Entrevista com Carlos Liz

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Entrevista

Fátima Sousa jornalista fs@briefing.pt

“A palavra-chave é ir ao encontro da vida real. Os investigadores têm de ser capazes de partilhar quotidianos com as pessoas, dizer o que acontece de segunda a domingo, dentro e fora de casa, perceber quantas histórias contém um agregado familiar, saber quantos ecrãs em casa o fragmentam, qual a importância de estarem juntos, o que acontece na selecção das marcas e dos produtos, a migração da vida social do exterior para casa… coisas que não se perguntam”, afirma Carlos Liz, 56 anos

Carlos Liz, partner da Ipsos Apeme

Ramon de Melo

Ir ao encontro da vida real

Briefing I É pioneiro nos estudos de mercado em Portugal, tendo começado ainda antes do 25 de Abril. Que balanço faz dessa experiência? Carlos Liz I É, de facto, um percur6

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so longo em termos de tempo, mas particularmente bem escolhido, se é que se pode dizer assim, porque coincidiu com as vésperas do nascer e desenvolver da sociedade de consumo em Portugal. É, na verda-

de, um privilégio. Comecei a fazer inquéritos em 1972, numa altura em que andar de porta de porta, de terra em terra, me levava inclusivamente a ser perguntado pelas autoridades sobre o que andava a faO agregador do marketing.


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zer. Uma das primeiras sondagens, para o Expresso, tinha como tema a sexualidade. Era um tema esquisito para a época… E mostrou como este exercício não é propriamente um acto neutro. Em meados dos anos 80, inaugura-se simbolicamente a sociedade de consumo. Pude acompanhar a surpresa extraordinária do primeiro hipermercado, aquele espaço enorme, com preços realmente diferentes, onde os consumidores tinham muito por onde escolher. Esses tempos permitiram-me perceber que o mundo das marcas e dos consumidores é tema de mercado mas também de sociedade. E que aquilo que os portugueses aprenderam em termos de cidadania, de capacidade de crítica, não o aprenderam na escola, mas na vida empresarial. Foi uma experiência interessante testemunhar como a sociedade de consumo tem esta função civilizacional. Hoje, chegámos a um ponto em que, curiosamente, estamos a pôr em causa essa mesma sociedade de consumo. Os portugueses foram ganhando lucidez na análise em matéria de consumo e de marcas. E os estudos de mercado constituíram um observatório privilegiado desta evolução. Briefing I O que motivou as empresas a encomendar esses primeiros estudos de mercado? CL I Eram muito poucas as empresas que os faziam. As multinacionais que existiam em Portugal eram motivadas pela necessidade de ter procedimentos comparáveis com outros países em que a sociedade de consumo estava mais desenvolvida. E as empresas portuguesas, o que pretendiam era conhecer aspectos bastante objectivos dos produtos que colocavam no mercado. Até porque a publicidade, como tudo nesse tempo, era vigiada e controlada. Uma das técnicas mais utilizadas era andar de porta em porta a falar com as donas de casa. Tínhamos de perguntar que produtos usavam e pedir para os ver, caso contrário o inquérito não ficava suficientemente validado. Ficavam de fora os aspectos que verdadeiramente O agregador do marketing.

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“Em Portugal, as marcas são um fenómeno bastante recente, só apareceram nos anos 80. A disponibilidade dos portugueses se surpreenderem está historicamente ligada à juventude da sociedade de consumo no nosso país”

“Temos de passar da lógica de perguntar às pessoas o que são e o que pensam para uma lógica de as ver em acção. Não há outro remédio para as empresas, organizações e Estado senão estarem constantemente a tentar perceber o que está a acontecer”

caracterizam uma sociedade livre e criativa, em que a publicidade faz sentido, em que as marcas fazem sentido porque permitem escolher. As marcas verdadeiramente só apareceram nos anos 80. É um fenómeno bastante recente em Portugal, não é uma evidência. E isso justifica que certos comportamentos dos consumidores ainda sejam inesperadamente excitados: abre um centro comercial e vamos todos ver, surge uma novidade e vamos todos à procura… A disponibilidade para os portugueses se surpreenderem está historicamente ligada à juventude da sociedade de consumo em Portugal. Briefing I Hoje os estudos de mercado são cada vez mais necessários ou um luxo? CL I Digo sempre que o melhor é conhecerem. E não só pela crise. Passámos de uma sociedade relativamente previsível para uma sociedade complexa, onde as pessoas estão mais ligadas entre si, seja no real, seja no virtual. Os consumidores estão permanentemente sujeitos a impulsos, pelo que qualquer tentativa de traçar perfis muito definidos, de prever comportamentos, é, muito provavelmente, uma tentativa falhada. Temos de passar da lógica de perguntar às pessoas o que são e o que pensam para uma lógica de as ver em acção. Não há outro remédio para as empresas, organizações e Estado senão estar constantemente a tentar perceber o que está a acontecer. Há outra razão para as empresas se darem ao luxo de investirem nesse conhecimento: é que muito do que há de novo não nasce de centros de inovação fechados, nasce da interacção directa com a realidade. Quanto mais uma empresa estiver em cima dos consumidores mais depressa percebe o que pode ser uma tendência e, se a captar a tempo, pode desenhar uma proposta de valor compatível. Mais do que nunca, as empresas precisam de se alimentar da vida real para desenharem propostas comercialmente competentes.

