de comida, mas eu precisava de comer. O nosso corpo tem uma linguagem e pede-nos coisas. Se calhar era esse o meu remédio. Era uma fuga, um alívio. Uma forma de me encher das coisas que não tinha. A minha adolescência não foi fácil. Foi um grande desenraizamento. Vim para Portugal antes de fazer 13 anos. Quando cheguei, tinha familiares a receberem-me no aeroporto. Nunca os tinha
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visto e fui para casa deles. Pelo facto de serem nossos familiares não são necessariamente nossos aliados, nossos amigos, nossos protectores.”
Esplendor colonial num apartamento Maria Luísa, tal como Isabela Figueiredo, nasceu e passou a infância em Moçambique. Tal como a sua autora, veio para Portugal viver com familiares que desconhecia depois da independência. Tal como Isabela, frequentou um colégio interno, em Tomar, viveu na casa de familiares nas Caldas, em Alcobaça e no Feijó e finalmente fixou-se com os pais na Cova da Piedade, em Almada, quando era já uma adolescente com vida de adulta. Os pais enviaram-na para Portugal quando era demasiado cedo e voltaram para ela quando era demasiado tarde. “Eu não tinha opinião a dar sobre a minha vida”, diz Isabela. “Eram eles que decidiam. Optaram pela
“O que eu queria escrever não tinha lugar na literatura. Nos anos 90 enviei um original a uma figura da língua portuguesa que me respondeu a dizer que aquilo não prestava. Mas naquilo que lhe enviei estava o gérmen do que queria escrever” minha segurança e pela minha formação académica. Eu compreendi a decisão deles e aceitei, até porque sempre houve em mim um grande desejo de independência e de solidão. Quando eles voltaram, eu também não os queria. Houve um grande afastamento. Ela cresceu muito. Tornou-se uma mulher. Aprendeu a viver sozinha.” A Gorda está organizado em oito capítulos e cada capítulo corresponde a uma divisão da casa que partilhou com os pais na Cova da Piedade. Usar as divisões da casa como ponto de partida permite-lhe serpentear no espaço e no tempo, em ciclos de ida e volta à adolescência, à vida adulta, à velhice dos pais e depois da sua morte. A sinalização cronológica é feita através do recurso ao contexto histórico: a mãe de Maria Luísa morre depois da renúncia de Bento XVI; a sua vinda para Portugal, sem os pais, acontece com a independência de
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e a parte onírica é muito importante, ajuda-a a viver no meio daqueles fracassos. Eu devia à Maria Luísa a hipótese de um final feliz. Devia deixála pensar isso. Ela tem consciência de que é uma sonhadora. Deixemos a Maria Luísa acreditar que o David Luís vai voltar, isso ajuda-a.” A Gorda fala menos de comer do que de ter fome. Aquilo de que mais se alimenta nem é de comida, é do passado. O passado está vivo e nem é passado, regurgita e volta ao presente. A vida continua, certamente, mas com as vozes dos mortos a deambularem pela casa, ou a entrarem por ela adentro e a intrometerem-se no quotidiano. Depois da morte da mãe, Maria Luísa está debruçada no balcão da cozinha, a comer melão, e ouve uma voz que a chama. É a voz de uma mãe na rua, a chamar pela filha. Não é a sua mãe, mas vai à janela na mesma: “Havia um ‘eu e tu, coisa única, amarga e doce, do princípio ao final dos tempos, vem’, por isso vou, mesmo sabendo que não é para mim.” Não é a única voz que escuta: “Quando o papá morreu, dei em falar com ele estando sozinha, e havia necessidade de compreender que tipo de loucura era essa.” Sentada à mesa do café, Isabela diz: “A minha mãe era mais sensata, era a pessoa que estruturava aquela casa, mas era do meu pai de quem eu gostava. Ele era o meu melhor amigo de brincadeiras.” O dilema com os mortos está de regresso à vida. Li as 285 páginas de A Gorda sem interrupções, com a sensação de não ter feito mais nada depois de começar. Roubou-me horas de sono e também não me permitiu estar desperto para outra vida que não a vida de Maria Luísa num jogo de transparências com a vida de Isabela Figueiredo. Mesmo nos momentos em que se interrompe a leitura, fica-se a reler mentalmente o que já foi lido, enquanto se antecipa o regresso ao livro. Não por ser um livro, mas por no livro estar a Maria Luísa e com ela a sua autora, as duas numa só. Lê-se A Gorda como os gordos comem, sofregamente, sem pensar no dia de amanhã. Ou como um febrão em que toda a sordidez e delicadeza da vida íntima é suada. Ou ainda como uma porta a ser arrombada. “Quero pegar na nossa baixeza e torná-la em algo sublime. É sublime a nossa baixeza. Mas também os nossos momentos sublimes às vezes não valem nada, são absolutamente ridículos, então também quero pegar nisso e meter no seu devido lugar.” A Gorda é um romance gordo, cheio de banhas, de dobras, de corpos dentro de outros corpos a alimentarem-se de outros corpos. Há episódios que surgem como homúnculos. É disso exemplo a paixão de Maria Luísa por João Mário, um aventureiro que abandona o país deixando um endereço de Sines, para onde ela lhe envia cartas todas as semanas, construindo uma relação de remetente sem destinatário. Outro exemplo: o biscateiro Lunático, um meia-leca feioso e pobretana, um faz-tudo muito ágil com as mãozinhas, que providencia o primeiro orgasmo a Maria Luísa no so-
O corpo é a guerra Isabela Figueiredo faz do corpo a arma, a munição e a própria guerra. Por Hugo Pinto Santos Isabela Figueiredo abria e encerrava Caderno de Memórias Coloniais com poemas de Manuel António Pina. E há um poema do autor, Como Se Desenha Uma Casa, que parece um esquecimento deliberado em A Gorda, onde talvez fosse uma sinopse impertinente, na sua exactidão: “Primeiro abre-se a porta/ por dentro sobre a tela imatura onde previamente/ se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,/ a mãe para sempre morta.// (...) Uma casa é as ruínas de uma casa,/ uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;/ desenha-a como quem embala um remorso,/ com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.” O romance de estreia de Isabela Figueiredo desenha-se como uma casa: “Porta da Entrada”, “Quarto de Solteira”, “Sala de Estar”, “Quarto dos Papás”, “Cozinha”, “Sala de Jantar”, “Casa de Banho”, “Hall”. Cada divisória, entretanto, acarreta uma orientação mínima, porque de escassa capacidade de imposição, quer temática, quer organizativa — isto é, nenhum daqueles segmentos domésticos ditará respostas óbvias. Trata-se, tão-só, de um deflagrador, a faísca que detona a viagem. Do mesmo modo, aquilo a que poderíamos chamar ordenação do território do romance não responde de forma ordeira ao apelo da cronologia, nem ao esquematismo do baloiço analepseprolepse. A narração lê e relê os acontecimentos dos vários passados da narradora. Volta aos mesmos lugares e ocorrências, mesmo se de ângulos distintos. Para acertar o tom, atinar com a verdade dos factos revisitados, a graduação da realidade, do plausível — disposição já adivinhável na advertência da autora, de tonalidade aristotélica: “Todas as personagens e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade.” Não se lavra duas vezes o mesmo campo, mesmo quando se repisa tremendamente perto. As próprias frases são reescritas, revistas, glosadas ou repostas em paráfrases fiéis ou revoltadas; no entanto, a passagem do tempo cria um indivíduo que revive o passado diferentemente e que reconstrói sucessivos presentes que são como vagas sobre um areal que se fosse erodindo. A figura materna, como a casa (mas também os animais, presentes no poema de Pina), desempenham papel preponderante. De tal forma que, quase no final, tudo se exacerba e, numa transição abrupta, corpo e casa se identificam inextricavelmente: “Um corpo tão perfeito, tão imponente, como pude desamá-lo tanto?! Que silêncio! Que abandono! A casa entretém-se escutando as conversas e os pensamentos gravados por vozes diversas na atmosfera.” (p. 283) Motivo pelo qual se afirma: “A casa respira fundo esse desperdício doce e ácido, denso.” (p. 284) E porque já antes se registara: “A sala de jantar é o armazém de artérias, ADN e sinapses que nos ligam e atravessam.” (p. 214) A mãe da narradora, por seu turno, é objecto de algumas das páginas mais empenhadas e de mais avassaladora entrega de todo o livro — “Gosto dela. Não a suporto. Quando morrer, não me resta mais ninguém. Nunca mais morre. Não morras.” (p. 208) Não basta dispor metodicamente (e o método é, aqui, destempero, vertigem, queda) os contrários e deixar-se seduzir pelo enlevo da contradição. Todo este batimento binário é como a sístole e a diástole do romance. Todo o seu sangue parte daquele fulcro carnal e oscilante; tudo o que circula no corpo romanesco é realmente do corpo que emana, e do que, com esse emaranhado de órgãos, se pode conceber como espírito. As descrições do corpo próprio e alheio são do mais cru e do mais conseguido que a literatura portuguesa tem produzido. O que neste livro importa não é a destreza com que se lida com o impropério, o tabu, o interdito social, mas tudo o que a sua escrita consegue fazer com essas matérias-primas —
com essa carne crua. Em A Gorda, a palavra obscena serve para emular a rapidez rude da vida, a sua irrepetibilidade; mas é igualmente a outra palavra, a deturpação do código, a revelação dos diversos planos de compreensão: “Em 2004 acabámos por não foder. Isso é que foi pena, mas deves reiterá-lo sem receio, para tua defesa. Íamos fodendo, mas tinhas hora para regressar a casa. Controlaste-te como deve ser. Deve ser duro viver tão preso, mas calculo que haja certo consolo na rotina do cativeiro. Uma pessoa habitua-se e não quer outra coisa.” (p. 174) Porque nem sempre é este o modo de afirmar o corpo. Por vezes, é a exactidão quase científica que descreve os seus actos e gestos. A obscenidade é também a voz do excesso e da superação. Da assunção tão plena quanto possível do corpo. Até lá, porém, foi preciso começar por perder camadas de si próprio. O processo traumático da perda radical de peso, a que a narradora se submete, é apresentado logo nas primeiras linhas: “Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia: era um segundo corpo que transportava comigo.” (p. 19) E elas são não apenas um mecanismo de (des)estruturação narrativa, nem um modo de lançar as bases do descrédito a que é votada uma cronologia linear. São um diapasão de todo o romance, na medida em que estabelecem uma tonalidade e um padrão que A Gorda mais não fará do que refinar, depurar, intensificar. Sem cessação, sem relaxamento. Houve já palavras de Caderno de Memórias Coloniais que anteciparam essa recusa de depor armas: “O meu corpo foi uma guerra, era uma guerra, comprou todas as guerras.” Também no seu romance de estreia Isabela Figueiredo faz do corpo o núcleo da guerra. E, mais do que isso, ele é a arma, a munição e a própria guerra — mas também o alvo a abater e a exaltar. Ele é tanto fonte de increpação quanto motivo de júbilo e prazer. A narradora mede forças contra inimigos cujos contornos são diversos. Sejam eles os ideais de beleza femininos mais estandardizados, ou a noção forte (sufocante?) de família. Daí que o cotejo seja permanente, e o saldo, penoso: “Não sabia se as mulheres da minha família alguma vez tinham sentido o mesmo que eu, se eram assim imperfeitas.” (p. 99) A Gorda manipula os géneros, cruzando as potencialidades do discurso memorialístico e romanesco. Não será abusivo encontrar nele uma relação natural com Caderno de Memórias Coloniais. Pela importância da família, pelo tratamento frontal da questão colonial, um mesmo arco temporal, sensivelmente. Até essa liturgia celebrada perante o corpo materno. Se, no Caderno, a autora escrevia “No corpo da minha mãe apenas me interessava o seu peito. (...) Que delícia havia de ser ter autorização para lhe mexer”, em A Gorda, lemos: “Sempre tive a fixação das suas mamas, como se as minhas não me bastassem. (...) Quanto as beijaria!” “O corpo da minha mãe é o grande mistério” (p. 224). O romance de Isabela Figueiredo é uma ficcionalização do registo autobiográfico. Se o autor empírico fica mais ou menos distante da narração e da narradora, poderá ser questão de somenos — ou não. Facto é que a miscigenação dos géneros possibilita uma análise que é guerra sem quartel. O auto-retrato é tortura consciente do sujeito diegético e existencial — “Tenho adolescência, o resto é a vergonha das mamas volumosas, dos pneus da cintura e das coxas grossas.” (p. 220) Uma hipertrofia da consciência que se mescla com o hiperdesenvolvimento corporal e produz resultados de uma pungente autodepreciação cuja franqueza está patente em todo o livro, e não é técnica, nem manobra de diversão — “Eu, mistério de carne insatisfeito. Eu, tempestade sobre as quatro estações.” (p. 177)
