Diáspora: Humanidade em Luta e Resistência

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Dissertação apresentada ao curso de Artes Visuais da Pontifícia Universidade Católica de Campinas/SP sob orientação do prof. dr. Paulo de Tarso Cheida Sans

Bruno Canova Campinas 2016



DEDICATÓRIA Dedico esta pesquisa à todas e todos aqueles e aquelas que acreditam num outro mundo possível. Num mundo pautado nos valores da fraternidade, igualdade e liberdade. Num mundo socialista moreno. Viva o socialismo e a arte revolucionária.

AGRADECIMENTOS À presença daquelas e daqueles em minha vida que me ensinaram sobre os valores dos quais vivo meu dia a dia, produzo minha arte e reflito sobre a sociedade. Ao meu orientador, Paulo Cheida Sans, que acreditou em minha temática e potencializou esta pesquisa com toda sua sabedoria. Aos meus amigos e camaradas, Gabriel Neftali, Grazi Rodrigues e Jeison Lopes com quem tive a honra de dividir um espaço de exposição e construção de ideias. E ao carinho, amizade e amor das minhas companheiras , Jéssica Enoki e Veronica Cristoni, que estiveram ao meu lado por todos estes 4 anos de vivências, aprendizados e aventuras. A todos e todas vocês, meu muito obrigado.



RESUMO Esta pesquisa tem o intuito de provocar uma reflexão sobre a necessidade da aproximação da arte - sendo esta reconhecida como um importante campo de estudo e também ferramenta de expressão da condição humana - com as manifestações populares, sociais, políticas e culturais de modo que contribua estética, filosófica, crítica e conscientemente potencializando suas causas e estando a serviço delas. Palavras-chave: arte militante; manifestação popular; política; Brasil; América Latina.



SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................p. 11 1. A DIÁSPORA EM QUESTÃO...................................................................................p. 12 2.1 O conceito...............................................................................................p. 12 2.2 Humanidade em luta e resistência.............................................................. p .16 2.3 A questão da terra....................................................................................p. 20 2.4 A questão do teto.....................................................................................p. 24 2.5 A questão do trabalho e educação...............................................................p. 28 2. REFLEXÕES SOBRE A ARTE E O SOCIAL.................................................................p. 35 2.1 A socialidade da arte.................................................................................p. 35 2.2 Arte militante......................................................................................... p. 40 3. DIÁLOGOS COM O MEIO ..................................................................................... p. 43 3.1 Referências estéticas ................................................................................p. 43 3.2 Produção e exposição................................................................................p. 46

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................p. 59 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................p. 60



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INTRODUÇÃO O principal objetivo desta pesquisa é provocar uma reflexão sobre a necessidade de uma produção artística de caráter ideológico e que traga como temáticas as causas populares, que busque estudar e revelar a condição humana como um ato político e que referencie simbologias características da identidade cultural do povo brasileiro e latino-americano. Ao atravessar narrativas que mesclam episódios da História da humanidade com enxertos da intimidade do artista, apresentarse-á aqui um repertório de resultados da produção referencial a temática em diversas linguagens. Contudo, o campo de reflexão e prática tomará o caminho pictórico em consonância com as referências escolhidas e elencará a pintura, o desenho e a xilogravura como suas representantes plásticas mais aptas à fruição dos questionamentos. A pesquisa sustenta seus fundamentos em pensadores das transformações do mundo como Darcy Ribeiro, Milton Santos, Karl Marx, Leon Trotsky; do mundo

das artes como Mário de Andrade, Pedro Lyra e Georgi Plekhanov e inspirada nas lutas dos Movimentos Sem Terra, Sem Teto, Zapatista, da resistência indígena brasileira e dos secundaristas e trabalhadores urbanos pela garantia de direitos civis. Todos estes respaldados por poemas de Pablo Neruda, Mário Lago e Carlos Drummond de Andrade tecidos pela fibra do folclore reunido no Nuevo Cancionero. Dividida em três capítulos, a pesquisa aborda no primeiro o conceito da diáspora que a batiza, fazendo um levantamento das causas e lutas históricas que legitimam a presença da arte como aliada. O segundo capítulo pretende discutir o papel do artista no engajamento político e trazer exemplos fundamentais que concretizem a importância da militância no campo da arte com as produções dos artistas Cândido Portinari e Diego Rivera. Por fim, apresenta-se uma condensação reflexiva em forma, textura, cor, volume e gesto afim de traduzir numa expressão pessoal a angustia primeira motivadora desta temática.


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1. DIÁSPORA EM QUESTÃO 1.1 O conceito O conjunto de sentidos que podem ser gerados a partir deste conceito levantou a necessidade em pontuar as diferenças do que seria a diáspora no contexto geográficohistórico da humanidade e o que poderia vir a ser aquele que tem intuito de se mostrar como ideia em construção da poética desta pesquisa. A diáspora enquanto fenômeno é contada através de diversos episódios na narrativa humana e geralmente sob uma premissa, como bem encontramos no Dicionário Online de Português, o Dicio: Diáspora s.f. Separação de um povo ou de muitas pessoas, por diversos lugares, geralmente causada por perseguição política, religiosa, ética ou por preconceito.

Como quando houve a dispersão do povo judaico no mundo antigo (sec. VI a.C), ou dos gregos pelas bacias dos mares Mediterrâneo e Negro por volta de 1.100 a.C. e até mesmo aquela em que colonizadores europeus trouxeram o povo preto do continente africano como escravos para trabalharem amargurados nos engenhos de açúcar da futura nação Brasil. Todos estes e muitos outros são grandes episódios que compõem a dinâmica da história humana. Em termos gerais, diáspora pode significar a dispersão de qualquer povo ou etnia pelo mundo. Mas o conceito que mais é interessante para o começo da reflexão deste trabalho seria o deslocamento, sendo que este em condição da diáspora se dá de maneira forçada ou incentivada de um povo de seu local de origem para outro de (não) acolhimento. É graças ao deslocamento das gentes que somos o que somos, todos nós, independente da etnia.

Foi em função do movimento dos primeiros hominídeos das árvores para os campos até o das massas operárias de suas casas periféricas aos parques industriais que escreveram e continuam a escrever os parágrafos dos livros, as métricas das poesias e os refrãos das canções. Essa ideia de movimento e mudança é inerente à evolução da humanidade. É dessa forma que os períodos nascem, amadurecem e morrem. Milton Santos Por uma outra globalização

Apesar de seu caráter aparentemente progressista, diáspora vem sempre acompanhada de violência, não necessariamente física, mas aquela que cicatriza nas pessoas uma mudança agressiva no momento em que uma força estrangeira as obriga a romper os laços com seu espaço de vivência para buscarem pelo desconhecido, por outro lugar que nem sempre é sequer


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semelhante geográfica e culturalmente àquele que um dia construiu sua identidade. Essa força não é algo abstrato ou alienado da realidade que tangemos. O que chamo de força nada mais é do que uma vontade impositiva de alguns que se mostra soberana devido a fatores bélicos, econômicos, carismáticos, etc. sobre outra vontade, geralmente menor e mais fraca. Portanto, é necessário reconhecer que a diáspora só ocorre quando um tanto de gente se coloca em conflito com outro e a parcela mais poderosa condena a um destino a menos poderosa. A relação de dominação resultante do atrito de forças nos coloca em cheque a definir outro tipo de conceito, pois, se estamos falando de distinções polares primeiro precisamos definir o que constitui esses polos. Melhor dizendo: quem são seus sujeitos e que nome daremos aos lados que se conflitam.

A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta. Karl Marx e Friedrich Engels Manifesto Comunista

Como uma vez disseram Marx e Engels que toda sociedade fora sempre dividida, independente de sua época, entre os que oprimem - burgueses - e os oprimidos proletariado, que essas classes estavam em constante conflito e, portanto, a luta de classes era o motor da história humana, a reflexão oriunda dessa dialética nos dá a dimensão básica para identificar quem seriam os polos no atrito de forças. Mas será que a distinção de classe seria o

suficiente para compreendermos a noção de diáspora? Certamente não é o bastante, mas um forte indicativo para o entendimento que todo conflito é uma mediação de poderes e a noção de poder é relativa ao contexto sociocultural das sociedades. É interessante observar que o Antigo Testamento da Bíblia refere-se aos judeus como ‘povo de Deus’. Ou seja, a partir de uma hegemonia de valores neste caso da fé ou da origem dessa gente, é possível classificar um agrupamento como povo. O povo, no getulismo, não é o universal, mas sim aquele comportado, trabalhador e bem nutrido, plenamente satisfeito e conformado à situação, que só existe em concepções idealizadas. Dessa forma. é compreensível a existência de uma magnificação do trabalhador, na temática artística, verdadeiro monumento imortalizado. A arquitetura, pintura, escultura, literatura e até a música carnavalesca são empregadas como parte de um projeto político em que os artistas se envolvem, contribuindo


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para a permanência e o continuísmo de uma ideologia conservadora. Maria Cecília França Lourenço Operários da Modernidade

Este conceito é digno de bastante contestação, como lembra Boaventura de Sousa Santos em diálogo numa entrevista com o teólogo Leonardo Boff: “Na sociologia tivemos sempre uma resistência ao conceito de povo porque é a ideia de que, afinal, quem é o povo? Não tendo uma dimensão transcendental, o povo são os opressores e os oprimidos. Por outra maneira, a ideia de povo esteve sempre muito vinculada as ideias do populismo, dos líderes carismáticos, da política partidária e democracia.” Leonardo Boff complementa: “(...) É um conceito altamente ideológico. Povo na verdade não existe, é uma criação a partir dos pobres e marginalizados que se organizam e criam sua rede de conexões a partir das quais elaboram um projeto e visão de mundo.”

