Vamos brincar de
Árvore-passarinho?
Trabalho apresentado à Faculdade de Artes Visuais do Centro Linguagem e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, formulado sob a orientação da Prof.a Me. Andréia Cristina Dulianel, para a Conclusão do Curso de Licenciatura em Artes Visuais.
design e diagramação
ilustração
Bruno Canova
Fabiano Carriero
ร todas e todos Jacarandรกs e Sabiรกs que fazem de tupiniquim este nosso jardim.
agradecimentos Agradecemos aos nossos familiares, amigos e amigas, e aos professores e professoras que atravĂŠs de seu companheirismo, sabedoria e encorajamento nos motivaram ao desenvolvimento deste projeto.
resumo A elaboração desta pesquisa propõe a prática poética através das linguagens artísticas com intuito de valorizar a experimentação, estimular o sensível e reapropriar a curiosidade do olhar. Problematizando a questão da educação e da escola como principal articuladora da identidade cultural em uma sociedade, o ensino de arte tem sua contribuição fundamental para o desenvolvimento da criatividade, da autonomia cidadã e é aglutinante do contexto históricosocial da humanidade, fortalecendo o sentimento de pertencimento dos indivíduos em sua cultura. Buscaremos através de atividades reflexivas e na confluência de linguagens incentivar a curiosidade primitiva do ser humano, e com auxílio da narrativa poética despertar possibilidades criadoras que rompam os limites dos significados convencionais de maneira integrada e libertadora. Palavras-chave: material didático; oralidade; alteridade; sensível; poética
sumário INTRODUÇÃO................................................................................................................ p. 9 1. A PEDRA NO CAMINHO........................................................................................... p. 10 1.1 A origem da educação e da escola........................................................... p. 10 1.2. A escola e a educação bancárias............................................................. p. 11 2. APRENDENDO A LER O MUNDO............................................................................ p. 14 2.1 Na visão freiriana....................................................................................... p. 15 2.2 Na visão indígena....................................................................................... p. 16 2.3 A questão da alteridade............................................................................. p. 18 3. MOLEQUES E CURUMINS....................................................................................... p. 21 4. FAZER ARTE............................................................................................................... p. 24 4.1 A experiência............................................................................................... p. 25 4.2 A poética....................................................................................................... p. 26 4.3 O processo.................................................................................................... p. 28 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................
p. 32
Este trabalho trará reflexões sobre o conceito de educação, como ele se institucionalizou em nossa sociedade e um paralelo entre o ideal de construtora de cidadãos e cidadãs críticos, contestadores das desigualdades sociais e transformadores da realidade - como promove o Plano Nacional de Educação, para a Escola que temos hoje. Sabemos que do mesmo modo que ela constrói uma sociedade é, sobretudo, reflexo desta e tendo então este rico espaço de convergência de enxertos sociais nada melhor do que fazer dela o local ideal para problematizar não só o ensino de arte, mas a educação como um todo. Tendo como inspirações primordiais que guiarão todo o decorrer do trabalho, a cultura indígena com suas tradições ancestrais de integridade com a natureza e os seres vivos e a visão contextualizadora e dialética de Paulo Freire foram os pilares de toda a construção reflexiva que nos levaram a, inclusive, querer unir ambos campos de estudo na esperança de encontrar em suas similaridades os caminhos férteis para uma educação que trabalhe a integridade dos sujeitos com o meio e a sensibilidade do olhar e do fazer artísticos como treino para a consciência de seres humanos éticos, sustentáveis e sonhadores. O trabalho trará como sugestão um material pedagógico que tentará condensar toda essa plural e extensa reflexão em propostas de atividades que se sustentarão na construção de narrativas e na provocação da liberdade poética o leito por onde deve fluir o instinto natural do ser humano, especialmente das crianças, do olhar curioso, do desejo de experimentar e a vontade criadora que as artes tem enquanto campo científico muito bem acolhidos e potencializados.
Apresentação
O desafio maior deste material não está na busca de resultados, mas no auxílio da promoção de experiências poéticas tendo como metáfora pedagógica os protagonistas do conto Árvore-Passarinho e na desenvoltura do educador-educando a provocação do olhar e da pesquisa sensitiva de seus educando-educadores. Vamos ao encontro de Sabiás e Jacarandás! 9
1. A PEDRA NO CAMINHO 1.1 A origem da educação e da escola A educação surge com a origem dos homens, isto porque o que diferencia o homem dos outros animais é que este precisa produzir constantemente sua existência. Enquanto os demais animais se adaptam à natureza, o homem faz o contrário, adaptando-a a seu favor. Esse ato de transformação da natureza nós chamamos de trabalho e, pelo silogismo a reflexão anterior, o homem não vive sem o trabalho, sem a própria produção e sem o aprendizado das próprias formas de produção. Nesse sentido, nas origens do homem a educação coincidia com o próprio processo de existência, ou seja, era real a frase generalizada pela Escola Nova no fim do século XX quando dizia que “Educação é vida”. O homem aprendia a fazer fazendo e fazia de maneira coletiva em que todos dependiam do trabalho de cada um - o que ficou conhecido na História como sociedades comunistas primitivas. Ainda neste momento não existia a escola, porém existia educação. A escola surge junto com a ideia de propriedade privada que é quando determinada parte dos homens se apropria do principal meio de subsídio, que naquele momento é a terra, e passam a ter a condição de independência do próprio trabalho e passam a viver do trabalho dos outros. A máxima de que o homem vive do trabalho ainda é a mesma, contudo agora se torna possível a exploração de uma camada sobre outra - eis que surgem as primeiras classes sociais. Enquanto uns trabalham para subsidiarem a si próprios e aos proprietários da terra, estes vivem do ócio e, como da etimologia do grego σχολή (scholē), a palavra escola significa ‘lugar do ócio’, ou lugar para onde iam os filhos daqueles que detinham propriedade da terra. Ocorre então uma fissura no conceito de educação. Antes se educava enquanto trabalhava, e que uma grande maioria ainda continuaria nessa prática até meados da Idade Média com o exemplo dos artesãos que aprendiam e ensinavam através de seus ofícios. Por outro lado, uma minoria era educada a partir do ócio gerado pelo trabalho dos outros. Nos primórdios dessa escola a minoria frequentadora trabalhava principalmente atividades corporais (daí que surge o termo ginásio e que é empregado até hoje como ciclo de educação para jovens), a música e a arte da palavra que pode ser compreendida como a arte do ‘mandar’, enquanto que a outra classe era preparada para executar os mandos. 10
