Litigar de salto alto

Page 1

www.advocatus.pt

Igualdade

Litigar de salto alto Ele tem que estar livre das vicissitudes domésticas para poder enfrentar as vicissitudes profissionais. Ela enfrenta as vicissitudes profissionais em simultâneo com visitas ao pediatra, guerras do condomínio e a gestão de afectos! Compreende-se a posição dominante! Ela é de dar medo!

Da esquerda para a direita, Manuela Neves (autora do artigo), Anabela Oliveira e Teresa Boino, da BPO Advogados, com agradecimento ao Tróia Design Hotel pelo apoio na produção fotográfica

A liderança feminina na advocacia pode ser definida como aquela que é praticada em saltos altos, mas não só! Para além desta característica existem muitas outras particularidades que, genericamente, a distinguem. Antes de mais, para prevenir quaisquer dúvidas, esclareça-se que não é a qualidade que torna única a advocacia praticada em saltos altos. Aliás, a qualidade é requisito que 28

Junho de 2011

pode rarear ou abundar, surgir por surtos ou regularmente q.b., independentemente do sexo do sujeito. Focando-nos nas diferenças entre a liderança feminina e masculina na advocacia, ressalta nos nossos dias que elas existem de forma exuberante. Basta pensar que muito maior é o campo de observação pois, se em 1990 a proporção era de uma advogada para quatro advogados, actualmente elas estão em maioria.

São 51 por cento de “elas”, segundo dados do Ministério da Justiça. Foi muito rápido o percurso das mulheres, num país que consagrou constitucionalmente a igualdade de géneros apenas há 37 anos e onde persistem muito boas razões para se afirmar que tal igualdade não encontra a devida correspondência na legalidade e, muito menos, na prática social. Por exemplo, as advogadas grávidas O agregador da advocacia


www.advocatus.pt

não podem ter baixa, à semelhança do que acontece com a generalidade das trabalhadoras, e quando não podem trabalhar, arcam sozinhas o ónus da falta de produtividade. Isto acontece mesmo no âmbito do regime de segurança social, que as obriga a pagar mensalmente sobre um limite mínimo de dois salários mínimos nacionais. Numa palavra, a obrigação sem o correspondente direito. E quando nasce o bebé, a lei atribui, generosamente, um subsídio de maternidade de três a seis retribuições, equivalentes ao que se desconta para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores. Resultado: as mães advogadas recomeçam a trabalhar mais cedo que a generalidade das outras profissionais. É que as despesas do escritório, as solicitações dos clientes e os prazos processuais não se compadecem com puerpérios razoáveis. Quanto aos prazos, a lei consagra a possibilidade de adiamento, por dois meses, de certos actos processuais, por referência ao parto. E estamos conversados em matéria de direitos das advogadas: “o tal” subsídio de maternidade e o adiamento de actos processuais! No mais, coexistem para elas como para eles toda a sorte de agruras das práticas jurídica e forense: os apertados prazos legais e os judiciais (que são como calha); as constantes alterações da lei; a diversidade de jurisprudência; a deslealdade dos adversários; a competição dos pares … E, por aí adiante! Só que, para eles, as dificuldades da jornada ficam-se por aí e, para elas, ao fim do dia, recomeça um novo turno. Ir buscar as crianças à escola e ouvir atentamente o recado da professora; passar pelo supermercado; dar banhos; fazer o jantar; prestar a atenção possível aos filhos antes da hora de deitar; consultar na internet a conta bancária; planear o dia seguinte... Todo um conjunto de tarefas essenciais, antes do merecido repouso que vai ser interrompido por um pesadelo ou uma fralda para mudar. E isto bastaria para explicar por que é que, na razão inversa do número de advogadas, são eles que lideram. Mesmo sem fontes oficiais, estimaO agregador da advocacia

“Não é a qualidade que torna única a advocacia praticada em saltos altos. Aliás, a qualidade é requisito que pode rarear ou abundar, surgir por surtos ou regularmente q.b., independentemente do sexo do sujeito”

