Telúricas e
sábias Texto BRUNA CASTELO BRANCO brunacastelob10@gmail.com Foto MILA CORDEIRO mila.fotografia@gmail.com
Mesmo depois de séculos de discriminação e perseguição, tradições pagãs politeístas continuam vivas e são praticadas por bruxas na Bahia
O Sacerdotisa, Graça Azevedo fundou um templo há 42 anos
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pentagrama no alto do portão azul do Templo Casa Telucama, em Lauro de Freitas, chama a atenção dos curiosos e repele os dogmáticos, que o consideram um símbolo amaldiçoado. Nas culturas pagãs, a figura pode significar desde a união dos quatro elementos – água, terra, fogo e ar – ao espírito, ou apenas “o ser humano de braços abertos ocupando um lugar no espaço, como O Homem Vitruviano de Da Vinci”, explica Graça Azevedo, 70 anos, bruxa suma sacerdotisa da tradição Telucama. “A nossa linguagem é muito simbólica, e isso sempre incomodou muita gente”. Professora de história da arte, artista plástica e terapeuta holística, Graça passou por 19 anos de formação sacerdotal até fundar o templo, há 42 anos. Na família, é a primeira bruxa a se tornar sacerdotisa. “A minha avó era uma mulher sábia de origem celta portuguesa. Eu sabia que existia a bruxaria e fui buscar esse conhecimento em Portugal. É uma busca extremamente natural”. Ao entrar na Casa Telucama, que, além do lar de Graça, é uma aldeia, o visitante é surpreendido por imagens de deusas, altares, bosques e animais, entre cães e gatos de todas as cores, não apenas os pretos. O calendário, contado de forma diferente, marca o ano de 5747. Na entrada, quem chega é recebido por Deméter, a deusa-mãe grega, dona da casa. Próximas ao lago, uma em frente à outra, estão outras divindades: a filha, representada pela caçadora Ártemis, e a avó, Hécate, a deusa dos caminhos. Nas religiões pagãs, essa é a trindade sagrada, que traduz o ciclo da vida. “Nós entendemos a vida como a jovem, a mãe e a avó. Elas podem ser representadas por
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FOTOS: RAUL SPINASSÉ / AG. A TARDE
leva de volta aos contos de fadas descobertos na infância. “Por quê? Não havia bruxos?”, pergunto a Graça. “Na maioria das culturas, eram as mulheres que pegavam as ervas e faziam experimentos, medicações, alimentos. O poder da cura estava ligado ao feminino. A revelação da sacralidade da mulher começa quando ela atenta ao período menstrual. Nove luas depois da última menstruação, nasce um ser semelhante. Para os homens, isso era a sacralidade. Ele via que a mulher sangrava todo mês e não morria. Ele, em uma luta, tomava um corte e morria”, esclarece. Na Idade Moderna, durante a Inquisição, as mulheres, consideradas espiritualmente mais frágeis do que os homens, passaram a ser perseguidas pelo cristianismo, explica o pesquisador Janluis Duarte, da Universidade de Brasília (UnB), que estuda as manifestações socioculturais associadas à religião. “Na bíblia, a culpada por todos os males da humanidade é a mulher. A caça às bruxas começou no século XVI, como um resultado da misoginia do cristianismo, que via as mulheres como seres mais facilmente tentadas pelo demônio. No fim, era uma perseguição da igreja contra a mulher, não contra a prática da bruxaria em si”. Na iminência de desaparecer, os grandes clãs de bruxos se recolheram em casa, celebrando suas divindades em família aos pés do fogão.
