Rã publicitária e escorpião anunciante

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Lugares incomuns

Eduardo Cintra Torres ect@briefing.pt

Se as campanhas na internet são amadoras e as campanhas nos media tradicionais perdem carácter, os publicitários estão em processo suicidário e os anunciantes enquadram-se na fábula de Esopo: o escorpião mata a rã que o leva para a outra margem do rio e morrem os dois

Rã publicitária e escorpião anunciante Ao escrever a minha crítica de publicidade semanal para o Jornal de Negócios no princípio de Abril, verifiquei que as campanhas televisivas do Continente e da Sagres usavam a mesma linguagem e imagens quase idênticas. Há vários anos que marcas e produtos muito diferenciados, como cerveja, supermercados, bancos, telecomunicações ou gasolina, repetem as mesmas ideias sem nos dar tempo de esquecermos a campanha anterior. Neste caso, recorrem à bandeira nacional, ao futebol, à unidade nacional, ao “somos” e “estamos”, ao “todos” e ao “juntos”, e à multidão como ideia de pátria-que-não-se-discute. Os anúncios são bem concretizados, mas a falta de originalidade impressiona. De originalidade e de ousadia. Parece que os publicitários se transformaram na própria multidão a que recorrem como imagem-símbolo: não inventam, não debatem. Parece que se tem alterado a estrutura de decisão no processo publicitário. A cadeia de comando dilui-se por diversas entidades, departamentos, grupos de experts & managers, quer nas empresas anunciantes, quer nas empresas que executam as campanhas. Ocupando cargos, identificados com palavras inglesas, que não faço ideia a que tipo de trabalho correspondem, há muitos intervenientes metendo a sua colherada, dando bitaites, alterando a ideia inicial. Os publicitários têm os criativos, os executores, os executivos, e ainda os contabilistas, todos com um medo muito novo de 42

Abril de 2011

“Já não se pode ‘despedir um cliente’, como fez há anos um célebre publicitário nacional. Agora ‘é come e cala-te’. O resultado? O mesmo que seria Flaubert ter mudado a Madame Bovary de acordo com o que dissessem os editores, o senhorio, os colegas, os críticos, os académicos, os leitores, os tipógrafos e o cocheiro”

“Parece que se está a voltar ao tempo préhistórico em que os anunciantes é que faziam os anúncios”

exercerem uma independência editorial, essencial ao processo publicitário. E os anunciantes têm os seus especialistas: parece que se está a voltar ao tempo préhistórico em que os anunciantes é que faziam os anúncios. Dou a mão à palmatória: discordei do argumento de Al Ries e Laura Ries em “A Queda da Publicidade e a Ascensão das Relações Públicas” (Editorial Notícias, 2003). Agora dou-lhes alguma razão: no quadro actual dos media e da indústria publicitária, as Relações Públicas tendem a substituir a Publicidade. Por cima da diluição decisória, a crise não ajuda. Já não se pode “despedir um cliente”, como fez há anos um célebre publicitário nacional. Agora é come e calate. O resultado? O mesmo que seria Flaubert ter mudado a Madame Bovary de acordo com o que dissessem os editores, o senhorio, os colegas, os críticos, os académicos, os leitores, os tipógrafos e o cocheiro. A publicidade é diferente, por ser uma obra colectiva e com conteúdo dependente da realidade produtiva e empresarial, mas assemelha-se no facto de o processo criativo necessitar de uma linha de rumo para que o conteúdo criativo — a única parte dele que, afinal, o espectador ou leitor conhecerá — não perca a identidade inicial. Uma campanha em cuja construção, uns têm medo do cliente, e muitos metem a sua colherada, acaba por ser obra de pato-bravo. Aos curto-circuitos no carácter editorial dos anúncios e à crise, soma-se um terceiro factor, por agora negativo: os novos media ainda não

possibilitaram uma criatividade apropriada, com qualidade, mas já prejudicaram a publicidade tradicional, não só pelo natural, desejável e necessário desvio de investimento para a internet, mas também pela quebra de qualidade criativa. Em pouco menos de dois anos, as páginas dos jornais e revistas tornaramse, em termos publicitários, muito enfadonhas, sem brilho, sem originalidade, sem surpreenderem, sem interpelarem. Actualmente, tenho dificuldade em encontrar na imprensa, generalista ou especializada, anúncios que me espantem e impressionem positivamente. A banalidade reina, e a banalidade foi sempre a pior característica da publicidade. Se as campanhas na internet são amadoras e as campanhas nos media tradicionais perdem carácter, os publicitários estão em processo suicidário e os anunciantes enquadram-se na fábula de Esopo: o escorpião mata a rã que o leva para a outra margem do rio e morrem os dois.

O agregador do marketing.


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