Tribunal deve funcionar como um triângulo

Page 1

www.advocatus.pt

Entrevista

João Teives director Advocatus

Jorge Fiel jornalista jf@briefing.pt

Noronha Nascimento, presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Tribunal deve funcionar como um triângulo

Ramon de Melo

“Não acho bem que na sala de tribunal o MP se sente à direita do juiz. O tribunal deve funcionar como um triângulo. O juiz tem de se posicionar num nível superior, para estar equidistante e acima das duas partes”, afirma Luís António Noronha Nascimento, 67 anos, que critica a intimidade entre juízes e procuradores: “Os advogados fazem uma crítica constante ao facto de, nos julgamentos, juízes e magistrados do MP, ambos saídos do CEJ, entrarem pela mesma porta, conversarem, irem almoçar juntos”

Advocatus I Com a austeridade, mais desemprego e menos dinheiro, é previsível que a conflitualidade aumente e isso se reflicta na Justiça. O sistema, já de si lento, está preparado para o aumento de litígios? Noronha Nascimento I Vai causar, provavelmente, problemas a todos os sectores, não só à Jus34

Dezembro de 2010

tiça, até porque esta crise não surge por causa da Justiça. Esta crise surge devido a questões político-económicas e financeiras. Penso que estamos a pagar os efeitos, em termos ocidentais, das opções a prazo da chamada Escola de Chicago, que é uma recuperação da “Escola Vienense” (1920), que se entendia à

data, como resposta ao marxismo, mas hoje em dia não se entende. Advocatus I É um keynesiano? NN I Economicamente, não tenho pensamento. O que estou a dizer é que esta crise tem origem em motivos político-económicos e tanto se vão ressentir a justiça O novo agregador da advocacia


www.advocatus.pt

e os tribunais como outros sectores sociais, tais como a Saúde ou a Educação. Nos tribunais, penso que os efeitos maiores se vão dar a quatro níveis: Direito do Trabalho, com mais despedimentos; insolvências familiares, uma enxurrada de acções de recuperação de crédito, com maior número de acções interpostas; e a criminalidade citadina, tanto ao nível do aumento da pequena criminalidade como quanto à criminalidade violenta. Advocatus I Os tribunais estão preparados para isso? NN I Hoje em dia os tribunais portugueses funcionam em dois países, interior e litoral. Supremo e Relações funcionam depressa. Na primeira instância dos tribunais do litoral é que há maiores problemas, porque julgam pequeno e médio processo, tanto de crime como de cível. Na primeira instância e recurso, para um crime de homicídio, o nosso tempo médio é de um ano e quatro meses, quando em França demora três anos só na primeira instância. Em Portugal, temos tribunais completamente encharcados de processos com acções de dívida. Penso que o primeiro sintoma, que ninguém percebeu, de que a criminalidade se ia alterar, qualitativamente, foi com o caso do “Mea Culpa”. Na criminalidade económica, o problema é muito mais complicado e tem a ver com as off-shores. Recorda-me quando acompanhei o gang de Valongo, que era composto por 20 e tal pessoas que actuavam em grupos separados em zonas distintas. A complexidade era de tal ordem que os juízes tiveram de abandonar o cível para irem integrar o colectivo dos tribunais penais. O Vale do Sousa esteve em estado de emergência, e isso passou completamente despercebido ao País. Advocatus I Acha que os juízes que temos chegam ou vai ser preciso formar mais para fazer face ao aumento da litigiosidade? NN I Neste momento, acho que os O novo agregador da advocacia

Entrevista

“Nos tribunais, os efeitos maiores da crise vão sentir-se a quatro níveis: Direito do Trabalho, com mais despedimentos; insolvências familiares, uma enxurrada de acções de recuperação de crédito e a criminalidade citadina, tanto ao nível do aumento da pequena criminalidade como quanto à criminalidade violenta”

“Os juízes em Portugal estão mal distribuídos. Nós não temos uma reforma administrativa há 150 anos e o problema do sistema judiciário é que é exactamente o mesmo do tempo do Mouzinho da Silveira. Como é que é possível que isto se mantenha? Há juízes a mais em Lisboa e Porto. Há juízes a menos nas comarcas perto de Lisboa e Porto”

juízes em Portugal estão mal distribuídos. O mapa judiciário tem de ser completamente alterado. Nós não temos uma reforma administrativa há 150 anos e o problema do sistema judiciário é que é exactamente o mesmo do tempo do Mouzinho da Silveira. Como é que é possível que isto se mantenha? Há juízes a mais em Lisboa e no Porto. Há juízes a menos nas comarcas perto de Lisboa e do Porto. Estas são cidades com uma orgânica judiciária diferente do resto do País. Como é que é possível que assim aconteça, apesar de Sintra e Gaia serem os concelhos mais populosos do país? É necessário repensar a mobilidade de funcionários. Já dei este exemplo umas mil vezes: Sever do Vouga é um tribunal que não devia existir, pois tem 300 processos para oito funcionários, já nem juiz residente há lá. Para que é que se mantém uma comarca destas? E arranjo-lhe mais 20 ou 30 exemplos de tribunais que deviam desaparecer. O problema da gestão dos próprios juízes dentro de cada comarca é mais outro ponto que tem de ser repensado. Toda a gente sabe, mas ninguém tem coragem de dizer, que há juízes e funcionários a mais nas varas cíveis. É uma vergonha!

