Ten Identities Ten Authors

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5 PREFÁCIO BRUNO ALMEIDA

7 A IGREJA SIZA VIERA

13 A LEITURA DA CIDADE PELOS SEUS SÍMBOLOS GRÁFICOS MARGARIDA FRAGOSO

17 A LETRA ENQUANTO OBJECTO DE ESTUDO JORGE DOS REIS

25 A POLARIZAÇÃO DA AMBIGUIDADE HEITOR ALVELOS

29 O CIRURGIÃO INGLÊS EDUARDO CÔRTE-REAL

37 MODOS DE “VER” O ESPAÇO JOÃO PALLA

41 FOTOGRAFIA DE ARQUITECTURA, DEFEITO E FEITIO PEDRO BANDEIRA

47 HISTÓRIAS DE UMA MALA VASCO PINTO

53 NOTAS SOBRE PROJECTOS, ESPAÇOS, VIVÊNCIAS LIZÁ RAMALHO E ARTUR REBELO

59 DESIGNERS: ENTRE CÉTICOS E DOGMÁTICOS DIOGO DANIEL CASAS



PREFÁCIO BRUNO ALMEIDA

Nascido a vinte e quatro de agosto do mil novecentos e oitenta e nove, na pacata freguesia de Caldas de São Jorge, eu, Bruno Filipe Pereira de Almeida, filho de Fernando Gomes de Almeida e Maria Magalhães Pereira, venho por este meio tornar pública uma obra que me caracteriza, quer do ponto de vista pessoal, quer do ponto de vista existencial. Actualmente a terminar a Licenciatura em Design de Comunicação na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, decidi publiciar a presente obra como forma de recordar o percurso que realizei até então. Este periodo representa, ao mesmo tempo, o final de um cíclo e o início de um outro. Ao longo da obra serão abordadas diversas questões directa ou inderectamente ligadas ao Design, uma vez que essa é uma das áreas pela qual me interesso mais afincadamente.

Em “TEN AUTHORS, TEN IDENTITIES“ procurei reunir uma basta colectânea de textos cujos temas abordados são os mais variados assim como os autores que os redigiram. Além de apresentar dez autores diferentes, a presente obra pretende identificar dez identidades. A escolha dos diferentes temas e autores tem uma relação directa com histórias, contos ou passagens ou experiência pelas quais, ao longo dos últimos quatros anos, tive a oportunidade de tomar conhecimento. Em certa forma estas apresentam patentes algumas das premissas pelas quais diariamente guio os meus destinos Por IDENTIDADE entendemos o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com os quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimados uns dos outros, quer diante do conjunto das diversidades, quer ante seus semelhantes. 5



A IGREJA SIZA VIERA

A igreja para marco de canaveses, é só uma parte de um conjunto religioso que prevê ainda um auditório, a escola de catequese e a habitação para o pároco. A visita ao local pré-escolhido tinha-me perturbado profundamente: era um local dificílimo, com grandes diferenças de cota, sobranceiro a uma estrada com muito tráfego. Como se não bastasse, aquela zona estava marcada por edifícios de péssima qualidade. A construção deste centro paroquial é por isso e também a construção de um lugar, em substituição de uma escarpa muito acentuada. A igreja articula-se em dois níveis: um superior, da assembleia, e um inferior, da capela mortuária. Como mostram os percursos de acesso às duas cotas, trata-se de espaços com características decisivamente diferentes. A capela mortuária é quase a fundação da própria igreja: cria uma cota estável, fixa, para que a igreja possa apoiar-se. Além disso, com os seus muros de granito e o claustro, estabelece a distância em relação à estrada. Esta plataforma habitada devia portanto surgir como uma “natureza con-

