Entrevista a Agostinho Pereira de Miranda

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Entrevista

Jorge Fiel Jornalista jf@briefing.pt

Agostinho Pereira de Miranda fundador da firma Miranda Correia Amendoeira

Ramon de Melo

Advocacia não é um negócio

“Eu não acredito que se possa fazer boa advocacia olhando para isto como um negócio. Se fosse apenas um negócio, o objectivo não era a administração da Justiça mas a maximização do lucro”, afirma Agostinho Pereira de Miranda, 61 anos, fundador do mais internacional dos escritórios portugueses. “Não se pode ser bom advogado quando se está preocupado a pensar se vai ou não ter dinheiro para pagar a renda do escritório. É por isso que nós, nestas sociedades maiores, temos de ter uma organização de natureza empresarial e é absolutamente essencial que sejamos viáveis e rentáveis”, acrescenta 32

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Advocatus | Foi por o mercado português ser tão estreito que apostaram na internacionalização? Agostinho Pereira de Miranda | Isso pesou, seguramente. Mas o que faz esse elemento da nossa cultura é eu me ter rodeado de colaboradores – hoje são sócios de capital – que perceberam que tínhamos de trilhar um caminho diferente da nossa concorrência. Tomámos essa decisão estratégica há 14 anos. Podíamos simplesmente ter ficado com Angola, uma pequena boutique especializada em direito da energia e não mais do que isso. Mas não. Desde muito cedo percebemos que o caminho a seguir era abrir um escritório em todos os PALOP. Era o caminho mais difícil mas era aquele que nos ia dar suficiente massa crítica, que nos iria abrir oportunidades para recrutarmos os mais capazes e termos os melhores clientes. Este é o binómio essencial. Já que no mercado português não íamos crescer à cadência que precisávamos, para sermos uma das grandes sociedades, vamos crescer lá fora, de jeito a que consigamos criar um grupo suficientemente forte, de gente suficientemente capaz, que depois se bata também no mercado interno. E é isso que tem acontecido. Advocatus | Encontrar os parceiros certos em cada país é a chave do sucesso? APM | Absolutamente. A internacionalização não é possível só com advogados portugueses. Encontrar os advogados certos é crucial. E isso passa por, antes de mais, e particularmente nestes países, serem pessoas com a personalidade certa. Gente de carácter, que honra os compromissos. Gente esforçada. Gente fiável, de quem possamos depender. E só se consegue encontrar e recrutar este tipo de profissionais falhando muitas vezes. Mas – e essa é uma das nossas características – nós falhamos, vamos ao tapete, levantamo-nos e continuamos. Advocatus | É difícil o processo de adaptação a realidades diferentes da nossa? APM | Eu costumo citar um proO novo agregador da advocacia

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“Desde muito cedo percebemos que o caminho a seguir era abrir um escritório em todos os PALOP. Era o caminho mais difícil mas era aquele que nos ia dar suficiente massa crítica, que nos iria abrir oportunidades para recrutarmos os mais capazes e termos os melhores clientes”

vérbio africano, “Nos sítios onde a água manda, a terra tem de obedecer”. É muito importante percebermos que vamos para países que têm outras regras, têm outras estruturas de poder. E nós não temos senão de interiorizá-las e trabalhar com elas. Temos de respeitar a realidade e a cultura locais e, além disso, ter a obstinação de vencer. Esta capacidade faz-me lembrar uma frase de Mandela: “É importante o talento, mas muito mais do que o talento é a vontade de vencer.” É preciso termos esta obsessão de vencer e prevalecer sobre as circunstâncias adversas. E eu não vejo muito disso na advocacia portuguesa. Advocatus | A geografia da vossa expansão internacional é baseada na língua portuguesa? APM | Sim, tem sido a língua. Mas isso não nos impediu de ir para a Guiné Equatorial, que é de expressão espanhola e onde somos a única sociedade de advogados estrangeira. E recentemente abrimos um escritório no Gabão. Advocatus | A Guiné Equatorial tem petróleo. Aí o critério foi a energia? APM | No Gabão a lógica é também a da energia, mas há outras áreas importantes como as infra-estruturas e os serviços financeiros. Temos clientes que pedem a nossa presença aí. Hoje em dia, a energia não pesa mais do que um terço no nosso output.