“Os consumidores estão permanentemente sujeitos a impulsos, pelo que qualquer tentativa de traçar perfis muito definidos, de prever comportamentos, é, muito provavelmente, uma tentativa falhada”

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Briefing I Se, como diz, a sociedade de consumo é ainda jovem, isso faz de nós consumidores imaturos? CL I Claramente, embora estejamos agora a fazer, um pouco à força, um grande exercício de lucidez. A palavra é mesmo esta - lucidez, a capacidade de tomar decisões com base em informação racional mas também com uma certa interiorização. Dizer que o consumidor está racional é apenas uma parte da história: o consumidor está emocionalmente mais competente para jogar com a informação objectiva e fazer um julgamento lúcido.

“Mesmo que famosa, a marca tem de ser humilde e dizer ao consumidor que vai continuar a servi-lo, com qualidade, não deixando de o surpreender. Tem de explicar por que custa o que custa, porque o preço não é uma abstracção, é uma expressão de valor”

Briefing I Mas essa lucidez não é contraditória ao impulso que nos faz correr sempre que abre um centro comercial? CL I Creio que não, mas se fosse também não fazia mal. Quando estamos a lidar com estruturas complexas como a sociedade não há uma lógica de causa-efeito muito óbvia. O consumidor pode querer duas coisas muito diferentes ao mesmo tempo, pode querer produtos de marca global que dão um sentido de pertença alargado e querer coisas muito locais. Não se trata de escolher, há tensões que ficam sempre em aberto. Os consumidores portugueses têm, de facto, uma predisposição favorável para o novo. E o primeiro movimento é de interesse, mas está a acontecer que esse tempo de encantamento pelo novo é mais curto. As pessoas encantam-se, mas depois aplicam sobre o novo uma análise que junta elementos emocionais e racionais. E a decisão é de lucidez. A empresa tem de manter a capacidade de inovar e surpreender sempre: esse é o grande desafio, é a prova provada de que não se desligou do seu consumidor. Se o consumidor perceber que a marca não se acomodou, a marca é remunerada; se o consumidor desconfiar que a marca vive à conta do seu passado, a marca tem um problema. Briefing I A marca não pode andar distraída… CL I O consumidor contemporâneo tem sempre alguma coisa para

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“Quanto mais uma empresa estiver em cima dos consumidores mais depressa percebe o que pode ser uma tendência e, se a captar a tempo, pode desenhar uma proposta de valor compatível”

dizer, há sempre alguma coisa a acontecer e essa matriz de interactividade tem de passar para as marcas. Uma marca que não se esforça, que não alimenta a conversa com o seu consumidor, não está a perceber o filme… Temos notado algumas marcas distraídas, marcas muito convencidas de que têm um património de grandes anúncios, de lançamentos importantes e que não perceberam essa necessidade de ir ter com as pessoas. Há marcas que têm um excelente comportamento nos ecrãs, mas os consumidores, que hoje dominam completamente a gramática do digital, ficam mais agradados com as marcas que vão ter com eles na vida real. Quem tem a ilusão de que a criatividade se esgota numa conversa digital está enganado: os seres humanos precisam de fisicalidade. Briefing I Defende também que as marcas têm de ser humildes. O que implica essa atitude? CL I A marca tem de voltar a explicar exactamente ao que vem, tem de refazer a sua razão de ser, tem de ser capaz de apresentar elementos válidos para o consumidor, tem de ser capaz de se comprometer. Humildemente. Mesmo que seja famosa, que tenha uma posição forte no mercado, tem de dizer ao seu consumidor que vai continuar a servi-lo, com qualidade, não deixando de o surpreender. Tem de explicar por que custa o que custa, porque o preço não é uma abstracção, é uma expressão de valor. E as marcas que nasceram como marcas não estavam habituadas a isso.

“Se o consumidor perceber que a marca não se acomodou, a marca é remunerada; se o consumidor desconfiar que a marca vive à conta do seu passado, a marca tem um problema”

Briefing I Conhece esta indústria há mais de 30 anos. O que é um estudo de mercado fidedigno? CL I Tem, desde logo, de ter uma grande capacidade de se aproximar da realidade sem ideias pre-concebidas. Cada vez mais tem de desconfiar daquilo que é dito pelos consumidores e tentar descodificar por que dizem umas coisas e não dizem outras. Precisamos de uma ligação orgânica com O agregador do marketing.