struída”. Mas é muito importante também a colocação, defronte do acesso principal, do centro paroquial e da residência do pároco. Estes volumes definem um grande “U” que se contrapõe ao pequeno “u” formado pelas duas torres, a do campanário e a do baptistério. Cria-se, assim, o espaço necessário para o grande volume vertical da fachada. Ao mesmo tempo, toma-se possível uma relação com as construções de pequena escala que circundam esta acrópole. Fica, assim, demarcado o adro. A referência inicial foi uma construção pré-existente, uma residência para a terceira idade, de uma arquitectura correcta e ordenada, situada na cota superior da escarpa e com uma extensão muito significativa em relação à estrada. A partir deste novo nível, tudo o resto se foi articulando, reagindo à complexidade das construções existentes e permitindo finalmente a criação de um adro, aberto sobre o belíssimo vale de Marco de Canaveses. Esperemos que novas construções não se venham a encostar às péssimas que já lá existem e se mantenha a 7


abertura sobre o vale, que é essencial. A própria da igreja em geral. A iluminação natural varia grande porta da igreja, com os seus dez met- com o tempo, dependendo da posição do Sol, ros de altura, tem razão de existir exactamente e vai desde a projecção do desenho do raio de em relação a esta vastíssima vista. A entrada luz até à ao silêncio da aspersão: um grande faz-se, normalmente, através de uma porta de intervalo, rigoroso e palpável. A montagem de vidro, debaixo da torre da direita, enquanto todos os elementos é, evidentemente, coera porta grande só é aberta em circunstâncias ente. Todavia esta ordem, caracterizada por especiais. Depois do movimento lateral de en- algumas contradições existentes e desejadas, trada, tem-se a percepção de uma janela baixa foi construída de maneira lenta e laboriosa. e comprida, do lado direito, que permite ainda Não houve ideias pré-definidas, dadas a prioa vista para o exterior. Naquele instante, não ri. Aquilo que é agora legível é o resultado da se sente a luz difusa que chega das altas aber- decantação de determinadas reflexões sobre o turas na parede curva e inclinada, à esquerda: espaço, hoje tão difícil, da igreja. Esta dificulvêem-se, ainda e imediatamente, o vale e as dade é devida a uma série de importantes construções em frente. A alterações na liturgia: janela contradiz o ambienpense-se na celebração da te de recolhimento a que missa, que agora encontra O TRAÇADO DO PERCURSO estamos habituados numa o sacerdote virado para QUE, NO PISO INFERIOR, igreja e por este motivo a assembleia e já não de LIGA O EXTERIOR À CAPELA gerou polémicas. costas. Uma tal mudança MORTUÁRIA É O RESULTADO O mesmo se deu com a transforma por completo DO ESTUDO DAQUILO colocação da estátua da o carácter da celebração QUE ACONTECE NESTES Virgem, que é quase tão e anula o sentido de orESPAÇOS alta como os fiéis e não ganização espacial tradiestá assente em pedestal. cional, nas suas várias Todavia curiosamente, formas e na sua lenta e um teólogo, muito estipermanente evolução. Ao mado no Porto elogiou mesmo tempo, esta nova ÁLVARO JOAQUIM DE MELO SIZA VIEIRA NASCEU A 25 DE JUNHO DE 1933 EM o respeito pelos actuais condição não justifica a MATOSINHOS TENDO GANHO, EM 1992, O princípios da liturgia, interpretação da igreja PRÉMIO PRITZKER. CIZA VIERIA ESTUDOU, ENTRE 1949 E 1955, que acentuam a função como auditório. A quase NA ESCOLA SUPERIOR DE BELAS ARTES DO de mediação da Virgem totalidade dos projectos PORTO, ONDE LECIONOU ENTRE OS ANOS DE 1966 A 1969, VOLTANDO entre Deus e os homens recentes não aprofunda POSTERIORMENTE EM 1976 e por consequência entre devidamente este asos homens. De facto a especto. Era indispensável, tátua da Nossa Senhora tem uma posição in- por conseguinte, uma reflexão sobre as novas termédia: colocada na extremidade da janela condições, poderíamos dizer funcionais, do e sujeita a uma luz muito intensa, introduz espaço da igreja. E no entanto as discussões ao espaço do altar, que quem entra não nota com os teólogos puseram em evidência a conimediatamente. Três degraus elevam o plano tradição que envolve hoje as diversas interda celebração, que conclui com duas portas, pretações. Trata-se, por isso, de um programa pelas quais entra uma luz clara, filtrada por instável, ainda por resolver. Todavia era eviuma alta chaminé. Esta disposição dialoga dente a necessidade de criar uma projecção do com o banho de luz sobre as formas curvas celebrante, uma comunhão com a assembleia, dos limites laterais da abside e sobre o espaço sem que, inevitavelmente, se criasse aquela