“Temos de respeitar a realidade e a cultura locais e, além disso, ter a obstinação de vencer e prevalecer sobre as circunstâncias adversas. E eu não vejo muito disso na advocacia portuguesa”

Advocatus | Os interesses da Chevron ajudam a desenhar o mapa da internacionalização da Miranda? APM | Não. Embora nós continuemos a trabalhar com a Chevron. Onde eles estão, nós somos os advogados dos clientes. Eu sou advogado da Chevron desde 1981. Primeiro como inhouse e agora como outside. Nunca deixámos de trabalhar com eles. Onde estão os nossos clientes nós também estamos.

Advocatus | O facto de ter crescido e vivido em Angola ajuda à integração nesse mercado? APM | Por vezes o ter vivido lá até não ajuda muito. As regras mudaram e há situações de pessoas que, quando regressaram, depois da independência, não conseguiram funcionar na nova lógica. O essencial é compreender a realidade angolana e trabalhar com ela, usando os melhores recursos que temos. Frequentemente mandam-se para lá as pessoas que não eram suficientemente boas para o mercado doméstico. E isto é um erro. Nós temos de mandar os melhores. Sempre. Advocatus | Há uma forte influência portuguesa na legislação dos PALOP? APM | No essencial é a mesma gramática jurídica. Mas por isso têm surgido alçapões, armadilhas em que muitos advogados que não fazem o trabalho de casa têm caído. Porque, para lá da cultura jurídica comum, há muita legislação que tem sido produzida nesses países. Estamos a falar em milhares de diplomas, cujo conhecimento é essencial. Mais importante ainda do que os diplomas é saber como é que na prática eles são aplicados. E isso só se consegue com muitos anos de experiência. Advocatus | E como é no Brasil? APM | O Brasil é muito diferente. É muito mais sofisticado e tem advogados muito bons. É um mercado com taxas de rentabilidade baixas, em geral. Além da concorrência local, há outra dificuldade derivada dos institutos de direito anglo-saxónico enxertados no sistema jurídico brasileiro, que o tornam menos uniforme. Advocatus | A organização dos advogados em grandes sociedades transformou a advocacia num negócio? APM | Eu não acredito que se possa fazer boa advocacia olhando para isto como um negócio. A advocacia é, mais que tudo, uma profissão que visa o exercício da administração da Justiça, e nesse Setembro de 2010

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sentido é – como a dos jornalistas – uma profissão de interesse social, de interesse público. É evidente que para se fazer boa advocacia, para se ajudar efectivamente a administração da Justiça, tem de se ter viabilidade económica. Não se pode ser bom advogado quando se está preocupado a pensar se se vai ou não ter dinheiro para pagar a renda do escritório. E por isso nós, nestas sociedades maiores, temos de ter uma organização de natureza empresarial e é essencial que sejamos viáveis e rentáveis. Advocatus | Não é só um negócio, mas também é um negócio, não é assim? APM | Se fosse apenas um negócio, o objectivo não era a administração da Justiça mas a maximização do lucro. Senão vejamos. O meu maior investimento é neste escritório. Entre o momento de prestar o serviço e o de receber o dinheiro passam-se seis, sete meses, às vezes um ano. Eu e os restantes sócios temos milhões de euros investidos neste escritório. Se isto fosse apenas um negócio, eu tinha que comparar com as alternativas. Se pegasse nesse dinheiro e fosse investir na bolsa eu não tinha que pagar 45% de IRS. Não tinha de aturar clientes. Se isto fosse só um negócio, esta nossa aplicação de dinheiro não seria um bom negócio. Portanto, sou totalmente contrário à ideia de que isto é apenas mais um negócio. Advocatus | A cultura da Miranda tem a marca de água da sua vivência internacional? APM | A cultura desta sociedade está muito marcada por aquilo que nos parece ser, e isso aprendi nos livros, a grande mudança que ocorreu nos últimos vinte anos da função do advogado. O advogado não é mais o leitor dos códigos que condescende em partilhar com o leigo o seu profundo conhecimento do rito. O advogado é agora um mero instrumento de identificação de soluções. Identifica soluções e aplica-as. Para os clientes, designadamente no plano preventivo, que tem uma função cada vez mais 34