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Humor selvagem Antes do amor, falemos de ansiolíticos. Quando é abandonada por David, o primeiro namorado, Maria Luísa é proibida pelo médico de sair à rua, por não conseguir distinguir a cor dos semáforos: “O doutor pode escrever-me num papel quando é que se avança e quando é que se para?” Os próximos dez anos são despachados em duas páginas sonâmbulas e telegráficas: “O médico olhou para mim, medicou-me e entrei num limbo de onde demorei a sair. Voltei a sentir-me relativamente acordada em meados dos anos 90.” Uma das marcas de estilo de Isabela Figueiredo que dá a medida do seu sentido de humor selvagem são os paralelismos sádicos: Maria Luísa sofre um desgosto amoroso e no parágrafo seguinte o seu pai sofre também um “grande desgosto com a derrota de Cavaco Silva nas legislativas”. Outro paralelismo sádico numa só frase: “Matar-me seria um grande desperdício, avaliando o investimento já realizado.” Outro ainda: “O David está com os pais na sua casinha na Arrentela e a mamã pediu-me que descascasse os marmelos.” E de entre dezenas e dezenas deles, só mais um, provavelmente o mais sádico, em formato de diálogo. Na sequência de um aborto, uma médica com cara de menina diz: “Vista-se, enquanto eu chamo o seu marido.” Maria Luísa: “Não tenho marido.” Médica: “Então chamamos quem? Maria Luísa: “Chamem-me um táxi, por favor.” As personagens de Isabela não têm auto-estima e não parecem ter vida própria. Há uma força que as comanda e essa força são os outros. Estão submetidas a uma voz de comando que irremediavelmente se encontra fora de cena. Vivem na periferia, em “ambientes em que não tem de se ser nada”, como explica Isabela. Uma vida não vivida, que só se torna vida a partir do momento em que é contada?
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Moçambique; o pai morre “no ano da queda” das Torres Gémeas. Há uma passagem em que Maria Luísa se dedica a copiar as rezas da mãe. Apesar de duvidar do seu poder, teme que as suas correcções “possam alterar a fórmula sagrada”. É demasiado céptica para a fé, e, no entanto, sujeita-se aos seus estratagemas, criando a sua própria oração: “Creio em silêncio. Em tudo. Em Deus Pai TodoPoderoso e no seu único Filho, na Virgem Maria, nos anjos e santos, na remissão dos pecados e na Vida Eterna; nos ninhos de andorinhas repovoados na primavera, na desova dos peixes que galgam o rio, no canto incógnito das baleias, na cópula cega dos cães vadios. E também na flor hipnótica das acácias, no pólen das margaridas, no odor vespertino do alecrim e do rosmaninho; no negrume bravio dos arbustos e dos pinheiros cerrados, onde se acoitam os antigos espíritos errantes; nos cinco pontos cardeais, nos cinco elementos terrenos, na inumerável clarividência divina da Física e da Química e dos ansiolíticos. E acima da mentira mundana, e da malevolência gratuita, creio no amor.”
“Enquanto vivi em Moçambique, não tive experiência de estar a viver numa colónia. Havia questões humanas e morais com as quais não concordava, em relação à maneira como os negros e as mulheres eram tratadas, mas não conhecia outra realidade. Quando vim para aqui, não vi Almada como subúrbio. Só se tornou um subúrbio quando percebi isso pelos outros. Foi quando fui estudar para Lisboa, quando fui trabalhar para o Diário de Notícias. Era uma discriminação por não estar no sítio certo. Eu não era como os outros que apanhavam o comboio à mesma hora que eu para ir para o Estoril. Eu ia para a outra banda, não tinha a mesma categoria. Era um lugar impuro, desprezível. Quando percebi isso, comecei a identificar-me. Esse lugar era como eu.” Falemos de Almada: “Acabei os estudos no Colégio Nun’Álvares, em Tomar, e não tinha para onde ir e uma prima afastada da minha mãe dispôs-se a receber-me em sua casa, no Feijó. Os filhos dela são as pessoas com que me dou aqui. Quando os meus pais regressaram, compraram a casa na Cova da Piedade. Quando vim para aqui, gostei. Era um espaço onde era possível viver anonimamente. Era muito grande, havia muita gente, uma grande mistura de cores e eu gosto de caos, não gosto de coisas arranjadinhas, fico logo a pensar quanto é que isso me vai custar.” A casa da Cova da Piedade é, desde o início do romance, uma casafantasma. É também uma casa obesa, dela transborda tudo o que os pais trouxeram da casa da Matola, em Moçambique. Há um filodendro que alastra pelas quatro paredes da sala, um nicho de caladium, troncos do Brasil, vasos de erva-da-fortuna (tudo contrabandeado de Moçambique em bolbo ou estaca, as raízes “envolvidas em algodão húmido, embrulhado em pano, depois em plástico” dentro de latas ou frascos). Dão à casa a aparência tropical de uma estufa húmida. A opulência colonial da casa na Matola é reduzida ao exílio num
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apartamento na Cova da Piedade, mas o processo de descolonização ainda vai no início: segue-se uma guerra doméstica entre mãe e filha: uma guerra por espaço vital, que só terminará com a morte dos pais e a concentração das mobílias vindas de África numa só divisão: o quarto Império! É uma gastrectomia imobiliária! Mas nem assim a casa fica esvaziada do seu passado. Isabel Figueiredo: “Ainda me dói. A minha mãe e o meu pai trouxeram imensas coisas de África e eu tive de me desenvencilhar delas. Imagina alguém que amas muito e que te diz: ‘Toma, estas coisinhas são para ti, guarda isto para sempre.’ E, quando essa pessoa morre, o que mais queres é desfazer-te daquilo. Queres refazer tudo. O quarto Império existiu mesmo. Quando a minha mãe morreu, meti as coisas todas dela num quarto. Não se podia entrar lá. Os móveis ficaram encostados uns aos outros como sardinhas em lata, para que eu pudesse viver no resto da casa. Hoje em dia o quarto Império é onde fica o meu quarto!” “O que mais me custou foi o sacrifício que a minha mãe fez para trazer aquelas coisas. As humilhações por que passou. Foi sangue, suor e lágrimas. Como é que se tem coragem? Tem de ser. Também tive de deitar fora coisas que foram preciosas para mim. Se calhar, a gordura foi importante para a minha construção como pessoa. Se calhar, foi importante para me proteger. Se calhar, foi a minha almofada. E, no entanto, tive de deitá-la fora para viver.” Conto a Isabela Figueiredo que na véspera tive um sonho em que também fazia uma entrevista, e que a entrevistada, Madonna, usava uma máscara para não ser reconhecida. “Isso é muito psicanalítico”, diz. Acrescenta que faz psicanálise de grupo, num grupo só de mulheres: “Fazemos análise umas às outras. Às vezes é muito incómodo, porque elas me interpelam naqueles sítios que prefiro não partilhar. Não sou totalmente honesta. Aquilo é um bocado xamânico. Primeiro
Tal como a personagem do livro, Isabela nasceu e passou a infância em Moçambique e veio para Portugal depois da independência — fixar-se-ia com os pais na Cova da Piedade, em Almada
“É tudo verdade e é tudo ficção. Uso a minha vida para construir outra vida. Estou aqui, este é o meu corpo e o meu corpo está aqui para tudo, amem-me, dêem-me pancada, façam o que quiserem. Estou aqui para fazer barulho” incomoda, depois ficamos a pensar, aquilo fica a agir. Quando escrevo, penso que estou a escavar no que está escondido, lá no fundo, e eu preciso de mostrar. Sou mais autêntica. Procuro relacionar-me comigo como gostaria de me relacionar com os outros. A psicanálise de grupo é um trabalho de interacção social, tem que ver com estar em sociedade, que é o que mais detesto. Tenho de fazer um esforço. É uma espécie de fisioterapia, obriga-me a fazer ginástica social. Tento es-
conder-me um bocado, mas às vezes sou apanhada.” Brinquemos ao apanha: o que é que distingue Isabela de Maria Luísa? “Essa é a pergunta à qual nunca irei responder. Se estivesse lá inteira, seria o caos. Quero prender o leitor, obrigá-lo a amar-me e sirvo-me de todos os estratagemas. A literatura é o privado e o íntimo, o autêntico, mas posso construir camadas sobre a autobiografia.” Montar uma narrativa, mesmo usando a experiência autobiográfica, não deixa de ser um trabalho ficcional, e Isabela fala de um leitor que numa sessão de apresentação do livro elogiou a sua coragem em revelar um episódio que, diz ela, não foi vivido por si: “Adorei e assumi. É tudo verdade e é tudo ficção. Uso a minha vida para construir outra vida. Estou aqui, este é o meu corpo e o meu corpo está aqui para tudo, amem-me, dêem-me pancada, façam o que quiserem. Estou aqui para fazer barulho.” Há um episódio de infância, recordado em Caderno de Memórias Coloniais, em que Isabela esbofeteia uma mulata. A impunidade é tanto mais grave por saber que ela não pode devolver-lhe a agressão. Esse episódio é um grande momento de literatura por concentrar a aprendizagem do colonialismo e do seu exercício de poder. Um outro exercício de poder é nomeado em A Gorda, em que Maria Luísa é visitada de surpresa por David, depois de ele a ter deixado. Deixou-a, mas ainda a deseja e força-a ter sexo até ela desistir: “Deseja o meu desprezível corpo que o envergonha? Use-o, então, e ponha-se a andar.” “Aquilo que sou faz-se sobre todos os erros”, comenta. “Com todas as vilezas, não apagaria nada. A única coisa que apagaria: um sentimento de culpa e de inferioridade. Eu não me deveria ter ferido com o que os outros pensavam de mim. Mas se apagasse isso nunca teria escrito.” A Gorda é um cometa. Não um que acabou de passar, mas um que estava há muito tempo escondido, ainda a fumegar e a gerar trepidação na superfície da vida privada. Existe um precedente? Isabela tem uma afinidade com Adília Lopes: “Ela escreve sempre no fio da navalha. Assim como hoje se fala do Fernando Pessoa, daqui a uns anos irá falar-se da Adília Lopes. Fará parte do programa do 12.º ano, no exame nacional. Mas ainda é cedo.” Isabela é professora de Português na Escola Secundária Fernão Mendes Pinto, em Almada, o que só torna mais divertido o efeito de borrasca do seu trabalho na literatura portuguesa. Terá sido por isso que chegou tão tarde? “O que eu queria escrever não tinha lugar na literatura. Nos anos 90 enviei um original a uma grande figura da língua portuguesa que me respondeu a dizer que aquilo não prestava para nada. Se calhar não prestava mesmo. Mas naquilo que lhe enviei estava o gérmen do que queria escrever.” E ter a fama de Madonna, a ponto de se ver na obrigação de sair à rua de máscara? “Agrada-me a ideia de ser lida e de ser amada através da leitura, mas gosto muito do anonimato.”