distância própria de qualquer auditório. Por esta razão propus, para a abside, curvaturas já não côncavas mas antes convexas. E também neste caso não se trata de uma ideia pré-concebida, imediatamente derivada da variação da liturgia: é uma intuição, nascida de uma série de exigências, entre as quais a necessidade de conservar a relação entre os objectos e os movimentos que fazem parte da celebração. No espaço em volta do altar existe uma série de elementos que participam no ritual: o ambão, o próprio altar, o sacrário, as cadeiras dos celebrantes e a cruz, os quais lentamente tomaram corpo e definiram depois o espaço, no respeito pelos movimentos, pré-estabelecidos, da missa. Assim a igreja adquiriu forma como uma escultura em negativo, na qual se foram estabelecendo relações de continuidade e de tensão entre as várias partes. O traçado do percurso que, no piso inferior, liga o exterior à capela mortuária é o resultado do estudo daquilo que acontece nestes espaços. Foi determinante, na realidade, o conhecimento do significado do funeral na região do Minho. Quando visitei o maravilhoso cemitério crematório do arquitecto holandês Pieter Oud, tive a possibilidade de assistir a uma cerimónia fúnebre. Verifiquei que a atmosfera e a relação das pessoas são decisivamente diferentes do que acontece em Portugal. Aqui, durante o funeral, a família e os amigos íntimos estão muito próximos do defunto, enquanto muitas outras pessoas, vizinhos e conhecidos, seguem a uma certa distância, naturalmente com menor dor e emoção. Tomou-se por isso necessária uma sequência de espaços com características diferentes. E também por esta razão pensei num claustro, em que as pessoas vão fumar, conversar ou eventualmente, por que não, tratar de negócios: é uma maneira de reagir àquele relativo desconforto determinado pelo encontro, tão directo, com o problema da morte. Esta reacção à dor não se encontra, por exemplo, nos funerais na Holanda, durante os quais domina o silêncio total.

Ao claustro segue-se uma primeira galeria, bastante ampla, marcada logo após a porta de entrada, pela parede curva que desce da abside. Poucos metros depois abre-se, à esquerda, uma outra galeria que tem, no fundo, uma janela vertical de onde se pode ver novamente a estrada. Não sei qual a conexão entre esta janela e a janela horizontal do nível superior, mas creio que a posição vertical da que está em baixo, no embasamento é devida à procura da sensação necessária do peso, da gravidade. O percurso termina na capela mortuária, que comunica com a primeira galeria graças a uma janela horizontal. As pessoas que estão no interior têm, por isso, a percepção das que entram ou saem, exactamente como sucede no nível superior, onde os crentes dispõem da presença da estrada. Depois, ainda na capela mortuária, a chaminé de luz, que sobre o altar, no nível superior, termina aqui com uma abertura que permite a vista do claustro. Regressase então, uma vez mais, ao ponto de partida, com o rumor da água de uma fonte. No pátio impõe-se com relevo particular a presença de uma escada, que conduz de novo ao nível superior. Neste projecto, a unidade é conferida pelos percursos que terminam todos no ponto de partida, circularmente. A sensação final é realmente de um lugar fechado, bem delimitado. Sempre me impressionou muito o obsessivo convite à meditação que se sente na maior parte das igrejas. Na realidade as aberturas são colocadas frequentemente a uma altura tal que não permite que se olhe para o exterior, ao mesmo tempo que a utilização dos vitrais elimina a continuidade e a transparência. Ao contrário, parece-me que as recentes modificações na liturgia contrastam com esta visão de espaço fechado e segregado. Quando comecei a estudar o programa, depressa compreendi o enorme alcance desta ruptura na continuidade secular da tradição. Todavia parece-me que este aspecto não tem qualquer paralelo na vida real da Igreja, na relação entre a Igreja e a sociedade. Por esta 9


