A FUNÇÃO ETERNA DA ALMA
NITYA-DHARMA
livro baseado em palestra proferida por Shri Shrimad Bhaktivedanta Narayana Goswami Maharaja
Sumário O Autor Prefácio História de Indra e Virochana A alma e suas naturezas: a verdadeira e a adquirida A natureza da alma infinitesimal O relacionamento entre Deus e a entidade viva Divisões de dharma A natureza e a ciência da devoção transcendental As glórias de sankirtana Da Fé ao Amor a Deus – evolução gradativa no processo da devoção transcendental Religião verdadeira e religiões enganosas
O Autor Srila Bhaktivedanta Narayana Goswami Maharaja nasceu em 1921 em Bihar, Índia, próximo às margens do sagrado rio Ganges. Ainda jovem, renunciou à vida familiar e entregou sua vida aos pés de lótus de seu mestre espiritual para prestar serviço a Deus. Deste modo, aprofundou-se nos segredos intrínsecos do conhecimento espiritual. Por mais de quarenta anos, viajou por toda a Índia ensinando este conhecimento transcendental e, a partir de 1996, passou a viajar pelos países ocidentais a fim de transmitir esta sublime sabedoria espiritual a todas as almas deste mundo. Traduziu para o híndi mais de trinta textos sagrados do original em sânscrito e bengali, iluminando-os com seus próprios comentários. Na era atual, é o expoente máximo no que se refere à sabedoria e ao conhecimento milenares (os Vedas) da Índia, tendo sido condecorado com o título “Yuga Acharya” (preceptor espiritual desta era) em virtude de suas profundas realização e erudição espirituais. Em sua idade avançada, seu único interesse, ao viajar ao redor do mundo, é de despertar a consciência espiritual latente daqueles que dele se aproximam. Por sua misericórdia imotivada e seu inconcebível poder espiritual, ilumina as almas condicionadas quanto à sua identidade eterna, proporcionandolhes visão divina do plano espiritual transcendental e da forma mais elevada de amor a Deus.
Prefácio Neste livro, apresentamos uma palestra do mais eminente líder espiritual da Índia e o maior expoente do conhecimento védico na era atual, Shrila Bhaktivedanta Narayana Goswami Maharaja. Ele discorre sobre questões muito importantes da valiosíssima obra prima Jaiva-dharma – a função eterna da alma de Shrila Bhaktivinoda Thakura, outro destacado preceptor espiritual do século XIX. Shrila Narayana Maharaja discorre sobre a natureza e a ocupação eternas da alma, os temporários deveres religiosos e ocupacionais realizados neste mundo, a meta suprema de todas as entidades vivas e, sobretudo, o processo para se atingir esta meta. Como evidência para suas explanações, cita diversos e antigos textos sagrados dos Vedas e, com perfeita maestria, extrai a essência de todo o conhecimento. Esta palestra foi proferida em híndi em Delhi, tendo sido publicada pela primeira vez na revista em híndi Bhagavat-patrika e mais tarde traduzida para o inglês para a revista Rays of the Harmonist, edição de Gaura Purnima, 2003. Agora vem cuidadosamente adaptada para facilitar a leitura daqueles recém introduzidos à terminologia sânscrita e à linhagem Vaishnava. Oro para que este livro chegue às mãos das almas sinceras e ávidas de conhecimento superior e verdade espiritual profunda e para que, lendo-o, iniciem sua jornada rumo ao verdadeiro amor transcendental. Também oro para que meu mestre divino, om vishnupada paramahamsa parivrajaka-acharya ashtottara shata shri Shrimad Bhaktivedanta Narayana Goswami Maharaja, fique satisfeito com minha tentativa de distribuir seus ensinamentos
mundo afora e deste modo me ilumine. Só assim poderei avançar na compreensão da função eterna de minha alma. Equipe editorial Braja
História de Indra e Virochana As palavras sânscritas nitya-dharma (função religiosa eterna e intrínseca) automaticamente pressupõem o realizador daquela função. Existe um vínculo inseparável entre a própria função religiosa e quem a pratica, como na relação inseparável entre a água e sua liquidez, ou entre o fogo e o calor. Antes de considerar a religião inata, ou dever ocupacional inerente (dharma) ao ser, é essencial primeiro refletir sobre a verdade fundamental relativa a este ser. [Dharma é a função natural e característica de algo, ou aquilo que não se pode separar de sua natureza.] Sendo assim, em primeiro lugar vamos analisar o que é a verdade do “eu”. O Chandogya Upanishad narra a história de Indra e Virochana, através da qual se pode entender facilmente o princípio fundamental da alma, o “eu” verdadeiro. No início da era dourada, há milhões de anos, todo o universo dividia-se em dois grupos: o dos semideuses e o dos demônios. O rei Virochana liderava o grupo dos demônios e o Senhor Indra, o dos semideuses. Ambos se rivalizavam na busca de felicidade e gozo sem paralelos. Deste modo, alimentando inveja e despeito um do outro, aproximaram-se do pai do universo, o Senhor Brahma, e lhe perguntaram como poderiam satisfazer seus desejos. O Senhor Brahma disse: “Para quem conhece a alma, é fácil alcançar todo gozo disponível em todos os mundos e satisfazer cada um de seus desejos. A alma é livre do pecado, da velhice, da morte, da lamentação, da fome e do desejo, e é conhecida como satya-sankalpa, ou seja, cada um de seus esforços e decisões é verdadeiro e justo.”