O teólogo Santo Agostinho traz em sua obra A Cidade de Deus como definição de povo pessoas racionais unidas por um sonho comum, o que faz concordância com a colocação de Boff. Seria muito interessante refletirmos num momento, em breve, sobre a existência ou não deste sonho presente em nosso país para de fato poder considerar o que é o povo brasileiro a partir das colocações até então apresentadas. É bom reforçar que na busca pela compreensão da formação e destino do povo brasileiro, o intelectual Darcy Ribeiro dedicou boa parte de sua vida empenhado nesta pesquisa que resultou numa obra com esse mesmo nome: “O povo brasileiro”. Darcy nos deixou convictos de duas coisas: não de um sonho comum do povo brasileiro ou de um projeto original deste; mas de fato, primeiro, do seu sonho e projeto pro país e, segundo, do projeto que os colonizadores sempre tiveram para nós: que era nos

tornar (ou nos manter sendo), um quintal manso e produtivo que atendesse as demandas de consumo e de seus comércios. (...)Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos. Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo (Ribeiro 1970), num novo modelo de estruturação societária. Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras,fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. Povo novo, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização sócio-econômica,


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fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Darcy Ribeiro O Povo Brasileiro

O povo é uma entidade mítica, um sujeito político que não se sabe se tem coerência, posição ou prática, pois em todo seu conjunto é impossível que todos os indivíduos se comportem de maneira hegemônica. Portanto, é um sujeito que foge da análise e adquire esse caráter mítico de estrutura ausente que dá força, embora ele próprio não tenha força. Povo é povo quando resiste, constrói-se na luta quando há um afrontamento externo ao bem comum daquela localidade. Quando tem como inimigo comum um colonizador.

A areia traída - II As oligarquias (...) Traçaram uma linha negra: “Aqui somos nós, porfiristas do México, caballeros do Chile, pitucos do Jockey club de Buenos Aires, engomados flibusteiros do Uruguai, adamados equatorianos, clericais señoritos de todas as partes”. “Lá, vocês, rotos, mamelucos, pelados do México, gaúchos, amontoados em pocilgas, desamparados, esfarrapados, piolhentos, vagabundos, ralé, desbaratados, miseráveis, sujos, preguiçosos, povo. Pablo Neruda Canto Geral

É importante identificar quem não faz parte do povo, pois povo não é toda gente. Quem são então os excluídos do povo?


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1.2 Humanidade em luta e resistência É claro que o caráter de luta da humanidade condiz com a busca por continuar resistindo, mesmo enquanto espécie - isso referindose aos primórdios humanos neste planeta, tendo como sua inimiga a própria natureza. Mas a luta trazida em questão é mais complexa, resultado da modernização do agrupamento humano. A luta na verdade se dá justamente na cisão da própria humanidade, quando esta por razões incertas, se não pelo que muitos teimam em chamar de instinto, conflitam-se e segregam seus pares em espaços distintos. Um princípio fundamental da nossa luta é que a nossa luta é a luta do nosso povo, e o nosso povo é que tem que a fazer, e o seu resultado é para o nosso povo. Os camaradas já compreenderam bem o que é o povo. O problema que pomos agora é o seguinte: Mas o nosso povo está a lutar contra quem?

Claro que a luta dum povo é sua, de facto, se a razão dessa luta for baseada nas aspirações, nos sonhos, nos desejos de justiça, de progresso do próprio povo, e não nas aspirações, sonhos ou ambições de meia dúzia de pessoas, ou de um grupo de pessoas que tem alguma contradição com os próprios interesses do seu povo. Amílcar Cabral A luta do povo

Apesar do tom conclusivo que traz o discurso do líder revolucionário cabo-verdiano, nosso contexto ainda carece de explicações. Veja bem, todo o início deste trabalho tem como objetivo elucidar melhor a respeito do fundamento teórico que legitima os fatos a serem usados como inspiração poética ao processo plástico. Não se tratam de justificativas acadêmicas que se findam e bastam no seu próprio meio sendo utilizadas para endosso de um discurso qualquer. Tratase do cuidado pedagógico que toda militância carece ter,

independente de sua causa, para que consiga, com um pouco de sorte, adesão de mais pessoas em suas trincheiras ou, de mínimo, convença a opinião pública da legitimidade de ser levada a sério. Como bom aprendiz acadêmico que fui sei do poder que tem as palavras bem orquestradas no enredo universitário e científico, mas como privilegiado que fui com vivências junto aos sujeitos destas lutas das quais tento justificar, entre teóricos e artistas, devo admitir que não haverão palavras bastantes que resumam, objetivem ou se quer concluam tudo que representam os fatos em suas totalidades - até porque eu mesmo não saberia dizê-los. Não vou me comprometer a nada além de introduções quanto a teoria aqui recolhida e aglutinada. Convido vocês, portanto, a refletirem sobre pequenos trechos que serão usados de alicerce histórico para sustentarem a razão de existência de episódios dos quais quero problematizar


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poeticamente através da arte. Mas afinal, o que leva homens e mulheres a lutarem? Será que só em casos de resistência a uma inércia confortável ou pela construção de uma outra direção de movimento? O fugitivo - XII A todos vós, os silenciosos seres da noite que tomaram a minha mão nas trevas, a vós, lâmpadas de luz imortal, linhas de estrela, pão das vidas, irmãos secretos, a todos, a vós, digo: não há obrigado, nada poderá encher as taças da pureza, nada pode conter todo o sol nas bandeiras da primavera invencível como vossas caladas dignidades. Pablo Neruda Canto geral

Repare que o conceito de luta usado aqui não é, necessária e unicamente, um conflito físico ou bélico, mas um conflito de ideias. E a disputa pela hegemonia

destas ideias gera uma dinâmica variável de acordo com o poder das partes envolvidas. A questão do poder pode ser inversamente proporcional a questão quantitativa dessas partes, portanto, quanto mais concentrado estiver o poder de influência em poucos indivíduos, menos necessário será o apoio ou concordância do restante da maioria para sua concretude. É evidente que essa questão pode - e deve - ser desenrolada de maneira muito mais aprofundada para sua compreensão totalitária, mas nesta altura da pesquisa permaneceremos introdutórios de maneira que se possa verificar o norte para onde irá caminhar a intenção dos assuntos. Na questão da transcendência como característica de um povo que Boff levantou anteriormente pode haver uma pista que oriente a razão, ou emoção, motivadora desse restante de uma maioria a buscar seu lugar na disputa de ideias. Um ideal identitário, de emancipação, de

pertencimento ou uma vontade de transformação do ambiente em que vivem construção de um projeto coletivo, talvez sejam o que podemos chamar de ‘sonho comum’, ou como planejou um solitário estadista inglês, Thomas Morus (1478-1535), criando para tudo isso a denominação de ‘utopia’ - o não-lugar. Contando com um número tão grande de pessoas, a obra foi feita com incrível rapidez e seu sucesso encheu de espanto e terror os povos vizinhos que, a princípio, caçoavam de uma tentativa que lhes parecia impossível. Thomas Morus A Ilha de Utopia - Livro II

Se usarmos a América Latina como território base para nossa reflexão lembraremos que o primeiro sonho destas terras não foi o que chegou em naus europeias por ganância de especiarias ou aventura travestida de busca pelo paraíso


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católico. Já reinavam nestas terras prospecções não só oníricas, mas consolidadas em civilizações milenares - ditas ‘primitivas’ pelos colonizadores que fediam escorbuto - com uma cultura vasta e plurificada em etnias, línguas, dialetos, cores e formas. Antes dos renegados da corte portuguesa atracarem a destruição microbiana na orla dourada de Pindorama, os filhos e filhas de Pachamama dos andes, de Tupã dos guaranis, de Ometéotl dos astecas e seus irmãs e irmãos continentais se constituíam como povos com suas singularidades garantidas pela transcendência secularmente ensinados aos seus pares pela transmissão dos mitos originários, dos costumes cotidianos, dos alfabetos que nomeavam as coisas do mundo. Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializamse em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje

chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua trabalhando como um serviçal. Eduardo Galeano As veias abertas da América Latina

Fica claro que, muito antes da vinda dos europeus ao continente, já pelejavam os povos e tribos daqui por conquistas de território, vingança ancestral ou até por esporte, mas a presença do colonizador reconfigura as disputas que aconteciam num ambiente geográfico-cultural micro e agora estariam envolvidas numa macro percepção econômica que, sendo