Essa situação vai se alterar no momento de transição da sociedade de meios de produção feudal (agropecuária) para uma sociedade burguesa (indústria), quando a ciência é assimilada como meio de produção. Esse momento também caracteriza um afastamento das relações naturais dos homens, pois passam a se relacionar em aspectos sociais dominados pela forma da cidade. A posição social destes homens e mulheres, ou seja, suas classes sociais não dependem mais de castas como na sociedade medieval, mas sim de sua posição no processo produtivo. Com a incorporação dos conhecimentos intelectuais no âmbito da sociedade surge então a necessidade da alfabetização para a participação cidadã dos indivíduos na vida da sociedade moderna. Sob este aspecto, a escola passa a se tornar então um instrumento indispensável de universalização deste conhecimento para a necessidade dessas novas condições de vida em uma sociedade dominada por códigos. Surge então a primeira escola primária universal, pública, gratuita e leiga. Quando acontece a 1ª Revolução Industrial a máquina se torna o centro do processo produtivo e a escola o centro do processo educativo. Por tanto, a partir daí é possível constatar que a escola é um fator determinante quando falarmos em educação, já que esta se torna o centro referencial para o processo de desenvolvimento intelectual necessário a participação dos cidadãos em uma sociedade modernizada por códigos político-sociais e, em consequência dessa não participação, estes sujeitos são retirados às margens do progresso. 1.2 A escola e a educação bancárias A alcunha deste termo é bastante presente nas obras de Paulo Freire e de muitos outros pensadores e pensadoras militantes por uma educação pública, laica, democrática, gratuita e de qualidade que trazem em suas reflexões a crítica ao modelo que está instaurado na modalidade de ensino público em todas as escolas brasileiras. Essa educação que se chama ‘bancária’ vem do sentido de que não há uma valorização do conteúdo que o educando já carrega consigo a partir de seu histórico de vivência, de sua cultura. Ele é renegado a segundo plano, um mero coadjuvante no desenvolvimento do aprendizado, já que este quando chamado de ‘aluno’ - ou seja, aquele que não possui luz, é tratado como um depositório de conhecimentos que será trazido até ele por um professor - aquele que professa, que carrega consigo uma verdade absoluta, sem nenhum cuidado didático que contextualize este conteúdo com sua vivência cotidiana, seu local de origem, seus interesses pessoais ou qualquer questão identitária que o torne um ser humano autônomo, livre, independente, dotado de direitos e construtor da cidadania. 11
(...)Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação. (FREIRE, Paulo. 1987. p.33)
Além da possível caracterização da educação tradicional com um modelo bancário, podemos dizer que ela quando inerente ao âmbito da escola adquire também um caráter fabril e carcerário. Fabril, pois se tem um dia tabelado em horários que são sinalizados pelo som periódico de uma campainha que regra a conduta do pensamento dentro da instituição. A noção de escola como fábrica é ainda mais evidente quando constatamos que existe uma intenção em segmentar o conhecimento. A segmentação é um procedimento semelhante a uma linha de montagem onde se trata todos os estudantes não de maneira democrática, mas hegemônica e autoritária, levando-os a pensar e produzir semelhantemente seus conteúdos e resultados. A intenção fabril da escola consiste na produção de uma mão-de-obra que será barateada no mercado de trabalho graças ao seu baixo nível de instrução e ainda mais baixo nível crítico, já que a escola também é um ambiente produtor e reprodutor de passividade, consequente desde o poder hierárquico que atrapalha a relação do conhecimento entre educando e educador até na assimilação anterior que subjulga a potencialidade do estudante a um mero expectador. O caráter de cárcere da escola e da educação é revelado quando refletimos acerca dos termos tão presentes no vocabulário dessa instituição. Estamos habituados a tratar o conteúdo já segmentado em língua portuguesa, geografia, matemática, física, biologia, etc. como ‘disciplinas’. E essas disciplinas compõem um currículo que é denominado ‘grade’. A partir do estudo e desenvolvimento dessas disciplinas que constituem saberes engradados os estudantes são submetidos a uma avaliação chamada de ‘prova’. Enfim, o que concluímos de uma breve reflexão como esta é que os estudantes são enviados a um reformatório, uma máquina de montagem massiva que desrespeita suas singularidades, que não se preocupa com suas aspirações, que não irá trabalhar suas potencialidades, mas os tratará como de igual ignorância, prontos a receberem passivamente o conteúdo a ser transmitido e, tidos como condenados, deverão provar a instituição que merecem ser absolvidos. 12
Como apresentou certa vez em um dos periódicos programas do Café Filosófico televisionados e co-produzidos pela TV Cultura, Viviane Mosé denuncia que a escola também não está preparada - ou melhor, se indispõe a tratar de questões existenciais como reflexões sobre a vida, a morte, a alegria, a tristeza e do afeto com os estudantes. Essas questões são terceirizadas ao papel da família e da Igreja, mascarando a incompetência da educação tradicional e seus dirigentes de um racionalismo neutralizante que acarreta, irresponsavelmente, em uma educação que, na verdade, desprepara os sujeitos para a vida.
“Quem acumula conhecimento não pensa. Pensar exige o vazio.” Viviane Mosé 13
2. APRENDENDO A LER O MUNDO Foram citadas algumas das razões que levam, como consequência, a formação dos indivíduos da sociedade contemporânea em que vivemos. Uma sociedade repleta de individualidade sem contemplação e reflexão de si, mas somente da ganância egocêntrica e competitiva. Pessoas que não são instigadas a valorizar suas potencialidades, a não evidenciar sua autonomia e se tornarem líderes do próprio destino, e que indiretamente são movidas às margens da incompetência crítica e cidadã, resultando em uma sociedade passiva de seu protagonismo por transformações sociais e coniventes com injustiças que julgam não ser especialidade de sua esfera de atuação profissional devido a noção fragmentada do conhecimento e submissão hierárquica que a escola e educação tradicionais lhe forneceram. Talvez seja esse o maior desserviço que uma educação e escola irresponsáveis podem causar na vida de um ou uma cidadã e cidadão: a obstrução da percepção do indivíduo como parte presente e atuante da História. História esta compreendida como a narrativa da jornada da humanidade sobre este planeta em perspectivas da compreensão de sua presença seja nas microesferas sociais - sujeito, família, casa, ou macroesferas como a comunidade, nação e continente.