razão, e não obstante as necessárias adaptações, procurei preservar a continuidade com a tradição. Assim, observando atentamente o carácter desta igreja, parece evidente que a sua concepção é substancialmente conservadora. Esta intenção emerge com clareza do desenho da planta que na realidade exprime uma rígida axialidade. Contextualmente, a verticalidade do interior é muito forte. Na realidade, apesar da nave ser de secção quadrada, a articulação de determinados elementos, tais como as duas aberturas por trás do altar, dá o sentido de elevação. Diversas discussões viriam a reforçar esta ideia de continuidade com a espacialidade canónica. De resto, os conselhos dos teólogos foram constantes e determinantes. Assim, por exemplo, o baptistério, inicialmente colocado ao lado do altar, foi posteriormente desviado para perto da entrada, para que anunciasse a presença da assembleia. Além disso, uma vez que o cortejo dos celebrantes tem de percorrer o eixo longitudinal da igreja, tomou-se necessária a presença de uma porta, na parede curva e inclinada. O ritual da celebração exige, evidentemente, determinadas opções no tratamento do espaço e na organização dos percursos. Ao longo de algumas das paredes interiores foi utilizado o azulejo. Era necessário um rodapé resistente, que obviasse aos problemas da limpeza e da manutenção. No primeiro momento eu tinha pensado num revestimento em madeira. Mas esta escolha em breve me pareceu infeliz, pois teria anulado a verticalidade da parede e sobretudo porque a reflexão da luz teria sido inadequada. Pensei então no azulejo que, produzido artesanalmente, conserva uma superfície levemente irregular; isso permite reflexos particulares de luz, enquanto que as juntas, que são deixadas vazias, manifestam uma presença sensível. A continuidade com o reboco e a unidade da cor são cortadas por essa presença e por aqueles reflexos. Numa primeira fase, o azulejo ladeava toda a igreja; depois, quer pela necessidade da parede curva chegar

até o solo, quer pela problemática solução do seu contacto com as portas, o seu uso foi limitado. Um dos objectivos de que se não podia abdicar consistia exactamente em evitar que os pormenores fossem tão evidentes que competissem com a estrutura do espaço. Trabalhei intensamente na relação, encontro e transição dos materiais. O azulejo tem a função de resolver o problema da continuidade, atenuando as rupturas existentes. A maneira pela qual são ligados estes três materiais - madeira, azulejo e reboco - é muito especial, e provavelmente há coisas, que não posso descrever, que me surgiram da experiência do espaço, durante a construção. Na capela baptismal tenho intenção de desenhar - no interior da parede do acesso - figuras com cerca de seis metros de altura, deformadas segundo a perspectiva. Estas personagens, que em conjunto representam o baptismo de Cristo, são de uma importância decisiva, neste espaço excepcional, alto e estreito, e serão estilizadas de modo a que não resultem excessivas. Terão uma presença muito forte, num azul escuro ou em preto, de modo a ressaltarem no azulejo branco. Já terminei os desenhos, mas não tive coragem de dar início à realização: tenho ainda necessidade de tempo. Os elementos que devem ser desenhados são ainda muitos. A própria cruz só foi colocada depois da inauguração. Numa primeira fase tinha pensado numa cruz em madeira, com um trabalho dos contornos não muito bem definido e com volumes sobrepostos, que sugeriam a figura de Cristo. Depois o desenho passou por muitas outras fases, muito mais simplificadas, para se definir, finalmente, numa cruz em que, no encontro entre vertical e horizontal, na forma da vertical e nas vibrações da madeira, é imediatamente evidente a presença humana. Quero agora revesti-la com uma lâmina de ouro. A cruz foi colocada numa posição atentamente calibrada, próxima do altar, e com os braços que evitam a colocação longitudinal para se encontrarem, variavelmente, com a luz. A lâmina de ouro


dará, então, uma maior desmaterialização e, não reivindicando protagonismo, reagirá imprevisivelmente com o espaço. Voltando ao exterior, nota-se uma presença consistente do granito que, nesta região, é um dos elementos mais importantes na paisagem, quer na Natureza quer na construção. Neste projecto, a plataforma em granito surge como contraponto necessário à leveza e à grande

concisão geométrica do volume branco. Em algumas horas do dia a igreja quase que se desmaterializa: ora parece desaparecer, ora, noutras ocasiões, sobressai quase que violentamente. Era por isso necessária uma base que a prendesse ao solo. Eu já tinha estado no Peru, onde estudara as construções pré-colombianas, que deixaram evidentemente a marca em certos volumes tão acentuados. 11



