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Entrevista
Fátima Sousa jornalista fs@briefing.pt
“A lógica da net está a ocupar o território da televisão. Na segunda metade do século XX havia a tradicional reunião familiar à volta do televisor, era como uma lareira que aquecia os espíritos. Mas essa organização estilhaçou-se, há mil ecrãs por todo o lado, vemos o que queremos, quando queremos” — afirma Nuno Artur Silva, seis meses depois de se ter lançado no audiovisual sem intermediários, com o canal Q
Nuno Artur Silva, director executivo das Produções Fictícias
Ramon de Melo
Lógica da net ocupa a televisão
Briefing I Como é que vieram parar à Travessa da Fábrica dos Pentes? Nuno Artur Silva I Viemos cá parar por acaso. A dada altura, depois de trabalharmos em casa uns dos outros e de termos partilhado o escritório com a produtora David & Golias, pôs-se a questão de termos um espaço nosso. Começámos à procura e viemos aqui ter. Estamos desde 1996 na Travessa da Fábrica dos Pentes, que é um nome excelente – 14
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há já quem lhe chame a travessa da fábrica das piadas… Briefing I As Produções ainda têm muito de Fictícias? NAS I Cada vez mais. Somos uma empresa de escrita de ficção. Começámos por ser uma equipa de escrita e, sobretudo, de escrita de humor porque era para essa área que nos pediam coisas. Fomos sendo conhecidos como argumentistas de humor
porque trabalhávamos com comediantes como o José Pedro Gomes, o António Feio e o Miguel Guilherme. Logo a seguir veio o Herman e depois o Contra Informação. Com o tempo percebemos que o certo era desenvolvermo-nos como agência. As pessoas que escreviam para as Produções Fictícias (PF) eram esmagadas pelo nome. Primeiro, éramos conhecidos como “os tipos que escrevem para o Herman, que fazem O novo agregador do marketing.
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aquilo do Contra Informação”, depois vieram as PF e o passo seguinte foi dar a conhecer os autores – o Nuno Markl, o José de Pina, o Rui Cardoso Martins, mais tarde o Ricardo Araújo Pereira… Com o tempo construímos uma rede criativa: a PF original, a PF Agência, a PF Empresas, a PF Júnior, a PF Formação. Numa lógica de abrir todas as possibilidades de trabalho, faltava-nos a componente de produção, pelo que criámos a F. O nome joga com uma série de coisas de que gostamos: a fábrica da rua, a fábrica do imaginário pop do Andy Warhol, a fábrica de F for fake, do Orson Welles…
Entrevista
“Cada vez mais, os espectadores seguem conteúdos e não canais, pelo que é relativamente indiferente o canal onde o conteúdo passa”
Briefing I Como é produzir conteúdos para estações com diferentes critérios editoriais? NAS I O mercado televisivo é muito escasso em Portugal. Até há pouco tempo, havia apenas três potenciais clientes, só ultimamente começaram a entrar outros players. Para sobreviver, nós, como outros produtores, tivemos de encontrar soluções para trabalhar com os vários canais, reagindo ao enquadramento de cada um. Mas uma coisa é a lógica do canal, outra o conteúdo de humor. Até porque se tem vindo a assistir a um fenómeno de trânsito de comediantes – o Herman começou na RTP, depois passou para a SIC, entretanto regressou; os Gatos também passaram da RTP para a SIC… Cada vez mais, os espectadores seguem conteúdos e não canais, pelo que é relativamente indiferente o canal onde o conteúdo passa. Hoje em dia, é muito difícil um canal ter identidade própria, ser um sítio onde as pessoas vão independentemente de quem lá está. As pessoas dispersam-se, gostam de escolher os programas, não são fiéis como eram. Briefing I Quer dizer que a maneira de ver televisão vai mudar? E a de fazer televisão? NAS I A maneira de ver televisão vai mudar. Hoje ainda há aquela curiosa divisão entre o “vou ver televisão” e o “vou à net”, mas, quando o cruzamento entre a televisão e a internet se consolidar, quando se juntar o zap com o link, vai deixar de fazer sentido. Vamos passar a consumir O novo agregador do marketing.