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primeiramente denominadas estas terras ancestrais como o ‘paraíso perdido’ e futuramente reconhecidas, ainda pelo poder dominante, como ‘continente’, toda a recém invadida - e batizada - de América Latina careceria da decisão de seus povos pelas rédeas de seus destinos. O sonho pelo simples bem viver e a gratidão ao presente divino de serem concebidos em harmonia com uma natureza maravilhosa que os supria em todas as necessidades já não era mais possível de se cultivar. Mal sabiam os povos daqui que em breve decidiriam por seus destinos em caminhos cruelmente bifurcados. Claro que a decisão não era democrática, pois quem a impunha, apesar da origem latina, sempre fez pouco caso do conceito de poder descentralizado. Era uma questão de reconhecer que haviam dois projetos em curso para o continente: o primeiro era o de nos fazer escravos na própria terra e convertê-la em latifúndio sob regência de um

deus-homem que fazia milagres com pólvora e ouro. E o segundo, cultivado em reação ao primeiro, de unificarem-se os povos pela resistência de seus antigos e anti-desenvolvimentistas sonhos primitivos do culto ao essencial. Lutar para resistir, resistir para viver, viver para sobreviver. Ser pela identidade, identificarse na união, unir em nome de, poder ter um nome. Não é só dor que sente a carne e nem só de sangue vertem as veias abertas da nossa América Latina. Apesar das dramáticas condições subdesenvolvidas que submeteram nossa gente mestiça, sua empreitada de luta e resistência rende grandes episódios com tramas complexas repletas de personagens e reviravoltas dignas de qualquer roteiro histórico épico.

XXXIX Recabarren (1921) (...) Quanta coisa se passou desde então. Quanto sangue sobre sangue, quantas lutas sobre a terra. Horas de esplêndida conquista, triunfos conquistados gota a gota, ruas amargas, derrotadas, zonas escuras como túneis, traições que pareciam cortar a vida com seu fio, repressões armadas de ódio, coroadas militarmente. A terra parecia afundar. Mas a luta permanece. Pablo Neruda Canto Geral


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1.3 A questão da terra Talvez seja o motivo mais antigo e ainda presente pelo qual os povos se digladiam, ora à mando de um líder pela expansão de seu poder ou ampliação de um ideal coletivo, ora em defesa do local de suas origens. Ambos paralelos constituem a história do Brasil, tanto a que nos fora contada por quem o colonizou quanto pelos remanescentes dos que assim ainda não o chamavam. A concentração de terras no Brasil é a ferida aberta que carregamos desde quando o território foi dividido em capitanias hereditárias pelo governo português e doadas aos nobres da corte. Somente com o aumento da demanda europeia pelo derivado, o governo português viabilizou a cultura da cana-de-açúcar e reformulou a divisão das capitanias, concedendo-as em sesmarias para os nobres que detinham mão de obra escrava.

O legado da má distribuição dessas terras está presente no constante conflito agrário que envolvem os herdeiros destes nobres escravocratas: coronéis, grileiros, ricos imigrantes e grandes empresários e multinacionais da monocultura e pecuária avançam os tratores do latifúndio contra indígenas, posseiros, extrativistas e camponeses rumo ao abismo obscurecido por atitudes omissas do próprio Estado brasileiro. A sensibilidade por esta questão veio a mim ainda menino. Bisneto materno de imigrantes italianos vindos à São Paulo trabalhar no cultivo do café, perambulando pelo sítio de meu avô - este já abrasileirado, porém com resquícios de sua origem no sotaque, não conseguia encontrar a razão, por mais que os adultos me explicassem, na necessidade de tanta terra ter apenas um único dono.

IV Tiram-lhes a terra (...) Sentes entre as capas germinais pulsar o trigo em sua flecha dourada, porém entre o pão e o homem há uma máscara: o ladrão de terras. Pablo Neruda Canto Geral

Aquela inquietação menina foi regada mais tarde com a compreensão das contradições que constituíam nossa história e me fez encontrá-las novamente presentes nas causas dos movimentos populares - termo que aprendi usar depois de muito tempo, pois antes conhecia como ‘gente na rua’, tais como o MST, Movimento Sem-Terra, na eterna luta pela reforma agrária; na resistência indígena com a história da expedição dos irmãos Villas-Boas e, sobretudo, das etnias marginais ao Parque Nacional do Xingu que permanecem numa constante e letal briga pela demarcação de suas terras com pouco amparo governamental; e recentemente numa pesquisa sobre o levante zapatista de 1994 - cujo


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nome foi inspirado nos ideais do famoso líder revolucionário mexicano Emiliano Zapata - em que indígenas e camponeses se uniram no estado de Chiapas, no México, pegando em armas e organizando um exército (o Exército Zapatista de Libertação Nacional - EZLN), que viria a reivindicar do governo mexicanodemandas básicas e propor uma nova concepção societária.

(...) Formaram-se escolas de técnicos, fábricas de ferramentas e um banco de crédito rural; nacionalizaram-se os engenhos e as destilarias, que se converteram em serviços públicos. Um sistema de democracias locais colocava nas mãos do povo as fontes do poder e a sustentação econômica. Nasciam e difundiam-se escolas zapatistas, organizavam-se juntas populares para a defesa e a promoção dos princípios revolucionários, uma democracia autêntica tomava forma.

Eduardo Galeano As veias abertas da América Latina

1. Série: “Retirâncias” óleo s/ tela 50 x 40 cm - 2014

Essa foi minha primeira série de pinturas onde retrato também a primeira diáspora que me cativou a sensibilidade. A diáspora do retirante, do homem e da mulher, das dezenas de crianças e dos resilientes velhos que fogem do chão trincado de seca em busca da terra prometida nas cidades industrializadas.


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Morei toda minha curta vida no sudeste do país, mas como um dos filhos da geração 90 e pertencente a classe média sempre tive acesso a informação que vinha das mídias de massa. A imagem do nordestino pra mim foi durante muito tempo além de estereotipa também muito espetacularizada. Não que o risco das grandes secas e da miséria da caatinga deixaram de existir, mas esse caráter árido na estética e narrativa se somavam em meu imaginário junto ao conjunto folclórico do povo do sol, das gentes de barro de Mestre Vitalino, dos brincantes de cavalomarinho, das alfaias de maracatu, das sombrinhas dançantes do frevo, dos personagens fantásticos de Ariano Suassuna e da arte profana dos castelos de Brennand. Os elementos da narrativa nordestina continuaram muito presentes nos meus próximos trabalhos ainda como uma forma de buscar refletir essa condição humana precarizada. Tentava de todas as formas compreender as raízes dessa

problemática da miséria, da necessidade compulsória de um povo ter que se deslocar de sua origem em busca de meios tão básicos de sobrevivência. Explorei através da xilogravura, de desenhos que acompanhava quando expostos alguns curtos versos de reflexão ou com um humor sátiro e até mesmo ilustrando um velho, porém sempre atual personagem da história em quadrinho nacional na insistência de decifrar este meu interesse sobre os lados ocultos ou propositalmente não vistos pela sociedade sob a desculpa de experimentação estética – que de certo modo era também uma verdade.

2. Detalhe: xilogravura “Sem Título” 15 x 20 cm - 2015


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3. Nanquim s/ papelão “Seca”, “O Cagaceiro” e “O Prantadô” 10 x 18 cm - 2014

A busca pelo direito à terra para que se continue a preservá-la como herança histórica de um povo e/ou cultivá-la de modo que gere autossuficiência para as famílias que nela trabalham é a causa que mais comove e impulsiona meu dialogo com o mundo mediado pela arte. Talvez por ser dentre os sonhos comuns o de maior profundidade existencial, pois quando falamos da terra tratamos

também da raiz, do fruto e das sementes que germinarão novas espécies, perpetuarão culturas, florescerão destinos e cultivarão histórias. Cabe esta temática como endosso da discussão sobre como a arte e o artista podem servir de adubo ao arado desta causa.

4. Detalhe | Acrílico s/ papelão “Sem-Terra” 70 x 100 cm - 2015


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1.4 A questão do teto Junto à contradição da concentração da terra é quase inerente a problemática de uma casa digna de se morar no Brasil. Sobretudo no período entre as décadas de 50 e 90 com o crescimento das metrópoles e o êxodo da população do campo, os trabalhadores rurais vinham para a cidade com suas famílias em busca do sonho de uma vida melhor e, ao se depararem com a triste realidade contrastante do caos urbano, a grande maioria tomava o mesmo destino que a população pobre residente da polis: permaneciam às margens da sociedade. Esse fenômeno na verdade já era decorrente desde as primeiras décadas do século 20 que sucederam a industrialização do país. Foi inclusive neste período os artistas que se encontravam na ‘Paulicéia desvairada’ amadurecendo o humanismo de suas reflexões se

sensibilizaram com as massas de trabalhadores e a rotina fabril pela qual marchavam dia após dia. A ironia de que a burguesia das capitais em desenvolvimento e o governo chamavam de ‘moderno’ era um substrato essencial na busca da poesia daquele cotidiano e projeções do que era e o que poderia vir a ser o Brasil no pensamento de Mario e Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, entre vários outros futuramente chamados de ‘Modernistas’.