Com o intuito de compreender a alma, tanto Indra quanto Virochana moraram com Brahma e praticaram celibato por trinta e dois anos. Depois disso, oraram para que o Senhor Brahma lhes falasse a respeito da alma. O Senhor Brahma disse: “Aquela pessoa (o eu) que vocês estão vendo agora com os seus próprios olhos é a alma. A alma é destemida e imortal.” Os dois perguntaram em seguida: “A alma é a pessoa vista na água ou no espelho?” O Senhor Brahma mandou que eles olhassem cada um para um pote de barro cheio d’água e lhes perguntou: “O que vocês vêem?” Vendo seus reflexos na água, disseram: “Ó Senhor, vemos a alma inteira como ela é, dos fios de cabelo na cabeça às unhas dos dedões.” Aí, o Senhor Brahma mandou que eles cortassem as unhas e o cabelo e se vestissem com diversos ornamentos. Outra vez, fez com que olhassem para a água nos potes de barro. “O que vêem agora?” “Vemos que as duas pessoas nestes reflexos estão limpas e decoradas com lindas roupas e adornos, assim como nós – portanto, em tudo se parecem conosco.” O Senhor Brahma disse: “Eis aí a alma, que é destemida e imortal.” Tendo ouvido isto, Indra e Virochana partiram com os corações satisfeitos. Ao chegar à morada dos demônios, Virochana, que agora entendia o corpo como sendo a alma e o objeto de adoração e
serviço, declarou: “Ó demônios, quem adora o corpo como se este fosse a alma conquista tanto este mundo quanto os planetas superiores. Vê todos os seus desejos serem satisfeitos e alcança a plenitude do prazer.” A caminho de casa, Indra deliberou sobre o que ouvira: “Este corpo nasce, morre, passa por transformações, está sujeito a doenças e assim por diante. Como pode, então, ser a alma imortal, que não nasce, não morre, não se aflige e nada teme?” Apesar de já estar a meio caminho de casa, Indra regressou à morada de Brahma e lhe revelou sua dúvida. O Senhor Brahma mandou que Indra praticasse celibato por mais trinta e dois anos e então lhe disse: “Aquela pessoa que entendemos ser o “eu” num sonho é a alma. Esta alma é destemida e imortal.” Após ouvir isto, Indra partiu em paz. Mas, de volta a seu reino, de novo pôs-se a refletir: “Quando alguém está desperto, pode ter o corpo de um cego, todavia, num sonho, seu corpo não padecerá da mesma cegueira. Mesmo um doente poderá ser saudável em seus sonhos. Mas suponhamos que, ao longo de um sonho, a pessoa identificada como o eu seja espancada ou morta. Ainda assim, ela teme e chora, e, ao despertar, este ‘eu’ deixa de existir. Logo, a forma vista num sonho não pode de fato ser a alma.” Com isto em mente, Indra voltou à morada do Senhor Brahma. Após praticar celibato por mais trinta e dois anos, Indra aprendeu o seguinte com o Senhor Brahma: “A alma jaz naquele estado de sono profundo durante o qual não se vê nem sequer se experimenta o sonho.” Contudo, assim como antes, a caminho de casa, Indra passou a contemplar as palavras do Senhor Brahma.