Isabela Figueiredo: “Sempre senti que me olhavam como uma deficiente” - Livros www.sabado.pt /cultura_gps/livros/detalhe/isabela_figueiredo_sempre_senti_que_me_olhavam_como_uma_defici ente.html Nasceu em Moçambique mas é loura, até parece alemã. Veio para Portugal adolescente, em 1975, e passou frio e vergonha. Era retornada, gorda e diferente. Mas tal como a heroína do seu primeiro livro de ficção [A Gorda, da editorial Caminho], esta professora de Almada, que aprendeu a reconciliar-se com o mundo a olhar para o mar da Palha, tem muita fibra. E talento. O seu segundo livro, depois do êxito de Caderno de Memórias Coloniais, já foi considerado um dos livros do ano (ver crítica no GPS). É a história de uma mulher que encolheu o estômago mas que continua a amar desmedidamente um homem que a deixou por ter vergonha do seu corpo. Diz que A Gorda é um livro sobre o amor. Um amor algo desencantado, não? O amor não é um mar de rosas. As pessoas têm conflitos violentíssimos nas relações amorosas, e antes de iniciarem essas relações, como a Maria Luísa, o seu campo de guerra é o dos mais próximos – pai, mãe, irmãos. Com aqueles com quem nos cruzamos no restaurante está tudo bem, não entram na nossa esfera de auto-estima. E se tendemos a perdoar à família, com os maridos ou as mulheres as coisas são mais viscerais. Porque o amor romântico implica uma relação de forças? Sim, há uma guerra pelo poder, e quando as coisas correm mal aqueles que se amaram perdidamente passam a ocupar campos distintos na batalha, odeiam-se. Será que passámos dos contos de fadas para o desencanto total – olhe-se para o número de divórcios –, mas na literatura e no cinema o amor ainda é idílico? Tenho um primo mais novo e digo- -lhe sempre para ter cuidado que a vida não é um filme de Hollywood. Estas partes mais feias, mais carnais do amor nem sempre aparecem na arte. Sempre quis escrever? Sempre acumulei cadernos, apontamentos, pensamentos. Não a assustava editar um livro e ser arrasada pela crítica? Não. Mas tenho tendência a escrever com base na minha experiência autobiográfica e como estudei literatura e conhecia o mundo académico, sabia que não tinha um lugar. Até que a literatura sobre pós-colonialismo começou a aparecer e isso enraiveceu-me. Comecei a ler coisas que não correspondiam em nada à minha experiência e pensei: esperem lá que eu já vos mostro como aquilo era mesmo. Foi uma questão de raiva. Foi [risos]. O Caderno de Memórias foi imediatamente aceite e isso deu-me alento. Também comecei a ver que havia escritores que se baseavam nas suas experiências autobiográficas, como o Paul Auster e a mulher, a Siri Hustvedt. Havendo lugar para mim, não tenho medo de me expor. Às vezes tenho problemas na escola, os pais dos alunos queixam-se de que não tenho credibilidade moral...
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Porquê?! Os meus livros têm asneiras, vernáculo, e um professor não vai à casa de banho [risos]. Já tive de pedir a colegas que recebessem os pais e explicassem que escrevo como Isabela, não é o meu nome, chamo-me Isabel Maria, e a personagem não sou exactamente eu. Também escondi o Caderno de Memórias da minha mãe. Perguntou-me sobre o que era e disse que eram memórias nossas de África. Ninguém lhe contou a verdade? Não, tive essa sorte [risos]. Porquê A Gorda não sendo gorda? Não sou muito gorda agora, mas já pesei mais 42 quilos. Ser gorda foi uma experiência muito violenta, sofri muito, fui muito desamada e excluí- da. Isso marcou-me para o resto da vida. O livro começa com a gastrectomia que fiz há seis anos. Perdi todo esse peso e houve um sentimento de libertação, um desejo de viver enormes mas continuava a carregar uma grande mágoa. Tornou-se urgente escrever. O problema é que não conseguia porque a escola ocupa o tempo todo. Não consigo escrever se tenho apenas uma hora. Para mim é a imersão total, são 24 horas por dia, um processo obsessivo. Só escrevo nas férias. Há uma crueldade contra os gordos. E eles ainda sentem culpa. O gordo é como o drogado. Sabes que o que estás a fazer te destrói mas não consegues parar. Sempre senti que os outros me olhavam como uma deficiente. Tive namorados que gostavam de mim como pessoa mas a certa altura afastavam-se. Como sou de ir à luta, perguntava porquê. Um disse-me que o meu aspecto não era adequado. É preciso arcaboiço para ouvir isso... É preciso ter muita força para continuar. A pessoa até estava a tentar ser delicada mas a verdade era esta: "Não posso andar contigo na rua porque é uma vergonha." Sentes-te uma aberração. Até os magros que se dão connosco parece que nos estão a fazer um favor... Como não obedecemos ao cânone passamos a ser marginais. E no entanto há uma idolatração pela comida... Está tudo na nossa cabeça e na cultura. Se eu for para países onde as pessoas gordas são estimadas por serem consideradas saudáveis e ricas, é ao contrário. Quando fui à Índia vinham tocar-me nos braços. Mais nas aldeias,
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nas cidades apalpavam-me mas era sexualmente. O meu corpo é o mesmo aqui e na Índia, mas lá presta – aqui não. Se olhamos à nossa volta, as mulheres têm todas celulite e estrias, sejam magras ou gordas, têm pneu, o peito a cair. O mercado da moda e da beleza faz lembrar aquelas ditaduras em que uma minoria faz atrocidades sob o olhar plácido da maioria que obedece. Há um discurso público que é aceite, recebemo-lo e passamos a integrá-lo para fazer parte do sistema. O apego aos livros e à cultura não foi uma forma de se vingar? "Não sou a mais bonita mas posso ser a mais interessante." Comecei a ler muito cedo. O meu pai lia e queria que eu estudasse e fosse uma mulher independente. Não era muito comum na época. Mas ele era feminista [risos]. Estimulava a minha educação, levava-me a acontecimentos culturais. Era electricista, tinha pouca educação escolar mas gostava desses eventos. Já a minha mãe, estava sempre a chamar-me: "Isabel Maria pára de ler e anda estudar." Fui buscar tudo aos livros. Depois veio de Moçambique para Portugal [em 1975] e caiu-lhe outra praga em cima: a de retornada. Que eu escondia. Às vezes tinha mesmo de dizer, e nessa altura ouvia coisas desagradáveis: que tínhamos enriquecido a roubar os desgraçados... Não me sentia nada culpada, aquilo não me servia. Podia servir ao meu pai, que explorava os trabalhadores, a mim não.
No Caderno de Memórias Coloniais, e também n’A Gorda, percebe-se que adorava o seu pai mas detestava certas coisas nele, como a forma como tratava os negros. Gostava tanto de ter gostado do meu pai plenamente, mas não era possível... Já tinha sido formada politicamente pelos livros que ia buscar à biblioteca, do Alves Redol, do Manuel da Fonseca. Comecei a perceber que o mundo do meu pai não estava certo e isso criou um dilema em mim. Cheguei a ter muita vergonha dele, por exemplo quando entrávamos num táxi e o taxista começava com aquela conversa reaccionária e ele acompanhava... Foi o meu grande amor. Amei-o e odiei-o profundamente. O seu primeiro desgosto amoroso foi tão grande como o da Maria Luísa? O seu David também a rejeitou devido à aparência? Foi. Quando percebi que tinha vergonha de mim não aceitei. Esse David existiu e foi um amor fortíssimo. Ainda lido com ele... Quando gosto de alguém nunca gosto como gostei desse homem, com esse grau ou quantidade de amor. Foi tão forte que fiquei psicologicamente afectada, com depressões profundas em que deixei de saber quem era. Este livro ainda é uma declaração de amor, uma forma de dizer: gostei tanto de ti e tu não viste, caraças! A sua cabeça mudou com a gastrectomia? Não, continuo a ter vontade de comer mas não posso. O corpo é que mudou radicalmente, nem consigo enfrentar as fotografias antigas. É como voltar ao passado e àquela violência. Não ter o que vestir – usava o 54, só conseguia comprar roupa na C&A –, a minha mãe sempre a chatear-me, as pessoas a olharem-me de lado.
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É de profunda ironia a ideia de que os gordos são uns bem-dispostos. Não são. Gozam consigo mas por defesa. Quando entrava numa reunião, num cenário como este, a primeira coisa que fazia era sentar-me – muito apertada – e dizer: "Fazem estas cadeiras tão pequenas." Atirava a gordura para cima da mesa para que todos se rissem e me deixassem em paz. E na primeira aula fazia o mesmo: este é o meu nome, tenho três cadelas, sou gorda, nasci em Moçambique mas não sou preta, sou branca. E eles nunca gozaram consigo? Não. Mas eu tinha medo que me arranjassem uma alcunha, não aguentava mais alcunhas. O amor não é para todos, diz-se. É ainda mais difícil para os gordos? Restringe em muito as hipóteses de encontrar par? Quase totalmente. Para os homens é difícil; para as mulheres ainda pior. Quando vemos um homem gordo com uma mulher magra a primeira coisa que nos vem à cabeça é: aquele deve ter muito dinheiro para ela o aturar. Se for uma mulher gorda com um homem normal... não se percebe, não se aceita. Já se forem dois gordos, está certo. É como se se juntassem duas pessoas da mesma raça. Antes, um preto com uma branca também era estranho. Parece que o gordo não pode ser atraente sexualmente. Fui rejeitada por isso e ainda hoje se me interesso por um homem penso logo: não vai gostar de mim, com tanta mulher da minha idade linda que há para aí...
