O bibliotecárioda Twitteresfera

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Dora Assis jornalista

O desafio é enorme: José Afonso Furtado, director da Biblioteca de Arte da Gulbenkian. Considerado pela Time uma das 140 pessoas mais interessantes no Twitter, fez correr muita tinta na imprensa e as referências no mundo digital multiplicaram-se quase à mesma velocidade a que o próprio twitta. Muitas entrevistas, notícias e comentários depois, o que falta saber? Entre afirmações, interrogações, negações e algumas exclamações, ganham as reticências… Como em qualquer história nunca está tudo dito e enquanto há vida fica quase tudo por dizer

O bibliotecário da Twitteresfera “Eu seria profundamente desequilibrado na minha maneira de estar na vida se me limitasse a fazer apenas uma coisa. Tenho muitos interesses, alguns dos quais pela sua permanência, persistência e intensidade acabaram por se tornar hábitos, paixões, vícios mesmo”, foi assim que José Afonso Furtado, ou @jafurtado como é conhecido na 24

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“A informação alterou o paradigma do ecossistema em que vivemos”

Twitteresfera, encetou a conversa. Nasceu em Alcobaça em 1953. Desses tempos relembra com satisfação os anos de escola primária, no ensino oficial, por opção dos pais, que lhe deram uma visão mais abrangente do mundo e das pessoas. “Numa terra como Alcobaça era naquele tempo, anos 50, o facto de ter passado quatro anos O novo agregador das comunicações


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num ambiente que atravessava todos os estratos sociais não só me abriu os horizontes como me proporcionou uma forma mais equilibrada de encarar as relações e os outros”. Foi colega de carteira, por exemplo, de Victor Martins, mais tarde jogador de futebol do Benfica e da selecção nacional. “No recreio, eu fazia parte da sua equipa de futebol e ganhávamos sempre, porque já na época ele fintava tudo e todos”, recorda com visível satisfação. Percebe-se pelos exemplos que dá que foram quatro anos que o marcaram para a vida. “Cedo compreendi as desigualdades e as diferenças que nos rodeavam e, consequentemente, as oportunidades e os condicionalismos que de forma diferente se nos apresentariam”. José Afonso Furtado não perdeu o vínculo com as origens. Ainda tem uma casa em Alcobaça e ali vai com a frequência que a vida lhe permite. Dos primeiros anos recorda como as idas a Lisboa “eram uma coisa que se preparava com tempo”. É no seu tom de voz calmo, pausado e ponderado e não sem algum pesar que diz: “Apesar da auto-estrada e de um conjunto de outras coisas, as assimetrias podem ser diferentes hoje, mas continuam a existir. Reflectem-se de outra forma, mas continuam a ter as mesmas variáveis sociológicas, sociais e políticas que tinham antes do 25 de Abril”. José Afonso Furtado está convencido de que iremos ter, e nalguns casos até já temos, “fracturas, fossos, separações e assimetrias no domínio do saber lidar com o conhecimento e com o próprio saber numa sociedade de informação em rede”. É um homem desde sempre ligado aos livros (“em casa havia uma biblioteca enorme”) e à rede nacional de bibliotecas há muitos anos, dá aulas e, no seu entender, uma das coisas que irá permitir a distinção entre os ricos e os pobres da informação, numa sociedade pós-industrial em que a matéria-prima passou O novo agregador das comunicações

“Tenho uma média de tweets por dia que não tem explicação, é verdade, mas faço-o à medida que vou trabalhando, tanto no trabalho como em casa. O multitasking pode ser vantajoso em pessoas como eu, que se interessam por muitas coisas mas que conseguem não se desconcentrar ou perder completamente o foco”

a ser a informação, o que vai criar a elite e distinguir os privilegiados dos outros é a capacidade de encontrar, pesquisar, recolher, credibilizar, avaliar e saber utilizar a informação que precisam, no momento em que precisam. “A minha experiência nas bibliotecas e como docente leva-me a pensar que essa fractura não está a diminuir, por mais planos tecnológicos que se criem! É um fenómeno que atravessa todas as sociedades, até porque hoje em dia a noção de fronteira é uma coisa difusa, e atravessa inclusivamente as nossas próprias casas. Da mesma forma que anteriormente o que nos distinguia era o acesso às matérias-primas, a capacidade de transformação das mesmas e a maneira como os produtos posteriormente eram colocados no mercado. A informação alterou o paradigma do ecossistema em que vivemos e hoje o que fará a distinção não é necessariamente a escolaridade. O facto de se ter uma licenciatura não é sinónimo de as pessoas serem capazes de encontrar nesse universo que

“Hoje temos de ter, sobretudo, capacidade de adaptação à mudança. E, mais importante que isso, termos noção de que há uma história para trás de nós. O mundo não começou ontem e a História, de facto, é comprida”