A concepção e a prática “bancárias”, imobilistas, “fixistas”, terminam por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. (FREIRE, Paulo. 1987. p.47) 14
2.1 Na visão freiriana A relação dialógica, ou seja, o diálogo como alicerce para o desenvolvimento do conhecimento tanto de quem ensina quanto aprende é um dos mais simbólicos motes da educação transformadora que Paulo Freire disseminou pelo mundo. A preocupação no rompimento da hierarquia do saber ao denominar os agentes da educação como ‘educadores-educandos’ e ‘educandos-educadores’, Freire nos ensina a importância de se tratar com respeito o conhecimento natural da vivência de cada ser vivo e analisa criticamente o papel desses dois como de igual importância para um convívio harmonioso nas relações sociais livres da dominação de um sobre o outro. Ainda em complemento a isso, Freire diz que numa educação dialógica a prática pedagógica acontece entre educadores-educandos tendo o mundo como mediador das visões e anseios particulares ao interesse de cada um. O diálogo primeiro do educador-educando com o mundo no intuito de aceitá-lo como mediador é, sumariamente, um ato de humildade, pois reconhece-se que não existe experiência didática de sucesso que tenha acontecido a partir da imposição de uma visão particular da realidade, mas sim na sensibilidade ao contexto que estes sujeitos dialógicos se encontram - suas microesferas sociais. É na problematização e contextualização que os educandos-educadores passam a se enxergar como presentes e verdadeiros agentes transformadores de sua realidade. Torna-se um exercício do sentimento de pertencimento daquela cultura, daquela cidade, daquela comunidade. Quando o educador ‘bancário’ chega com seu projeto de ensino anti-dialógico desrespeitando a origem de seus educandos e qualquer tipo de especificidade, ele traz sua prática de depósito de conteúdo alienada ao saber óbvio de que todo sujeito carrega consigo suas primeiras impressões de leitura de mundo. E nessas primeiras impressões, nesse primeiro mundo é quando o sujeito se fundamenta sujeito. O que se ignora na educação ‘bancária’ é que os educandos-educadores antes de terem a palavra, eles tem a sua disposição de leitura o mundo. Meu primeiro mundo foi o quintal de casa, com suas mangueiras, cajueiros de fronde quase ajoelhando-se no chão sombreado, jaqueiras e barrigudeiras. Árvores, cores, cheiros, frutas que, atraindo passarinhos vários, a eles se davam como espaço para seus cantares.(FREIRE, Paulo 1995. p.24)
criaturas
A capacidade do homem e da mulher de se reconhecerem como históricas os tornam diferentes dos demais animais. Partindo dessa 15
capacidade podemos concordar que adquirimos uma consciência histórica e nos identificamos como sujeitos dessa história, seja particular enquanto protagonistas inalienáveis, seja coletiva enquanto pertencentes a uma cultura e mundo coletivizados. Deve ser de comum acordo também que não existiria a menor possibilidade de avanços em âmbitos social, político, cultural, educacional, científico, etc. sem a noção de situações-limites reconhecidas a partir das transições históricas de períodos inertes para períodos de transformação, gradual ou revolucionária, nesse contexto histórico da humanidade. Como é possível então através da metodologia anti-dialógica da educação ‘bancária’ esperar algum tipo de resultado que desenvolva a autonomia de seus educandos já que esta fragmenta seus conhecimentos e terceiriza seus valores cidadãos e humanos? Como é possível esperar que o educando se compreenda enquanto sujeito de potencial transformador de sua realidade se esta é obscurecida por um modelo padrão que é lhe imposto verticalmente? O que estaria produzindo então este modelo de educação senão indivíduos presos em sua solidão angustiada resultante de um sentimento de não-pertencimento, de não-reconhecimento enquanto membro daquela comunidade, de indivíduos insensíveis as transformações de seu entorno já que sua criticidade foi reduzida ao questionamento de formulários e, se não, produzindo parágrafos sem qualquer coerência e coesão com essa narrativa histórica que compõe a humanidade? O rompimento deste elo conectivo dos indivíduos com sua própria cultura, a submissão de seus saberes por modelo estrangeiro a seus costumes e a hierarquia que se sustenta na reprodução de antagonismos sociais são os principais inimigos de uma leitura de mundo coletivizada, que busca trazer através da problematização os fragmentos da realidade presente como objetos de estudo. Uma leitura que visa instigar através do interesse natural da curiosidade inerte ao ser humano sua capacidade de questionamento, de pesquisa, de produção e de reflexão. Somente com a liberdade de experimentação e visualização a liberdade criativa será garantida. Mas que seja salientada, como bem fundamenta Paulo Freire por toda sua bibliografia, que essa liberdade naturalizada é cientificamente argumentada. Não há, pois, nenhum método empírico - no sentido antagônico ao modelo científico, mas sim um olhar crítico científico de progresso sobre os impulsos primitivos e soberanos dos indivíduos identificados como tão importantes para a constituição destes enquanto cidadãos pertencentes e atuantes, autônomos e transformadores, críticos e sensíveis ao protagonismo de suas histórias. 2.2 Na visão indígena A consideração do homem e mulher como criaturas construtoras de uma história coletiva não é um pensamento autêntico de Paulo Freire, é claro. A antropologia nos 16