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Isabela Figueiredo:
Isabel Maria Figueiredo para a família e amigos de sempre, Isabela para os que a conhecem dos livros. Nascida em Maputo, antigo Lourenço Marques, Moçambique, Isabela tem feito da sua história de vida a base da sua escrita, escrita essa que faz questão de sublinhar ser, ainda assim, muito ficcionada. Em A Gorda, o seu mais recente livro, Isabela falanos das debilidades físicas e emocionais de uma mulher, Maria Luísa. Fala-nos da menina-mulher que cresce e representa a adolescente que ela própria foi um dia e a mulher que hoje é, fala-nos um bocadinho de todas as mulheres. Todas as que ainda têm tanto por que lutar. Isabela Figueiredo , que também é professora, dá-se a conhecer na primeira pessoa nesta entrevista e dar-se-á a conhecer pessoalmente na Galiza em finais de abril de 2017.
—Sim. Gosto de ser professora aqui, assim como gosto muito de viver na margem sul, acho que é um sítio especial. As pessoas têm a ideia de que a margem sul é um ambiente suburbano e que é hostil, mas é exatamente ao contrário. É como se vivêssemos numa aldeia, conhecemo-nos todos, somos amigos, existe proximidade, há laços de familiaridade entre nós e vive-se de forma muito próxima. A classe social, regra geral, não é muito alta, é média-baixa, mas gosto dos meus alunos aqui, porque eles precisam muito de confiança, de incentivo. O meu lado mais maternal satisfaz-se muito com eles porque
—Li algures que adorava ser professora na margem sul, em Almada. É verdade?
—Sim. Não sou capaz de estabelecer uma relação distante com ninguém, portanto é natural para mim estabelecer relações próximas também com os meus alunos. Gosto muito de jovens, sinto-me muito bem no meio deles.
—Presumo que para os seus alunos seja a Isabel. Estabelece uma relação próxima com eles?
—Isabela foi, de facto, um nickname que inventei para intervir num blogue que criei. Quis criar um nome bastante diáfano, artístico, bonito e lembrei-me da Isabela Rossellini num anúncio de perfume, no qual aparecia numa praça em Itália, com um ar muito leve e muito intenso e eu adorava aquele ar. Lembrei-me desse ambiente e quis chamar-me Isabela. É um nome muito próximo ao meu e uma fantasia minha. Agora há muitas pessoas que me tratam por Isabela e outras por Isabel.
—Quem é a Isabela Figueiredo? Um pseudónimo ou um nome carinhoso?
Responsável do Centro Cultural do Camões, Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. em Vigo
Carla Amado
—Não sei. Não faço ideia. Eu diria que a minha escrita simplesmente sai assim, mas, por outro lado, também é por ser essa a realidade que conheço bem. Se eu não conhecer bem uma determinada realidade, tenho de a investigar. Tenho de ler e de fazer um trabalho que muitas vezes não tenho tempo para fazer. A minha vida e a vida daqueles que estão à minha volta tornam-se assim numa boa base de trabalho. No entanto, o que sinto é que ficciono bastante o real. Ainda que a minha
—Relativamente à sua escrita... A Isabela tem um registo assumidamente autobiográfico. É-lhe mais fácil escrever sobre o que conhece? Fá-lo por ser mais cómodo? Será que vai escrever sempre assim?
—Os problemas sociais são, de facto, um monstro. Tenho de lidar com muitos problemas sociais, o que não é fácil. Não é agradável para um professor lidar com problemas sociais. É um desafio. Muitas vezes sou vencida pela questão. Tenho tido muitas turmas com alunos oriundos de bairros muito difíceis e com muitas faltas de meios financeiros. Não é que goste particularmente desse trabalho, mas acho que trabalho bem com esses alunos porque sou capaz de tolerar muitas coisas e sou suficientemente elástica para conseguir apanhá-los e dar-lhes a volta, mas é complicado conseguir o equilíbrio. O meu espírito de missão nestas alturas fica sempre bastante ao rubro, mas não é fácil.
—Será que a Isabela gosta de dar aulas na margem sul precisamente pelo desafio que os problemas sociais representam? Do meu ponto de vista, esses problemas sociais podem ser um monstro.
—Sim. As deles e as minhas.
—Completa também as necessidades afetivas que têm, não é?
às vezes não sou só a professora, também sou um bocadinho mãe deles.
—A Maria Luísa, personagem principal de A Gorda, veio sozinha para Portugal e, tal como a própria Isabela, quando era ainda adolescente. A Isabela veio com os seus pais para Portugal ou também sozinha? Houve um sentimento de solidão? Sentiu-se sozinha quando chegou a Portugal? —Eu vim sozinha para Portugal, exatamente como a Maria Luísa. As experiências que a Maria Luísa viveu, a solidão, baseiam-se na minha experiência de vida. E há, nesse aspeto, uma grande coincidência de experiências. Autobiográficas. Embora muito —Pois. Penso que pode ser um misto dos dois. Não sei. Acho que é mais pelo segundo motivo. As pessoas que me leem e que falam comigo dizem-me: «eu identifiquei-me, eu reconheci-me aí, a minha vida também tocou nesses pontos, conseguiu
Ainda assim, a minha linguagem também é bastante coloquial. Tento que a complexidade do texto não se sobreponha à expressividade da mensagem. Gosto de escrever de forma a que o texto não fique demasiado pesado, gosto que o leitor leia sem sentir que está a ler um texto e para isso tem de haver fluência e facilidade discursiva que permita essa imersão do leitor no texto. O estilo não pode constituir ruído. O meu objetivo como escritora é que o leitor comece a ler o livro e se sinta envolvido e não consiga parar. E, para isso, não posso prender-me muito com questões literárias, de estilo, rodriguinhos, adjetivos, advérbios, figuras de estilo...
perceber-me a mim», portanto, de alguma forma, a minha experiência de vida é semelhante à dos outros. Nós, seres humanos, somos todos bastante semelhantes uns aos outros, vivemos as mesmas coisas, embora as vivamos em silêncio. Mas escrever, com base num conhecimento real da vida vivida, acaba por tocar o coração dos outros.
—Será a este motivo que se deve o seu êxito (Caderno de Memórias Coloniais foi publicado em 2009 e teve tanto sucesso que foi revisto e aumentado em 2015, chegando à 6.ª Edição, e A Gorda foi considerado um dos livros do ano de 2016) ou será que é por ter um estilo tão provocador e tão acutilante na linguagem que utiliza? Ou pode ser um misto dos dois?
Em relação ao futuro, sinceramente não sei. Neste momento estou a começar a escrever um novo livro, menos autobiográfico do que os anteriores, mas continua, ainda assim a sê-lo. Não sei o que vai ser. Sei, contudo, que as personagens do meu próximo livro partem da minha vivência no sítio onde vivo. Inspiro-me em algumas personagens que conheço da rua e, claro, faço ficção sobre isso.
escrita tenha uma base autobiográfica, parto da autobiografia para fazer ficção. Uma determinada personagem tem pedaços de mim, mas tem outras partes que não são nada minhas.
«Num mundo como este é impossível não se ser feminista»
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—Como é que acontece que a Isabela tem um blogue e passa a ter uma página de Facebook que, na minha opinião, constitui quase um entretenimento ao serão, momento do dia em que a Isabela partilha alguns pensamentos mais provoca-
—Aquilo que recordo com mais carinho são as pessoas com quem trabalhei e o momento de escrever. Gosto realmente de escrever, mas gosto de escrever por conta própria, aquilo que me apetece escrever. Não gosto de escrever o que os outros me mandam. Mandavam-me ir fazer uma reportagem de rua e eu não gostava disso. Gostava mesmo só do momento em que estava na redação a escrever. Escrever era o meu território e gostava das pessoas, mas nunca foi uma profissão que me fascinasse. Devido ao trabalho inerente. Fazia o meu trabalho e fazia-o bem feito, mas nunca me senti uma jornalista de coração.
—Como recorda os seus tempos de jornalista? De que mais gostava e de que menos gostava? O que é que recorda com mais carinho?
Fui sozinha, completamente sem apoio, e por isso foi uma experiência muito difícil. Vale a pena ler o artigo, pois foi uma experiência muito dura e, quanto mais dura é a experiência, mais eloquente é depois o texto que a relata.
—Voltei no natal passado, estive lá um mês. Foi publicada uma reportagem no jornal Público de 27 de janeiro 2017 relatando essa experiência. Está disponível online em: https://www.publico.pt/2017/01/27/culturaipsilon/noticia/um-lugar-onde-nunca-fui-1759449. Intitula-se «Um lugar aonde nunca fui».
—Alguma vez voltou a Moçambique?
seja ficcionado, baseia-se de facto em conhecimento que eu adquiri naquela altura e em humilhações e vivências que tive.
Caminho 13,5 × 21 cm
Caminho 15,5 × 21 cm
ISBN: 978-972-21-2758-5
11,90 €
ISBN: 978-972-21-2833-9
15,90 €
Capa mole 224 páginas
Caderno de Memórias Coloniais
O Centro Cultural do Camões, I.P. em Vigo dará a conhecer as datas da digressão da Isabela na Galiza na sua página em www.facebook.com/ InstitutoCamoesVigo
—Sim. Totalmente! Contudo, tenho algumas reticências relativamente ao vocábulo em si. Acho que é um conceito que mete medo às pessoas e que deveria ser revisto, porque está muito datado. Eu considero-me feminista de alma e coração, porque num mundo no qual as mulheres ainda têm tanta dificuldade para se impor, no qual não têm salários nem oportunidades, não têm direito a ser mães por causa do trabalho, nem sequer direito ao trabalho têm, num mundo em que as mulheres têm insegurança para andar na rua, como eu própria tive em Moçambique (tive de contratar um guarda-costas para poder andar na rua), num mundo como este, é impossível não se ser feminista. É impossível chegar-se ao dia 8 de março e dizer-se «eu não celebro este dia porque nós mulheres já chegámos a um patamar». Eu pergunto: chegámos a um patamar onde? É por isto que sou feminista! E sou-o com um crachá no peito!
—Para terminar, tenho uma pergunta que é antes uma dúvida. A Isabela considera-se uma feminista?
A Gorda Capa mole 224 páginas
—Sim. Às vezes vou à minha página de Facebook de propósito para divertir as pessoas. Penso que as pessoas realmente se divertem comigo e a mim não me custa nada, porque aquilo é o que sou. É só chegar à página, escrever qualquer coisa e as pessoas ficam logo muito divertidas, não tendo eu de fazer esforço nenhum. A verdade é que não sou uma grande fã do Facebook, curiosamente. Acho que o Facebook é um registo bastante elementar. Gosto muito mais do blogue, porque o blogue me permite escrever melhor, com mais espaço, com mais concentração. O Facebook não, mas a verdade é que as pessoas hoje em dia estão no Facebook e é essa a forma de se chegar às pessoas. Vejo-me então obrigada a usar o Facebook para conseguir comunicar com as pessoas. No en-
dores e críticos e as pessoas parecem gostar disso? Tem consciência disto?
Foto: Rui Luis
—Sim. As férias de julho e agosto passei-as a escrever, por exemplo. Estive sempre em casa e estava um calor horrível lá fora. Numa viagem de lazer não escrevo. Escrevo só o meu diário. Às vezes penso nisso, que gostaria de ir para um sítio qualquer e dedicar-me à escrita, mas não tem sido possível.