“Na condição de sono profundo”, pensou ele, “não há o menor entendimento de quem somos, tampouco dá para percebermos a presença de alguém mais. Portanto, esta condição é uma espécie de aniquilação.” Com isto em mente, Indra foi ver o Senhor Brahma de novo. Desta vez, depois de cinco anos de celibato, Indra aprendeu outra coisa com o Senhor Brahma. “Indra, o corpo físico, que está naturalmente sujeito à morte, é somente a morada da alma. A alma está apegada ao corpo, da mesma forma que um cavalo ou um touro permanece atrelado a uma carroça. Na realidade, a alma é a pessoa que tem desejos – tais como ‘quero ver aquilo’. Para cumprir esta tarefa, existem os sentidos. Quem manifesta o desejo de falar é a alma, e para o ato de falar existe a língua. Quem deseja ouvir é a alma, e para o ato de ouvir existem os ouvidos. Quem deseja pensar é a alma, e a mente realiza o ato de pensar para ela.” Esta história deixa claro que a alma tem três moradas, tanto como o amendoim tem três elementos (a casca, a pele e o próprio amendoim). As moradas da alma são: . o corpo grosseiro, consistindo em cinco elementos mundanos (terra, fogo, água, ar e éter). . o corpo sutil (mente, inteligência e falso ego), dotado de algo parecido com a consciência. . o corpo puro da alma, composto das três potências espirituais, a saber, sat-chit-ananda: existência pura e eterna (sat), todo o conhecimento, ou cognição (chit), e bem-aventurança espiritual completa (ananda).
Cada um destes corpos tem o seu próprio dharma (ou função ocupacional) em separado. Os corpos grosseiro e sutil são impermanentes. Logo, suas respectivas funções também são temporárias. A alma, contudo, é eterna e duradoura. É esta a doutrina estabelecida pelos Vedas, Vedanta, Upanishads e Puranas (conhecimento eterno, transcendental, a princípio transmitido oralmente, e por fim registrado sob a forma de textos sagrados, na Índia, há aproximadamente cinco mil anos). Portanto, a função desta alma é de fato a função eterna, ou a religião eterna. Também se chama dharma védico, ou bhagavat-dharma.
A alma e suas naturezas: a verdadeira e a adquirida É importante entender o significado da palavra dharma. Ela deriva da sílaba-raiz dhri, que quer dizer dharana, “reter” ou “possuir”. Portanto, dharma significa “aquilo que se retém”. A natureza ou qualidade permanente e intrínseca de um ser é sua religião eterna, ou dharma. Quando, pelo desejo do Senhor, algum ser é criado, a natureza eterna do mesmo também se evidencia simultaneamente. Esta natureza, ou qualidade, é a ocupação eterna, ou religião eterna, daquele ser. Se mais tarde este ser passa por uma transformação, por acaso ou devido a algum vínculo com outro objeto, sua natureza, presente eternamente no seu âmago, fica distorcida. Aos poucos, a natureza distorcida se estabiliza e parece ser eterna e pura como sua natureza anterior. No entanto, a natureza transformada não é verdadeira. Esta natureza, que é temporária, chama-se “natureza adquirida” (nisarga). A natureza adquirida sobrepuja a verdadeira natureza do indivíduo e passa a impor sua própria identidade como se fosse a natureza ‘verdadeira’. A água é uma substância cuja natureza, ou dharma, é a fluidez. Ao solidificar-se por se transformar em gelo, contudo, sua natureza, ou seja, a fluidez, também se transforma e se enrijece. Esta qualidade de enrijecimento torna-se a natureza distorcida da água e atua em lugar de sua verdadeira natureza de fluidez. A natureza adquirida, porém, não é permanente – é temporária. Por ter se originado de alguma causa ou força, quando se desfaz esta força, a própria natureza adquirida se desfaz e a natureza
verdadeira se manifesta de novo, assim como o gelo fica lĂquido outra vez ao ser aproximado do calor.
A natureza da alma infinitesimal Se quisermos entender este assunto, a alma, da forma apropriada, é essencial que compreendamos tanto a verdade fundamental acerca da alma quanto sua natureza eterna. Uma vez que tenhamos este conhecimento, será muito fácil entendermos a função eterna e a função temporária das entidades vivas. Deus – o criador, mantenedor e aniquilador do universo, a origem de tudo e a causa de todas as causas – é a Verdade Absoluta indiferenciada. Ele não é informe, impessoal, muito menos destituído de características próprias – a impessoalidade e a ausência de características próprias são apenas Suas manifestações parciais. Na realidade, Ele tem uma forma transcendental. Também é o inconcebível possuidor de todo o poder, sendo dotado de seis opulências: toda a beleza, toda a fama, toda a riqueza, toda a força, todo o conhecimento e toda a renúncia. Pela influência de Sua potência inconcebível, que torna o impossível possível, a Verdade Suprema, Shri Krishna, manifestaSe sob quatro aspectos. Shrila Jiva Gosvami afirma: A Verdade Absoluta é uma só. Ele tem como característica singular o fato de ser dotado de potência inconcebível, mediante a qual sempre Se manifesta de quatro maneiras: . Sua forma pessoal original. . Seu esplendor pessoal, no qual se incluem Sua morada e Seus eternos companheiros, expansões e encarnações. . As almas espirituais individuais.