SÍMBOLOS ANCESTRAIS
várias deusas diferentes, não necessariamente essas três. A avó e a neta ficam uma de frente para outra, simbolizando a ancestralidade. É a mais orgânica celebração da existência”. De origem politeísta e matrifocal, todas as divindades de quaisquer religiões são acolhidas pela tradição Telucama, que sobrevive às escondidas há centenas de anos. “A inquisição deturpou o significado da palavra bruxaria. Historicamente, as bruxas são apenas as mulheres do campo que buscaram a sabedoria. Bruxos e bruxas são guerreiros e guerreiras, defensores do planeta Terra e da grande mãe, a natureza”. Desde a sua gênese, há mais de cinco mil anos, a bruxaria agrega três campos: a arte, as ciências naturais e a religião. Na cultura celta, formada por camponeses da região da Grã-Bretanha, a religião significava religar-se com a natureza, entender que o ser humano não é superior, mas parte da Terra. “Nós nunca nos desligamos. Somos politeístas, entendemos a divindade e sacralidade em todos os seres que constituem o grande útero, que é o nosso planeta”. Quando se pensa em bruxaria, a imagem da mulher cruel ou da velha má nos
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Para várias tradições, o caldeirão simboliza o útero e é objeto de cura
Na Casa Telucama, um terreno de quatro mil metros quadrados quase de frente para o mar, utensílios como vassouras e caldeirões estão espalhados por todo o espaço. “Na bruxaria, temos objetos domésticos como símbolos ancestrais”, diz Graça. A vassoura, além de limpar as energias, também aparece nas portas dos altares e diferentes cômodos da aldeia, indicando que aqueles são locais sagrados e só podem ser adentrados com permissão. O caldeirão, em todas as tradições da bruxaria, representa o útero, além de um objeto de cura. “É no caldeirão que são feitos os alimentos e medicamentos, por isso é tão importante e ancestral”. Os anos de reclusão dos clãs fizeram com que a bruxaria não se tornasse uma religião massiva. “Foram 300 anos de Inquisição, e ainda assim conseguimos manter a nossa cultura. A cozinha se tornou um ambiente de troca, nossa sala de visitas. É lá que servimos um chá, um chocolate quente, para acolher as pessoas que buscam a sabedoria”. Os livros de receitas sagradas e mantras também são passados de mãe para filha, que, ao longo da vida, devem transcrevê-lo, acrescentando suas próprias experiências, e, por fim, queimá-lo. “A minha neta já está copiando o meu. Logo ela
terá o próprio livro”. Mesmo marginalizada, a bruxaria ainda hoje desperta o interesse e ganha novos adeptos. Foi essa procura que levou Graça a criar o Colégio Ponto de Mutação, escola de formação sacerdotal voltada para a trajetória de povos celta-ibéricos. Primeira e única escola da tradição Telucama no Brasil, hoje o colegiado tem cerca de 90 postulantes e iniciados matriculados. Para entrar, não basta querer, é preciso estudar e ter idade suficiente. Apenas maiores de 18 anos podem frequentar o espaço, e, antes de serem aceitos, passam por entrevistas com psicólogos da aldeia. “Hoje, virou moda ser bruxo. Recebemos muitos adolescentes que querem vir aqui por curiosidade, não pela vontade de se comprometer com as crenças. Por isso, a pessoa precisa conhecer bruxaria antes de entrar aqui”, frisou. Nos dois primeiros anos, a formação, que dura cerca de nove, é voltada para o autoconhecimento. “O que queremos fazer é a integração da bruxa e do bruxo na sociedade em que vivemos hoje. Promover o respeito à natureza, respeito aos princípios humanos”. No início, o colegiado era mais procurado por mulheres, mas, atualmente, esse número já está equilibrado. Entre os frequentadores do templo,
há muitos médicos, educadores, psicólogos e artistas. “Todos nós seguimos a vida normalmente, com nossas famílias, profissões. Aqui é onde encontramos a nossa espiritualidade”.