—Li que a Isabela escreve mais nas férias devido ao facto de a atividade letiva a ocupar tanto, sendo nesses períodos que tem oportunidade de se dedicar mais à escrita. As suas férias terão sempre esse lado dedicado à escrita e à introspeção?
—Sim, é exatamente isso! Eu preciso de mais profundidade naquilo que escrevo. Não quero só entreter. Claro que quero pôr as pessoas a falar e provocá-las, pô-las a pensar, mas, por outro lado, também sinto necessidade de ser mais profunda, de ser mais séria, mais meditativa e preciso de outro tipo de texto. Quando estou a escrever, como nesta fase, também não posso dispersar-me muito, não posso distrair-me com o Facebook, tenho de me concentrar. Portanto, estou agora a atravessar uma fase em que pondero parar um tempo com Facebook.
—Diz isso, que não sabe quanto tempo mais irá usar o Facebook, porque não se identifica tanto? A Isabela na escrita não é tanto essa Isabela do imediatismo, do corresponder a um registo espontâneo?
tanto, não sei quanto tempo mais. Mas é claro que me diverte divertir os outros.
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A Gorda www.publico.pt /2016/11/24/culturaipsilon/noticia/o-corpo-e-a-guerra-1751919 Hugo Pinto Santos Nuno Ferreira Santos Isabela Figueiredo abria e encerrava Caderno de Memórias Coloniais com poemas de Manuel António Pina. E há um poema do autor, Como Se Desenha Uma Casa, que parece um esquecimento deliberado em A Gorda, onde talvez fosse uma sinopse impertinente, na sua exactidão: “Primeiro abre-se a porta/ por dentro sobre a tela imatura onde previamente/ se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,/ a mãe para sempre morta.// (...) Uma casa é as ruínas de uma casa,/ uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;/ desenha-a como quem embala um remorso,/ com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.” O romance de estreia de Isabela Figueiredo desenha-se como uma casa: “Porta da Entrada”, “Quarto de Solteira”, “Sala de Estar”, “Quarto dos Papás”, “Cozinha”, “Sala de Jantar”, “Casa de Banho”, “Hall”. Cada divisória, entretanto, acarreta uma orientação mínima, porque de escassa capacidade de imposição, quer temática, quer organizativa — isto é, nenhum daqueles segmentos domésticos ditará respostas óbvias. Trata-se, tão-só, de um deflagrador, a faísca que detona a viagem. Do mesmo modo, aquilo a que poderíamos chamar ordenação do território do romance não responde de forma ordeira ao apelo da cronologia, nem ao esquematismo do baloiço analepse-prolepse. A narração lê e relê os acontecimentos dos vários passados da narradora. Volta aos mesmos lugares e ocorrências, mesmo se de ângulos distintos. Para acertar o tom, atinar com a verdade dos factos revisitados, a graduação da realidade, do plausível — disposição já adivinhável na advertência da autora, de tonalidade aristotélica: “Todas as personagens e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade.” Não se lavra duas vezes o mesmo campo, mesmo quando se repisa tremendamente perto. As próprias frases são reescritas, revistas, glosadas ou repostas em paráfrases fiéis ou revoltadas; no entanto, a passagem do tempo cria um indivíduo que revive o passado diferentemente e que reconstrói sucessivos presentes que são como vagas sobre um areal que se fosse erodindo. PUB
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Autoria:Isabela Figueiredo Caminho Ler excerto A figura materna, como a casa (mas também os animais, presentes no poema de Pina), desempenham papel preponderante. De tal forma que, quase no final, tudo se exacerba e, numa transição abrupta, corpo e casa se identificam inextricavelmente: “Um corpo tão perfeito, tão imponente, como pude desamá-lo tanto?! Que silêncio! Que abandono! A casa entretém-se escutando as conversas e os pensamentos gravados por vozes diversas na atmosfera.” (p. 283) Motivo pelo qual se afirma: “A casa respira fundo esse desperdício doce e ácido, denso.” (p. 284) E porque já antes se registara: “A sala de jantar é o armazém de artérias, ADN e sinapses que nos ligam e atravessam.” (p. 214) A mãe da narradora, por seu turno, é objecto de algumas das páginas mais empenhadas e de mais avassaladora entrega de todo o livro — “Gosto dela. Não a suporto. Quando morrer, não me resta mais ninguém. Nunca mais morre. Não morras.” (p. 208) Não basta dispor metodicamente (e o método é, aqui, destempero, vertigem, queda) os contrários e deixar-se seduzir pelo enlevo da contradição. Todo este batimento binário é como a sístole e a diástole do romance. Todo o seu sangue parte daquele fulcro carnal e oscilante; tudo o que circula no corpo romanesco é realmente do corpo que emana, e do que, com esse emaranhado de órgãos, se pode conceber como espírito. As descrições do corpo próprio e alheio são do mais cru e do mais conseguido que a literatura portuguesa tem produzido. O que neste livro importa não é a destreza com que se lida com o impropério, o tabu, o interdito social, mas tudo o que a sua escrita consegue fazer com essas matérias-primas — com essa carne crua. Em A Gorda, a palavra obscena serve para emular a rapidez rude da vida, a sua irrepetibilidade; mas é igualmente a outra palavra, a deturpação do código, a revelação dos diversos planos de compreensão: “Em 2004 acabámos por não foder. Isso é que foi pena, mas deves reiterá-lo sem receio, para tua defesa. Íamos fodendo, mas tinhas hora para regressar a casa. Controlaste-te como deve ser. Deve ser duro viver tão preso, mas calculo que haja certo consolo na rotina do cativeiro. Uma pessoa habitua-se e não quer outra coisa.” (p. 174) Porque nem sempre é este o modo de afirmar o corpo. Por vezes, é a exactidão quase científica que descreve os seus actos e gestos. A obscenidade é também a voz do excesso e da superação. Da assunção tão plena quanto possível do corpo. Até lá, porém, foi preciso começar por perder camadas de si próprio. O processo traumático da perda radical de peso, a que a narradora se submete, é apresentado logo nas primeiras linhas: “Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia: era um segundo corpo que transportava comigo.” (p. 19) E elas são não apenas um mecanismo de (des)estruturação narrativa, nem um modo de lançar as bases do descrédito a que é votada uma cronologia linear. São um diapasão de todo o romance, na medida em que estabelecem uma tonalidade e um padrão que A Gorda mais não fará do que refinar, depurar, intensificar. Sem cessação, sem relaxamento. Houve já palavras de Caderno de Memórias Coloniais que anteciparam essa recusa de depor armas: “O meu corpo foi uma guerra, era uma guerra, comprou todas as guerras.” Também no seu romance de estreia Isabela Figueiredo faz do corpo o núcleo da guerra. E, mais do que isso, ele é a arma, a munição e a própria
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guerra — mas também o alvo a abater e a exaltar. Ele é tanto fonte de increpação quanto motivo de júbilo e prazer. A narradora mede forças contra inimigos cujos contornos são diversos. Sejam eles os ideais de beleza femininos mais estandardizados, ou a noção forte (sufocante?) de família. Daí que o cotejo seja permanente, e o saldo, penoso: “Não sabia se as mulheres da minha família alguma vez tinham sentido o mesmo que eu, se eram assim imperfeitas.” (p. 99) A Gorda manipula os géneros, cruzando as potencialidades do discurso memorialístico e romanesco. Não será abusivo encontrar nele uma relação natural com Caderno de Memórias Coloniais. Pela importância da família, pelo tratamento frontal da questão colonial, um mesmo arco temporal, sensivelmente. Até essa liturgia celebrada perante o corpo materno. Se, no Caderno, a autora escrevia “No corpo da minha mãe apenas me interessava o seu peito. (...) Que delícia havia de ser ter autorização para lhe mexer”, em A Gorda, lemos: “Sempre tive a fixação das suas mamas, como se as minhas não me bastassem. (...) Quanto as beijaria!” “O corpo da minha mãe é o grande mistério” (p. 224). O romance de Isabela Figueiredo é uma ficcionalização do registo autobiográfico. Se o autor empírico fica mais ou menos distante da narração e da narradora, poderá ser questão de somenos — ou não. Facto é que a miscigenação dos géneros possibilita uma análise que é guerra sem quartel. O auto-retrato é tortura consciente do sujeito diegético e existencial — “Tenho adolescência, o resto é a vergonha das mamas volumosas, dos pneus da cintura e das coxas grossas.” (p. 220) Uma hipertrofia da consciência que se mescla com o hiperdesenvolvimento corporal e produz resultados de uma pungente autodepreciação cuja franqueza está patente em todo o livro, e não é técnica, nem manobra de diversão — “Eu, mistério de carne insatisfeito. Eu, tempestade sobre as quatro estações.” (p. 177)
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Isabela Figueiredo: Caderno de Memórias Coloniais O Caderno de Memórias Coloniais, da escritora e bloguista Isabela Figueiredo, tem-se convertido, nos últimos anos, num dos acontecimentos literários mais importantes em Portugal. Para a revista Ípsilon, suplemento cultural do diário O Público, foi um dos livros do ano 2009 e que, e, 2015, foi reeditado pela Caminho, com prefácios de Paulina Chiziane e José Gil. Os 43 textos que compõem o Caderno (seguidos por uma “adenda” e uma entrevista) representam, num tono autobiográfico, cenas de uma infância nos arrabaldes de Lourenço Marques, o que hoje em dia é Maputo, a capital de Moçambique. Parcialmente, estas memórias foram compiladas a partir do blogue "O Mundo Perfeito", criado pela autora em 2005, e que, inicialmente, estava encabeçado por uma epígrafe da poeta galega Lupe Gómez. Este blogue foi reconvertido, em 2009, a outro chamado "Novo Mundo". O impacto do Caderno de Memórias Coloniais, e o seu extraordinário destaque junto da crítica, deve-se ao facto de atentar contra o que se poderia chamar a visão paradisíaca ou, pelomenos, suavizada, que uma parte da sociedade portuguesa continua a cultivar no que diz respeito ao período colonial. Este discurso cor-de-rosa está presente, ainda, na academia e no ensino. Se abrirmos, hoje, um compêndio de história de referência, como a História de Portugal, dirigida por José Mattoso, ou de grande divulgação sobre os Descobrimentos, como Originalidade da Expansão Portuguesa por Orlando Ribeiro, não encontraremos muitos relatos de perspectivas críticas sobre o colonialismo português nem muita informação sobre racismo, crimes de guerra ou as peculiaridades da sociedade colonial, sobre como se tratava a população autóctone, como eram as famílias fundadoras do sistema colonial, as histórias íntimas dos altos funcionários do regime ou dos militares que optaram por ficar lá depois do 25 de de Abril. Dentro e fora de Portugal continua a cultivar-se o discurso de um colonialismo mais brando e suave em comparação com os outros impérios, geralmente disfarçado da sua capacidade de mestiçagem de raças e de transferência intercultural. Os Anos da Guerra (1988), organizado por João de Melo, que combina uma antologia de textos literários sobre a experiência da guerra colonial com uma análise historiográfica crítica, representa uma excepção, enquanto outros, que se mostram abertamente críticos com a história da expansão portuguesa, como Ministros da Noite (1992) de Ana Barrados, são muito mais raros ainda. A Guerra Colonial em Moçambique estala em 1964, dois anos mais tarde do que em Angola. A guerrilha da Frelimo beneficiava do facto de a grande maioria da população negra estar contra a ocupação colonial, ao contrário do que acontecia em Angola: onde havia mais penetração europeia no interior, laços mais fortes com a metrópole e um desenvolvimento económico que tinha integrado uma parte da sociedade africana no sistema dominante. Em Portugal estava proibido falar da guerra, a propaganda denominava-a "missão de soberania" e "defesa do flanco africano de Ocidente". Ao longo de 13 anos de combates, gastou-se uma média de 33% do orçamento do estado só para a guerra colonial. Calcula-se que possam ter morrido em África entre 6000-8000 militares e que o número de pessoas feridas com deficiências anda por volta dos 30000. Não existem números em relação às e aos combatentes africanos e à população civil, embora seja provável que haveria de acrescentar pelo menos um zero em cada caso. Depois do 25 de Abril, produz-se uma descolonização rápida e confusa, que tem sido muito criticada, sobretudo por quem sente nostalgia do passado. Porém, a descolonização não tinha sido apenas um acontecimento de libertação africana, mas também um processo que teve as suas repercussões no país colonizador.