Poesia da vida em marcha A poesia da vida em marcha tem ritmo diferente. Ritmo irregular e desigual de milhões de martelos batidos descompassadamente por milhões de mãos; de milhões de enxadas movidas desordenadamente por milhões de braços; de milhões de pés andando desesperadamente não se sabe para onde. A poesia da vida em marcha tem música diferente. Música sem som das sirenes das oficinas, dos apitos das locomotivas, dos roncos dos motores, dos gritos das revoltas interiores dos homens que sofrem nas oficinas, queimam os pulmões nas caldeiras das locomotivas e morrem de fome nas fábricas de motores. Mário Lago O povo escreve sua história nas paredes


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Assim como os modernistas, minha atenção a esta causa parte da indignação frente a episódios que compõem a narrativa da minha época. O mais notável deles, sem dúvida, foi o privilégio de conhecer uma das maiores ocupações urbanas da América Latina que fica logo aqui, em Sumaré, cidade praticamente vizinha de Americana, na qual sou nascido. Uma área de quase 1.000.000 m² que pertencia a uma fábrica falida ha mais de 10 anos e que ha 4 aproximadamente 10 mil pessoas vindas de todos os cantos do Brasil resignificam o enorme

espaço endividado em moradia para mais de duas mil famílias desabrigadas. Essa é a Vila Soma, ou como carinhosamente a chamam, o ‘formigueiro’. Conforme minha formação foi sendo enriquecida em contato com todas essas pessoas que circulavam meus mundos artístico e político-social, a angústia de compreensão cedeu espaço a uma ânsia reativa a tudo que, depois do colírio de Marx ter feito meus olhos enxergarem a realidade um pouco mais ardente e lacrimejante, percebia estar errado e carecia de uma atenção coletiva, pensava eu.

5. e 6. Ocupação Vila Soma em Sumaré/SP - 2015

Queria que todos e todas ao meu redor fossem assombrados pelos mesmos fantasmas da injustiça, desigualdade, violência, fome e toda desgraça dos deserdados da terra. Não por querer mal ao próximo, mas talvez na tentativa de despertar um mínimo de empatia pelas causas que estavam tão próximas de todos nós; não era mais preciso viajar e retratar o nordeste para enxergar as mazelas humanas.


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7. “Ocupação” instalação bambu, lona plástica preta 2016

Estando ali por várias vezes pude observar a razão que fazia jus ao apelido do lugar nos tons das peles coloridas de terra, no trabalho duro pelo sustento diário e na incrível capacidade de organização e mobilização dos moradores da Soma. O MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, é a instituição que ajuda a articular interna e externamente assim como em tantas outras centenas de ocupações urbanas de semelhante situação espalhadas pelo Brasil a fora.

II As oligarquias (...) Sentiram-se tranquilos e seguros. O povo continuou nas ruas e campinas a viver amontoado, sem janelas, sem chão, sem camisa, sem escola, sem pão. Anda pela nossa América um fantasma nutrido de detritos, analfabeto, errante, igual em nossas latitudes, saindo dos cárceres lamacentos, arrabaldeiro e fugitivo, marcado pelo temível compatriota cheio de roupas, ordens e gravataborboleta.” Pablo Neruda Canto Geral

Uma das primeiras tentativas de externar com arte num compromisso de rompimento com o bidimensional afim de, literalmente, invadir os espaços físicos das pessoas foi a instalação ‘Ocupação’ realizada na área externa da praça de alimentação da PUCC. Era uma clara referência pictórica aos acampamentos do Movimento Sem-Terra, ou qualquer tipo de moradia precária que podemos encontrar também sob viadutos ou coberturas de lojas nas cidades. Além de suscitar a importância e força daquele movimento, quis contestar a questão da propriedade privada, no caso a propriedade da universidade.


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A luta do povo sem teto não só é antiga como também não tem perspectivas próximas de acabar, pois seus inimigos apesar de não serem páreos quantitativamente - já que o déficit habitacional brasileiro chega a quase 18 milhões de famílias - certamente detém de grande poder, sobretudo no meio urbano. São os agentes do mercado imobiliário. Empreiteiras, construtoras, imobiliárias, bancos e todos os setores que de alguma maneira contribuem e/ou se beneficiam da supervalorização de terrenos com a especulação imobiliária. Estes tem como

divergência do ideal do povo sem teto, que vê a cidade como um espaço seu por direito, a ótica de encará-la como produto de um mercado de alta renda. Sei da incapacidade de nossos cavaletes servirem como alicerce para telhados e das nossas telas não aquecerem contra o frio, mas enquanto o carvão traçar as linhas de ação e nossos pincéis puderem hastear cores junto a sua marcha, uma arte pelo direito dessa gente ao teto digno não será apenas esboço, mas uma fiel e incansável companheira no retrato de sua história.

8. Moradores da Vila Soma em caminhada simbólica Foto: RAC de Campinas


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1.5 A questão do trabalho e educação

Com este terceiro item aglutinando os dois últimos temas é possível finalizar as questões básicas para uma subexistência mínima e digna de qualquer cidadão. Techo, tierra, trabajo, educación entre outras demandas urgentes que o povo latino-americano ha mais de 500 anos carece e luta por conseguir, como no episódio do levante na virada de 1994 do exército popular, composto em sua maioria por indígenas, que fizeram-se ecoar exigentes das montanhas sudestes do México para todo o mundo em forma de manifesto. Apesar deste estudo ter dividido os temas em quatro, é preciso compreender o elo umbilical que os conecta à vida de todos nós. É provável que os que já os tenham garantidos pouco se submetam a isso, a não ser

a nível de gratidão divina por não serem eles os desprovidos, mas os que foram lhes negada a terra sequer podem pensar num teto, e com frio ou sob o calor do sol não encontram prazeres em aprender. Só lhes resta o que sempre coube a seus destinos: trabalhar.

9. Fábrica Ocupada Flaskô Sumaré 2013

“Arbeit macht frei”, diziam as paredes dos campos de concentração nazistas: “o trabalho liberta”. Muros que queriam desafiar a própria


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História quando esta nos dizia o contrário, pois povos que não tinham o direito de escolher como trabalhariam, se era pela construção de sua própria dignidade e destino ou pela continuidade do poder de poucos, jamais se consideraram livres. As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos dos antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro a mesma atitude de desprezo vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o mulato, eram mera força energética, como um saco de carvão, que desgastado era substituído facilmente por outro que se comprava. Para seus descendentes, o negro livre, o mulato e o branco pobre são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características da raça e não como resultado da escravidão e da opressão. Darcy Ribeiro O Povo Brasileiro

Passei a integrar o Partido Socialismo e Liberdade em Americana, minha cidade, e a participar de diversas reuniões com outros coletivos e movimentos sociais. Esse mergulho no cenário político me proporcionou contato com diversos tipos de pessoas, desde agrupamentos marginalizados devido a sua condição socioeconômica, a militantes aguerridos e figuras públicas importantes para a dinâmica das localidades por onde tive o privilégio de estar. Não foi apenas o povo de luta da Vila Soma que fez com que Sumaré ficasse conhecida no mapa pela sua movimentação popular. Em 2003, operários de uma fábrica de bombonas plásticas localizada no município ao saberem da notícia que devido as dívidas de seus patrões acumularem mais de R$120.000.000 e o empreendimento beirava a falência, decidiram ocupar

a gestão. Na época, várias outros episódios semelhantes aconteceram no país, fortalecidos pelo Movimento de Fábricas Ocupadas. Contudo, a Flaskô foi a última do gênero a resistir. E assim continua apesar dos altos e baixos ha 13 anos sob controle dos trabalhadores e trabalhadoras.


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Ao longo da minha produção pude perceber que os personagens e a narrativa do nordeste foram dando lugar a retratos de figuras de operários urbanos e trabalhadores do campo. Uma clara reação da minha mente

querer externar nas linguagens o que essa refletia em incógnitas depois do contato com os teóricos marxistas e os movimentos populares.

10. ‘Classe Obrera I’ xilogravura tinta gráfica 25x20 cm - 2015 11. ‘Figura Humana’ gravura em acrílico tinta à óleo - 2015


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12. ‘Figura Humana’ gravura em acrílico tinta à óleo - 2015 13. ‘Classe Obrera II’ xilogravura tinta gráfica 25x20 cm - 2015


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A palavra de ordem era a atitude em comum de todos os povos que lutavam por estas causas: ‘ocupar’. Verbo que se fez presente nas ações do povo contra o latifúndio improdutivo, contra a especulação imobiliária, pela garantia da continuidade de seus empregos e que agora se repetia como reação a uma medida que comoveu toda a sociedade, em especial a paulistana, e que contou com o protagonismo histórico da juventude secundarista. No último bimestre de 2015, o governo do estado de São Paulo sob gestão de Geraldo Alckmin (PSDB) e do exsecretário de educação Herman Voorwald quiseram implantar um projeto de reorganização escolar que previa para 2016 o fechamento de 92 escolas e o remanejamento de 311 mil estudantes em todo o estado. Diante de mais uma atitude de sucateamento da educação pública mascarada por um discurso de contenção de custos

pela manutenção de unidades em desuso, os estudantes da Escola Estadual Diadema deram o primeiro passo na decisão de ocuparem a escola em repúdio a medida. Com isso, a E.E. Fernão Dias - que futuramente se tornaria o símbolo principal da resistência secundarista paulistana, foi mais um dos

14. estudantes ocupam a E.E. Fernão Dias na capital paulista. EBC Agência Brasil

quase outros 300 exemplos que se seguiram por todo estado numa reação em cadeia.