. A energia material. Estes quatro aspectos podem ser comparados respectivamente: . ao interior do planeta sol; . à superfície do globo solar; . às partículas atômicas dentro dos raios do sol, emanadas desta superfície; . ao reflexo remoto do sol. Shrila Jiva Goswami afirma, ainda, que, se compararmos Krishna, a entidade consciente completa, ao sol, então, as almas espirituais individuais poderão ser comparadas às partículas localizadas de luz existentes nos raios do sol. [Os raios do sol não podem ser independentes do planeta sol, tampouco podemos considerar que um só raio seja o sol. Pelo contrário, cada raio é parte do sol. Da mesma maneira, as almas conscientes, espirituais e infinitesimais, comparadas às partículas atômicas de luz existentes nos raios do sol, não podem ser independentes de Deus, já que são partes d’Ele. Tampouco pode uma alma ser chamada de Deus, mas sim de Sua partícula infinitesimal.] O Bhagavad-gita (15.7) descreve a identidade eterna da alma individual: As almas individuais e eternas neste mundo material são, sem dúvida, Minhas partículas separadas. Afirma o Brihadaranyaka Upanishad (2.1.20): Inúmeras almas emanam do Ser Supremo, assim como minúsculas centelhas emanam de uma fogueira.
Afirma o Shvetasvatara Upanishad (5.9): Deve-se saber que a alma é do tamanho de uma décima milésima parte da ponta de um fio de cabelo. Também diz o Shri Chaitanya charitamrita (Madhya-lila 29.109): ... como uma partícula molecular do brilho do sol ou da fogueira. Segundo confirmam estas citações, a alma é a parte separada da transformação da potência marginal de Deus. O Shvetasvatara Upanishad (6.8) afirma: Somente aquela potência suprema de Deus se manifesta como inúmeras potências (shaktis), três das quais são proeminentes, a saber: . A potência interna (chit-shakti) de Deus, por meio da qual Seus passatempos transcendentais manifestam-se nos planetas espirituais. . As almas (jivas). . A manifestação material temporária (maya). Pelo desejo do Senhor, a potência marginal de Deus, estando situada entre as potências espiritual e material, manifesta inúmeras e insignificantes almas atomicamente conscientes. Estas almas são entidades espirituais por natureza, capazes de divagar pelos mundos espiritual e material. Por este motivo, esta potência é conhecida como potência marginal, e as próprias almas chamam-se “almas que são neutras por natureza”.
O relacionamento entre Deus e a entidade viva Conforme um aforisma do Vedanta-sutra, shakti-shaktimator abhedah: “Krishna (Deus) e a potência de Krishna não são diferentes entre si.” Portanto, Krishna e a transformação de Sua potência, as almas, ou entidades vivas, também não são diferentes entre si. Porém, esta é uma igualdade só da perspectiva de ambos enquanto seres espiritualmente conscientes. Krishna, no entanto, é o ser vivo consciente completo e o amo da energia material ilusória (maya), ao passo que as almas são atomicamente conscientes. [Maya, sendo a potência externa do Senhor, influencia todas as entidades vivas a aceitarem o falso egoísmo pelo qual se acham desfrutadoras independentes deste mundo material]. Em virtude de sua energia marginal, as almas podem sujeitar-se a esta energia material ilusória (maya). Krishna é aquele que detém todo o poder e as almas, nenhum poder. Deste modo, há uma diferença eterna entre Krishna e as almas. Da perspectiva filosófica, esta simultaneidade de diferença e não-diferença está além da inteligência humana, sendo por isso chamada doutrina da inconcebível diferença e não-diferença. Shri Krishna Chaitanya Mahaprabhu, o próprio Senhor original, harmonizou inteiramente as doutrinas contextuais dos Vedas com aquelas dos mestres espirituais Vaishnavas anteriores. Ele tomou as doutrinas de Shri Ramanuja Acharya, Shri Madhvacharya, Shri Vishnusvami e Shri Nimbaditya Acharya e revelou-lhes a síntese: a doutrina da inconcebível diferença e não-diferença, que é o entendimento absoluto e universal dos Vedas.