Porém, se não resulta fácil aceder a informações sobre as atrocidades da Guerra colonial, é ainda mais difícil recuperar testemunhos da vida quotidiana e familiar na sociedade colonial. Existem bastantes textos literários sobre a Guerra Colonial, mas pouquíssimos sobre a sociedade colonial e, menos ainda, desde a perspectiva dos chamados retornados e retornadas. O Caderno de Memórias Coloniais é um destes livros que faltavam, também porque nos fala em primeira pessoa, sem poupar nos detalhes. Ajuda a compreender o sentido (ou sem sentido) da presença portuguesa em África, desde a perspectiva de uma menina que ainda não tinha 13 anos quando deixou Moçambique. Sem nostalgia, reescreve a história oficial em toda a sua crueza, desde o racismo quotidiano até às agressões que sofreram colonas e colonos depois do 25 de Abril. Evoca-se uma Lourenço Marques paradoxal: como "um largo campo de concentração com odor a caril". O livro está cheio destas imagens fortes e polémicas. Porém, a sua fascinação reside sobretudo na perspectiva de uma criança, a caminho de ser adolescente, na sua forma de ver as coisas que oscila entre a ingenuidade e uma franqueza crua, na qual assoma uma realidade quotidiana contraditória, cheia de valores incomensuráveis. As fotografias que acompanham o relato sublinham esta enorme imediatez e de realismo quase doloroso que o livro transmite de uma sociedade colonial que vivia entre dois mundos, numa espécie de limbo, o qual não se disfarça nem se tenta desculpar. Ao fim e ao cabo, o Caderno é, talvez, uma das melhores traduções que tenhamos a dispor desta cultura colonial, tal como o descreve este breve parágrafo do 25.º capítulo: "Ainda hoje os vejo envolvidos na mesma nostalgia. «A independência foi mal feita, e os culpados foram o Mário Soares e o Almeida Santos, que nos venderam e entregaram tudo aos pretos». Eu traduzo, «aquilo que entregaram aos pretos deviam tê-lo entregue a nós, que logo tratávamos da negralhada». Quando revelam, com lágrimas sinceras, «deixei o meu coração em África», eu traduzo, «deixei lá tudo, e tinha uma vida tão boa»." (Caderno: 83) Num post do 30/3/2012, Isabela Figueiredo publicou um esclarecimento sobre o enquadramento literário que deve ser dado ao Caderno de Memórias Coloniais. Em 2010, a autora deu uma conferência na Universidade de Vigo, durante a qual leu excertos do seu livro e respondeu a uma série de perguntas e que pode ser visualizada aqui: http://estudoslusofonos.blogspot.com.es/2012/01/isabela-figueiredocaderno-de-memorias.html#more Entrevistas: Uma entrevista de Isabela Figueiredo por Alexandra Prado Coelho na Ípsilon do dia 24 de Dezembro de 2009 pode ser lida aqui. Outra entrevista de Isabela Figueiredo por Isabel Ferreira Gould na revista ellipsis (2010) pode ser lida aqui. Uma entrevista de Isabela Figueiredo por Carlos Vaz Marques, no seu «Pessoal e Transmissível» da TSF (2010) pode ser ouvida aqui. Resenhas: Um texto de Margarida Calafate Ribeiro sobre Caderno de Memórias Coloniais pode ser lido aqui. Um texto de apresentação do Caderno de Memórias Coloniais, por Ana Luísa Amaral, pode ser lido aqui. Uma resenha do Caderno de Memórias Coloniais por Silvia Cavalieri, na Rivista di Studi Iberoamericani (2010), pode ser lida aqui. A primeira resenha francesa, por Marie-Line Darcy na revista RFI (2010), pode ser lida aqui. Outra resenha, de Anita Moraes na revista Buala (2011), pode ser lida aqui. Veja também a Bibliografia sobre o Caderno neste dossier.
Sexta-feira | 27 Janeiro 2017 | publico.pt/culturaipsilon
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 9780 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
O regresso impossível
a Moçambique Isabela Figueiredo, quarenta anos depois, com as memórias na bagagem 96216ae8-e46d-4cd3-bf88-f0248ea616d1
Semanas antes da partida idealizo-me sentada na Costa do Sol, fitando o mar calmo e vespertino do Índico, ligeiramente esverdeado. Fui ao longo dos anos repetidamente avisada para não regressar ao Maputo, mas há demasiado tempo que sonho com a cidade de terra vermelha e a atmosfera húmida e turva onde nasci e que abandonei contra vontade. Passaram décadas. Os perigos inerentes aos ardores revolucionários marxistas-leninistas terminaram. Desejo celebrar no Maputo o meu 54.º aniversário. Os moçambicanos perguntamme o que procuro: “Conhecer a cidade de hoje, o seu ambiente, mas sobretudo venho à espera do que quer ser encontrado.” No meu íntimo sei que regressei por necessidade. Embora reconheça fisicamente a maior parte dos lugares, eles são agora outros, porque a sua energia mudou. Alguns desapareceram. Aceito melhor a decadência do que a demolição. Há quem classifique depreciativamente esta viagem como “roteiro da saudade”. Penso que ninguém que tenha vivido 41 anos afastado do lugar onde nasceu, poderá resistir a procurar, no regresso, os espaços onde a sua vida começou.
Isabela Figueiredo 4 | ípsilon | Sexta-feira 27 Janeiro 2017
Um lugar aonde nunca fui
ISABELA FIGUEIREDO
É autora de Caderno de Memórias Coloniais (Angelus Novus, 2009, reeditado na Caminho em 2015) e de A Gorda (Caminho, 2016), esta semana chegado à 2.ª edição. Nasceu em Lourenço Marques, hoje Maputo, em 1963, e vive em Portugal desde 1975. Esta é a sua primeira viagem de regresso, passados 41 anos.
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É
domingo e faz um calor insano. Almoço numa esplanada na Eduardo Mondlane, ex-Pinheiro Chagas, frente ao hospital central. Vejo um grupo de raparigas europeias entrar num chapa (1). Se elas podem, também eu. Vou a banhos à Costa do Sol. Tenho todo o tempo do mundo. Os autocarros passam do outro lado da rua. Apanharei um. É bom viajar de autocarro para conhecer as cidades. Levo o meu livro. Passarei a tarde na praia. Postome onde outros esperam transporte. Pergunto a um jovem, “é aqui que se apanha o machimbombo?” Sim, mas é domingo, “machimbombo precisa esperar, chapa é melhor”. Hão-de realmente aparecer muitos chapas, mas atulhados. O jovem justifica a situação com o excessivo calor e o facto de ser domingo. É tímido como quase todos os moçambicanos. Fala em voz baixa e sem levantar os olhos, de uma forma submissa. Esperamos quase uma hora ao sol, eu, ele, e outros rapazes que se vão juntando, até conseguirmos entrar num chapa que vai vazio na direcção do Alto Maé, e depois ali voltará a caminho da Costa do Sol. Pagamos dois bilhetes. O preço normal é de 5 meticais por viagem, portanto deveria ter pago 10, mas custou-me 20 para facilitar os trocos. O chapa é uma carrinha Toyota Hiace com o destino assinalado no pára-brisas e vidro traseiro. A indicação A. Voador/Costa do Sol significa que a viagem começa num destes lugares e termina no outro, e o que fica pelo meio só Deus e os passageiros habituais sabem. As paragens não estão assinaladas, mas to-
(1) Chapa — carrinha privada para
transporte de passageiros
Isabela Figueiredo no jardim de Marracuene, onde brincava em criança, e na casa da Matola, construída pelo pai
O povo que paga todas as contas não deseja o actual estado de coisas. O povo não merece e está farto. Ninguém acredita no regime
dos os utentes as conhecem. Formam grupos e vão entrando até caberem. Fora da cidade, estas viagens poderão ser feitas na caixa aberta de qualquer carrinha de carga e custarão cerca de 20 meticais, dependendo do percurso. Lugar sentado só se consegue com muita sorte. Arranjo um. Os rapazes no banco de trás metem-se com o cobrador, perguntando quanto me roubou. Fica encavacado. Picam-no. Pronuncio-me em sua defesa, respondendo que roubou, mas pouco. Cinco ou seis meticais, o que é isso?! Sim, o que é isso?, concordam. E pensam, sem o dizerem, “o que é isso para ti?!.” Depois tentam abusar. Pedem para beber água da minha garrafa. Exclamo: “Respeito, meninos”, e seguem-se risos abafados e conversa em changana, que não posso entender. Conheço esse hábito do passado. Um deles
ípsilon | Sexta-feira 27 Janeiro 2017 | 5
Homens, mulheres e crianças dormem pelos passeios no Bairro da Polana, zona nobre da cidade, onde estou alojada. As ruas confundem-se com espaço doméstico. Nelas se come, dorme e vive pergunta-me se sou casada. Querme namorar comigo. Digo-lhe que sou velha. Responde que nos anos 60 já existia. Replico que essa existência só terá sido possível na condição de espermatozóide. Riem-se. Deixam-me em paz até à paragem seguinte, na qual entra muita gente, e o cobrador me manda mudar de lugar, ou os passageiros que entrarão esmagar-me-ão. É uma deferência para comigo, percebo. Protegeme e aceito. Os passageiros sentados serão uma dúzia, nos quais me incluo, todos muito apertados, eu com a vantagem de estar ao lado da janela. Em pé, enlatados, curvados e abalroados pelas travagens, buracos da estrada e má condução, mais uma dezena de almas. Um dos homens que primeiro entram e se encosta a mim, comprime-me exageradamente a cintura com o cotovelo. Olho-o nos olhos, olha-me, medimo-nos, pergunta-me para onde vou, respondo “para o mesmo sítio que o senhor”, e ali se enceta uma conversa na qual fico a saber que é técnico de elevadores e não gosta de brancos e lhe digo o suficiente para que perceba que não sou exactamente como os brancos que conheceu, por isso vou ali, nem sou presa para o seu dente. Vale-me ser mais velha, “mãe”(2), como dizem, e reclamar o estatuto que a idade me concede, bem como o de professora e católica, que enuncio. Percebo que o problema não consiste apenas em ser diferente por ser branca, mas também no facto de ser mulher. Viajei para África esquecendo que a Europa fica longe, bem como todos os seus valores nos quais me formei. Ao longo do percurso o técnico de elevadores vai-me apresentando os locais por onde passamos. Ali é o mercado do peixe. Ali, o shopping Marés. Não reconheço a estrada da (2) Mãe —Tratamento respeitoso dado às mulheres mais velhas