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15. “Ocupe o Brasil” arte digital Cartaz A3 - 2016

16. “Ditadura Nunca Mais” 2016

Participando do movimento estudantil universitário desde 2014 na composição do Centro Acadêmico de Artes Visuais Hélio Oiticica na PUC-Campinas, a empatia pela causa dos

secundaristas foi imediata. Estive presente em algumas escolas ocupadas de Americana e Campinas acompanhando a rotina e ajudando com mantimentos. Essa proximidade

Happening

com o protagonismo da juventude pela causa da educação pública me comoveu profundamente, de maneira que minha reflexão artística não me deixaria esquecer de lembrá-los nessa lista de povos em luta e resistência por um sonho comum - mesmo que este fosse em resposta


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Depois das experimentações com linguagens da arte contemporânea – como nesse happening que organizei com a ajuda de estudantes da Faculdade de Artes Visuais em memória aos mortos e desaparecidos do período mais sombrio de nossa história – comecei a aceitar que minha alma, minha vontade de arte já não conseguiria mais se desvincular da necessidade do retrato social. Da sociabilidade da arte. De uma arte que não era só comunicação e nem só expressão, mas sim uma estratégia que conciliaria ambas utilizando da estética como código universal para atingir todos os corações humanos e fazê-los refletirem não sobre o que um artista em específico quer mostrar do mundo, mas o que os muitos homens e mulheres que compões esse mesmo mundo gritam abafados todos os dias em apelo por darmos ouvido às suas causas.

A luta de classes, evidenciada na explosão crescente dos conflitos, não só pela posse da terra, mas pelo direito à moradia, ao salário justo, a saúde e educação, entre tantas lutas que se travam em território nacional, desmistificam a falácia do Estado de bem comum, que teoricamente estaria a serviço de toda a sociedade. Infelizmente, apenas alguns segmentos conseguem enxergar além deste vão e são justamente estes segmentos que questionam o “status quo”. São estes segmentos representados pelos movimentos sociais que introduziram no país a noção de cidadania, ainda tão frágil, quando se trata de ver os direitos de todos não respeitados. Eliane Tomiasi A questão da propriedade da terra no Brasil


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2. REFLEXÕES SOBRE A ARTE E O SOCIAL 2.1 A socialidade da arte Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios, mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos da vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões. Mário de Andrade O movimento modernista

No que se refere à relação da arte com a sociedade podemos expor diferentes visões de pensadores do assunto que permeiam desde a pregação absoluta de que esta nada deve ter a ver com princípios morais, outros que irão dizer sobre sua necessidade de estar em serviço do social e também os que acreditam no seu espírito anárquico. De qualquer maneira, é interessante pensar que o termo ‘social’ diz respeito já a primeira relação humana que se deu a partir do

surgimento de outro da mesma espécie na terra, ou seja, um conceito que condiz com praticamente tudo que fizermos, sobretudo, num mundo onde a globalização ressignificou o conceito de ‘coletivo’. O escritor Pedro Lyra em sua obra “Utiludismo: a sociabilidade da arte” vai articular muito bem estes pensadores divergentes trazendo já no primeiro capítulo a presença do fundamental teórico marxista russo que trata do tema em suas obras, Gueorgui Plekhanov (18561918), ao lembrar-nos que este considerava um grande equívoco colocarmos qualquer tipo de dever sobre a arte. Plekhanov acreditava na livre escolha do artista, contudo, dizia que esta liberdade era resultante de dois condicionamentos: a) suas disposições pessoais e, b) sua situação comunitária, ou seja, sua relação social. O teórico também dizia que o interesse do artista pelo social

começa a aparecer a partir do momento que este se encontra em equilíbrio com o meio. Portanto, poderíamos concluir que esta reflexão bastaria para mostrar o estreito vínculo que une arte e sociedade numa cadeia de interações recíprocas (LYRA,1982). “O artista acha que, por si só, não ensina. Ele acha que não consegue estabelecer essa relação. Mas, necessariamente, por ser artista, ele tem o que ensinar.” Ana Mae Barbosa em entrevista para o Portal Aprendiz

Como ressalta a pioneira em arte-educação no Brasil, Ana Mae Barbosa, sobre a capacidade inerente do artista em transmitir conhecimento através e/ou sobre sua arte é mais um fundamento que comprova não só a relação anteriormente problematizada como também a competência do artista, ao trabalhar com o


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campo estético, de provocar nossas ideias e emoções. Ao compreendermos a estética como fornecedora do substrato de emoção/ideia das quais o artista se utiliza para formulação da obra, a natureza de seu conteúdo afetivo/ideológico se funde organicamente num duplo sentido da arte, ou seja, além da capacidade de recriar a vida e interpretar o mundo, também despertar prazer e/ ou transmitir uma informação. Sendo a arte um campo autônomo e de grande abrangência de exploração científica, ela está a disposição e interesse de todas as demais ciências. Enquanto parece se assemelhar à sociologia ao exprimirem ambas sobre a realidade, não se pode limitar a arte somente à realidade social, quando na verdade esta trabalha com toda a realidade cósmica. Porém, quando a arte focaliza uma realidade (uma: a ‘social’, a mais interessadora

que ela pode focalizar), ela a trabalha não em termos de d e f i n i r - p a ra - c o m p r e e n d e r, como a ciência que dela se ocupa, mas em termos de recriar-para-sensibilizar/ informar. (LYRA,1982). Ao contrário das limitações materiais que o cientista possui ante seu objeto de estudo, o artista, pelo contrário, disposto de sua liberdade criativa não tem a menor obrigação de delinear esta ou aquela realidade. Com esse descompromisso com o real, o artista passa a usufruir do prolongamento da função cognitiva da arte e a recriá-lo constantemente, fazendo da arte não apenas uma suprarealidade, mas uma contrarealidade. A História nos revela diversos episódios em que estiveram alinhadas a arte e seu poder estético com ideologias que tinham intuito de interpretar e transformar as realidades

contemporâneas de seus proponentes. A imposição do realismo socialista como vertente estética propagandista do regime soviético doutrinado pelo braço direito de Josef Stalin (1879-1953), Andrej Jdanov (1894-1948), foi uma das experiências mais marcantes dessa relação. Teatro, literatura e artes visuais deveriam ter um compromisso primeiro com a educação e formação das massas para o socialismo em construção no país. Uma arte “proletária e progressista”, empenhada politicamente, envolvida com os temas nacionais e com as questões do povo russo, esta é a aspiração da tendência artística. Enciclopédia Itaú Cultural Realismo socialista. Acesso em: 03/11/206


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17. Cartaz de propaganda do regime soviético ao estilo jdanovista

Nas primeiras décadas do século XX aqui no Brasil tivemos artistas sensíveis à

grande frenesi industrial que invadia os centros urbanos e a rápida recaracterização das populações. Além de proporem uma ruptura com os padrões acadêmicos que persistiam no cenário artístico, os modernistas brasileiros trouxeram à tona um questionamento identitário de uma gente mestiça entre pés descalços e automóveis importados junto a nova tendência estética que viera a causar grande furor em críticos, artistas e o público em geral da bolha metropolitana paulista. Tempos em que a antropofagia devorava brasilidades, eruditas ou populares, e engasgava com o getulismo que, por coincidência ou não necessariamente, coincidiu o projeto político populista com essa busca da identidade da cultura brasileira em geral. De fato havia uma tendência - internacionalista se analisarmos a polaridade de ideologias tendo como foco o socialismo urgindo na URSS, e nacionalista quando o cenário

político-econômico de São Paulo com a baixa do preço do café no mercado importador colabora para a industrialização e o desponte da figura do operário - de se pensar uma nova cultura, esta tendo como objetivo tornar-se urbana por meio da convivência cotidiana advinda do que seria este ‘novo homem’ do moderno. Os modernistas sabiam que a arte poderia cumprir seu papel de desvelar as contradições históricas de uma época representando dialeticamente o sujeito em suas relações sociais e culturais. Esse era um dos conceitos que conectavam diferentes artistas do mesmo movimento na América Latina, como exemplo do muralismo no Brasil com seu maior expoente Cândido Portinari (1903-1962) ao correligionário mexicano Diego Rivera (1886-1957). Num momento de agitação prestes a culminar na Revolução de 1910, o México cobrava uma atitude de maior