organiza em ciência e a pedagogia denomina em ‘educação não-formal’ o que já trazemos empiricamente através do que aprendemos com nossos pais e mães, comunidade e cultura. Ancestralmente, apesar de fortemente presente ainda nas sociedades indígenas, todo nicho humano trouxe consigo seus conhecimentos sendo transmitidos pelas gerações seguintes através da oralidade, da contação de histórias que transmitem valores, saberes e despertam o imaginário onírico numa mistura de realidade e ficção. A didática obedece uma regra moral: o mais sábio (e geralmente mais velho e maduro), da tribo numa roda com os jovens e demais menos maduros é o responsável pelo ensino. (...)contar histórias, evocar o passado, os ancestrais e as tradições não é tarefa anônima, requer qualificação, referendo e legitimação do grupo, atribuição que está, tradicionalmente, vinculada à velhice. Observamos que nas duas realidades esta autoridade para narrar baseia-se na experiência, entendida como o tempo de estar e de ser no mundo, mas também na trajetória pessoal dos narradores e nos papéis desempenhados na vida comunitária. Neste sentido, observamos ainda que os narradores ouvidos são bons no que fazem, ou seja, são contadores de história por excelência, daqueles que prendem a atenção do público-alvo e de quem se aproximar. Realizam a tarefa incumbida com destreza e prazer. (SOUZA, SILVA, SPOTTI, 2013. p.8)
O que entra em questão quando abordamos esse tipo de pedagogia e num paralelo com a educação como um todo é a questão da identidade. Na narração oral dos indígenas o que se transmite ali são valores e episódios de vivências que os habituam gradualmente pertencentes de uma história milenar repleta de significâncias e hábitos particulares que configuram sua cultura. Uma cultura que é só deles, pois assim comungaram seus laços e vivências em integração com seu entorno. Claro que, depois da colonização, nenhuma cultura ancestral aqui presente conseguiu permanecer inabalável e não contaminada da cultura do colonizador e por se tratar de uma visão de mundo completamente diferente, com outro compasso temporal e outros mitos e vivências incorporados a sua história, as comunidades indígenas foram antropofagizadas e também antropofagizaram os novos costumes. Sobretudo numa sociedade do presente fundamentada na ‘modernidade líquida’ 17
(Zygmunt Bauman) que se transforma na velocidade da banda-larga e se recria numa amplitude globalizante, falar de identidade e tradição beira a um conservadorismo contraditório e inútil. Contudo, o que se quer trazer em debate com este subtema e capítulo é uma alternativa de estudo, pesquisa e reflexão por uma visão de mundo que ao mesmo tempo que dicotomiza certas relações também as aproxima; e é tratando a respeito dos conceitos que a aproxima que vamos elencar a metodologia e fundamento deste estudo. Dicotomia primeira esta que temos, de um lado, um mundo globalizado, com sistema financeiro, político e social complexos, com avanços na tecnologia e ciência constantes, com relações sociais intermediadas por espaços digitais e uma amálgama de culturas e, no lado B, sociedades que transplantadas pra dentro deste complexo ainda resguardam seu próprio tempo de desenvolvimento. Quando se fala deste desenvolvimento logo se tem uma ideia de atraso e desestímulo já que é um mundo que, originalmente, não tem raízes da concorrência capitalista. Mas que, quando por um lado a ciência indígena é vagarosa, sua mentalidade mítica produtora de um universo onírico milenar e que se consolida na capacidade de contemplação desta cultura, na habituação de integridade com a natureza primitiva de árvores e rios, os seus integrantes passam então a pensar, a ser e a refletir no tempo das árvores e dos rios.
“Em toda a humanidade, seja na tribo mais primitiva ou na universidade mais complexa, o que se está fazendo é a transmissão do saber que é o patrimônio maior.” Darcy Ribeiro
2.3 A questão da alteridade* 18
* “Estado, qualidade daquilo que é outro, distinto (antônimo de Identidade). Conceito da filosofia e psicologia: relação de oposição entre o sujeito pensante (o eu) e o objeto pensado (o não eu).” verbete da enciclopédia Larousse (1998)
Apesar deste conceito explicitar a respeito das diferenças, é tratando do que é diferente que podemos assimilar as semelhanças, ainda mais se tratando de um país pluricultural como o Brasil. Mas que tipo de visão de mundo a alteridade pode nos fornecer em debate? Sendo nada mais nada menos que a conexão entre o que diverge dos dois mundos brevemente apresentados anteriormente. Sendo muito mais aprofundada no campo da antropologia nos estudos indigenistas referentes principalmente a colonização e as consequências transformadoras nas culturas colonizadas, “dizer que nem tudo é o que eu sou e nem todos são como eu sou” (BRANDÃO,1986,p.7) faz total referência ao conceito de pedagogia dialógica que Paulo Freire defende como modelo ideal e também remete a reflexão de, apesar de parecer tão natural para nós que habitamos os trópicos, não estarmos, talvez, trabalhando com as diferenças de maneira simbiótica no processo pedagógico. A escola tem como, ainda instituição central no processo de conhecimento, papel de ao mesmo tempo difundir diferentes conteúdos também uniformizar o pensamento e ação de seus educandos para que estes sejam moldados a uma determinada cultura de sociedade. Da mesma forma que a missão Jesuíta fez nos idos de 1500 nestas terras tupiniquins, hoje as instituições educacionais também colonizam nossas crianças com os valores e saberes que julgam ser pertinentes para seu desenvolvimento em nosso mundo urbano globalizado.