Deste modo, Deus é a fonte de todas as expansões e as almas são Suas partículas separadas. Deus (Krishna) é quem atrai e as almas, as que se sentem atraídas. Krishna é o objeto de serviço e as entidades vivas, as prestadoras de serviço. O serviço a Shri Krishna, o ser plenamente consciente, é a natureza verdadeira das almas atomicamente conscientes. Este serviço na verdade chama-se a religião transcendental de imaculado amor a Deus. Logo, este serviço a Deus, este amor a Deus, é o nitya-dharma da alma. “Por sua natureza constitucional, a alma é serva eterna de Shri Krishna” (Shri Chaitanya-charitamrita, Madhya-lila 20.108). No entanto, se esta alma, que é atomicamente consciente e cuja natureza é marginal, fica avessa ao serviço a Deus, então, maya, a potência material ilusória de Krishna, cobre a atômica natureza consciente da alma pura com os corpos materiais sutil e grosseiro. Assim, maya faz com que estas almas se habituem a divagar pelas oito milhões e quatrocentas mil espécies de vida. Quando se restabelecem em seu serviço a Deus, as almas libertam-se de seus corpos, até então impostos pela potência material ilusória. Enquanto descuidar de sua inclinação a servir a Deus, a alma continuará a ser esturricada pelas misérias tríplices, ou seja, os sofrimentos causados por nossa própria mente e corpo, por outros seres vivos e pela natureza material. Nesse contexto, a forma espiritual pura da alma fica coberta pelas cortinas da ilusão material, e seu nitya-dharma, ou natureza eterna, também fica coberto, ou pervertido. Esta natureza pervertida determina a função ocasional (ou religião temporária) da alma, assim como a água se solidifica ao se
transformar em gelo. Esta religiĂŁo temporĂĄria varia segundo tempo, lugar e recipiente.
Divisões de dharma Neste mundo, podem-se dividir todas as variedades de dharma (dever ocupacional) em três categorias gerais: . Dharma impermanente, cujo adepto não aceita a existência do Senhor e a eternidade da alma. . Dharma circunstancial, cujo adepto aceita a eternidade do Senhor e da alma, mas só pratica métodos temporários para alcançar a misericórdia do Senhor. . Dharma eterno (nitya), cujo adepto se esforça pelo método do amor puro para conquistar o serviço a Deus. A religião eterna é uma só, e não duas ou muitas. Países, classes sociais, raças e línguas diferentes, apesar de a identificarem por nomes diversos, não podem alterar a função constitucional inerente à alma. O amor espiritual inadulterado que a entidade infinitesimal (a alma) sente pela Entidade Infinita (Deus) é a única religião eterna de todas as entidades vivas. É esta a ocupação suprema de todas as almas. Na Índia, esta função inerente é conhecida como Vaishnavadharma. Além de ser eterno, o Vaishnava-dharma é o mais elevado ideal de religião suprema. No cumprimento de deveres prescritos ocasionalmente, não se pratica nem se visa à religião eterna de forma direta, mas apenas de forma indireta. Logo, é algo de bem pouca serventia. Aqueles processos que estruturam as religiões temporárias carecem da ocupação eterna da alma e, como tal, são descritos como a função dos animais. São processos a serem rejeitados. O Hitopadesha (25) afirma:
Em se tratando de comer, dormir, defender-se e acasalar-se, seres humanos e animais são a mesma coisa. No entanto, a qualidade de ser religioso é própria só dos seres humanos. Sem vida espiritual, os humanos em nada são melhores que os animais. Aquela religião em que não se cultiva a natureza do eu (a alma); em que se fazem esforços para intensificar os hábitos de comer, dormir, defender-se e acasalar-se; e em que o gozo dos objetos temporários dos sentidos é tido como o objetivo derradeiro da vida humana – tal é a religião, ou ocupação, dos animais. Nesta pretensa religião, é mesmo completamente impossível escapar de todo sofrimento e conquistar felicidade pura, o que é a meta da vida humana. Portanto, o Shrimad-Bhagavatam (11.3.18) declara: Todos os homens neste mundo sentem-se inclinados a praticar karma com o objetivo de se libertarem do sofrimento e conquistarem a felicidade, porém, resultados opostos são atingidos. Em outras palavras, a dor não se dissolve e não se alcança a felicidade. Por este motivo, o Shrimad-Bhagavatam (11.9.29) dá a instrução mais elevada a todas as pessoas do mundo: Após divagar por 8.400.000 espécies de vida, chega-se à rara forma humana de vida, a qual, embora temporária, proporciona a oportunidade de se alcançar a perfeição máxima. Portanto, um ser humano sóbrio, sem desperdiçar um instante sequer, deverá esforçar-se em prol do bem-estar supremo da vida enquanto seu corpo, o qual sempre estará sujeito à morte, não tiver se degenerado e morrido.