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Costa do Sol. A que tenho na memória já não existe. O único ponto de referência é o mar e uma ou outra árvore na marginal. Estou num lugar onde nunca fui. Existe o edifício antigo do restaurante da Costa do Sol, onde se servem refeições, mas apenas no rés-do chão. O primeiro andar está em ruínas, desactivado, sem janelas. Em frente já não existe o estacionamento para carros de banhistas, mas uma rotunda, e a rodovia continua em direcção a Marracuene. Existe, sim, a praia longa com a baixa-mar sem ondas da minha infância, e a possibilidade de andar um quilómetro com água pelo tornozelo, quente como não me lembrava que pudesse ser. O mar igual. Tudo o resto é diferente. Só quero que os meus companheiros de chapa me expliquem onde saem os moçambicanos para ir à praia. Indicam-me uma zona na qual construíram um campo de jogos sobre a areia. Saio. Um formigueiro de gente. Uma multidão no passeio, no areal e na água. Muita música, muito barulho, muito movimento. O passeio transformou-se numa extensa zona de vendas e de comes e bebes improvisada sob as escassas casuarinas. Vende-se tudo e assa-se peixe e galinha. Cheira a comida na grelha, que em todo o lado é servida aos clientes no passeio ou estendidos na areia. Destes aproximam-se jovens com garrafas que esguicham um jacto de detergente líquido dissolvido em água para a lavagem das mãos engorduradas de quem acabou de comer. Não compreendo se pertencem aos “restaurantes” ou se trabalham por conta própria. Trazem também um pano onde o cliente limpa as mãos. Percebo existir um código de praia diferente daquele a que estou habituada. Dispo o vestido, sentome com o meu livro, mas reparo que só exibe fato de banho quem vai para a água. A maior parte das mulheres encontra-se vestida. Não há muita nudez, embora à nossa volta tudo esteja impregnado de sexo implícito, de pessoas que procuram outras, que se conhecem, encontram e namoram. Sou a única mulher sozinha. Sou a única mulher branca. Há uns rapazes que metem conversa comigo num inglês escolar. Respondo em português, mas continuam no mesmo registo. Parecem-me bebidos ou drogados. Enxoto-os. Surge um homem pedindo-me para ler o meu livro. “Ler o meu livro?” “Só fazer um skipping. Estou ali”, aponta a sua toalha. “Skipping?!”, interrogo. Deixo-o levar por instantes a minha Svetlana Alexievitch. Todos os olhos na praia estão pousados em mim. Enfio rapidamente o vestido pela cabeça, agarro nos meus pertences, passo pelo homem a quem emprestei o livro, peço-o de volta e dou início a uma caminhada pelo paredão da Costa do Sol apinhado de carros e ambientes mais ou menos ameaçadores onde me cruzo com magotes de gente que come, bebe, ri, dança e conversa. Chegada ao mercado do peixe, construído sobre a praia, com uma
zona de restauração adjacente, decido antecipar o jantar e mando vir uma travessa de camarões grelhados pela qual pago cerca de 12 euros. Sossego por uma hora. Incomoda-me não conseguir passar despercebida e misturar-me. Sinto a minha segurança em permanente risco num país onde o assalto, o rapto e a extorsão são uma profissão criminalizada por um lado, mas banalizada por outro. Há ladrões que roubam em determinadas zonas como se esse fosse o seu local de trabalho. Há-os nas Barreiras e no viaduto que liga a Ponta Vermelha à Baixa. Ser assaltado pelo ladrão A ou B num sítio expectável é
culpa nossa, porque passamos por lá estando avisados. Sabemos que não se pode, portanto compreende-se que tenhamos de lhe oferecer os nossos pertences. É aborrecido, mas normal. Põe-se o sol e preciso de voltar a casa com segurança. Do lugar onde janto vejo os chapas regressarem repletos. O terminal onde poderia conseguir fazer-me transportar para a cidade ficou muito para trás, portanto o chapa é de excluir. Não devo fazer o percurso a pé e muito menos ao cair da noite. Não vejo táxis nem autocarros a não ser em circulação, cheiíssimos. Não consegui localizar paragens no caminho até ali. Não
Da esquerda para a direita: Estrada do Aeroporto, Avenida 24 de Julho, Av. Friederich Engels, antigamente designada como Duques de Connaugh, chapa
trouxe telemóvel por questões de segurança. Sinto-me bloqueada por um medo repentino. Como sair da Costa do Sol? Ocorre-me pedir boleia. Numa mesa ao meu lado, uma numerosa família moçambicana acabou também de jantar. Destaca-se um português jovem, com sotaque do Porto, pai do bebé que parece ter motivado o encontro. Aniversário ou baptizado. Aproximo-me do português e peço-lhe boleia para a cidade. Não vai ainda. Estranha o pedido, mas acaba por se dispor a ajudar e acompanha-me pela marginal até arranjarmos um táxi. Afinal há praça quase em frente ao restaurante. Não a tinha avistado. Explica-me, enver-
gonhado por mim, que as mulheres não circulam sozinhas no Maputo, muito menos se forem brancas. Entro no táxi, respiro fundo.
Segurança omnipresente A segurança em Maputo é um bem de primeira necessidade. Havia um motivo para a minha mãe, com base em informações de quem tinha regressado, me desaconselhar firmemente um retorno tantas vezes sonhado. Não era apenas conversa de branco colonialista e saudosista. Não é seguro andar sozinha a pé à luz do dia pelas ruas do Maputo fora da área nobre da Polana e 24 de julho até ao
supermercado Spar, antigo Interfranca, situado um pouco à frente do café Mimmo’s Princesa. Percebo que há olhares que se fixam no meu saco a tiracolo e no telemóvel. Os populares alertam-me em língua changana para a possibilidade de ser roubada. Percebo que me dizem algo como “olha o telemóvel” ou “não tenhas cuidado, não...”. Nas zonas nobres e por toda a cidade, as casas e prédios têm um ou dois guardas fardados com ou sem armamento, dependendo do carácter das instalações. A polícia avistase esporadicamente, mas os guardas são omnipresentes. Alertam-me para que tenha especial cuidado com
os polícias. São regra geral corruptos. Apropriam-se dos nossos documentos e exigem dinheiro para nolos devolverem. Desconfio do que dizem, porque no Maputo o boato sempre teve pé ligeiro, mas confirmo a má fama policial quando um dos meus motoristas estaciona na 24 de Julho, enquanto aguarda que eu venha das compras e vê os documentos apreendidos pela polícia sob alegação de estar a fazer praça em local indevido. Conseguiu recuperar o que lhe tinham tirado mediante suborno. Explica-me que é obra da Polícia Municipal, que vigia os vendedores ambulantes e não tem jurisdição sobre o trânsito. Indigno-
me, mas deparo-me com a sua aceitação. “Aqui é assim. A única maneira de resolver os problemas rapidamente é dar dinheiro.” A segurança das casas é alvo de grande atenção. A paisagem urbana está pejada de gradeamentos nas portas, janelas e vãos. Tudo o que possa constituir uma possível entrada do exterior está protegido por ferros. Muitos prédios assemelhamse a jaulas. Há gradeamentos até ao 13.º andar, porque os ladrões podem e conseguem trepar. Para além disso, regra geral cada casa ou prédio tem os seus guardas. Parte significativa da força de trabalho no Maputo labora nesta actividade, que ípsilon | Sexta-feira 27 Janeiro 2017 | 7
aparenta exercer com gosto. Os guardas permanecem sentados às portas, contemplando, dormitando ou jogando cartas ou damas. As peças do jogo são tampas de garrafas de água. As azul-escuras fazem de pretas e as claras de brancas. Nisto passam o dia, jogando, observando os transeuntes e conversando. São ruas inteiras com os passeios ocupados por grupos de guardas que ali comem e vivem. Percebo, pelas conversas que escuto, que muitos se queixam de trabalhar 24 horas seguidas, sem folga. Escuto, também, os diálogos estabelecidos com outros pelo guarda do meu prédio que acumula a função de vigilância com a manufactura artesanal de cestos de palha que pendura no gradeamento que circunda o prédio. Do lado de fora ouço os passantes apreciarem os artigos. Descobri que dorme no átrio do prédio. Moro no rés-do-chão e logo nas primeiras noites escuto um restolhar de palha fora da porta do apartamento. Atento no barulho e compreendo ser um corpo voltando-se sobre uma esteira. O homem espera que todos os moradores entrem no prédio e, tarde na noite, acosta-se ali. Qual será a sua história? Um guarda do outro lado da rua senta-se numa cadeira que tem apenas as pernas da frente. Equilibra-se encostando o espaldar ao muro, assim compensando as de trás. Na 24 de Julho, os guardas do Edifício Belver ocupam o tempo vendo telenovelas brasileiras numa televisão de rua. Na mesma artéria encontro um guarda que ouve rádio com um dispositivo composto por uns altifalantes ligados a um mecanismo eléctrico, ligado a uma antena, ligado a pilhas. Não é um rádio, mas compõe-se de peças que antes pertenceram a esses aparelhos e que ali reunidas emitiam som. É engenharia electrotécnica sem design.
O que quer ser encontrado Homens, mulheres e crianças dormem pelos passeios no Bairro da Polana, zona nobre da cidade, onde estou alojada. As ruas confundem-se com espaço doméstico. Nelas se come, dorme e vive. Não apenas os sem-abrigo, mas o povo que enche a cidade durante o dia e depende das relações comerciais que aí estabelece. Os populares que vêm dos bairros limítrofes usufruem do espaço urbano irregradamente. A cidade enche-se cedo e esvazia-se a partir das 17h00. Noto homens e rapazes remexendo nos contentores do lixo a partir dessa hora. Alguns comem o que de lá tiram. Desvio o olhar por pudor, como fazem todos os outros, tentando não ver, não fixar e não lembrar. Há pessoas destituídas de quaisquer bens, rotas, rasgadas, de uma miséria e sujidade aparentemente endémica que estendem um pano no chão e se deixam ficar; indigentes curtem bebedeiras estatelados ao sol ou à chuva, mas também há pelos passeios muita gente sóbria, que apenas descansa. Vendedores de rua dormem sestas à 8 | ípsilon | Sexta-feira 27 Janeiro 2017
sombra sobre capulana ou esteira, e sentados no chão ou em bancos improvisados esperam clientes que lhes comprem o amendoim, a castanha de caju, a fruta ou os sapatos. Tudo se vende nas ruas. Na esquina oposta à da casa onde estou alojada, na Rua Ahmed Sekou Touré, exAfonso de Albuquerque, há o rapaz da fruta, que me engana no peso e já me conhece, “és a mãe que mora ali”, e na esquina que se lhe opõe, chega depois do almoço a mulher do amendoim torrado, que vende a cinco meticais o monte pequeno, a dez o grande, sempre no chão. Recordo os meus censurados hábitos à chegada a Portugal. Também fui sempre de me sentar no chão com as pernas cruzadas ou nos degraus das escadas, com naturalidade, adaptando-me em permanência,
improvisando e não vendo nisso o mal que os portugueses lhe encontravam à minha chegada. Agora reparo eu. Agora estou muito portuguesa na contemplação do chão sujo e dos passeios rebentados do Maputo. Ocorre-me que na infância montei a banca para vender mangas à porta da casa na Matola. Nessas alturas sentei-me no chão ou improvisei um banco de caixote? A minha memória trai-me. Também ela reescreve, ajeita, deslocaliza, compõe ou esborrata. Confronto-me com a necessidade de me reposicionar na cidade. A minha ideia dos tamanhos e dimensões não corresponde ao real. Na memória tudo me parece maior. A cidade, as ruas, as casas onde vivi. Talvez porque fosse pequena. Talvez o meu pai, afinal, não fosse tão grande como o vejo na me-
mória pura que dele quero manter e pela qual devo velar. Nessa minha memória limpa de um espaço-tempo que só aí reside.