“Como disse Chris Andersen, autor do livro “The long tail”, o futuro do entretenimento é ganhar cada vez menos de mais sítios. É o que está a acontecer”
conteúdos audiovisuais em diferentes suportes. Como vamos chamar a isso? A lógica da net está a ocupar o território da televisão. Durante a segunda metade do século XX, havia a tradicional reunião familiar à volta do televisor, era como uma lareira que aquecia os espíritos. Mas essa organização estilhaçou-se, há mil ecrãs por todo o lado, vemos o que queremos, quando queremos… independentemente de continuar a haver conteúdos muito fortes e agregadores, que só dão àquela hora, como o futebol, a notícia política. A lógica da televisão deve ser a de valorizar o directo e os eventos porque depois tudo o que vemos é o que queremos. Claro que isto vai ter implicações no modelo de negócio. Quando começámos com as PF havia produtores que nos encomendavam trabalhos, que nos pagavam quando os entregávamos e estava feito. Era um modelo simples, mas com os dias contados. Basta ver o que aconteceu com a indústria musical. A música está sempre à frente nas tendências, porque é um meio muito ágil e porque é muito consumida por jovens, disponíveis para mudanças imediatas. Com a música acessível na net, os MP3, a pirataria, vieram as quebras nas vendas de discos e a crise nas editoras. Hoje é muito difícil viver da música e os músicos vivem, mais do que nunca, dos concertos. Transferindo para o audiovisual, é preciso que as televisões encontrem os seus “concertos ao vivo”, um produto forte que possa ter um ciclo de vida em diversos suportes. Como disse Chris Andersen, em “The long tail”, “o futuro do entretenimento é ganhar cada vez menos de mais sítios”.
“O investimento em publicidade faz-se a partir de uma leitura desfasada das audiências, sem que tenha havido um acompanhamento real. Mas há muita gente que sobrevive neste status quo, impedindo que se faça um novo mapa do que se passa em televisão”
Briefing I Como é que olha para a televisão em Portugal? NAS I Os canais generalistas já não são tão generalistas quanto eram, perderam espectadores para o cabo e para a IPTV (Internet Protocol Television). A TVI é inegavelmente a estação que ganha mais dinheiro no seu canal generalista, mas não conseguiu diversificar, a TVI24 ainda não tem uma identidade. A curto e médio prazo, a TVI vai ter um problema que é o da diversidade de públicos. >>> Novembro de 2010
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TDT, sabe-se dela? A experiência da relação do poder com os audiovisuais é péssima.
“A RTP deveria ser uma peça absolutamente chave para o desenvolvimento do audiovisual português na lógica de uma política da língua assumida”
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Curiosamente, de forma inversa, a SIC soube criar uma rede de canais e integrá-la num grupo maior. Tem canais bem constituídos, mas o principal, que é o generalista, tem um problema de sobrevivência imediata, embora esteja bem preparado para o futuro. Briefing I E A RTP? Ainda faz sentido o serviço público? NAS I A grande questão é que a RTP não se pode posicionar como um canal mas como uma rede multimédia. Penso que os últimos dois mandatos foram bons na interpretação de um certo serviço público, mas num futuro próximo não faz sentido este modelo, aliás já não faz. A RTP deveria ser uma peça absolutamente chave para o desenvolvimento do audiovisual português na lógica de uma política da língua assumida, não pelo Ministério da Cultura nem pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas pelo próprio primeiro-ministro. E articulada com uma real política de desenvolvimento do audiovisual e incentivos ao jornalismo independente e de investigação. Neste momento, já não há só um problema de media, é um problema da democracia: há jornais que fecham e outros que 16