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engajamento de seus artistas e estes, atendendo as demandas populares, cumpriram a expectativa de seus concidadãos ao estamparem nas vias públicas murais com temáticas de compromisso político utilizando um apelo visual que suscitasse esperança pela construção de novos rumos pro país. Apesar de consonantes, o muralismo brasileiro pouco teve a ver com o de seu irmão latino americano, como explica Pedrosa (1981), no Brasil “não chegou de fato a se constituir num movimento ativistalibertário e, tampouco,surgiu da necessidade de seus artistas abandonarem o ateliê e/ou, saírem às ruas como aconteceu no México, a partir de 1910”. (PEDROSA, 1981, p. 15). É preciso colocar um muro nessa discussão entre arte e sua função social, não no sentido figurativo de interpelar a reflexão, mas literal, pois a humanidade já faz seu uso dessa forma desde quando se

acreditava que ao desenhar os grandes animais selvagens nas paredes de suas cavernas era possível encantá-los para facilitar sua caça. (...) Ponham-se os muros abaixo! Que importa? Que importa, irmão? Não há cidade sem casas e nem há casas sem muros. Os muros são como o povo. Se renovam, se renovam. E onde surgir um muro mãos do povo surgirão pra escrever a sua história, história de suas fomes, história de suas sedes. Mario Lago O povo escreve sua história nas paredes

Talvez seja mesmo o espaço mais democrático e potente na busca pela coerência pedagógica quando há intenção do artista em comunicar ideais a toda gente, até porque a própria História nos mostra que durante muito tempo se usou este suporte para tal fim.

Contudo, interessa aqui nesta pesquisa a arte que possui intenção no auxílio, participação ou transformação direta da realidade da qual provém. Por essa razão que Lyra (1982), defende que “a natureza social da arte não se concentra no assunto das obras, mas na sua potencialidade comunicativa; e a sua função social se exerce não através de uma agitação, mas da difusão de um conhecimento e/ou do despertar de um prazer” (LYRA, p.31). Conhecimento seria este tido como muitas vezes subversivo, já que se apresenta como crítica ou enfrentamento do status quo que impera numa determinada instituição ou sociedade. Quando alinhada a uma ideologia, a arte tornase uma potente ferramenta de transformação social. A exemplo do artista espanhol Cerezo Barredo, conhecido como ‘pintor da libertação’, pois colocou sua arte à serviço do evangelho e,


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mais radicalmente, à serviço da Teologia da Libertação. É possível notar a carga ideológica que caracteriza sua militância religiosa e artística bastante presente nos murais das igrejas da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, onde se encontra como protetor e um dos principais difusores da doutrina, o bispo emérito D. Pedro Casaldáliga. Murais que nos mostram um Cristo negro, com cara de povo e junto dele lutando contra a opressão do capital exploratório, a devastação do latifúndio e a ganância humana enquanto prega os verdadeiros valores, segundo a doutrina do artista e do bispo, que o messias lavrou na terra de seus irmãos. A concepção de que o humano enquanto ser que se constrói é produto de suas representações e de suas ideias que se realizam quando consciente de sua condição sujeito-histórico apresentada

por Marx é orgânica a outro de seu pensamento, desta vez se referindo a relação da arte com trabalho. Para o filósofo alemão, eles se assemelham na capacidade criadora que é essência do homem, contudo, o trabalho gera objetos que se referem a uma utilidade advinda de uma necessidade, enquanto a arte desfruta do belo e da livre expressão humana. Preceitos básicos que futuramente seriam usados como substrato por György Lukács (1885-1971), em reflexão às características do caráter denunciativo do Realismo para fundição do conceito de ‘estética marxista’. O interessante é que ao colocar a arte junto a condição do trabalho, o pensamento em Marx direciona uma preocupação estética na arte partindo da dialética do materialismo histórico-cultural que usará do reconhecimento dos sujeitos pertencentes ao contexto das

relações sociais, com suas opressões e desigualdades, como principais objetos de estudo. Reflexões que partiriam deste âmbito iriam inspirar a produção de diversos artistas ao redor do mundo e, sobretudo, nos países subdesenvolvidos que tinham contato direto com as contradições no cotidiano. 18. Detalhe do mural de Cerezo Barredo em São Felix do Araguaia


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2.2 Arte militante “Quando se termina de lutar em uma barricada, temos que seguir lutando porque uma democracia não é total. Os intelectuais, os artistas, toda essa gente tem que seguir permanentemente como sentinelas do que significa uma democracia.” Mercedes Sosa em entrevista ao programa Ensaio da TV Cultura

Assim disse a ‘voz da América Latina’, a intérprete das gentes sofridas deste (sub)continente, Mercedes Sosa (1935-2009), em palavras que ecoavam pelos corações de seus compatriotas latinos. Sosa, nascida na cidade e data onde fora proclamada a independência da Argentina em 1816, era uma das signatárias do Manifiesto del Nuevo Cancionero junto a Victor Jara (1932-1973) e Violeta Parra (1917-1967). Os três são os rostos, vozes e letras que simbolizaram em vida e ainda em memória

19. Victor Jara Poeta, músico e ativista chileno.

do espírito deste movimento com ênfase no componente social a partir de composições enraizadas na cultura folclórica e marcado pela ideologia de rechaço ao imperialismo norteamericano, ao consumismo e às desigualdades sociais. O século XX foi marcado por artistas que se engajaram na militância política, fosse direta e até institucional ou como simpatizantes e apoiadores de movimentos sociais. Foi um século de tensões, e como acreditava o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1975), seriam estas as essenciais para que artistas e intelectuais se realizassem como criadores de cultura. Essa tensão desloca uma grande massa de escritores para combates análogos aos que são travados pelos de baixo, aqui ao se referir do papel dos escritores diante as contradições de seu tempo chamando-os a serem o fermento explosivo das comoções que sacodem


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a sociedade civil e que estão conduzindo à sua implosão inexorável.(FERNANDES,1985). Num momento de drástica polarização do mundo, o crescimento do fascismo de um lado e de outro o enfrentamento dos comunistas, fazer a escolha era quase uma necessidade nessa guerra que se travava também no campo acadêmico. Não que todo artista tenha de fato aderido às ideologias por estudo das teorias que as fundamentavam, mas muitos empunharam os mastros das bandeiras por convicções nos valores que estas representavam. É o caso que se nota em uma entrevista que Portinari concedeu ao poeta e diplomata brasileiro Vinícius de Moraes (1913-1980) em 1953. Quando questionado sobre qual razão o teria levado à política, o pintor responde: Não pretendo entender de política. Minhas convicções, que são fundas, cheguei a elas por força da minha infância pobre, de minha

vida de trabalho e luta, e porque sou um artista. Tenho pena dos que sofrem, e gostaria de ajudar a remediar a injustiça social existente. Qualquer artista consciente sente o mesmo… (Portinari, em depoimento feito ao Poeta Vinícius de Moraes, publicado postumamente, em março de 1962). A luta pela liberdade de pesquisa e expressão para o artista e o intelectual não se separa mais da luta pela democratização da sociedade como um todo.

Mário de Andrade

20. Menina, de Portinari - 1938. Coleção particular, Rio de Janeiro - RJ.

E assim seguiram muitos, por indignação do presente e convicção num futuro diferente, empreitarem suas artes em diálogo e aliança com ‘os combates travados pelos de baixo’. A repressão não demorou a fazer efeito também sobre a voz e pincéis dos artistas e a grande maioria sentiria, senão pela primeira


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vez, o peso da truculência dos poderes hegemônicos que, quando ameaçados ou simplesmente pra se manter a ordem, despejavam sem medida nos periféricos da cidade e do mundo para silenciarem seus gritos por justiça social. Como se tratavam de governos ditatoriais as medidas foram diversas e correspondentes ao nível de notoriedade pública que detinham os lutadores. Contudo, apesar de um lado ser muito mais comum casos de exílio como o que levou Portinari a ‘voluntariamente’ visitar o Uruguai por um tempo, Mercedes Sosa à Inglaterra, Violeta Parra à França, a perseguição e difamação internacional de Pablo Neruda, entre outros, alguns chegariam ao extremo como no Chile em que os militares sequestraram, torturaram e fuzilaram Victor Jara, algo muito parecido na ditadura brasileira com o jovem artista Antonio Benetazzo

(1941-1972) e posteriormente o misterioso destino que levou o cantor e compositor de versos que inflamavam multidões, Geraldo Vandré (1935-), a retornar ao Brasil com uma amnésia e evasão dos fatos. Que força é essa que levou artistas a se submeterem ao risco desta diáspora ? O que comumente se esquece, e que o conceito de arte pública nos ajuda a relembrar, é que o artista é acima de qualquer coisa um cidadão fruto do seu tempo histórico. Como ele trabalha na condição social da qual é inserido é - e deve ser sempre - uma escolha autônoma. Estes já citados, assim como muitos outros, assumiram que a partir das relações que detinham com o meio que vivem e convencidos fortemente por uma ideologia - já posso dizer socialista, ou se quando não declarada algo que compactuasse com valores de liberdade, igualdade

e fraternidade - assumiriam a capacidade que a arte possui de criar novos mundos. Não de maneira alienada e prosaica, mas concreta e consonante com as lutas travadas por reviravoltas daquela decadência, podendo assim dizer, artistas que se lançaram na luta por revolução. Esta é a figura do artista militante: não só daquele e daquela que fazem arte pela arte, mas que discursam nela contestações de seus tempos. A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade (...) Leon Trotsky Por uma Arte Revolucionária e Independente


