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Entrevista
Fátima Sousa jornalista fs@briefing.pt
É o homem de grandes marcas. Esteve ligado a nomes como as cervejas Sagres e Super Bock, as tintas Barbot, a Mundial Confiança, a Kidzania, a Optimus Home e a SIC. Criativo há quase três décadas, Manuel Pereira, 58 anos, diz que a criatividade é a única esperança do País
Manuel Pereira, chief creative officer da Santa Fé Associates
Ramon de Melo
Criativos são como os cientistas
Briefing | Quando, em 2003, avançou com a Santa Fé propôs-se criar uma empresa diferente. Em que medida? Manuel Pereira | No fim da década de 90, era muito claro para mim que a publicidade era apenas uma 10
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província da comunicação e nem sequer a mais importante. Fiz essa avaliação e decidi que queria mudar de profissão. Não era a primeira vez. Aliás, a mudança já tinha sido iniciada quando, em 1997, criei a STRAT, que não era uma agência de
publicidade, mas de comunicação e tecnologia. E a verdade é que foi um sucesso, muito porque criámos um conceito novo, um pacto de responsabilidade com o cliente que tentava um pouco tirar partido da má imagem de uma certa publicidade muito O novo agregador do marketing.
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infantil e muito infantilizadora dos interesses do cliente. Correu muito bem, mas a certa altura senti que estava no momento de capitalizar o que tinha investido e dar um novo passo. E decidi criar a Santa Fé com a Cecília Santos, uma dupla que há muito me apetecia fazer. A Cecília é uma criativa gestora, eu sou um criativo que também se interessa por gestão. Neste negócio, as duplas são importantes e valeu a pena, como já se provou. O conceito era outro: já não era nem agência de publicidade nem de comunicação e tecnologia, mas de branding consulting – uma empresa multidisciplinar centrada no design e nos designers e não na publicidade e nos publicitários.
Entrevista
“O design thinking é um processo criativo riquíssimo, em que começamos por tentar identificar o problema da maneira mais rigorosa possível. No fundo, não estamos a fazer nada de diferente do que fazem os cientistas”
Briefing | E porquê o branding? MP | Porque olha para a comunicação como um todo. A marca é o eixo, mas o branding tem uma visão holística: é preciso perceber o negócio e a expressão desse negócio numa marca. Para isso, é preciso uma grande sensibilidade de gestão e um grande conhecimento das várias disciplinas da comunicação. Há que ter aptidão multidisciplinar. Briefing | Sendo a marca o eixo, como é que a Santa Fé trata as marcas que a consultam? MP | Quem nos conhece sabe que pugnamos por uma grande seriedade, por um enorme rigor e exigência, por muitos problemas que isso nos traga – e traz: quantas vezes não podemos ser condescendentes e simpáticos porque é preciso sermos rigorosos e exigentes? Não é fácil nem um objectivo simples de atingir, mas temos uma criatividade séria. Somos uma Creative Brand Consultant porque a criatividade é o nosso negócio, em termos estratégicos mas também formais, de expressão. Separar estas duas áreas é uma utopia, tem de se ter aptidões em ambas. Quando se aborda um problema, tem de se olhar para o mercado em todo o seu contexto e saber onde estão as ideias falhadas e as de sucesso, tem de se saber onde estão os cadáveres e aqueles que ainda não perceberam que o são. Isso é estratégico. Depois é
“A Santa Fé está no mercado português a olhar para fora. Trata-se de falar bem a língua local mas pensar global. É uma das nossas características e a nossa experiência multinacional foi decisiva para esta atitude em relação ao mercado”
preciso ter bons criativos, que possam fazer a diferença em termos de expressão. Briefing | A Santa Fé apresenta-se com a missão de gerar ideias com força de crença. O que está subjacente a esta quase incursão na religião? MP | As marcas são, de certo modo, substitutas de algumas fontes de sentido que as pessoas tinham e que, com a sociedade pós-industrial, foram perdendo. As pessoas já acreditaram mais nas empresas, na família, no Estado. Hoje são cada vez mais cépticas, mas também procuram âncoras: e, muitas vezes, na sociedade de consumo, as marcas são essas âncoras. Nós somos seres de crenças e as sociedades evoluíram a acreditar em muitos fenómenos, em muitos deuses e heróis. Sempre descentralizámos mais as nossas crenças do que as religiões monoteístas querem fazer crer. E as marcas não passam disso mesmo, de um regresso a essa descentralização das crenças. Porque uma marca é um suporte de valores – de liberdade, de independência, de prazer, de segurança…
“Nós somos seres de crenças e as sociedades evoluíram a acreditar em muitos fenómenos, em muitos deuses e heróis. Sempre descentralizámos mais as nossas crenças do que as religiões monoteístas querem fazer crer”
Briefing | O que uma marca precisa de ter para as pessoas acreditarem nela? MP | Quando tudo era baseado na publicidade, pensava-se que bastava gritar mais alto ou exagerar mais um bocado, criar uma hipérbole engrandecedora e transformá-la na mensagem. Hoje sabemos que não chega. As marcas sabem que não pertencem apenas à empresa que as criou, que só são verdadeiras quando pertencem aos consumidores. E isso traz uma nova responsabilidade: a de não fazer promessas que não podem cumprir. Têm de ser sérias, sem deixar de ser divertidas se tiverem de ser divertidas, de apelar ao prazer se tiverem de apelar ao prazer… Briefing | Isso significa que a publicidade pura e simples já não é suficiente? MP | Implica outra função para a publicidade, que é ser capaz de criar mensagens que ajudem a construir >>>