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sobrevivem, há projectos melhores e outros piores, mas é fundamental que o jornalismo tenha o seu papel de quarto poder e que existam jornalistas livres, independentes e com capacidade para fazer investigação. Briefing I Entre o fim da publicidade na RTP e a privatização, onde é que se revê? NAS I Não sou a favor de retirar a publicidade, porque isso bloqueia completamente alguma diversidade que a estação possa procurar. Pode haver programas viáveis só com patrocínio, outros que incluam placement e não devemos impedir a RTP de os ter. Mas sou a favor do fim dos intervalos comerciais, o que libertaria parte da publicidade para os privados. A RTP deveria estar mais preocupada em investir em conteúdos do que entrar na lógica comercial. Não percebo a ideia de privatização. Vão privatizar o quê? Sempre que se fizeram grandes mudanças no audiovisual correram mal. Veja-se a maneira como foram lançados os canais privados: atribuiu-se logo um canal à Igreja Católica. Veja-se a maneira como se vendeu a rede da PT, como se iniciou depois a TV Cabo, o que aconteceu com o 5.º canal. E a
“É estimulante abrir um canal a meio de uma crise…Acredito que é possível fazer uma espécie de SIC Notícias do entretenimento, um canal português para adultos que se interessem pelo que está a acontecer”
Briefing I Não é um olhar optimista. Mas, apesar disso, as PF lançaram um novo canal… NAS I É um facto que o audiovisual português está a viver uma situação muito difícil. Os canais generalistas privados lutam pela sobrevivência. No cabo, olha-se para as programações e vê-se que há um momento inacreditável, só se aposta em formatos estrangeiros. Ninguém arrisca. Eu diria que só há dois canais com identidade própria. Um deles é a TVI, com aquela lógica novelesca e de justiceiro, que se prolonga por todo o dia. Toda a TVI está formatada, e bem, para pessoas que quase só vêem televisão, que não se dispersam, mas a médio prazo tem o problema de agarrar os públicos A e B e os mais jovens. Pode fazer-se Morangos com Açúcar, série 23, mas não é a mesma coisa…O outro é a SIC Notícias, o canal de referência da informação alternativa. Fora isso, as pessoas vão atrás dos conteúdos. E, nessa discussão, pareceunos um desafio interessante perguntar o que é um canal hoje. O nome do canal tem a ver com esse Quê. Mas também com o 15, que é o lugar que ocupamos na grelha, com o Q de vermos o que queremos, quando queremos. Há essa provocação, que sempre esteve na matriz das PF. Briefing I Não foi demasiado arriscado mesmo assim? NAS I Há 20 anos que vivo com esta ideia do “eh, pá, isso não vai resultar!”. Disseram-no em tudo o que experimentámos, às vezes tiveram razão, mas muitas vezes enganaram-se. Quando começámos a fazer o Contra Informação disseram-nos “isso em Portugal não pega” e está no ar há 15 anos. Quando fizemos o Herman Enciclopédia, perdíamos estrondosamente para a concorrência e, no entanto, ficou no património popular. Quando começámos o Inimigo Público, disseram-nos o mesmo e hoje é o suplemento mais lido do jornal. Dos Gato Fedorento diziam que era um humor adolescente e tornou-se um O novo agregador do marketing.
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fenómeno nacional. Sobre o Homem que Mordeu o Cão, diziam que o stand-up em Portugal não funciona… Sobre o Eixo do Mal era “o tom sarcástico não entra bem na SIC Notícias” e tornou-se um dos programas mais vistos do canal… Estou habituado. Abrir um canal a meio de uma crise… A nossa ideia foi criar um sítio onde esse público possa encontrar entretenimento, conversas sobre filmes, livros, discos, prazeres, ideias, pessoas novas, outras perspectivas. Será que não conseguimos que fiquem connosco? Ainda por cima, com a lógica de visionamento que o meo permite. Acredito que é possível fazer uma espécie de SIC Notícias do entretenimento. Mas é uma maratona, não uma corrida de 100 metros. Ambicionamos criar uma marca forte, que gere uma comunidade de pessoas que a segue. Parte da graça está em arriscar. Faz parte do ADN do canal essa ideia de risco, de esboço.