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3. DIÁLOGOS COM O MEIO 3.1 Referências estéticas

Quando se é necessário fazer um levantamento sobre quais são as referências que estimulam a produção, é quase matemático ter que se deparar com uma gama de artistas de linguagens diversificadas. Afinal, como ser humano, o artista é produto da História e dos estímulos múltiplos que sofre ao longo do aprendizado na vida. Mas como disse uma vez Leon Tolstoi (1828-1910), ‘se queres ser universal começa por pintar a sua aldeia’. Sonoros, literários ou pictóricos, os elementos que referenciam a criação destes artistas que se sensibilizaram e se articularam com os movimentos de seus tempos partiram da mesma fonte que beberam os realistas do século XIX: a observação e análise da sociedade. Porém, ao contrário

21. Mural ‘O Levante’ de Diego Rivera fresco 188 x 239 cm - 1936

da superação (ou negação), do sentimento patriótico e ideário

do romantismo, o modernismo, o muralismo mexicano e até o nuevo cancionero se apropriavam da crítica realista e elementos dos folclores de seus países para fundirem


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diretrizes estéticas inovadoras, misturando o retrato da miséria e a inspiração utópica na figuração das gentes do novo século. O artista militante parece se camuflar nas multidões que pinta ou declama, fazendo-se de corpo invisível, deixando claro somente o apelo que empresta na sua arte como porta-voz de uma mensagem coletiva. É como quando ouvimos nos versos de Canción con Todos escritos por Armando Tejada Gómez, na melodia de César Isella e interpretado por Mercedes Sosa, sua saudação ao título que a presentearam dando voz a cada pedaço de terra que ecoa em coro todas las voces, todas, todas las manos todas, toda la sangre puede ser cancion en el viento. Ou quando estamos diante do afresco que retrata O Levante (1931), do povo mexicano ante a dominação espanhola e nos empolgamos com a coragem da mulher de vermelho. Se

quer lembramos de quem foi a mão que rasgou pigmentos em formas expressivas naquele gesso e duvidaria muito encontrar qualquer resquício de seu rosto no meio da multidão enfurecida. Estou com os que acham que não há arte neutra. Mesmo sem nenhuma intenção do pintor, o quadro indica sempre um sentido social. Cândido Portinari

Os pintores, cantores, poetas e lutadores revolucionários usavam de substrato para suas composições e causas elementos presentes na vida e que a faziam cotidiana. O interessante de se reparar é que ao mesmo tempo que se fazia a denúncia utilizando metáforas ou explicitações que remetiam a dinâmica de uma sociedade injusta, quando tinham intenção de valorizar algum personagem ou a cena toda utilizavam a figura do

trabalhador e trabalhadora, lendas e elementos do folclore, entre outras características que enalteciam a cultura local em detrimento à colonizadora que estava implícita nos objetos de enfrentamento contidos nos retratos. Algumas vezes a arte ao se misturar com a vida ajuda a descrever a narrativa de um novo folclore resultante das transformações de seus povos, como no caso da sociedade zapatista que se consolidou após a insurgência em 1º de janeiro de 1994 nas selvas do estado de Chiapas, no México. Decorando as várias construções das vilas cujas entradas nos recepcionam com letreiros que avisam que “Aqui manda el pueblo y el gobierno obedece”, a arte é usada de maneira estratégica pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional. A começar por sua função pedagógica libertária, pois serve no processo de educação revolucionária ao


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22. Camponeses zapatistas

estampar no cotidiano dos indígenas mexicanos sua identidade emancipada. Quando caminhamos pelas ruas das vilas observando as escolas de rebeldia, oficinas de autonomia

para as mulheres e observamos os personagens mascarados pintados em seus muros já não sabemos se aquela gente que vestiu as carapuças ou os muros que se vestiram daquela gente. São os indígenas de Chiapas, agora conhecidos pelo seu batismo em memória do falecido líder revolucionário mexicano Emiliano Zapata (1879-1919), que ajudarão a condensar toda a pesquisa estética e ideológica que fundamentará a produção a seguir, pois tomará a liberdade de emprestá-los não só das metáforas, mas resquícios da bravura que levou a um povo marginalizado dentro de seu próprio país a se erguerem contra a fome e miséria e se tornarem um dos maiores fenômenos sociais do século XXI.

23. Crianças zapatistas


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3.2 Produção e exposição

do movimento zapatista, no qual ele narrava ao diabo cenas cotidianas da vivência dos indígenas nos rincões mexicanos.

“Techo, tierra, trabajo, pan, salud, educación, independencia, democracia, libertad, justicia y paz. Estas fueron nuestras banderas en la madrugada de 1994. Estas fueron nuestras demandas en la larga noche de los 500 años. Estas son, hoy, nuestras exigencias.” Comité Clandestino Revolucionario Indígena-Comandancia General del Ejército Zapatista de Liberación Nacional. México, enero de 1996

São os valores que compuseram este manifesto em riste na luta pela luz do dia aos que viviam e morriam na escuridão da selva mexicana a ser a força motriz desta produção. Começando pela dupla de xilogravuras batizada de ‘Noturnos’, a primeira inspiração nasceu da leitura do epílogo contido no livro ‘Educar na Esperança em Tempos de Desencanto’ de Chico Alencar e Pablo Gentili, escrito pelo subcomandante Marcos, um dos grandes líderes

24. Esboço para a xilogravura ‘Maryia’

(...) Mariya tencionou o estilingue, fechou um olho, assim como mandam os manuais de estilingue, disparou e a lata voou com um estrépito metálico. Mariya e la Mar prorromperam num grito de júbilo:”Ganharam as mulheres!’’ Nós meninos ficamos estupefatos, arrependidos e de queixo caído. “Não se preocupem’’, disse a eles para consolá-los, ``da próxima vez, organizamos uma competição da qual Mariya não participe’’. Acho que não convenci ninguém. Lúcifer foi educado à “moda antiga’’, ou seja: estilingues não são para as mulheres. Foi assim que ele teve uma, digamos, “crise de consciência machista’’ que estourou quando Mariya o derrotou no rude e (ex) varonil esporte de arremessar latas com uma mola. Foi assim que Lúcifer foi parar em outro lugar. Subcomandante Marcos Os Diabos do Século XXI


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25. Processo de entalhamento da matriz

Assim nasciam os primeiros traços de esboço que escavariam os veios da madeira para imprimir o rosto coberto - marca registrada dos zapatistas - de Mariya em tinta preta sobre papel

26. Testes de impressão em tinta gráfica

branco. A pequena indígena, de postura altiva e anti-heroica, campeã de estilingue e terror dos machos de seu bando suscitou a colocação de um posicionamento que faz parte

27. Detalhe da impressão

do corpo da mensagem que gostaria de comunicar nesta produção: a união do povo latino americano. E se sabia que haviam indígenas que sofriam numa das pontas do continente, sabia ainda mais que na ponta


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28. Esboço para xilogravura ‘Benke’

quase oposta haviam seus semelhantes, nossos ancestrais e compatriotas brasileiros, que passavam por situação quase parecida, salvo a autonomia que muitos ainda não conquistaram por falta de uma revolução organizada.

29. Matriz sendo calibrada com tinta gráfica

30. Testes de impressão

Uma das contradições mais absurdas e comoventes no caso dos indígenas brasileiros - sobretudo os que não estão sob proteção do Parque do Xingu e ignorados pela FUNAI, é a luta por um pedaço de terra

para a perpetuação de sua cultura e garantia de sustento. Ora, como é possível não se indignar se não foram eles num passado senhores de todo este continente num momento áureo de sua história milenar?