A alteridade, afinal, é a liberdade de ser ele próprio. A pedagogia, parafraseando o músico Yehudi Menuhi, quando recebia o prêmio Príncipe de Astúrias, é educar para a liberdade e ela se dá “quando concedemos aos outros a liberdade de serem eles mesmos, de dar e ajudar. (MELIÀ, Bartomeu, 1999 p.2)
Salientar a necessidade da alteridade na educação indígena como importante reflexão para a proteção da identidade de suas tradições ancestrais é um dado que muito compete a este estudo, já que, como disse antes, a colonização não aconteceu somente na invasão dos portugueses, mas acontece a cada invasão curricular ‘bancária’ sobre a curiosidade instintiva da criança. Por essa razão é importante trabalhar na pedagogia urbana* a mesma alteridade que se trabalha na pedagogia das tribos*. Por uma questão de preservação do direito da criança enquanto detentora autônoma de seus impulsos pela pesquisa e aprendizado, e incentivo a construção de sua identidade. 19
Em seu artigo para os Cadernos Cedes do ano XIX, nº 49 de dezembro de 1999, Melià traz um relato sobre a educação do povo Guaraní muito interessante que vale o complemento deste subtema: No mundo guarani, por exemplo, a pessoa é uma “palavra” única e irredutível, cuja história será uma espécie de hino de palavras boas e belas, uma história de palavras inspiradas, que não podem ser aprendidas nem memorizadas e, portanto, também não podem ser, a dizer a verdade, ensinadas. Cada um é a sua palavra recebida e dita com propriedade, e essa palavra é criada ao mesmo tempo em que é dita, como uma energia que se desabrocha em flor. Essas são as metáforas com as quais os guaranis se pensam e se dizem. Sob um ponto de vista em total harmonia com o respeito e liberdade dos indivíduos até aqui sempre enaltecido como ideais, partir por uma visão de mundo que saiba identificar e trazer como objeto de estudo as especificidades individuais é um preceito chave para a compreensão e execução objetiva deste trabalho.
* criamos estes termos para remeter a diferença que estamos refletindo sobre as características presentes no desenvolvimento pedagógico dos sujeitos numa sociedade urbana e globalizada e naquelas com suas raízes primitivas conservadas e ainda presentes na vivência e transmissão oral dos saberes. 20
3. MOLEQUES E CURUMINS A curiosidade das molecas, dos moleques, dos curumins, enfim, da humanidade está presente em todos e todas nós. A questão é que, com o passar do tempo, a medida que vamos desenvolvendo nossa consciência, noção moral e ética que absorvemos da cultura que estamos inseridos vamos nos adequando aos padrões do que se espera de nós enquanto pertencentes a certos nichos etários. Isso é ainda muito mais evidente na cultura urbana moderna desde meados entre os séculos XIX e XX que a Pedagogia passou a ser tratada como ciência e a criança não mais sendo vista como um ‘pequeno adulto’, pois haviam percebido que seu desenvolvimento carecia de cuidados metodológicos especiais. Como bem lembra o importante historiador da família e da infância, Philippe Ariès (1914-1984) em seu livro História Social da Criança e da Família (1960), até hoje ainda temos o conceito de que só “começamos a vida” após a infância e isso faz com que consideremos este período como de inferior importância pra desenvoltura intelectual e social integrais de um ser humano. Outra reflexão importante é sobre as, talvez diferentes, noções de infância destes dois mundos que estamos, ao mesmo tempo, buscando antagonizar e aproximar em nosso discurso. A criança é criança biologicamente onde quer que esteja, mas os comportamentos sociais, individuais e originários ou os de seus semelhantes que as influenciam, são o objeto que trazemos foco para discussão. “A criança é só criança. Ela não pode ser outra coisa. Não pode ter a preocupação em ser um adulto. Cabe a ela vivenciar extremamente aquele momento que ela está vivendo”. É justamente a partir deste pensamento do escritor Daniel Munduruku que iniciamos o ponto chave da reflexão. Precisamos analisar que não há prática pedagógica de sucesso sem que se respeite a necessidade básica pro desenvolvimento da infância: que é a criança sendo criança integralmente. Apesar da possibilidade de aprofundamento nessa questão com viés psicológico - coisa que vamos nos poupar de fazer nesse ponto do trabalho, o que nos serve de objeto é a relação social dessa criança com seu meio. Vejam que nas sociedades que ainda detém sua cultura ancestral presente na educação e permanecem viventes no território antepassado, o diálogo pedagógico de seus curumins acontece na ligação dos valores da tradição daquela cultura 21
com a integração com o meio ambiente que exploram enquanto brincam, sendo sustentados estes pelo profundo respeito e amor dos adultos para com as crianças. Não existe a intenção numa comunidade indígena de tratar o curumim como um adulto, pois na cultura destes acredita-se que para se alcançar a sabedoria o sujeito deve vivenciar plenamente cada fase da sua vida. Essa tranquilidade em tratar a infância como um período importante para o desenvolvimento da criança enquanto criança e como alicerce para a consolidação do adulto futuro, um adulto consciente da completude de sua infância sem ressentimentos ou nostalgias frustradas, é a didática mais importante e norteadora de nosso trabalho. Como todas as sociedades, as sociedades indígenas estão muito ocupadas todo o tempo em formar suas crianças e tem um amor por elas que é fantástico. Na aldeia eu sempre estava assustado em ver meninos pequeninos em meio a fogueiras espalhadas sob as redes - porque de madrugada faz frio. Quando perguntava assustado, as mães me respondiam ‘Ele sabe que queima, ninguém o enganou. Ele experimentou. Aquilo é quente, não é bom’. Isso de tratar as crianças com respeito, mas deixá-la desenvolver sua própria personalidade com amor e paciência é a primeira educação. Darcy Ribeiro
Essa confiança em respeito a individualidade da criança é fundamental para a garantia de sua liberdade criativa. Às vezes, nós com a mentalidade globalizada, passamos muito tempo tentando ocupar profissionalmente nossas crianças com o intuito de capacitá-las com algum reflexo pra sua futura carreira e cometemos o erro grotesco de privá-las de sua própria infância, de seu momento particular de descoberta e pesquisa. O fato de já termos nos habituado a vivermos alienados a natureza em nossas casas de pedra, pisando em solados emborrachados, vestindo tecidos industrializados e convivendo em ambientes fechados tende a nos isolar, a nos tornar heterogêneos ao meio ambiente e isso contribui com a noção de fragmentos avulsos de nosso entorno, de nossa história humana. É preciso buscar no que nominam pejorativamente como ‘primitivo’, porém etimologicamente 22
sabemos o quão significante é esta palavra já que condiz com o conceito de ‘origem’, os fundamentos humanos básicos de contemplação, de vivência e contextualização histórica. E traçar este paralelo do nosso comportamento e pensamento urbanos tendo reflexo na educação que damos aos nossos moleques e molecas com o comportamento e pensamento primitivos nos possibilita eleger valores fundamentais sobre este segundo comparativo que devem ser transplantados, ou melhor, mantidos apesar da colonização nos ambientes urbanos, pois ao contrário do que o mundo que construímos nos diz, ainda somos seres conectados a natureza orgânica e temos nossas necessidades existenciais arraigadas nela. Negar esta conectividade é contribuir para a alienação dos seres humanos das responsabilidades para com o planeta em que vivem e com a história que constroem coletivamente.