A LEITURA DA CIDADE PELOS SEUS SÍMBOLOS GRÁFICOS MARGARIDA FRAGOSO

ENQUADRAMENTO

VANTAGENS DE UMA UNIFICAÇÃO

Lisboa, como cidade, não é um simples dispositivo administrativo ou um mero órgão de serviço público. Lisboa, como cidade, contém uma colossal carga histórica e afectiva, até a nível mundial, gerada e acrescentada ao longo dos séculos. Os símbolos gráficos municipais são parte integrante deste património histórico e cultural da cidade e, por essa razão, requerem uma gestão e coordenação extremamente cuidadas. O município de Lisboa tem recorrido, ao longo dos anos, à comunicação dos seus produtos e serviços de uma forma fragmentada, criada por pessoas diferentes e originando uma grande quantidade de ambiguidades visuais. Esta dispersão de comunicações, às vezes contraditórias entre si, confunde o citadino, dificultando a identificação da organização. A ausência de uma estratégia de planeamento e coordenação da imagem da cidade é também visível no ambiente visual que se manifesta nas legendas, letreiros e publicidade. Os bons modelos dissipam-se num panorama visualmente degradado e anárquico.

Num mundo de enorme concorrência visual da publicidade comercial e política e da agressão visual do corporate design das grandes empresas, é fundamental que as cidades procurem uniformizar e dar eficiência visual aos seus símbolos. A sua imagem deve ser clara e precisa de forma a que a população reconheça sempre a mesma entidade. Mas criar uma imagem municipal não pode ser meramente um trabalho criativo que não contemple a história, o presente, os objectivos da instituição. É preciso conhecê-la bem, analisar a sua personalidade! Ela deve obedecer ao conceito de imagem coordenada de empresa (corporate identity), que tem como fundamento a sintonia entre a identidade e a imagem. Uma imagem coordenada facilita a comunicação entre os cidadãos e a instituição e promove o respeito pela organização. Dada a variedade de situações de aplicação dos símbolos gráficos municipais, decorrente mesmo da própria variedade de funções exercidas pela 13


entidade municipal, uma correcta realização concreta da imagem coordenada nos seus aspectos plásticos exige uma abordagem altamente profissionalizada e um perfeito domínio dos problemas técnicos envolvidos. Não é, portanto, coisa que possa ser deixada ao simples arbítrio e opinião de qualquer responsável camarário, ou ser executada burocraticamente por um qualquer funcionário «jeitoso», no meio de outras tarefas da sua função. Implica um levantamento exaustivo das situações em que a imagem pode ser aplicada, a natureza dos suportes em que vai ser usada, as escalas, distâncias de observação, técnicas de execução oficinal ou fabril, os custos, modos e estratégias das operações de substituição. Implica igualmente um estudo da «concorrência» com situações congéneres no País e no estrangeiro, de forma a evidenciar a sua singularidade e, por outro lado, um cuidadoso estudo das referências históricas para evitar anacronismos ou erros factuais. REQUISITO DE EFICÁCIA FUNCIONAL

A imagem coordenada de uma instituição não é vazia de intenções ou resultado de simples gosto ou moda ou obrigação legal - destina-se a actuar, a servir uma finalidade, a atingir um objectivo definido. Essa intenção é clara: tornar identificável a presença da instituição municipal aos olhos do público, e dentro deste, com primazia, o conjunto dos munícipes. As empresas, públicas ou privadas, lutam pela afirmação de uma presença num mercado duramente concorrencial, e têm por isso de buscar permanentemente formas de visibilidade cada vez mais competitivas no plano visual e da comunicação discursiva. A fusão de empresas cada vez mais frequente, a internacionalização dos complexos empresariais e a saturação do ambiente informacional da sociedade contemporânea a isso obrigam.