Como meio para conquistar a prosperidade máxima, certas pessoas aceitam atividades praticadas visando recompensas (karma); outras, o conhecimento acerca do aspecto impessoal de Deus visando à liberação; e ainda outras, a meditação (yoga). Mas isto é refutado no Shrimad-Bhagavatam (1.5.12): Ter conhecimento da auto-realização, mesmo que isento de qualquer afinidade com a matéria, não cai bem se carece de algum conceito a respeito do Senhor Supremo. O Shrimad-Bhagavatam (11.14.20) afirma ainda: Ó Uddhava, a meditação (yoga), o caminho do conhecimento envolvendo sankhya (a análise do que vem a ser espírito e matéria), o estudo dos Vedas, a austeridade e a caridade – nada disso pode Me conquistar como o faz a devoção intensa (bhakti) praticada exclusivamente para Mim. Este verso quer dizer que a devoção pura a Deus é o único meio pelo qual se pode obter o benefício máximo. Este ensinamento também aparece nos Shrutis: É a devoção (bhakti) que revela Deus às almas. Essa Pessoa Suprema só é controlada pela devoção. Portanto, bhakti, ou devoção pura, é superior a todas as demais práticas e é a religião eterna da alma. No Shrimad-Bhagavatam (11.14.21), Krishna, o Senhor Supremo e Original, também diz: Eu só posso ser alcançado por meio de bhakti.
A natureza e a ciência da devoção transcendental Qual é a forma do amor e devoção puros? O Sandilya-sutra afirma: “Devoção pura é o supremo apego, ou amor, ao Senhor. Além disso, como tal amor tem a propensão a controlar o controlador supremo, sua natureza é imortal.” Shrila Rupa Goswami descreve a natureza intrínseca de bhakti como se segue (Bhakti-rasamrta-sindhu 1.1.11): Serviço devocional puro é o cultivo de atividades que se destinam exclusivamente ao prazer do Senhor Supremo e Original, Shri Krishna – em outras palavras, o fluxo ininterrupto de serviço a Deus realizado por meio de todos os esforços do corpo, da mente e das palavras e pela expressão de diversos sentimentos espirituais. Não é coberto, nem pelo conhecimento que visa à liberação impessoal, nem por atividades executadas em troca de recompensas, nem pela meditação, nem por austeridades; e é inteiramente isento de todos os desejos que não sejam o desejo de proporcionar felicidade ao Senhor Supremo. A devoção se cultiva em duas fases: (1) a fase da prática e (2) a fase da perfeição. O eterno e perfeito amor a Krishna chama-se prema-bhakti, e é a única religião eterna da alma. Esta devoção na fase de perfeição, embora eternamente perfeita, permanece coberta naquelas almas que caíram no materialismo. Uma pessoa neste estado encoberto, na tentativa de resgatar este amor a Deus, passa a praticar devoção com seus sentidos. Este tipo de prática de devoção também é religião eterna, só que no estado imaturo da mesma, ao passo que a devoção na fase de perfeição é tida como o estado plenamente
amadurecido e consolidado de religião eterna. Sendo assim, apesar de ser uma só, a religião eterna tem duas fases. A fase de prática da devoção também é de dois tipos: . Devoção conforme regras e restrições. . Devoção espontânea (raganuga bhakti). Até manifestar-se no coração do praticante um apego e gosto espontâneos por Deus, ele observa as regras de prática recomendadas pelas sagradas escrituras reveladas. Desta maneira, observando a disciplina e os regulamentos das escrituras védicas, o praticante ocupa-se em devoção a Deus. Em contrapartida, ocupa-se na prática de devoção espontânea aquele (1) em cujo coração já surgiu um gosto e apego espontâneos; (2) que, sem levar em consideração as regras e restrições das escrituras, desenvolve intensa avidez por ter os humores dos companheiros eternos do Senhor em Vraja, o plano espiritual supremo, companheiros estes saturados de amor e apego a Ele; e (3) que se dedica às práticas devocionais para seguir os passos daqueles companheiros eternos do Senhor.