Porque é que, na razão inversa do número de advogadas, são eles que lideram? Mesmo sem fontes oficiais, estima-se que a liderança feminina nas sociedades de advogados é de menos de 10 por cento

-se que a liderança feminina nas sociedades de advogados é de menos de 10 por cento. Mas existem outras causas, mais arreigadas e, eventualmente, mais difíceis de combater. São as culturais, que ao longo do tempo remeteram as mulheres para certas funções, ligadas à casa e à educação dos filhos, e que fazem desconfiar sobre a sua competência.. Passaram quase cem anos desde que Regina Quintanilha ousou lutar e vencer num mundo de domínio masculino. Em 1913 ela era a única e hoje são cerca de 14 mil advogadas. Noutras paragens, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, dá-se um empurrão à causa feminina com a proliferação de escritórios female friendly, com trabalho ajustado e flexibilização de horários. Por cá, a liderança feminina exige superpoderes, mesmo contando com um sólido suporte familiar. Neste ponto, e por uma questão de justiça, não podem deixar de ser referidos os avós – essa grande instituição – e os raros companheiros que, efectivamente, partilham tarefas – e não apenas ajudam - como potenciadores das super-líderes. E já me esquecia, tudo em saltos altos! Para uma pincelada de real, num cenário imaginado cujos personagens não são pura ficção, poderia acontecer assim: - Quando se encontram de manhã à porta da sala de audiências, adversários numa intrincada causa, ela advogada e ele advogado, carregam a sua história. O próximo passado dele: noite tranquila com a ajuda de uma pastilha; acordar duas horas e quarenta e cinco minutos antes da audiência, para rever alguns pontos do processo; proceder à higiene matinal com especial enfoque no escanhoar da barba; dar um nó perfeito à gravata escolhida de véspera e rematar os preparativos com uma taça de cereais integrais e uma bebida tonificante. O próximo passado dela: despertar as mesmas duas horas e quarenta e cinco minutos antes da audiência e levantar com um atraso de meia

hora porque o sono foi irresistível; tirar uma criança da cama e vestir-lhe uma camisola quente; lutar com a tampa de um iogurte e o fecho de uma mochila; escrever um recado à empregada. De caminho, a toilette, que não descurou pulseira nem brinco a condizer com o relógio. Também fond de teint e écharpe voile, porque há “francesices” fundamentais para o sucesso de uma mulher. Retoque de batom e blush no sinal vermelho. Voltando à porta da sala de audiências: olhos nos olhos, cumprimentam-se com elegância e medem-se. “O emproado”, pensa ela! “A fútil, a tilintar pulseiras”, pensa ele! Na audiência extremam-se as posições, como convém. Ele dita para a acta protestos plenos de latinismos e brocardos da mesma fonte. Ela não se fica e cita, rigorosa, o nome do instituto que julgou conveniente à situação, emprega sete vezes a palavra “justiça” e fala na primeira pessoa. O meritíssimo, já se vê, entediado com o dèjá vu! Já no escritório ele, fanfarrão, vangloria-se aos colegas por antecipação de uma vitória de que duvidava seriamente. Ela verbaliza, com vernáculo, que aquele homem a irritava profundamente! Enfim, são dois estilos a que se atribuem qualificações…! Assim: Ela confessa-se nervosa e é incapaz! Ele transpira, repete meneios de pescoço e é empenhado! Ela comove-se e é fraca! Ele ignora a maior desgraça e é competente! Ela eleva o tom de voz e é regateira! Ele brama e faz-se ouvir! Ela chega sempre atrasada para ir buscar os filhos à escola e não é uma mãe competente! Ele vai à escola um dia por semana e é bom pai! Enfim, muitos mais exemplos se seguiriam! O que aqui importa é o modo como é permitido a cada um encarar cada desafio. Ele tem que estar livre das vicissitudes domésticas para poder enfrentar as vicissitudes profissionais. Ela enfrenta as vicissitudes profissionais em simultâneo com visitas ao pediatra, guerras do condomínio e a gestão de afectos! Compreende-se a posição dominante! Ela é de dar medo! Junho de 2011

29


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.