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“O essencial é compreender a realidade angolana e trabalhar com ela, usando os melhores recursos que temos. Frequentemente mandam-se para lá as pessoas que não eram suficientemente boas para o mercado doméstico. E isto é um erro. Nós temos que mandar os melhores. Sempre”

importante, e soluções também quando as coisas correram mal – no plano curativo. Isto é algo que mudou mas que vai continuar a mudar. Eu acho que no futuro as soluções vão ser produzidas pelos advogados antes do facto. É para essa comoditização da advocacia que temos de preparar os melhores advogados. A criatividade vai ser cada vez mais necessária. Vão ser precisos advogados com mundo, cultura e conhecimentos estruturados em diversas áreas, que encontrarão soluções de alto valor acrescentado, inovadoras e de coragem. Advocatus | Quando voltou dos Estados Unidos, foi fácil criar a sociedade de advogados que idealizara? APM | Não foi simples.

“O advogado não é mais o leitor dos códigos que condescende em partilhar com o leigo o seu profundo conhecimento do rito. O advogado é agora um mero instrumento de identificação de soluções. Identifica soluções e aplica-as”

Advocatus | O que é que falhou? APM | Fundamentalmente a mentalidade. Eu tinha a noção de que o que era importante eram as coisas grandes – e que as pequenas não valiam o tempo que se despendia com elas. E, nos dois casos em que falhámos, o importante eram os detalhes, as coisas pequenas. Tudo era posto em causa por algo pequeno. Só quando encontrei os meus sócios mais velhos deste escritório – a Rita Correia e o Rui Amendoeira – é que consegui transmitir-lhes a minha ideologia de uma advocacia dos tempos modernos. Demorei praticamente dez anos até encontrar uma equipa, que ainda hoje me acompanha e tornou possível o que eu sempre quis fazer, que era uma organização suficientemente sólida e sofisticada que me dispensasse. E consegui isso. Advocatus | A mudança para estas instalações, da antiga Bolsa de Lisboa, na Soeiro Pereira Gomes, representa a viragem estratégica de boutique especializada em energia para uma full service? APM | A boutique de petróleo e gás durou cerca de dez anos. Nós tomámos a decisão de ser uma full service – sociedade de largo es-

pectro – ainda antes de vir para cá. Viemos para aqui 20 advogados e ocupámos metade deste andar. Agora somos 160 – dos quais 104 aqui em Lisboa – e temos quatro andares. Advocatus | Crescer é essencial? APM | Para criarmos oportunidades para os melhores, fazê-los sócios, é necessário crescer a um ritmo bastante acelerado. Advocatus | É mais difícil ser advogado cá do que em África? APM | Há um preconceito de que fazer advocacia em África não exige o mesmo nível de sofisticação técnica. Ora é exactamente o oposto. É muito mais exigente, porque aqui as soluções estão testadas e comprovadas. Há dezenas, centenas de pessoas a fazer a mesma coisa. Lá não, cada questão é nova. Advocatus | Acredita que a indústria do petróleo voltará a ser a mesma depois do desastre com a exploração da BP no Golfo do México? APM | Os efeitos desta tragédia ambiental vão ser sentidos durante muito tempo. Poucas pessoas sabem, mas, como tinha tido muitos problemas no passado, a BP era uma empresa muito preocupada com a segurança das operações. Mas perseguir esse objectivo era totalmente contraditório com mantra every dollar counts, que circulava na empresa. Não é possível ser-se simultaneamente mais seguro e mais semítico. Nós temos de vender serviços jurídicos cada vez mais baratos, porque quem gere os orçamentos tem cada vez menos dinheiro. Face a isso, há um risco jurídico cada vez maior a ser corrido pelas empresas. E por isso podemos um dia ter aí algures um deep blue rising de natureza jurídica … Advocatus | Quais são as consequências para a indústria de petróleo? APM | A primeira grande consequência vai ocorrer em termos de padrões de segurança em operaO novo agregador da advocacia