As glórias de sankirtana Em termos gerais, esta prática devocional subdivide-se em sessenta e quatro ramificações. Após refugiar-se aos pés de lótus do mestre espiritual puro, o qual é auto-realizado e cujo coração é livre de quaisquer impurezas, o praticante se concentra nas seguintes ramificações: (1) Ouvir, (2) cantar e (3) lembrar-se dos nomes, qualidades, formas, atributos, caráter e passatempos do Senhor; (4) servir Seus pés de lótus; (5) oferecer-Lhe orações; (6) adorá-l’O; (7) prestar-Lhe serviço; (8) fazer amizade com Ele; e (9) oferecer o próprio eu inteiramente ao Senhor. Das sessenta e quatro ramificações da devoção, as nove supramencionadas se destacam. Destas nove, as três primeiras, ouvir, cantar e lembrar, são superiores às demais; e, destas três, a suprema é o cantar de Seus nomes puros e transcendentais. Todas as ramificações da devoção (bhakti) estão plenamente incluídas no cantar dos santos nomes de Deus. Segundo verdades filosóficas fundamentais, Deus e os nomes de Deus não são diferentes entre si. As glórias dos nomes transcendentais de Deus são cantadas em profusão em todos os textos sagrados da Índia. Especialmente nesta era de desavenças e duplicidade, o cantar dos santos nomes do Senhor é o único refúgio, ou religião. O Bhihad-naradiya Purana declara: Nesta obscura era férrea de desavenças e duplicidade, ou seja, a era de Kali, o único meio de libertação é o cantar dos nomes de Deus, dos nomes de Deus, dos nomes de Deus. Não há outra maneira. Não há outra maneira. Não há outra maneira.
O Shrimad-Bhagavatam (6.3.22) também declara que o cantar dos santos nomes de Deus é a única ocupação, ou religião, suprema dos seres vivos: O serviço devocional, cuja prática essencial é o cantar do santo nome do Senhor, é o princípio religioso máximo para as entidades vivas na sociedade humana.
Da Fé ao Amor a Deus – a evolução gradativa no processo da devoção transcendental A seqüência da evolução gradativa do cultivo da religião eterna é revelada por Shrila Rupa Goswami. Esta seqüência, sem dúvida algo sem paralelo e tão maravilhoso neste mundo, é apresentada no Bhakti-rasamrta-sindhu (Divisão Oriental 4.11): . Fé: no início, a fé na devoção surgirá para uma pessoa muito afortunada devido ao resultado cumulativo de atividades piedosas e transcendentes ao longo de muitas vidas. Tal fé é a semente da trepadeira de bhakti, ou seja, a trepadeira da devoção. . Contato com santos transcendentais: em seguida, dá-se o contato com Vaishnavas santos e, o que é mais importante, o contato com o mestre espiritual auto-realizado, o qual está no plano da transcendência e cujo coração é livre de quaisquer defeitos e impurezas. O mestre espiritual iniciará esta alma afortunada no Hari-nama, ou seja, a poderosa e sagrada vibração sonora dos santos nomes de Deus. À medida que o discípulo cantar Hari-nama, seu mestre espiritual lhe iluminará o coração com o conhecimento divino. . Práticas e meditações espirituais: sob a orientação desses santos dotados de poder espiritual, o devoto pratica as meditações espirituais do serviço devocional, tais como ouvir, cantar e lembrar-se dos nomes, qualidades, atributos, forma e passatempos de Deus. . Eliminação de todos os desejos desfavoráveis e outras impurezas do coração: o resultado da dedicação a essas práticas devocionais é que se destroem todos os desejos desfavoráveis e
outras impurezas do coração, ou seja, os elementos que impedem o avanço no caminho da devoção. . Fé firme nas práticas espirituais: deste modo, conquista-se fé firme e estabilidade nas práticas da devoção. . Gosto espiritual transcendente: no próximo passo, adquire-se gosto transcendental. Quando desperta este verdadeiro gosto espiritual, a atração por assuntos espirituais, tais como ouvir, cantar, meditar e outras práticas espirituais, excede a atração que se possa ter por qualquer espécie de atividade material. Esta é a sexta etapa no processo de desenvolvimento da trepadeira da devoção. . Apego profundo: esta fase refere-se especialmente ao apego ao Senhor e a Seus companheiros eternos. Isto ocorre quando o gosto pelas práticas espirituais acaba fazendo com que o praticante tenha um apego profundo e direto ao objeto de suas práticas espirituais, o Senhor Supremo, Krishna. . Amor espiritual (bhava): por fim, obtém-se um broto do amor puro a Deus. Bhava é comparado a um raio do sol do transcendental e puro amor a Deus. Nesta fase da devoção, bhava, ou seja, a essência da potência interna do Senhor, a qual consiste em conhecimento e bemaventurança espiritual puros, é transmitido ao coração do praticante, oriundo do coração de um dos companheiros eternos de Deus que tenha vindo a este planeta. Nesta fase, o praticante finalmente pode perceber, em seu coração, as onze características de seu corpo espiritual eterno, tais como seu nome eterno, suas vestes eternas, seu serviço eterno etc. Esta chama-se a perfeição de nossa forma espiritual eterna, svarupasiddhi.