A RODA DO ANO
Joyce Gonçalves, adepta da Wicca, também cultua divindades de outras religiões
Quando a estudante de design Joyce Gonçalves, 20, descobriu a Wicca, já estava descrente do mundo espiritual. “O cristianismo não fazia mais sentido para mim. Nunca entendi essa lógica da mãe de Deus, Maria, ser submissa a ele”. A Wicca, religião neopagã, conhecida como bruxaria moderna, nasceu por volta dos anos 1950, chegando ao Brasil nos anos 1970. O que diferencia essa prática da bruxaria tradicional é a forma de celebrar os deuses. “Resgatamos muitas das crenças dos povos celtas, mas somos uma religião
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pancultural, celebramos rituais e divindades de várias tradições, como a hindu, por exemplo. Acredita-se que todos as deusas são manifestações de uma deusa primordial, e os deuses são manifestação de um único deus primordial, que foi formado pela deusa, que é a natureza, criadora de tudo. Ela é o planeta. Ela é tudo, é a energia”. No quarto, Joyce tem dois altares, nos quais há imagens de deusas, como a indiana Kali, “minha deusa-mãe, senhora da minha vida”, e a irlandesa Brigit. Na Wicca, há a possibilidade de celebrar a natureza de diversas formas, sem regras muito rígidas a serem seguidas. “Não temos um livro sagrado. Se você entrevistasse outra bruxa, poderia ouvir algo completamente diferente. O único dogma aceito por todas as tradições Wicca é: faça o que quiser sem a ninguém prejudicar”. Outra característica importante, reforçada por todas as tradições, é a abstenção ao proselitismo. “Nós não buscamos devotos. Não tentamos convencer ninguém de que somos a religião certa, de que é a salvação. Nenhum bruxo vai bater na sua porta para falar: você teria um minuto para ouvir a palavra da deusa?”. O paganismo não segue o calendário gregoriano. Na bruxaria, o tempo é contado a partir da noção da Roda do Ano, que começa e termina no dia 31 de outubro (hemisfério norte) ou 1º de maio (hemisfério sul). Essa data, o Samhain, pela proximidade do inverno, marca a morte do deus-sol, época em que os pagãos se recolhiam à espera do frio e do renascimento da divindade, que aconteceria entre os dias 21 e 26 de dezembro. Ao longo da Roda do Ano, são celebrados os Sabbats (o Ciclo de Sol), e os Esbats (o Ciclo da Lua). “Mas não há nenhuma prova concreta de que essas celebrações, os Sabbats e os Esbats, vêm dos povos celtas. A única celebração comprovadamente celta é a do Samhain. As outras foram sendo incorporadas ao longo do tempo pelo neopaganismo”, ressalta Duarte. Hoje, Joyce faz os seus rituais e celebrações sozinha. Por não haver, na Bahia, representantes da Caminho das Sombras, tradição Wicca brasileira que mais se aproxima dos seus ideais, ela ainda não foi iniciada no sacerdócio, o que não a impede de ser bruxa. Quando fala sobre Caminho das Sombras, costuma assustar aqueles não muito acostumados ao assunto. “Nem todos entendem que nada é só luz, nada é só escuridão. Tudo está em tons de cinza, sombrio, em um sentido de que é equilibrado. Não existe bem e mal, existe equilíbrio, existe a natureza como ela deve ser”. Na bruxaria, a morte é entendida como a energia nutricional da vida. “A morte e a vida são sa-
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gradas. A morte alimenta a vida. Para vivermos, para nos alimentarmos, as coisas precisam estar morrendo o tempo todo”.
CÉU E INFERNO Antes de descobrir a bruxaria, a massoterapeuta Lara* (que pediu para não ser identificada), 33 anos, sentia que faltava alguma coisa na vida. Foi através de livros sobre a Wicca que descobriu a religião pagã tradicional, que segue atualmente. “Fui me aprofundando e percebi que eu não era wiccana, me interessava mais pelas tradições antigas”. Há alguns anos, participou de um grupo chamado Irmandade Min, que praticava rituais celtas e estudava um pouco de cada panteão, indo do grego ao romano até os nórdicos. No paganismo, conceitos como bem e mal, céu e inferno não existem. “Eu não sou mais importante do qualquer outro ser. Está tudo interligado, tudo deve ser tratado com respeito. No paganismo não existem demônios, não existe inferno. A gente acredita no livre-arbítrio. Se você faz algo errado, se faz mal a uma pessoa, esse mal retornará três vezes para você”. Quando era adolescente, Lara, que pratica e estuda o paganismo há 20 anos, foi execrada por um pastor em praça pública. “Eu estava de farda, voltando da escola, com um colar do pentagrama. O pastor estava com um microfone na rua, pregando. Ele foi até mim, segurou a minha cabeça e começou a dizer que eu usava o símbolo do demônio, que nada daria certo na minha vida. Fiquei sem reação. Consegui me soltar e saí andando rápido, mas ele ficou gritando no microfone, todas as pessoas olhando para mim”, lembra. Para converter mais facilmente os povos pagãos, a Igreja Católica, quando chegou às ilhas britânicas, transformou alguns templos politeístas em cristãos. “Algumas divindades e datas comemorativas, porém, foram incorporadas ao cristianismo, em um processo de transculturação”, atesta Janluis Duarte. As deusas mais maternais, como Brigit, foram transformadas em santas. As mais sexualizadas, como Lilith, viraram as esposas do demônio. Outras foram abafadas e tornaram-se mitos. “Muitos feriados católicos, como a Páscoa, por exemplo, derivam do paganismo, mas poucas pessoas sabem disso e condenam as práticas dos povos pagãos”, conclui Lara.