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4. FAZER ARTE O que se sugere é, sobretudo, a busca ou a retomada pelo sensível como solução para valorizar este elo entre o “eu” e o “nós”. Não existe ferramenta mais potencial na construção da sensibilidade do que as artes, pois estas em seus mais avançados estágios de reflexão tem na experimentação e pesquisa naturais da curiosidade humana seu espaço fértil de desenvolvimento. A proposta de uma abordagem pedagógica que tem raízes na cultura indígena, sobretudo brasileira, por seus valores contemplativos e capacidade mítica como reflexo aplicado numa metodologia em ambiente urbano que reforce laços sociais, promova autoconfiança e ajude na autoafirmação enquanto protagonista de sua própria e também coletiva história terá na experimentação artística sua principal ferramenta de trabalho. Cabe as artes, principalmente visuais, o papel de educar o aprendizado visual de nossos indivíduos, pois vivemos em um mundo completamente tomado por imagens norteando nossos impulsos e pensamentos a todo momento. Na sociedade da informação é cada vez mais complexo desenvolver conhecimentos, porque apesar das fontes e referências abundantes, do acesso cada vez mais ilimitado nos conectando virtualmente com todas as partes do mundo, o fluxo transbordante de euforia e ansiedade é iminente e nos deixa dependentes de intermediações artificiais, pois estamos perdendo nossa capacidade autônoma de nos correlacionarmos com o que nos é, fisica e contextualmente próximos. Em nossa vida diária, estamos rodeados por imagens impostas pela mídia, vendendo produtos, ideias, conceitos, comportamentos, slogans políticos etc. Como resultado de nossa incapacidade de ler essas imagens, nós aprendemos por meio delas inconscientemente. A educação deveria prestar atenção ao discurso visual. Ensinar a gramática visual e sua sintaxe através da arte e tornar as crianças conscientes da produção humana de alta qualidade é uma forma de prepará-las para compreender e avaliar todo tipo de imagem, conscientizando-as de que estão aprendendo com estas imagens. (BARBOSA, 1998, p. 17). 24
4.1 A experiência O ato de experimentar está intrinsecamente ligado a conhecer. Mesmo que seus resultados não sejam satisfatórios às expectativas previamente suscitadas, a iniciativa da pesquisa, do teste, do sentir já eleva a condição do gesto a uma propensão para o conhecimento. Em seu livro Arte Como Experiência (1934), John Dewey (1859-1952) diz que a experiência acontece continuamente através de nossas interações com o mundo mediadas por nossas ideias e emoções. O interessante é que também traz duas possibilidades a partir do conceito de que experimentamos constantemente: existe a experiência incipiente, que é aquela que não nos damos conta do resultado nem mesmo da própria pesquisa devido a interferências externas ou de nossa própria letargia, e a experiência singular que necessita uma noção de completude, não como cessação, mas como consumação. O que garante tal experiência como singular é o notável a partir do grau de importância ao nos recordarmos instintivamente dela enquanto episódio marcante da narrativa de uma vida. Para se chegar neste ponto de memorial duradouro a experiência passou por um fluxo ininterrupto, sem lacunas a serem preenchidas e sem que a identidade do antes e depois fosse extinguida pelo resultado consumado. Todos os processos, apesar de confluentes na memória, são distintos entre si, pois foram vividos integralmente ao seu decorrer. Apesar da também distinção que Dewey faz sobre a diferença de experiência intelectual, é impossível não tratarmos da estética enquanto falamos sobre justamente as emoções que fazem legítimas estas consumações e as tornam inesquecíveis. Esse pensamento é muito semelhante a de Immanuel Kant (1724-1804) que diz haver uma conexão e dependência direta da noção do belo e do sensível com as emoções humanas. É a sensação do prazer ou desprazer responsável pela fruição do gozo de cada processo e, sendo assim subjetivo, é também singular no seu modo de apreciação. Quando nos dispomos a uma experiência estética trabalhamos com nossos sentidos e a medida que a fruição na pesquisa esteja a cada passo mais focada no objeto de estudo ou do sentir, tornam-se os sentidos cada vez mais exaltados e harmônicos entre si, contribuindo para a plenitude do momento. Mas para que essa harmonia resulte na qualidade ideal que Dewey chama de singular é necessário para o clímax propício momentos de pausa, intervalos desmedidos, estes que configuram o espaço entre o começo e a consumação da experiência. Não existe cultura mais em sintonia no quesito ‘intervalos’ ou ‘momentos de pausa’ e ‘contemplação’ se não a de uma sociedade indígena. Somente um terreno fértil do que há de mais primitiva humanidade e menor impacto interferente decorrente de uma tecnologia progressista e globalizante, seria possível compreender sensitivamente 25
os reflexos disso em seus sujeitos. Não que nos grandes centros urbanos seja impossível contemplar, deleitar-se com pausas e criar seus próprios intervalos subjetivos de reflexão e experiência, mas de certo modo vivemos numa sociedade impregnada de informações visuais, sonoras e energéticas e que conseguir atingir tal estado estando imerso nela é um desafio e tanto. O que já torna natural a concepção de novos indivíduos com essa assimilação arrítmica de reações decorrentes da interação com a frenesi do mundo exterior. A experiência que se tem diante do caos urbano também é um espaço interessante de estudo já que por ser natural a nós também não é devidamente contemplada, pois a banalizamos cotidianamente devido a intensa relação - não íntima, mas física com esta. Portanto, a metodologia para contemplação do caos também passa pela desenvoltura dos sentidos através dos intervalos. É impossível nos encontrarmos conosco num caos externo - a não ser que façamos deste um reflexo do interno. A experiência singular de caráter subjetivo e que faça desta subjetividade campo de, primeiramente, estudo do ‘eu’ para com ‘meus’ sentidos e, enfim, a exteriorização material ou não do que ‘me’ é particular, sendo então conhecedor do ‘meu’ papel sujeito diante do mundo em que faço parte depende de condições específicas do sujeito e de seu entorno para realizar-se. “(...)William James fez uma comparação oportuna entre o curso de uma experiência consciente e os voos e pousos alternados de um pássaro. Os voos e pousos ligamse intimamente uns aos outros; não são um punhado de alçamentos não relacionados, seguidos por alguns saltinhos igualmente não relacionados. Cada lugar de repouso, na experiência, é um vivenciar em que são absorvidas e incorporadas as consequências de atos anteriores, e, a menos que esses atos sejam de extremo capricho ou pura rotina, cada um traz em si um significado que foi extraído e conservado” (DEWEY, 1934 pg.139-140)