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ções de águas profundas e ultra profundas. Toda a gente na indústria petrolífera sabe que alguns operadores em alguns países, designadamente no Brasil, correm riscos que seriam totalmente inaceitáveis noutros países (como, por exemplo, a Noruega) e por outros operadores. Vai haver uma maior uniformização destes padrões. Advocatus | Isso terá impacto no custo da energia? APM | Regras mais apertadas vão fazer com que alguns campos não sejam desenvolvidos, o que vai ter um efeito sobre o preço. Advocatus | A questão da energia nuclear devia estar em cima da mesa? APM | Fazer tabu do nuclear é provinciano e é temerário. Pensar que a solução dos problemas energéticos mundiais está nas renováveis é extraordinariamente edificante, mas não pode de forma nenhuma servir de base a uma política energética nacional. As renováveis são essenciais. O preço por unidade de energia continua a ser muitíssimo caro. O fotovoltaico, o solar em geral, termal solar, o geotermal e o eólico são muito caros. E temos de ter em linha de conta que tudo somado, todas as energias renováveis, em todo o mundo, representam uma percentagem diminuta da energia consumida no planeta. São números fáceis de enunciar e que são chocantes: a eólica é menos de 1% e a solar é menos de 0,3%. A biomassa é mais importante, particularmente em África e nos Estados Unidos, e é a primeira energia renovável, mas é a maior emissora de CO2. A hídrica é importante, mas não chega a 5% do consumo mundial e a nuclear andará nos 6%. Advocatus | Qual vai ser a solução? APM | Provavelmente a solução não será antecipável, porque pode haver a qualquer momento, como aconteceu nas telecomunicações, uma disruptive innovation – uma inovação fracturante. Agora, mesmo que ela surja, as coisas não vão

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“A criatividade vai ser cada vez mais necessária. Vão ser precisos advogados com mundo, cultura e conhecimentos estruturados em diversas áreas, que encontrarão soluções de alto valor acrescentado, inovadoras e de coragem”

“Há o preconceito de que fazer advocacia em África não exige o mesmo nível de sofisticação técnica. Ora é exactamente o oposto. É muito mais exigente, porque aqui as soluções estão testadas e comprovadas. Há dezenas, centenas de pessoas a fazer a mesma coisa. Lá não, cada questão é nova”

mudar de um momento para o outro. Essa inovação terá de ser integrada. Não se muda a infra-estrutura energética mundial em menos de 15 a 20 anos. O que nós vamos ter seguramente nos próximos 20 anos é uma melhoria do paradigma fóssil. Penso que o maior problema é a estabilização climática. Advocatus | Esse é que é o ponto crítico? APM | Quanto a mim, o maior problema da humanidade é o problema da estabilização climática. Não ao ponto que nós não possamos viver, mas muitas espécies não aguentarão com dois graus acima do que temos. O problema é que esses dois graus vão gerar migrações, fome, alterações em termos do modo de vida que constituem maior perigo para a segurança internacional. Este é que é o problema. Agora estamos muito longe de um consenso internacional sobre o que temos a fazer, porque não há um nível de riqueza à escala global que permita encontrar soluções homogéneas. Enquanto para nós a maior preocupação é a estabilização climática, para a maioria da população planetária o maior problema é ainda a insuficiência económica e os baixos níveis de vida.

“Fazer tabu do nuclear é provinciano e é temerário. Pensar que a solução dos problemas energéticos mundiais está nas renováveis é extraordinariamente edificante, mas não pode de forma nenhuma servir de base a uma política energética nacional”

Advocatus | O Direito tem ajudado a resolver a questão da energia? APM | A carta energética europeia (European Energy Charter) tem sido um instrumento da maior importância, nomeadamente a prevenir conflitos e a resolver de forma consensual, ou por arbitragem, problemas que de outra forma e noutro tempo poderiam levar à guerra entre países. É evidente que as coisas não estão bem no Cáucaso, e o mesmo se passa no mar Cáspio no que toca a conflitos originados e alimentados pela energia. Hoje, sem darmos conta, caminhámos um longo caminho no sentido de prevenirmos certo tipo de conflitos e, quando eles acontecem, existem mecanismos de solução que são fundamentalmente mecanismos jurídicos. >>>

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