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PERFIL

Entre dois mundos José Afonso Furtado licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Exerce desde 1992 as funções de director da Biblioteca de Arte da Gulbenkian e é também professor, do Curso de Pós-Graduação em “Edição - Livros e Novos Suportes Digitais da Universidade Católica Portuguesa”. É ele próprio autor de diversas obras sobre o livro e sua transição para o mundo digital. Já foi presidente do Instituto Português do Livro e da Leitura (entre 1987 e 1991), vice-presidente do Conselho Consultivo da Fundação Luso-Brasileira para o Desenvolvimento do Mundo de Língua Portuguesa e membro da Comissão Nacional da Língua Portuguesa e da Comissão

Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Integrou o Conselho Superior de Bibliotecas desde 1998 até à sua extinção em 2007. O seu percurso tem-se feito entre os dois mundos – o dos livros e o digital - e, de alguma forma, foi também isso que levou a revista Time a considerá-lo uma das 140 pessoas mais interessantes do Twitter, uma “nomeação” que lhe valeu ainda o cognome de “O Borges do Twitter”. Tudo porque a sua paixão pelos desafios das novas tecnologias associadas aos desafios que as mesmas colocam ao mundo editorial é uma paixão indisfarçável, que o acompanha há anos. E, no caso, já fez história.

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Inauguração da Feira do Livro de São Tomé, 1990 (com Alda Espírito Santo)

IV Bienal do Livro do Rio de Janeiro, 1989 (com José Cardoso Pires e Rui Knopfli)

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ameaça tornar-se infinito – que é a internet – a informação que precisam e, sobretudo, que tenham a capacidade, o saber fazer, o know-how, a estratégia, os mecanismos, os recursos, o espírito crítico para distinguir a informação de qualidade, da informação sem qualidade ou da má informação”. É claramente um pensador. Em todo o seu discurso, nas ideias que vai partilhando, nas preocupações que evidencia há sempre a marca, mais ou menos indelével, da licenciatura em Filosofia. “A Filosofia proporcionou-me um pano de fundo muito importante que, juntamente com um conjunto de pessoas que tive oportunidade de conhecer nos tempos de faculdade, que seriam figuras emergentes e influentes na nossa cultura, me marcaram”, relembra. “Tive aulas de Literatura com o David Mourão Ferreira. Acho que posso dizer que sou um leitor ávido, compulsivo ou doentio, como lhe queira chamar. Imagine, por isso, a importância e a marca desses tempos!” É com alguma preocupação que diz que a escola está cada vez mais desadequada do ambiente que nos circunda, na medida em que se empenha em proporcionar competências em domínios que, com um pouco de sorte, num par de anos já deixaram de existir ou de ser sequer importantes. “Hoje temos de ter, sobretudo, capacidade de adaptação à mudança. E, mais impor26

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“Já vi as mais extraordinárias projecções sobre a passagem meteórica de documentos em papel para ficheiros ou arquivos digitais. De cada vez que leio ou ouço que em 2025 vamos estar todos a ler em digital, dá-me vontade de rir. É que, e lá vem outra vez a história, eu já ouvi antes esta história!”

Com a filha Mariana, Alcobaça, 2004

Conferência «Leer y escribir en el ecosistema digital», Encuentros en Urueña, La lectura y sus suportes, Fundación Germán Sánchez Ruiperéz, Urueña (Salamanca) 16 de Abril de 2011

tante que isso, termos noção de que há uma história para trás de nós. O mundo não começou ontem e a História, de facto, é comprida. Nós somos o legado, a herança de uma cultura que convém conhecer.” O ar consternado permite perceber a preocupação com aquilo que considera “falta de cultura geral”. Teve o primeiro eBook em 1998. Comprou-o três anos antes da “bolha tecnológica” e recorda-se de que na altura leu “uns 30 ou 40 relatórios de consultoras” explicando que o livro em papel iria desaparecer. Todos os cenários apontavam o mundo electrónico. Mas a verdade é que foi preciso aparecer o Kindle para, em 2006/2007, se voltar a falar de eBooks. Apesar de passar a maior parte do tempo à frente do computador, acha, curiosamente, que é preciso ter alguma distância em relação às tecnologias. “Eu tenho uma desculpa enorme para a minha loucura com os chamados gadgets, que é dizer que tenho de perceber para poder explicar aos alunos. Eu tenho iPad1, iPad2, todos os Sony que saíram, tenho três kindles...”. “Tenho uma média de tweets por dia que não tem explicação, é verdade, mas faço-o à medida que vou trabalhando, tanto no trabalho como em casa. O multitasking pode ser vantajoso em pessoas como eu, que se interessam por muitas coisas mas que conseguem não se desconcentrar ou perder completamente o foco”.

E o livro, o velhinho livro em papel, está condenado? Terá os dias contados? José Afonso Furtado sorri e diz: “Já vi as mais extraordinárias projecções sobre a passagem meteórica de documentos em papel para ficheiros ou arquivos digitais. De cada vez que leio ou ouço que em 2025 vamos estar todos a ler em digital, dá-me vontade de rir. É que, e lá vem outra vez a história, eu já ouvi antes esta história!”

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