4.2 A poética Ao trazermos pro campo de discussão o conceito de estética, não de maneira aprofundada como os inúmeros filósofos e demais autores fizeram com muito mais maestria, mas no simples entendimento a respeito de nossa experiência 26
com os sentidos e a moral do Belo - este também sendo um assunto de segundo plano, podemos continuar refletindo o papel da arte agora sob a ótica da poética. A poética enquanto campo teórico vai visar o estudo de obras literárias, não necessariamente na linguagem da literatura, mas sim a literalidade das obras e, especificamente a narrativa, o que muito é pertinente ao nosso estudo. Ao se analisar as características gerais de uma narrativa é possível criarmos conceitos generalizados que nos auxiliam na compreensão da construção desta. Por exemplo, as características estéticas que compõem os movimentos da História da Arte, como os signos presentes no Cubismo, os temas nobres do Renascimento, a não-narrativa da Arte Conceitual, enfim, tudo que é perceptível aos nossos sentidos e nos possibilita a classificação generalizante para compreensão deste conjunto enquanto movimento, ou melhor, enquanto interpretações da realidade subvertidas e materializadas pela linguagem a partir da licença poética criativa de cada artista. Esse caráter de interpretação da realidade passa pela experiência estética que culmina numa compreensão subjetiva e singular. A partir disso é possível exercer a função poética, que geralmente é submetida à linguagem, para exercício de perversão e significação da realidade. Ou seja, a poética além de nos possibilitar um estudo para compreensão esquemática da realidade através da leitura das linguagens que traduzem a subjetividade de cada criador e criadora, também nos possibilita resignificar ao nosso modo o que vemos, sentimos e pensamos sobre o mundo que nos rodeia. Em outras palavras, a poética também é nossa marca particular de significação de mundo. É um estágio de toda nossa compreensão que já se fundamentou nos quesitos de identidade e cultura, de leitura de mundo e agora reafirma nosso protagonismo que se materializa tomando como base a subjetividade já trabalhada individual e singularmente, na relação intelectual e sensível com a manipulação da linguagem desejada para codificação desta visão, como maneira de externar aquilo que antes só pertencia a nós mesmos. Uma reflexão paralela complementar que pode ser feita é a poética da cultura indígena, o que se traduz no conceito de vontade de beleza. Essa é a concepção que os indígenas em sua maioridade étnica-cultural reproduzem em qualquer objeto ou materialidade, pois pra eles e elas o conceito de religião, arte e trabalho está intrinsecamente conectado a cultura e tudo faz parte de uma coisa só. Quando um indígena produz um jarro de cerâmica com adornamentos minuciosos, quando estes pintam seus corpos para as cerimônias e rituais, quando confeccionam as ferramentas de uso cotidiano, tudo está diretamente conectado ao conceito de beleza que lhe é transmitido desde os Grandes Mitos da tradição oral até a íntegra concepção de respeito e pertencimento da natureza que possuem. Quando o indígena produz um objeto ele se enxerga presente ali 27
naquela feitura. Daí o fundamento da vontade, pois ha nele a intenção vital de retratar a si próprio e sua própria cultura naquele material, naquela pintura, naquela ferramenta devido a força de seu nervo étnico-cultural presente em toda sua concepção de mundo. Então eis que concluímos que a poética é detentora destas duas características: a de estudo do que se dispõe em linguagens artísticas como significações da realidade e, a partir do estudo, a capacidade criadora e transgressora dos limites até então compreendidos, ou como coloca Pareyson (2001), está ligada ao fazer artístico e os agentes destas transformações a partir do repertório estético de um determinado momento histórico são chamados artistas. A poética nos ensina a valorizar as intervenções na realidade que as crianças produzem como legitimamente genuínas a partir de sua leitura de mundo, mas também nos serve como espaço de discussão e fomento de repertório para que elas e eles conheçam os limites estéticos, descubram as linguagens que sejam mais úteis para a tradução de seus subjetivos e valorize o potencial narrativo de cada produção e reflexão. É uma contribuição direta pro pensamento consciente e contextualizante, pela liberdade e autonomia crítica e criativa, que colocamos como sujeitos-modelo de que uma educação libertadora e cidadã quer formar. Sem autenticidade, sem educação, sem liberdade no seu significado mais amplo - na relação consigo mesmo, com as próprias ideias pré-concebidas, até mesmo com o próprio povo e com a própria história - não se pode imaginar um artista verdadeiro; sem este ar não é possível respirar. (TURGUENIEV, Ivan. Pais e Filhos.1860)
4.3 O processo A arte contribui para compreensão da realidade quando entendida como síntese das relações sociais e do trabalho criador humano. A linguagem é seu sistema de representação onde conseguimos agir, interferir e reorganizar essa realidade, fazendo com que o sujeito se sinta parte atuante da sociedade. O fazer artístico está impregnado de conhecimento, de percepção, de sentimentos e vivência cultural. Quando se cria permitimos reaver novas formas de interpretação e representação do mundo e estando em consonância com seu cotidiano, apresentar o repertório dos patrimônios históricos às nossas crianças as tornamos ainda mais conectadas a uma identidade cultural e a integração ao meio que vivem. 28