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a vida dos consumidores. Muito mais do que preencher um inquérito, muito mais do que os grupos em ambiente protegido, a palavrachave é ir ao encontro da vida real. Os investigadores têm de ser capazes de partilhar quotidianos com as pessoas, dizer o que acontece de segunda a domingo dentro e fora de casa, perceber quantas histórias contém um agregado familiar, saber quantos ecrãs em casa o fragmentam, qual a importância de estarem juntos, o que acontece na selecção das marcas e dos produtos, a migração da vida social do exterior para casa… coisas que não se perguntam…

“Temos uma predisposição favorável para o novo. Mas o tempo de encantamento pelo novo está cada vez mais curto. As pessoas encantamse, mas depois aplicam sobre o novo uma análise que junta elementos emocionais e racionais. E a decisão é de lucidez”

Briefing I É um verdadeiro estudo sociológico… CL I Tal como acontece com as marcas, que são cada vez mais actores sociais, também os estudos de mercado cada vez mais são sociológicos. Os estudos de mercado são úteis se ajudarem as empresas a ter diagnósticos para serem mais competitivas. Mas essa utilidade tem de corresponder à realidade: se a realidade é mais sociológica do que mercadológica, é esse processo que temos de seguir. Se calhar o nome “estudos de mercado” está mal, temos de mudar para ‘estudos de mercado e sociedade’. Briefing I Esse critério também se aplica às sondagens políticas? O que as diferencia dos estudos de mercado? CL I Em primeiro lugar, o tema da política é ideologicamente sobrecarregado, é socialmente muito trabalhado, o que gera uma desconsideração de base. Por isso, quando se fala de questões políticas e eleitorais, há uma enorme pressão sobre quem investiga. Do ponto de vista técnico, este excesso de ideologia obriga a introduzir uma forte dimensão qualitativa, de maneira a compreender a fundo o que aquilo quer dizer. Muitas respostas são demasiado previsíveis, as pessoas alinham por ideias estabelecidas, pelo que, se para tomarmos decisões, acreditarmos apenas nesses inquéritos estruturados provavelmente tiraremos O agregador do marketing.

conclusões erradas. É muito importante perceber melhor como é a relação dos cidadãos com os actores políticos, com o sistema, perceber de onde vêm as irritações. É preciso tempo para que a pessoa se contradiga, para ver o ritmo das ideias, os silêncios. São análises bastante mais sofisticadas. Briefing I As sondagens servem de matéria-prima aos políticos como os estudos de mercado servem para as empresas e as marcas? CL I As sondagens permitem desenhar de uma forma muito interessante o sentimento das pessoas relativamente ao político A ou ao político B e, sobretudo, perceber onde esse sentimento se foi construindo, o que esteve na sua origem, que discursos, que presenças, que história dita pelo adversário… Podem ajudar a construir um discurso, sempre com a perspectiva de descobrir coisas novas que possam ser conversa com os eleitores e que os surpreendam. Se o emissor do discurso não compreende isso, quer dizer que não se está a esforçar por captar a minha atenção. Um político que está a dizer sempre as mesmas coisas ou não percebeu que eu já percebi, ou pensa que eu não oiço os outros e isso não faz sentido. A repetição é fatal no discurso político.

Briefing I Fundou a Apeme em 1989, que entretanto se fundiu com a Ipsos. O que o levou a dar esse passo? CL I A principal razão tem a ver com o facto de eu gostar muito de estudos de mercado, de tentar mesmo perceber o consumidor. Por isso, quis ter comigo o que há de melhor, procurei subir um bocadinho no conjunto de saberes e competências para compreender esta sociedade complexa. A Apeme era uma empresa vocacionada para os estudos qualitativos, com alguma capacidade de pensar estrategicamente mas com limites, desde logo o de poder comparar a realidade portuguesa com outras. A fusão com a Ipsos permitiu-nos aceder ao que de mais avançado se vai fazendo sobre a forma de compreender consumidores cada vez mais difíceis de perceber. Ajudou-nos a redesenhar o que sabemos e, sem perder o que de mais interessante há na proximidade com a vida portuguesa, a sermos capazes de nos integrarmos na forma de pensar e funcionar de uma empresa verdadeiramente global. Conseguimos perceber mais depressa coisas que não estávamos a dimensionar suficientemente. Ganhámos outra massa crítica de conhecimento.

PERFIL

Bastante insatisfeito e um bocado irritado De si próprio, Carlos Liz afirma que é “permanentemente curioso, bastante insatisfeito e um bocado irritado”. Os três qualificativos são indissociáveis num homem que vive a inquietação de procurar o sentido das coisas. Católico praticante, encontra na Igreja um mundo fascinante de interrogações. Porque toca as pessoas, toca o futuro, até o eterno. É uma paixão que assume, convicto de que a proposta cristão pode contribuir para dar sentido à sociedade portuguesa. Num exercício de comparação com as marcas, não tem dúvidas de que a Igreja tem de ser au-

têntica, de saber o que é e para o que vem. Se não tiver uma identidade muito forte, não há aproximação que resista. Aos 56 anos, casado há mais de 30 e com dois filhos já adultos, Carlos vive como trabalha: a estudar a vida. “Não vejo motivo nenhum para fazer um intervalo”. A insatisfação e a irritação nascem da consciência de que nunca conseguirá perceber tudo, de que quanto mais avança mais peças entram na equação e mais difícil se torna fixar minimamente uma realidade que não se deixa fixar. Por isso, “não há monotonia possível”.

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