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Entrevista
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“Como português, só posso ter esperança na criatividade portuguesa como solução para os problemas do país. A criatividade é demasiado importante para ser deixada apenas aqueles que têm o rótulo de criativos”
o valor da marca. E é ser capaz de respeitar o consumidor, a sua sensibilidade. Não se pode falar para as pessoas com o mesmo grau de ligeireza, de gratuitidade. Eu também o fiz e fiz mal. Mas também fiz bem, ajudei a criar marcas com a publicidade. A publicidade tem a sua função, mas não sozinha, seja em que mercado for. Na Santa Fé também fazemos publicidade. Aliás, de 2009 para 2010 provavelmente ajudámos a criar uma das marcas mais visíveis do país, a Kidzania, que ganhamos num concurso publicitário. Só que não nos limitámos a pensar numa campanha publicitária, criámos um conceito que nos permitiu agregar outras valências. Foi o conceito de branding que comandou os acontecimentos, o desenvolvimento da comunicação. Briefing | A Santa Fé diferencia-se por via do design. Que importância tem, de facto, o design na comunicação? MP | É a base criativa. Basta pensarmos no Steve Jobs e no iPod, no iPhone ou no iPad para vermos como o design está na base de praticamente todos os negócios criativos, só que nem sempre é bem avaliado. Mas nós tínhamos essa percepção. O design thinking é um processo criativo riquíssimo, em que começamos por tentar identificar o problema da maneira mais rigorosa possível. No fundo, não estamos a fazer nada de diferente do que fazem os cientistas. Os cientistas começam por tentar identificar um problema rigorosa e criativamente, como ninguém o identificou. Nós, os criativos, fazemos o mesmo, procuramos identificar o problema de uma forma diferenciada, ou seja, de um modo diferente e melhor e ainda adequado ao objectivo do cliente. Temos é de ser capazes de olhar para as profissões ligadas à comunicação com o mesmo grau de exigência com que os cientistas olham para a sua profissão. Briefing | E a ideia? MP | É a fase seguinte do processo, mas antes há que fazer pesquisa,
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perceber o contexto. É um processo de rigor, não acredito muito na inspiração espontânea. Há muitas vias para procurar ideias, mais ou menos disciplinadas: dá muito trabalho. Depois há que maquetizar e submeter as maquetas ao processo criativo, fazer estudos de mercado, testá-las e só então partir para a concretização, para o produto. Mas não acaba aqui: é preciso implementar e extrair a moral da história. Briefing | Que problemas é que as marcas lhe trazem? MP | Posso dar-lhe alguns exemplos de problemas muito bem identificados e processos bem sucedidos. Um deles envolve a Red Oak. O cliente tinha uma ambição de internalização, mas muitos outros têm: afinal, a moda é uma das áreas mais povoadas, mais competitivas. Mas, antes, havia que pensar a marca, a começar pelo nome, pelo logótipo, pela identidade. Ficámos com o nome que o cliente já havia registado e, a partir da avaliação do mercado, optámos por uma identidade retro futuro, ou seja, que pisca o olho ao passado e ao futuro. Não estava escrito em lado nenhum que ia funcionar, mas resultou. E, com o nosso ponto de vista, contribuímos para condicionar o próprio estilismo da marca. Outra questão importante prendia-se com a loja, como fazê-la
sobressair. E pensámo-la com um conceito de packaging, em que decidimos tudo, do layout ao ferro forjado do balcão. O design thinking é isso, é a capacidade de ver pormenores que, muitas vezes, são desprezados. Outro exemplo bem sucedido é a Hakisushi, a primeira tentativa em Portugal de criar uma marca de sushi para um centro comercial e a primeira tentativa de criar um restaurante com o famoso balcão rolante. Tínhamos de resolver vários problemas, a começar pelo pouco espaço, pela criação de um logótipo que fizesse apelo às origens mas que não fosse um cliché. Conseguimos, através do design, corresponder a todas as exigências. Briefing | Qual é o maior desafio que uma marca pode colocar? MP | O desafio é sempre grande, sobretudo em mercados muito competitivos, em que as marcas têm necessidade de criar diferenciação imediata. E pode começar pelo nome. Aqui o nosso primeiro desafio foi o Optimus Home. A Optimus queria lançar um telefone fixo, sem assinatura, num contexto em que a maior parte das tentativas tinha sido um fiasco: era a parábola das panelas de barro que se espatifavam contra a panela de ferro que era a PT. E iam-se es-
PERFIL
O criativo consigo mesmo A Santa Fé Associates veio permitir a Manuel Pereira reencontrar-se como criativo de base. Nas experiências profissionais anteriores, as responsabilidades de gestão deixavam-lhe pouco tempo para se dedicar à criatividade – era, como assume, um criativo clandestino, a tentar passar ideias como se não fossem suas, ideias a que se dedicava apenas nas horas vagas. A grande diferença é o tempo que agora tem para dedicar deliberadamente às ideias. Não que o tempo lhe sobre, pelo menos para tudo o que o interessa: diz-se “caótico nos interesses” porque tem interesses a mais e tempo a menos, o que é “terrivelmente exigente”. Entre eles viajar – aproveita todas as oportunidades. Cinema, conversar. Ler também, poesia cada vez mais. As barreiras entre o lado profissional e o lado pessoal são esbatidas. A criatividade é, porém, o denominador comum que, quem sabe, o levará a outra etapa na sua vida: dedicar-se à escrita a tempo inteiro. O hábito de escrever já existe, o resto está em aberto.
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