PODER DE CURA “Sou bruxa, curandeira, mulher”, diz Marcela Oliveira, que, aos 17, adotou o nome mágico Máh Búadach Ingen Ecnai, que, em galês medieval, significa vitoriosa filha da sabedoria. Hoje, aos 30 anos, Marcela já não está tão ligada à bruxaria tradicional. Des-
Marcela Oliveira busca perpetuar o saber das curandeiras
ADILTON VENEGEROLES / AG. ATARDE
cobriu no sagrado feminino, filosofia que busca a cura das feridas causadas às mulheres pelo patriarcado, a sua missão na Terra. “Me curando, posso curar minha mãe, que irá curar uma chaga espiritual que veio de minha avó. Quando uma mulher se cura, cura toda uma geração que veio antes e que virá depois dela. Esse é o meu papel para as gerações futuras, começando com o meu filho dentro de casa”. No dia 31 de março, Marcela, cozinheira profissional, iniciou o projeto Dançando Minha Lua, que busca reunir mulheres e, através de danças, meditações e celebrações em volta da fogueira, ajudá-las a curarem-se dos seus traumas. Os encontros acontecem a cada lua cheia, na Casa Kuranda, em Itapuã. Na casa, o teto arredondado, a pequena fonte e a área verde passam a sensação de se estar em um templo antigo. Na região, histórias de que a casa foi construída por uma bruxa na década de 70 é repassada pelos vizinhos. “Mas não posso falar sobre isso, são só histórias”, concluiu Marcela. Na Casa Kuranda, as influências das culturas indígenas e africanas são visíveis. “A gente busca várias deusas e aborda diversas práticas de medicina natural, ginecologia natural, resgatando práticas antigas de curandeiras, mulheres indígenas e africanas. Buscamos perpetuar os conhecimentos das avós, das sábias”. Durante os encontros, a proposta é reencontrar o divino na mulher, perdido pela ideia de que todo deus é homem. “O cristianismo pede que a mulher seja submissa. Procuramos entender esse deus masculino e buscar a espiritualidade da terra, das deusas e dos deuses. Observar o seu redor, buscar a ancestralidade local, estar em contato com a natureza, com as pessoas. O chamado para curar o meu feminino sempre foi muito forte”. É importante ressaltar que o sagrado feminino não é um segmento da bruxaria, e sim o contrário – a bruxaria nasceu da percepção de que a mulher é sagrada. “Não é uma questão de exclusão do masculino. A gente entende que a sociedade já é muito masculinizada. A ideia do sagrado feminino é expressar o feminino na mulher, no seu modo. É uma reconexão com a nossa espiritualidade”. Em volta do fogo na roda de mulheres, como faziam os antigos pagãos nas noites de lua cheia, Marcela mentaliza uma ideia do druidismo, religião pré-cristã politeísta que acredita na sacralidade da natureza. “Os druidas têm essa filosofia que gostaria de levar para a frente, que diz: curar a si mesmo, curar a tribo, curar a terra. Tudo começa, primeiro, no olhar para dentro”. «
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