Mas um município não está no mercado. Um município não «concorre», nos termos em que as empresas o fazem. Um município representa uma permanência e uma estabilidade, a sua imagem deve ser «securizante» e representativa de valores colectivos e intemporais com os quais a comunidade se identifique e sinta como seus. A percepção da modernidade, da eficácia da gestão, da capacidade de resposta concreta aos anseios e necessidades dos munícipes deve ser obtida através da «praxis», do bom exercício das funções, da confiança inspirada - e não através das técnicas de persuasão próprias da concorrência empresarial no mercado. Isso aponta claramente para a necessidade de que a imagem, sobretudo visual, da entidade municipal não concorra com as imagens projectadas pelo mundo empresarial, antes se afaste completamente delas, e se afirme com unidade. Assiste-se entre nós à deplorável situação causada pela indisciplina ou desgoverno que permite que no enquadramento do Estado Português se multipliquem as imagens privativas de Ministérios e até de Direcções Gerais e orgânicas secundárias. Numa altura em que, até pelo facto de procurar não perder identidade visual dentro da União Europeia, os países mais atentos estão a reforçar os cuidados com a manutenção da unidade e força da sua imagem, o que se passa entre nós não pode deixar de causar inquietação. Do mesmo modo, num tempo em que a concorrência entre cidades, europeias ou não, tende a agudizar-se, e em que Lisboa se deseja ver como um importante pólo da Fachada Atlântica da Europa, parece claro que uma identidade visual forte é essencial. A intervenção do designer é fundamental no estabelecimento de um programa de Identidade visual que dignifique os símbolos da cidade, e o espírito do lugar, e que promova a diferenciação e enriquecimento culturais. Espera-se dos responsáveis o reconhecimento desta necessidade como urgente.


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A LETRA ENQUANTO OBJECTO DE ESTUDO JORGE DOS REIS

Passam tão depressa pelas palavras que até podemos pôr em questão: o que é que eles fazem às letras? Vêem-nas? É de tal forma fantástico que alguns julgaram que os grandes não vêem as letras, que lêem as palavras directamente, sem passar pelas letras. José Morais

Ao longo do dia e dos dias, os nossos olhos cavalgam em grande velocidade, pisando as letras que vivem nas palavras. Estas preenchem e sinalizam o nosso quotidiano. Alimentamo-nos de letras até ficarmos de barriga cheia ao fim do dia. “Ler é pastar”1, como nos diz Roland Barthes, uma leitura suculenta, “Nós lemos um texto tal como uma mosca voa no volume de um quarto – com ângulos bruscos, falsamente definitivos, atarefados e inúteis”2, escreve o mesmo autor. Quando realizamos o acto da leitura, são vários os factores que interagem no processo de descodificação e apropriação visual da área onde está o texto. Assim, estabelece-se um conjunto de relações entre quatro elementos. Em primeiro lugar, os Caracteres tipográficos, enquanto célula mais pequena da comunicação escrita. Num segundo lugar, o espaço Branco (onde não existe texto), muita vezes menosprezado por quem desenha o livro. O branco tem um papel fundamental na estruturação e é tão importante como a própria letra num qualquer suporte tipográfico. A literacia é outro aspecto de grande importância

quando falamos de leitura. Uma projecto tipográfico onde a letra seja usada com displicência e veleidade tenderá, inevitavelmente, a constituir um causador pragmático daquilo que aqui definiremos por: iliteracia tipográfica provocada. Por último, a Textura, que não é mais do que a mancha abstracta, onde linhas de texto e entrelinhas (leading) formam diferentes nuances e texturas causadas por dois factores essenciais: o tipo de letra usado pode criar uma textura mais clara ou mais escura e a entrelinha pode, de igual forma, clarear ou escurecer a presença do texto na página. Vejamos, em profundidade, estes quatro factores em contínua interacção mútua e estabelecendo relações fundamentais para o nosso confronto com os caracteres tipográficos. QUADRO DE RELAÇÕES TIPOGRÁFICAS