Claro que não se deve separar o fazer plástico, corpóreo, sonoro, poético da arte da reflexão, da critica e da compreensão histórica, pois somente através deste alinhamento de análise e criação é possível transmitirmos a eles e elas, nossos curumins, a plena noção de sua integridade, sua consciência de sujeito histórico e sua possibilidade de ter uma marca pessoal, sua intervenção genuína sobre a realidade que o integra. Agora, tanto o resultado quanto o impulso de criação é algo totalmente subjetivo a seu criador. Será ele ou ela responsável pela análise e reflexão a partir do contato com a linguagem na exteriorização estética de sua percepção, de suas angústias e suas leituras. Por essa razão deve ser estimulada a liberdade de experiência, porém com o norte sábio do educador-educando como aliado no estímulo e fomento de repertório de seus educandoeducadores e que assegure a existência da motivação ou desafio a instigar a produção artística. Existem dois autores que teorizam o processo artístico e muito se assemelham pelo método do pensamento, são a arte-educadora brasileira Ana Mae Barbosa e o filósofo italiano Luigi Pareyson. Ambos trazem pra reflexão do processo uma tríplice práticaanalítica que, no caso de Barbosa se configura em ‘fazer, ler e contextualizar ‘ e de Pareyson ‘fazer, exprimir e conhecer’. Há uma concordância entre eles no sentido de que o fazer é extremamente importante, pois traz a Arte sua essência que é seu conteúdo, sua forma e atividade formativa, e também concordam que a tríplice não pode acontecer de maneira isolada. Cada procedimento é intrínseco ao outro e para (BARBOSA, 2007, p.34), junto ao fazer deve acontecer também a análise de imagem e contextualização da mesma, seja através da própria produção ou do contato com outras Obras de Arte. Essa prática da Proposta Triangular - ou outros modelos de ensino que integrem a análise de imagem, é algo que se contrapõe ao modelo retrógrado que se instaurou nas aulas de artes que vão desde a confecção de objetos de decoração para festividades da escola até o que se chama de ‘livre-expressão’, mas que na verdade mascara com uma liberdade isenta de análise crítica e qualquer contextualização necessárias para a fundamentação da Arte como campo de conhecimento rico em suas particularidades e fértil para questionamentos sociais, filosóficos, psicológicos, cognitivos, etc. e que a inferioriza como mero lazer. A Arte Contemporânea como reflexo da sociedade pós-moderna nos faz enxergar a arte como uma extensão da vida e vice e versa, pois seu diálogo com as diferentes mídias, seu ilimitado leque de temas potenciais pra inspiração e o diálogo permanente com a realidade faz com que esteja em eterno estado de contestação, seja do mundo ou seja dela própria. A questão é que depois da profecia do crítico Arthur Danto (1924-2013) sobre o fim da necessidade metódica que os artistas tinham da investigação filosófica que constituía todo o ciclo de rupturas e novas proposituras de ‘ismos’ da História da Arte, a arte adquiriu 29
a licença poética para estimular sua curiosidade que se expandia e interdisciplinarizava com vários assuntos em potencial para pesquisas de resolutivas estéticas ou filosóficas. Isso faz com que o processo no fazer artístico se torne o objeto de reflexão primordial, o alicerce estrutural não só das obras mas do artista enquanto sujeito criador. E como qualquer premissa para uma pedagogia que promova um aprendizado integral, o processo é também no desenvolvimento pedagógico instrumento de avaliação muito mais coerente e justo do que em momentos ditos feitos para isto. Criar significa poder compreender e integrar o compreendido em novo nível de consciência. Significa poder condensar o novo entendimento em termos de linguagem [...]. Assim, a criação depende tanto das convicções internas da pessoa, de suas motivações, quanto de sua capacidade de usar a linguagem no nível mais expressivo que puder alcançar. Este fazer é acompanhado de um sentimento de responsabilidade, pois trata-se de um processo de conscientização. (OSTROWER, Fayga, 1990)
Quando falamos de processo após as reflexões sobre a poética e experiência estética estamos consolidando na ideia do fazer o processo criativo, ou simplesmente, a criatividade. E sobre essa questão ainda reina o mito de que não se pode estudar ou aprender a ser criativo. É como se nascêssemos com um dom divino e que seria coisa para raros. Ora, bem como comenta Hernández (2000, p.85): “se a criatividade é um dom individual, o ensino da arte não é necessário” justamente legitimando a arte como fundamental campo de conhecimento para o cumprimento deste papel para desenvoltura criativa. Como constata Kerhwald (2012), “acredita-se ser possível potencializar o pensar/ fazer criativo a partir de um enfoque nos principais indicadores deste construto: a fluência (possibilidade de o sujeito apresentar muitas idéias); a flexibilidade (possibilidade de o sujeito apresentar variabilidade ou mudança nas idéias) e a singularidade (possibilidade de o sujeito apresentar idéias singulares, inusitadas ou discrepantes).” Com estes três valores é possível criar um ambiente harmônico e propenso às investigações da criatividade de modo que se valorize as divergências sendo substrato essencial para desafio ou motivação de pesquisa. E como o educador-educando pode contribuir em defesa da validade da arte como campo próprio para este estudo e promover ações pedagógicas que estimulem a criatividade de seus educando-educadores? É necessário a abolição de 30
atividades que se apoiam em modelos repetidos e experiências sem significado, cabendo ao educador-educando desenvolver projetos pedagógicos que provoquem a pesquisa artística. Além da necessidade de conhecerem o processo criativo, torna-se essencial também que os educadores-educando vivenciem o fazer artístico de modo que sirva para instigá-los a construírem propostas instigadoras e de mediação apropriadas.
Na escola, a ênfase ainda recai sobre a resposta certa, a única solução para o problema, o que caracteriza a convergência. A ênfase na divergência é uma competência a ser construída com toda comunidade escolar. Mas, para que ocorra, é preciso permitirse a curiosidade, a indagação, o desassossego, o prazer da imaginação, a dúvida, a crítica propositiva, a investigação constante, sistemática e bem humorada, o estabelecimento de correlações e analogias, a tecitura de redes de conhecimento e, principalmente, buscar saber como nossos alunos e alunas tomam suas decisões e não apenas verificar o resultado destas. (KEHRWALD, Isabel Petry. Processo criativo: para quê? Para quem? Sala de Leitura. http://artenaescola.org.br/sala-de-leitura/artigos/ artigo.php?id=69372. Acessado em: maio de 2016)
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