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Corporate Governance
Regulamentar para credibilizar
João Ribeiro/WHO
Não se deverá impedir a actuação dos mercados e o desenvolvimento da auto-regulação, nem excluir os códigos recomendatórios de boa governação, mas uma regulamentação, mesmo que imperativa, poderá contribuir para uma nova credibilização e confiança no sistema
Numa altura em que surge uma crise financeira de dimensões históricas, com uma recessão económica generalizada e de grande incerteza, com o desmoronar de diversas empresas e instituições financeiras, será esperável assistir, nos próximos tempos, a um acentuar progressivo de questões judiciais relacionadas com a responsabilidade civil contra administradores de sociedades. As importantes alterações legislativas ocorridas por força do DL n.º 76A/2006, de 29 de Março, com a maior explicitação dos deveres fundamentais dos administradores, 26
Maio de 2011
“Há que reagir e tentar prevenir escândalos financeiros por má governação, pois não existe uma cultura de responsabilidade dos administradores e há um subaproveitamento dos preceitos vigentes, verificando-se escassas sentenças condenatórias contra titulares de órgãos de administração”
e a consagração da BJR no art. 72.º, n.º 2, do CSC, criaram novas condições que possibilitam novas perspectivas de responsabilização e análise da conduta dos administradores e uma maior sindicabilidade por parte dos tribunais. Desta forma, com todas as alterações e debates a que vimos assistindo, há uma maior exigência de rigor, transparência, clareza, responsabilização das partes, que em muito se deve à crescente influência da Corporate Governance. Há necessidade de reagir ou tentar prevenir escândalos financeiros por má governação (má gestão)
“A problemática jurídicosocietária da governação das sociedades tem sofrido uma evolução bastante grande, e leva-me a questionar se deverá existir uma primazia das regras de mercado ou se, pelo contrário, deveremos continuar a reconhecer o papel da lei e a sua função reguladora” O agregador da advocacia
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dos administradores e fazer face aos novos problemas que surgem com a globalização económica (e dos mercados), pois não existe uma cultura de responsabilidade dos administradores e há um subaproveitamento dos preceitos vigentes, verificando-se escassas sentenças condenatórias contra titulares de órgãos de administração. Na sua génese, o princípio da BJR designa uma regra que limita a apreciação judicial do mérito das decisões empresariais, de forma a não inibir a adopção de decisões arriscadas e dinamismo empresarial. Numa tradução livre, podemos designá-la por regra de análise e julgamento da conduta e mérito das decisões empresariais do gestor (gerentes ou administradores). A BJR proporciona, desta forma, um maior grau de protecção aos administradores, limitando a sua responsabilidade às decisões empresariais irracionais (e não irrazoáveis). Verificamos, contudo, que em Portugal a sua recepção teve um diferente enquadramento na lei. Se, por um lado, o legislador pretendeu consagrar a BJR no nosso ordenamento jurídico no n.º 2 do art. 72.º, por outro modificou o seu sentido e orientação. Em vez de consagrar uma presunção de licitude, parece estabelecer, pelo contrário, uma “quase” presunção de ilicitude. No art. 72.º, n.º 2, exige-se que o gestor prove ter cumprido os deveres que lhe são impostos no n.º 1 do art. 64.º do CSC. Tem o ónus de provar que agiu de acordo com os critérios, deveres de cuidado e diligência previstos, pois se não o conseguir fazer, a sua conduta será qualificada como ilícita, não se excluindo a sua responsabilidade. O administrador que prove terem-se verificado as condições indicadas no n.º 2 do art. 72.º do CSC, não será responsabilizado, por ausência de ilicitude. Veio assim estatuir-se uma presunção de ilicitude da conduta do gestor, sendo a ele que competirá o ónus de provar que “actuou em termos informados, livre de qualO agregador da advocacia
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“Subverteu-se, a meu ver, o sentido original da Business Judgement Rule, invertendo o ónus da prova e a sua orientação. Desta forma, em vez de proteger os gestores, agrava a sua situação jurídica”
“Informação, transparência, cooperação, rigor, clareza, razoabilidade, bom senso são as palavras de ordem a ter em conta”
quer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial”. De realçar que não se exige ao administrador prova que foi uma boa decisão de gestão, mas apenas a demonstração dos requisitos e que os critérios a que obedeceu são, em termos empresariais, racionais. Subverteu-se, a meu ver, o sentido original da BJR, invertendo o ónus da prova e a sua orientação. Desta forma, em vez de proteger os gestores, agrava a sua situação jurídica. Acresce que a remissão na parte final do n.º 2 do art. 72.º do CSC para “critérios de racionalidade empresarial” acaba, na verdade, não só por tornar a prova para o administrador bastante difícil, como também implica para o tribunal uma maior investigação e avaliação da conduta do administrador, dando margem a indesejáveis interpretações subjectivas. Quais são estes critérios? Perante uma potencial violação dos deveres de cuidado e de “critérios de racionalidade empresarial”, como poderá o tribunal apurar a verdade dos factos, se não for pela avaliação do mérito desses mesmos actos (objectivamente contrários aos critérios de racionalidade empresarial)? A efectivação da responsabilidade civil dos administradores para com a sociedade, por violação do dever de cuidado, será bastante difícil fora dos casos em que se possa, com grande certeza e rigor, ajuizar e provar a falta de cuidado ou a pouca diligência da conduta dos administradores. Desta forma, em vez de se afastar dos tribunais o julgamento do mérito das decisões empresariais, acaba por aproximá-lo cada vez mais da via judicial. A problemática jurídico-societária da governação das sociedades tem sofrido uma evolução bastante grande, e leva-me a questionar se deverá existir uma primazia das regras de mercado, da liberdade negocial e da auto-regulação, ou se, pelo contrário, deveremos continuar a reconhecer o papel da Lei e a sua função reguladora.
Filipe Barreiros Advogado e Mestre em Direito das Empresas. Autor do livro “Responsabilidade Civil dos Administradores: os Deveres Gerais e a Corporate Governance”, editado pela Coimbra Editora, grupo Wolters Kluwer
Se há uns anos atrás o caminho era para a progressiva auto-regulação societária, dúvidas surgem se, face à conjuntura actual com uma crise económica sem precedentes e com os mediáticos casos actuais, como o caso Madoff, entre outros, em que não só se vislumbram notórios casos de gestão negligente, mas outros em que a supervisão das entidades reguladoras, e supostamente responsáveis, falharam redondamente, não se assistirá a uma vontade de um maior controlo e sindicabilidade por parte dos tribunais do mérito das decisões empresariais, um retorno a uma regulação feita por entidades estaduais e judiciais, até por imperativos de pressão social e a uma maior exigência de responsabilização por parte dos administradores. Não se deverá impedir a actuação dos mercados e o desenvolvimento da auto-regulação, nem excluir os códigos recomendatórios de boa governação, mas reconheço que uma regulamentação, mesmo que imperativa, poderá contribuir para uma nova credibilização e confiança no sistema. Informação, transparência, coope-ração, rigor, clareza, razoabilidade, bom senso são as palavras de ordem a ter em conta. Maio de 2011
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