“Antigamente, tínhamos uma acção de despejo muito mais rápida porque seguíamos o modelo inglês”

Advocatus I O novo mapa judiciário não veio resolver o assunto? NN I Não, até porque ainda nem foi implementado. É possível que venha contribuir para melhorar o sistema, mas há que alterar alguns aspectos. Senti isso quando saí de Gaia, onde trabalhava como um doido, para o Porto, onde parecia que estava de férias. Toda a organização administrativa tem de ser repensada, pois mais nenhum país da Europa tem freguesias. A unidade administrativa base é o município e depois há as grandes regiões. Países mais pequenos, como a Áustria, Dinamarca e Holanda, têm regiões. Advocatus I Lisboa tem tribunais a mais ou os juízes estarão >>> Dezembro de 2010

35


www.advocatus.pt

Entrevista

>>>

mal distribuídos? Por exemplo, no Tribunal do Comércio… NN I O que sempre funcionou mal neste país foram as execuções, porque quando chega a altura de cumprir a sentença, todo o devedor foge. E depois andase atrás dos bens. É um problema cultural e organizacional. E o Tribunal de Comércio é um tribunal de execuções.

“Os anglo-saxónicos não têm Tribunal Constitucional. Essas funções são exercidas pelo Supremo Tribunal de Justiça. Acho que o nosso modelo devia ser este, mas hoje não há condições políticas para isso”

Advocatus I É um problema cultural português? NN I Em Inglaterra é a polícia que trata do assunto. Quando não é cumprido, o credor põe a polícia a resolver o assunto. O tribunal decide, mas é a polícia que cumpre. Antigamente, tínhamos uma acção de despejo muito mais rápida porque tínhamos o modelo inglês. Os tribunais ficavam desentupidos se fossem retiradas as acções executivas, porque estão formalmente no tribunal e entram nas suas estatísticas, mas são de facto geridas por pessoas que lhes são externas e os juízes e funcionários não têm nada a ver com elas. Este novo sistema é uma semi-privatização do modelo. Pois eu digo, privatizem-nos de uma vez, passam a ser os solicitadores a participar. Há 1,6 milhões de acções, das quais um milhão são execuções. Aconteceu-me muitas vezes penhorar um bem numa acção e um executado vem dizer que o bem não é seu. Os ingleses não ligam a isso, são incidentes dilatórios, e eu também fazia isso quando era juiz - embargos de terceiro não serviam de desculpa. Nós temos acções a mais. Advocatus I Em que sentido o Processo Civil devia ser alterado? NN I O Processo Civil devia aproximar-se cada vez mais dos processos arbitrais ou de jurisdição voluntária. Em certo tipo de processos, o juiz devia ter a hipótese de definir as regras no início. Esta é também a opinião do Dr. Robin de Andrade. Advocatus I Em resumo, não há falta de juízes. NN I Atenção que este ano vão

36

Dezembro de 2010

“Os tribunais ficavam desentupidos se fossem retiradas as acções executivas, porque estão formalmente no tribunal e entram nas suas estatísticas, mas são de facto geridas por pessoas que lhes são externas e os juízes e funcionários não têm nada a ver com elas”

“Para além da má distribuição, o maior problema de gestão de juízes reside no facto de, na primeira instância, termos 75% de juízas em idade fértil. Portanto, ao longo do ano é normal termos várias juízas grávidas. Este é o maior problema”

sair muitos. E só vão entrar dez. Aqui no Supremo, há pelo menos 10 a 12 que vão sair. Nas relações não sei quantos vão sair. Para além da má distribuição, o maior problema de gestão de juízes reside no facto de na primeira instância termos 75% de juízas em idade fértil. Portanto, ao longo do ano é normal termos várias juízas grávidas. Este é o maior problema. Portugal criou há uns anos um sistema que só existe em Itália que é a bolsa de juízes, para flexibilizar estas situações. Outra coisa que não pode acontecer é uma juíza da bolsa ir substituir a colega que entra de licença e a seguir engravidar. E isto aconteceu. Têm de se estabelecer regras. Advocatus I Muita gente critica o facto de 97% dos juízes terem sido avaliados com Bom ou Muito Bom. Não acha que isso descredibiliza a avaliação? NN I A esmagadora maioria dos juízes é mesmo boa, tecnicamente, porque têm uma escola de formação extremamente exigente, que é o Centro de Estudos Judiciários (CEJ), e depois têm formação contínua praticamente obrigatória para a evolução na carreira. A lei faz presumir que a classificação-padrão é Bom, mas um juiz com esta classificação nunca chega à Relação. O Bom é um 10. A Relação exige, no mínimo, um Bom com Distinção. Para o STJ, embora na teoria um Bom com Distinção chegue, praticamente só entram juízes com Muito Bom. Os concursos de acesso ao Supremo são extremamente exigentes. Advocatus I O Dr. Júdice compara o CEJ às madraças… NN I Eu nunca estive nem no CEJ nem numa madraça. Acho que o maior problema do juiz não é saber Direito, mas fazer o julgamento e depois acertar, em função da prova que foi feita, na fixação dos factos dados como provados, que vão depois servir para a sentença. E, nesta questão, acho O novo agregador da advocacia