Durante todo o dia, identificamos as letras que nos permitem realizar o acto da leitura. Se quantificarmos o tempo que, durante o dia, ocupamos a ler, de forma trivial, variadíssimos suportes de leitura, verificamos que estamos quase TEXTURA —

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sempre a ler e, assim, a contactar com um sem número de tipos de letra diferentes entre si. Ao vivermos em sociedade, e perante a sua organização estrutural, a letra está sempre presente. Estamos, assim, perante situações particulares e específicas de descodificação e literacia no quotidiano. Lemos sem parar: quando escolhemos o pacote de leite para o pequeno almoço; quando descortinamos o número do autocarro que devemos apanhar; quando seguimos uma dada direcção, graças ao painel de sinalética estradística; quando lemos o jornal pela manhã; quando escolhemos o prato da ementa no restaurante ou quando, mais à noite, lemos as legendas do filme que a televisão nos decidiu oferecer. Em tudo lemos e em tudo somos obrigados a conviver com o tipo de letra, para viver segundo as regras da boa organização social. Ao nível profissional, e não já vivencial, são muitas as profissões que assentam totalmente na letra enquanto material constante do seu ofício. Escrevemos, lemos e vemos a letra no emprego sem parar e, se paramos para almoçar, no repasto damos por nós a ler, outra vez. Os médicos apropriam-se dos relatórios dos doentes; os advogados sonham com os decretos lei; os engenheiros e os arquitectos embebem-se nas suas memórias descritivas; o professores curvam a coluna enquanto carregam pesados livros que escrevem e lêem. Sem a letra, todos estes seriam pó. Se descermos um pouco a escadaria, damos de caras com a senhora secretária que passa todo o dia a escrever mensagens; com a lojista ou a cozinheira que dependem da letra para identificar os produtos; com o agente da autoridade que nos escreve um papelinho preso nas escovas do para brisas; no fim, até o operário tem de diferenciar entre a tinta de água e tinta plástica pelo que está escrito na lata de tinta. As letras sufocam-nos sem as procurarmos. E quando as procuramos? Nos livros concerteza, encontramo-las nos objectos impressos e, assim, nos (re)confrontamos com elas num suporte natural que é o objecto livro. Este constitui o lugar geométrico central de utilização da letra.

É precisamente aqui que chegamos ao conceito de textura, baseado na ideia de tecido enunciada por Barthes: “texto quer dizer tecido” 3 enquanto, “véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido”. Numa outra acepção, “acentuamos (…) no tecido, a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido nesse tecido – nessa – textura o sujeito desfaz-se, como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas da sua teia” 4. LITERACIA — É grande a desresponsabilização por parte daqueles que hoje produzem e constroem esses objectos impressos e aí colocam os caracteres para a leitura contínua. Não interessa esmiuçar essas ditas aberrações do mundo impresso e do mundo do livro actual. Interessa sim balizar escolhas, justificar opções, tendo em conta os seus utilizadores. Não vamos aqui e agora, de forma moralista, condenar e apontar, mesmo que indirectamente, essas peças de má legibilidade, de cegueira ameaçadoras, de furto à fácil compreensão do sentido e semântica do texto, deixaremos a crítica para mais tarde. O caminho a seguir é, assim, balizado para definir, de forma pragmática, quais os problemas que envolvem a escolha do tipo de letra para um dado suporte. As características de utilização dessa plataforma de leitura obrigam a um trabalho de especificação tipográfica de grande precisão. Perguntas, como sejam: Quem vai ler? Onde vai ler? Quando vai ler? e Como vai ler?, são fundamentais para uma objectiva escolha tipográfica. O que é importante reter é o facto de que os caracteres tipográficos bem utilizados num dado objecto impresso. Contribuem de forma decisiva para uma compreensão plena da mensagem, logo para uma diminuição da iliteracia alvo nesse suporte específico. Quero, assim, sublinhar a dita literacia tipográfica que se encontra nos objectos impressos. O substantivo literacia imergiu na sociedade portuguesa de forma decisiva, em 1996, com o estudo “A Literacia em Portugal” 5. Aí, o termo literacia foi colocado como “um novo conceito” que “traduz a capacidade de usar as competên-