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31, 32 e 33. Exposição experimental ‘Anthropos’ realizada na galeria da Faculdade de Artes Visuais da PUC-Campinas. Série: Noturnos ‘Maryia’ ‘Benke’ xilogravuras 40x50cm 2016


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Hoje mendigam perambulando entre resquícios de mata e arranha-céus das capitais por um pouco da dignidade que tinham orgulho de enaltecer. A segunda xilogravura da dupla recebe o nome de ‘Benke’ na tentativa de devolver o pouco desta honra indígena perdida na mendicância e lutas frustradas pro homem branco que desrespeita a natureza e o diferente. Transformado em canção por Milton Nascimento quando o conheceu no Acre ainda curumim, Benke é um grande líder carismático e articulador do povo Ashaninka, famoso por suas vitórias contra a invasão do colonizador espanhol. Noturnos, assim eram por viverem na noite, ora esquecidos e agora lembrados ao emprestarem suas histórias para que a arte as perpetue. Contudo ainda não havia força de união. Algo incomodava enquanto observava a dupla pouco conectada apesar das matrizes etnológicas. Talvez

fosse o negro da noite que tingia impiedosamente de solidão as tristes figuras. Foi então que do conflito entre luz e sombra, do branco e do preto contrastantes nas xilos, surgiu a necessidade de uma terceira cor. Como nascem as bandeiras Estão assim até hoje nossas bandeiras. o povo as bordou com sua ternura, coseu os trapos com seu sofrimento. Cravou a estrela com sua mão ardente. E cortou, de camisa ou firmamento, azul para a estrela da pátria. O vermelho, gota a gota, ia nascendo Pablo Neruda Canto Geral

A cor vermelha possui uma vitalidade ímpar e reconhecida historicamente como símbolo de poder e intensidade. Seu significado coloriu valores em diversas ideologias e, no mundo moderno e contemporâneo,

quando em flâmula hasteada se associa rapidamente à tradição política da esquerda revolucionária. Tivera sido apadrinhada pelo socialismo e comunismo desde a Comuna de Paris, quando seu povo abaixou todos os símbolos patrióticos para dar lugar à bandeira internacionalista, depois ficou conhecida na consciência popular coletiva em manifestações, sindicatos e organizações sociais - como aqui no Brasil do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e dos Sem Teto. Foi adotada então como parte do repertório simbólico desta produção. As formas que caracterizariam os personagens ficariam por conta do biótipo típico dos povos originários do nosso continente. Quando se passa a observar com cautela o bicho homem - este que é mesmo bicho, pois corre menos em teu sangue e veste menos tua pele o plástico, se aproximando mais


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do que já foi o natural - começase a perceber humanidades. Se o olhar se aproxima em busca das curvas que delineiam os detalhes do corpo é possível compreender a ciência cigana da capacidade de se ler destinos nas mãos, pés e calos. Vê-se as origens longínquas indígenas no rasgo dos olhos, no bronze da pele, mas também a robustez gerada no encontro com os negros e quando na audiência da fala a influência da língua enrolada dos brancos.

Surgem dois desenhos que ampliam o repertório do diálogo, incrementando o assunto ao tratarem de outras bandas, outras personagens, mas ainda se fala da mesma história. A paleta de cores segue como dogma para a sugestão do drama, mas já é inevitável abandonar o vermelho e seu voraz carisma.

34. Esboço para o desenho ‘O Plantio’ 35. Detalhe do desenho


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36. Detalhe do desenho Pés disformes. Pés que podem contar uma história. Pés semelhantes aos mapas, com montes e vales, vincos como rios. Portinari, relembra num relato autobiográfico escrito poucos anos antes de sua morte.

Quando nasce o corpo não vem ao mundo junto dele a humanidade que lhe cabe. Esta precisa ser cultivada aos cuidados de seus pares para que a pequena criatura cresça habituada à sua cultura

37. ‘O Plantio’ desenho aguada de guache e acrílica 100 x 70 cm - 2016

e sociedade. Os valores que constituem homens e mulheres são sementes lavras

no chão junto ao alimento que o sustentará por toda vida. Os povos andinos atribuíam a fé neste ciclo de respeito e equilíbrio com a natureza à uma entidade chamada Pacha Mama, a mãeterra, que os presenteava com os frutos de seu ventre fértil.


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Tudo o que o papel registra é obra do homem ou ele próprio, pois poucas são as terras que teus pés e mãos não usaram para recontar a história deste planeta. Pacha, como toda boa mãe, nem só de mimos cria teus filhos. Sabe aconselhar de pulso firme sobre as dolências que sua cria passará na maturidade e mostrar o caminho a ser seguido na trilha pelos desafios do mundo. São pequenos os sinais, mas entregues confiantes na astúcia de que saibam interpretá-los e ressignificá-los ao contexto de suas vidas. VI As flores de Punitaqui Peguei suas mãos e suas flores, terra despedaçada e mineral, perfume de pétalas profundas e dores. Soube ao olhá-las de onde vieram até a solidão dura do ouro, me mostraram como gotas de sangue as vidas derramadas. Pablo Neruda Canto Geral

38. Exposição ‘Marca Rastro Vestígio’ realizada na galeria do CIS Guanabara em Campinas-SP.


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39. Esboço para o desenho ‘A tecelã’ 40. ‘A Tecelã’ desenho aguada de guache e acrílica 100 x 70 cm - 2016 41. Detalhe do desenho


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42. Exposição ‘Marca Rastro Vestígio’ realizada na galeria do CIS Guanabara em Campinas-SP.

É dura a vida dos filhos e filhas de Pacha, de Tupã, de Oxalá, de Deus, que separados por línguas, fronteiras e culturas, não se destemperam nas raras chances do reencontro. Talvez amparados pelo desejo fraterno de se atarem novamente como irmãos e irmãs de nascença que são. A tecelã, atenta e partidária deste sonho, trançou na roca

fios de destino para costurar as pátrias de casas pobres, vazias de luxo mas ricas de sementes de humanidade, que o poder e a ganância trataram de fragmentar quando atracaram com suas botas e escorbuto nestas bandas. Por fim encontram-se na tela, não da TV em forma de estatísticas ou tragédias, mas no nobre algodão colhido por teus semelhantes e preparados com todo zelo a servir num passado aos retratos da corte e do clero, dos senhores de terras

e de homens, contratando a arte para imortalizar suas materialidades findas. Hoje este espaço é ocupado por aqueles e aquelas que possuem o direito de fazerem teu uso, da arte e do algodão.


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43. Esboço para tela ‘Educação’ 44. ‘Educação’ pintura acrílica e guache s/ tela 70 x 50 cm - 2016 45. Detalhe da pintura


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46. No encerramento da exposição ‘Marca Rastro Vestígio’ realizada como mostra pública dos trabalhos desenvolvidos nesta pesquisa, os artistas expositores realizaram uma roda de conversa com o público como troca de experiências e também como coleta de informações sobre as impressões que as obras levantaram.

Resplandecem, de forma desajeitada aos moldes naïf que um aprendiz em construção tenta, carinhosamente, ceder em volumes e texturas, as figuras dos que tem orgulho de chamar de família. Povo latino americano que de face à mostra ou cobertos pelo algodão de nada descaracterizam sua identidade de luta e resistência. Protegidos ou descalçados, jamais ousaria qualquer um em negá-los a caminhada que os pés servem de testemunhas dos

olhos. Histórias encruzilhadas em combates e no ardor da vida cotidiana de uma gente estampada nos rostos de todos nós, queira o espelho mostrar ou não. Cabe a arte, através dos artistas, se dedicar a servilos em tuas causas, dores e, sobretudo, alegrias. Como disse o já citado Portinari, a arte brasileira - e latino americana - haverá quando os artistas se entregarem com toda alma à interpretação sincera do nosso meio.

Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Carlos Drummond de Andrade A Rosa do Povo



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CONSIDERAÇÕES FINAIS O que o artista imprime sobre o suporte são suas percepções, suas leituras que faz da realidade de maneira fidedigna ou modificada a partir de suas vivências. Há grande semelhança desta prática com a reflexão dos que depositam sua fé e ciência numa alternativa para (re)construção do mundo. A diferença é que, enquanto os militantes demandam um processo histórico de lutas e reivindicações, avanços e frustrações sobre suas expectativas e carecem da articulação e mobilização do coletivo, o artista possui esse privilégio egocêntrico da capacidade de tornar físico (ou concreto), a ideologia que sustenta sua criação. Através da arte o mundo ideal pode se tornar real ao fim do processo gráfico - ao menos para que sirva de convencimento aos nossos olhos e sustente a inspiração residente de corpos que anseiam pelo giro da

história humana. As obras aqui reunidas não são resultados, mas processos de percepções de um artista que se lança à leitura do mundo - e que não só assume como convida os demais - através do prisma do conceito da luta de classes. Não só com o viés marxista apenas, mas na tentativa de transfigurar na estética com elementos do folclore latino americano e símbolos de uma vivência particular, valores que conectem a mensagem de um indivíduo com um desejo internacional de união dos povos pelo progresso da humanidade. Graças a conversa promovida entre artistas e público na exposição Marca, Rastro, Vestígio, a instauração não do significado subjetivo apenas, mas, sobretudo, das inquietações pode se evidenciar de maneira mais clara para os presentes, fornecendo substrato de grande contribuição para reflexões posteriores à

pesquisa. Neste caso, o que se levantou de maior pertinência foi o questionamento sobre a possibilidade de se assumir um caráter panfletário em uma arte alinhada à alguma ideologia. A resposta premeditada seria: ‘e por que não?’. ‘Por que é pejorativo pra arte servir de panfleto às ideias do artista?’. ‘Ela já não faz isso naturalmente ou só se repercute a possibilidade desta transformação quando desvelada a intenção ideológica?’. De fato, é mais um tópico que agrega ao corpo ainda em maturação desta pesquisa.


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