Entrevista
“Só há uma coisa mais grave do que privatizar a RTP - é deixá-la na mesma”
Briefing I O Inimigo Público também foi um risco… NAS I O humor nos jornais era uma tradição que se tinha perdido (res-
PERFIL
O humorista na sua prancha de surf Nuno Artur Silva tem 48 anos. Faltam-lhe dois para alcançar uma meta – a de passar a direcção executiva das Produções Fictícias e dedicar-se a outros projectos. Escrever, que não apenas humor, banda desenhada, quiçá. E um filme: “Nunca fiz, mas hei-de fazer”. É uma ideia que não abandona. E que, provavelmente, concretizará. De si próprio diz, aliás, que é obstinado – “Não desisto enquanto não se concretizar” é a atitude que o faz levar para a frente os muitos projectos que assume. O Q é o mais recente. Entusiasma-o – a ele que diz ter ido para a televisão “tardiamente, já tinha 20 e muitos anos” - sentar-se com pessoas com metade da sua idade e partilhar ideias. Lisboeta completo, absoluto e convicto, divide-se entre o Castelo, onde vive, e a Travessa da Fábrica dos Pentes, onde o seu escritório é o exemplo perfeito da ordem. Na secretária, os objectos alinham-se, cada um no seu lugar. Nuno explica: a secretária é a sua prancha de surf para enfrentar as ondas e como o mar é imprevisível a prancha tem de estar sempre impecável. É tão calmo como organizado. Perder a cabeça será difícil. Afinal, tudo é relativo. Profissionalmente é muito próximo do que é pessoalmente. Talvez por isso não haja grandes fronteiras entre o que faz por trabalho e por prazer: ler, escrever, pensar. Sempre com um bloco e um lápis à mão.
O novo agregador do marketing.
tringia-se ao humor involuntário…). A administração do Público, justiça lhe seja feita, recebeu-nos e passados seis anos é uma das marcas fortes do jornal. A nossa actualidade dá muitos motivos de humor. E quanto mais em crise o país está mais motivos há para encontrar ângulos cómicos. Cá, como em todo o mundo, há uma necessidade de libertação que o humor traz, liberta porque nos faz rir com o que nos perturba. Jon Stewart (The Daily Show) foi eleito a pessoa mais influente dos media americanos (não ambiciono isso, não, não…). E o que ele faz e brilhantemente é um trabalho de desmontagem e análise da cena política americana. Briefing I E na publicidade o humor resulta? NAS I Depois do sexo, o que é mais eficaz em publicidade é o humor. Podia resultar melhor se houvesse mais investimento. Mas em Portugal não há muitos anúncios humorísticos, convidam-se comediantes para fazer anúncios mas os conteúdos nem sempre são cómicos. O Ricardo fez aquele anúncio para o Montepio do “Falam, falam, falam e eu não os vejo a fazer nada”, o Bruno Nogueira fez o “Perfeito, perfeito” da Super Bock, o Tochas fez uma campanha da Frize – pode achar-se mais ou menos graça, mas foram bem sucedidos. Mas não é comum. Os anunciantes dizem sempre que querem fazer diferente, mas acabam a fazer uma coisa completamente defensiva e inócua.
“Depois do sexo, o que é mais eficaz em publicidade é o humor. Podia resultar melhor se houvesse mais investimento. Mas em Portugal não há muitos anúncios humorísticos, convidam-se comediantes para fazer anúncios mas os conteúdos nem sempre são cómicos”
Briefing I Há limites ao humor? NAS I Colocar limites ao humor é um mau princípio. Há os limites da lei e os da consciência do humorista, mas pode fazer-se humor com tudo. O exemplo mais clássico das piadas nos funerais, toda a gente sabe que são grandes desopilantes. O humor é transgressor. No fim, o emissor decide se coloca ou não no ar. Metaforicamente, ainda funciona como na Idade Média em que o bobo da corte fazia as piadas e o rei, se não gostava, mandava cortar-lhe a cabeça. Ele sabia que estava sujeito a este jogo, hoje também funciona assim. Novembro de 2010
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