www.advocatus.pt

que o nosso sistema piorou numa coisa: tínhamos um modelo centrado no julgamento colectivo, agora temos um modelo centrado nos homens, no modelo juiz singular - excepto no crime. Antigamente, todas as acções, a partir de uma certa importância, eram julgadas em colectivo no Cível, no Trabalho ou no Crime. Acho que o julgamento colectivo era um dos melhores meios de formação contínua de juiz porque este tinha de confrontar a sua opinião com a dos outros. No Cível, pode-se julgar sozinho 30 anos e só quando chega à Relação é que se vai julgar com os outros, o que torna o encaixe muito mais complicado. O julgamento colectivo permitia o confronto constante de opiniões e eventuais discrepâncias. Julgar é um acto de autoridade que, repetido sozinho ao longo de 20 ou 30 anos, pode trazer reflexos condicionados graves. Nesse aspecto, acho que o modelo piorou com o julgamento singular. Advocatus I Está correcta a ideia que as pessoas têm de que a Justiça em Portugal é lenta e, por isso, injusta? NN I Não sei. Regra geral, acho que o maior erro que se comete é tentar estabelecer uma equivalência entre o tempo informativo e o tempo de decisão do tribunal, pois este não pode decidir segundo o tempo informativo. Se me perguntar: “Acha que as acções cíveis importantes demoram muito tempo desde a primeira instância até serem decididas no Supremo?”, eu respondo que não tempo. O novo sistema de recurso vai limitar o acesso ao Supremo, portanto o prazo diminuirá e isso poderá ter inconvenientes. Há casos em que a Primeira Instância e a Relação decidem da mesma maneira e que o Supremo já não decide. Isso acabou. Advocatus I Não acha que há uma discrepância muito grande entre o julgamento e a matéria de facto? Porque no Crime, passados menos 30 dias, temos o julgamento da matéria de facto e a sentença unificaO novo agregador da advocacia

Entrevista

“A esmagadora maioria dos juízes é mesmo boa, tecnicamente, porque têm uma escola de formação extremamente exigente, que é o Centro de Estudos Judiciários (CEJ), e depois têm formação contínua praticamente obrigatória para a evolução na carreira Julgar é um acto de autoridade que, repetido sozinho ao longo de 20 ou 30 anos, pode trazer reflexos condicionados graves. Nesse aspecto, acho que o modelo piorou com o julgamento singular”

“Os tribunais administrativos seguiram um pouco a regra dos tribunais comuns, por isso é que não faz sentido nenhum que hoje haja separação. Qual é a diferença entre um contrato de empreitada entre dois particulares ou uma empreitada para o Estado? Há algumas regras específicas, mas de resto, a teoria geral do contrato é exactamente igual”

da. E no Cível temos a leitura da resposta à matéria de facto, que é o mais complicado, e depois temos quase que um ano, às vezes mais, para proferir uma sentença e os casos até são simples... NN I Isso não justifica. Aliás, depende do tipo de tribunal. Se for um tribunal com cinco mil processos… agora se for numa vara, não se justifica. Advocatus I Mas não poderia haver uma unificação da sentença como existe no Crime? Ou acha que é mais complicado transpor isso para o Cível? NN I Complicado não será, mas também não é muito fácil. Vejamos: porque é que há jurados no Crime e não há no Cível? Porque o Crime é mais ético. O Crime é mais perceptível por um jurado, que vai julgar um furto, do que uma questão de incumprimento de contrato de promessa. Repare que o Direito Civil foi a base do Direito. Hoje, os princípios gerais do Direito estão no Código Civil, porque foi à volta deste que se foram elaborando tecnicamente os institutos. O Direito Criminal só dá dinheiro agora, com os crimes económicos, porque antigamente não dava. Há trinta anos havia o homicídio e os crimes violentos. Os grandes pareceres dos professores da faculdade, no Direito Penal, começaram a aparecer quando surgiu o crime económico. Portanto, a própria elaboração do Direito Penal aumentou e modificou-se exactamente quando começou a dar dinheiro.

“Defendo a figura do defensor público porque continuo a pensar que a garantia da defesa do cidadão passa muito por ter alguém que, efectivamente, o defenda. Tenho um relatório feito por um secretário do 3.º e 4.º Juízo Criminal de Lisboa sobre os defensores oficiosos que é arrasador. Em 300 processos havia 700 defensores oficiosos…”

Advocatus I Acha que o Cível é mais complexo? NN I Sim. Por exemplo, se for ler a lei das 12 tábuas, e para mim foi uma surpresa: encontra lá regras puras do Direito Cível…. Advocatus I Dentro a pirâmide de três graus, Primeira Instância-Relação-Supremo, não sente que, com o nascimento do Tribunal Constitucional e o fim dos assentos, o papel do >>>

Dezembro de 2010

37


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.