Coisas que só têm valor para mim Avisto a minha primeira casa no dia da chegada. Faço-me à Avenida 24 de Julho e percorro-a à cata do quarteirão do Jardim 28 de Maio. Demoro a encontrá-lo. Reconheço o prédio, mas receio entrar. A zona encontra-se bastante degradada, com passeios rebentados, muito comércio de calçado e telecomunicações na berma da estrada, o que obriga a um sério esforço de circulação para não se tropeçar. Não devo mostrar interesse nem cruzar olhares. Quero que pensem que sou dali, que circulo entre emprego e casa. Mais
tarde perceberei que não é possível caminhar na rua sem ser notada. Passo frente à porta do prédio onde vivi evitando fitá-la. O ambiente não é favorável. Realizarei segunda tentativa de visita com o motorista de táxi que se assumirá como guardacostas, condição implícita para que me possa mover à vontade. Não peço protecção, mas ao acompanharme quando abandono o carro o motorista age desse modo. Consigo entrar no átrio sujo e escuro do meu prédio. O elevador e o monta-cargas não funcionam, as portas pendem, há um homem dormindo no interior de um deles. Afasto-me. Receio. Não há forma de subir até ao sétimo andar onde vivi. Posso tentar as escadas, mas temo fazê-lo. A captação de fotos é muito desencorajada. Fotografo as imediações porque estou
o onde fiz a primeira comunhão. Volto na semana seguinte, após estudo de terreno no Google Maps. Aí desd ccubro um telhado do que julgo ser a cantina onde a minha mãe me mandava às compras. Com base nesm ssa referência e nas que obtive na primeira incursão refaço os meus p percursos no actual traçado da Map tola: após a portagem, virar à direito ta na Joaquim Chissano, depois na quinta rua à esquerda, logo no priq meiro quarteirão à direita onde m identificarei a casa do meu tio M. id Avançando 200 metros, a casa da A Matola há de ficar na terceira rua à M direita. Encontro-a, intacta, muito d ccuidada e bonita! A minha velha casa! O terreno circundante bem ajarsa dinado, flores, árvores altas, muita d sombra, que boa surpresa! Esperava so o pior. A proprietária, amigável e disponível, mostra-me a factura da d luz ainda em nome do meu pai. Sinlu to-me aturdida pela permanência to do passado. No regresso à cidade d não me apetece falar. n
Outro mundo é possível O
O pai de Isabela Figueiredo, nos anos 50, na margens do rio Incomati, frente à estação de caminho-de-ferro de Lourenço e Sé Catedral da mesma cidade e os mesmos locais no Maputo de hoje
acompanhada e posso expor-me mais. Rapidamente sou advertida pelos passantes de que não posso fazê-lo. O motorista explica-me que é um hábito que ficou do passado. Foi proibido nos tempos da guerra civil e o povo assume que continua em vigor. Sempre que empunho a máquina fotográfica, arrisco-me. Não gostam. Ficam arreliados quando percebem. No alto do prédio avista-se um tanque de cimento. É a caixa do elevador. No acesso a essa caixa sentavam-se os empregados do meu pai, ao sábado à tarde, para receber. Isto não tem valor para ninguém, a não ser para mim. Na primeira viagem que realizo à Matola não consigo localizar a minha antiga casa. Reconheço o Cine 700, a escola secundária e a igreja
U Ultrapassada a desconfiança e estranheza que sentem inicialmente, as pessoas são calmas e afáveis sem estardalhaço. A partir do momento em que se sentem à vontade comigo, podem demonstrar comportamentos exagerados para os meus padrões de familiaridade. Há um motorista de táxi que em determinado ponto de visita me assenta uma palmada na barriga da perna para matar um mosquito e no regresso a casa me bate no antebraço perguntando: “Era isto que querias ver?” Não existe o tratamento por você. Somos todos tu. Começo por estranhar que os patrões tuteiem os empregados, mas percebo que são tratados da mesma forma. Poucos dias após a chegada, constato que não vim apenas de fora. Sou de fora. Sinto-me desajustada e sozinha. Penso que me tenha sentido desta forma quando cheguei a Portugal, em 1975. Sei que foi um tempo estranho, mas ultrapassei-o e adaptei-me a uma vida nova, como teria de me adaptar à de Maputo, se tivesse vindo para ficar. Felizmente tenho hoje telemóvel, Whatsapp, Skype, Messenger e posso desabafar com os amigos que à distância me vão dando apoio. Como é que nos aguentámos todos naquele tempo? E como se aguentou quem escolheu ficar em Moçambique para ajudar a construir uma nova nação? Há que falar com pessoas. Estabeleço contactos. Encontro-me com portugueses que trabalham no Maputo, com moçambicanos que nasceram após a independência, com pessoas da minha idade ou um pouco mais velhas que permaneceram no país após a independência, suportando tempos duríssimos de incerteza, insegurança e fome. Escuto as suas histórias e através do que me vão contando posso reviver os últimos dias do Império e os primeiros da revolução, na qual também acreditei, mas cujo fim testemunhei à distância. Relatam-me a provação que foi a guerra civil. Disfarçam mal a actual descrença nas
instituições. Percebe-a pelos nãoditos e pelos hábitos. É-me confirmada quando enuncio a constatação. O país não funciona. A educação é ineficaz. Chega-se ao 12.º ano mal sabendo ler e escrever. A saúde não tem capacidade de resposta, pelo que os moçambicanos com algum poder financeiro escolhem tratar-se na África do Sul e aí ter os seus filhos. Os curandeiros ocupam-se da saúde. Os feiticeiros da Justiça. O tribalismo voltou em força, tal como o lobolo e a poligamia, após os anos de proibição marxista. Terminados o colonialismo português e a guerra civil, os moçambicanos permaneceram vítimas de conflitos armados, fome, miséria, ausência de liberdade de expressão e domínio das potências estrangeiras de cujo financiamento dependem. A crise económica e política que se reflecte no tecido social e no estado geral da nação não agrada a ninguém. As pessoas estão descontentes com o partido no poder, inclusive a elite que dele depende directa ou indirectamente. Todos culpam a prevalência da corrupção como foco de subdesenvolvimento, energias que mutuamente se alimentam, mas pactuam com ela na medida em que seja necessário agilizar procedimentos. Todos esperam que a trégua nas hostilidades entre a Renamo e a Frelimo que se negociou no Natal e foi prorrogada por dois meses se transforme num cessar-fogo efectivo. Os jornais fazem eco da opinião popular. O povo que paga todas as contas não deseja o actual estado de coisas. O povo não merece e está farto. Ninguém acredita no regime. “Há que aguentar, há que ir passando entre os pingos da chuva.” E as eleições? “Os votos são roubados. Não interessa em quem votamos. Isto não vai mudar”, dizem-me. Transmito estes ecos à elite com a qual me encontro. Uns confirmam-me que ocorreu desvio de votos no passado, outros mencionam a circulação de boatos. Pergunto a todos os lados se a Renamo, de quem o povo fala, é a alternativa democrática possível. Não divergem na resposta: “A Renamo é igual ou pior”. Surgiu um novo partido, mas ainda não se percebeu bem o que quer nem quem congrega. Qual é então o futuro deste país? “Sangue. Muito sangue.” Calo-me. Não me atrevo a dizer seja o que for. Que voz têm os intelectuais moçambicanos? Que contributo podem dar? “Viste o monumento que ergueram à memória do jornalista Carlos Cardoso na Avenida dos Mártires da Machava?! Quem fala, morre. Todos sabem.” Na conjuntura actual o papel dos intelectuais é, por isso, diminuto. Em que medida o actual Presidente Filipe Nyusi atraiçoou o discurso de tomada de posse proferido há dois anos, comprometendo-se com a paz e o progresso com que os moçambicanos sonham? “O Presidente é um homem pacífico e bem-intencionado, mas não possui a força e as qualidades de liderança necessárias.” O cenário é propício à reserva e desconfiança. Cada um vive no óasis da sua casa sem manutenção de laços sociais relevantes. Não há acon-
Na memória tudo me parece maior. A cidade, as ruas, as casas onde vivi. Talvez porque fosse pequena. Talvez o meu pai, afinal, não fosse tão grande como o vejo na memória pura que dele quero manter e pela qual devo velar
tecimentos culturais significativos onde possam encontrar-se. Brancos e negros de classe média e alta, quadros do partido ou de empresas estatais ou internacionais, afectos ao Governo e/ou Frelimo vivem retraidamente nos seus guetos casa-trabalho-supermercado, entre os quais circulam de automóvel, cuja segurança têm de garantir quando estacionam fora de portas —o roubo de peças é frequente, e o destino das mesmas é quase sempre o Mercado Estrela Vermelha. Passo por lá de txopela (3), sem parar. Vejo homens a desmontar monitores de computador no passeio, usando primeiro o martelo, lançando depois o fogo ao PVC para mais facilmente chegar ao material que lhes interessa. A desesperança que testemunhei ao longo das semanas que passei no Maputo não é compatível com a realidade de uma terra tão agraciada pelos deuses em condições naturais. Ter regressado 41 anos depois ajudou-me a compreender melhor onde e a quem pertenço. Não sei se poderei voltar, ou se o desejarei no futuro, mas na minha terra adoptiva gozo da liberdade de expressão pela qual os moçambicanos anseiam e posso ao menos falar em nome daqueles cujo testemunho escutei, esperando ser escutado por quem toma decisões na terra que um dia também foi minha. Não por ter aí nascido, mas porque a nobreza do povo com o qual contactei na infância merece ser honrada. As ruas continuam semeadas de acácias, jacarandás e frangipanis que exalam o seu perfume ao final da tarde. Por todo o lado, as frutas, a cor e o caos que eu também sou. A mesma terra igual, mas tudo é outro. (3) Tuk-tuk
ípsilon | Sexta-feira 27 Janeiro 2017 | 9
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http://catedrasaramago.webs.uvigo.gal