A fase em que o estado plenamente amadurecido de bhava se condensa chama-se prema, ou seja, o transcendental amor puro a Deus. Este transcendental amor puro a Deus é a única religião eterna de todas as entidades vivas. Este também é o conselho do próprio Senhor Supremo, Shri Krishna Chaitanya Mahaprabhu. Trata-se do assunto fundamental mais confidencial dos shastras (escrituras reveladas): Vedas, Vedanta, Upanishads e Puranas.
Religião verdadeira e religiões enganosas No mundo de hoje, a maioria das religiões são, nas palavras do Shrimad-Bhagavatam, “religiões enganosas”. O Shri Chaitanyabhagavata também afirma: Segundo o Shrimad-Bhagavatam, todas as idéias mundanas que se difundem em nome da religião não passam de uma forma de trapaça. Religião temporária (anitya-dharma) é aquele dharma cuja forma máxima de adoração ao Senhor é a oração em troca de pão e manteiga; cujo praticante muda de conduta, virando cristão, e depois hindu, e depois budista, e depois cristão de novo; e cujo praticante procura livrar-se de doenças do corpo, considerando-o a alma (o eu) e achando que sua alma é o Senhor. Alimentar as pessoas com arroz e lentilhas com base na concepção errônea de que elas são pobres; construir hospitais e centros educacionais ateístas crendo ser este o serviço mais elevado a Deus; pensar que a ocupação eterna, a ocupação temporária e todas as demais variedades de dharma são a mesma coisa; negligenciar a ocupação eterna da alma (nityadharma) e propagar o secularismo; sacrificar animais e pássaros inofensivos em nome do amor ao mundo; e servir ao homem e à nação – tudo isso é religião (ou dharma) temporária. Nenhuma dessas atividades jamais ocasionará bem-estar permanente para o mundo. No entanto, se considerarmos a religião eterna como sendo um templo – em outras palavras, como sendo nosso objetivo mais elevado –, poderemos aceitar esses outros dharmas parcialmente, mas somente como degraus para chegarmos a este templo da religião eterna. Sempre que
essas outras religiões contradisserem, cobrirem ou dominarem nitya-dharma, ou seja, a ocupação eterna da alma, deverão ser abandonadas por completo. Moralidade, humanidade ou amor mundano desprovidos da função eterna da alma não fazem o menor sentido e não são dignos de glorificação. O verdadeiro objetivo e o único propósito da humanidade e da moralidade é alcançar amor puro por Deus (krishna-prema). Se houver ao menos um praticante verdadeiro desta função eterna, nitya-dharma, que mantenha acesa a chama do cantar dos santos nomes de Deus, então, sua nação, casta e sociedade jamais haverão de se arruinar – mesmo depois que esta nação enfrente a opressão e a dominação de outro país, e tenha seus tesouros saqueados, suas escrituras transformadas em cinzas e sua cultura e propriedade destruídas. Este cantar dos nomes de Deus... Hare Krishna Hare Krishna Krishna Krishna Hare Hare Hare Rama Hare Rama Rama Rama Hare Hare ... possibilita o bem-estar eterno do mundo e do país, sociedade, casta e eu de cada um de nós. Encerro minha palestra, repetindo a instrução final do Senhor Krishna, o fundador do dharma, como consta no Bhagavad-gita (18.66): Abandone por completo todas as variedades de dharma relacionadas a seu corpo e sua mente, e renda-se apenas e
inteiramente a Mim. Hei de livrá-lo de todas as reações pecaminosas. Não tema.