cias (ensinadas e aprendidas) de leitura, de escrita e de cálculo” 6. Chegou-se, assim, a uma definição absoluta que enuncia claramente valores distanciados do conceito de analfabetismo, mas também considerada como “um novo tipo de analfabetismo afectando a população que, apesar do aumento das taxas e dos anos de escolarização, evidencia incapacidades de domínio da leitura, da escrita e do cálculo, vendo, por isso, diminuída a sua capacidade de participação na vida social” 7. Assim, afasta-se da alfabetização por esta última ter uma evidente ligação ao percurso escolar obrigatório. Define então literacia como: “as capacidades de processamento de informação escrita na vida quotidiana” 8 . Esta competência pessoal, usada perante suportes tipográficos, como sejam tabelas, gráficos, texto, folhetos, baseia-se na generalidade no conceito de literacia, palavra apropriada da língua inglesa. O termo literacy funda os primeiros estudos 9 realizados sobre este tema, onde surge também a definição atrás referida. Mas, perante essas tabelas, textos, sinaléticas e painéis estradísticos, há toda uma dimensão de literacia e iliteracia provocada que convém reflectir. A base do problema está no que defino por tipolinguística: uma ligação, um segmento de recta entre a semântica e a letra, isto é, a escolha e o trabalho com os caracteres tipográficos e as suas capacidades expressivas exigem uma perfeita compreensão do texto por parte do mediador gráfico (designer), no sentido de o seu projecto gráfico não ser uma plataforma de leitura provocadora de iliteracia, ou que possa agravar os níveis de iliteracia funcional que, num país como o nosso, atingem valores insensatos. À instância de mediação, o caminho está aberto para infinitas malfeitorias e aberrações gráficas. BRANCO — O espaço branco desempenha um papel fundamental na fácil leitura e descodificação da escrita. A entrelinha (leading), particularmente mal tratada nos nossos livros e documentos, constitui um problema a resolver, juntamente com as opções tipográficas. São vários os

objectos impressos onde o espaço branco não constitui prioridade. Começaria pelos livros, onde razões económicas cantam em coro, deitando por terra o espaço perimetral e a entrelinha atrás referida. Os jornais são também um suporte de leitura onde esse objecto invisível e branco não abunda, pelas mesmas razões. Os argumentos da literacia e da legibilidade são agora ainda mais defraudados quando, pensamos nos documentos para preencher (por exemplo a declaração do irs), onde a massa de texto e sua organização confundem qualquer criatura. Jaques Derrida, na sua obra fundamental “Of Grammatology” (recentemente revista e editada pela John Hopkins University Press, num trabalho gráfico e tipográfico apurado, de grande rigor e carinho pelo objecto livro), fala-nos da “escrita antes da letra” 10. Partindo deste postulado, vamos ao encontro do espaço branco como forma de escrita, da ausência de grafismo enquanto mensagem, enquanto estrutura, plataforma e alcatifa da escrita. O espaço branco está em crise. Considerado como ausência de conteúdo, o espaço sem grafismo é um objecto de trabalho e estudo para os tipógrafos. Se traçarmos um segmento de recta, começando num produto de menor qualidade, para um produto mais caro e de maior qualidade, há um aspecto que vai crescendo ao longo desse percurso: o espaço branco. Assim, este factor acaba por constituir um valor visual, símbolo de inteligência, simplicidade e classe. Por outro lado, a falta de espaço branco é símbolo de vulgaridade e mau gosto. Keith Robertson envia-nos do Canadá ideias importantes sobre esta questão, quando afirma que “no design gráfico e na arquitectura, a simplicidade e a ideia de que menos é mais, governam o gosto”, em design, “o espaço branco tem sido apropriado como um elemento de estética moderna, representando uma classe de produtos mais caros e mais desejados no contexto do consumismo moderno” 11. O espaço branco é um valor no design gráfico dos produtos, é uma incorporação estética no 19


sistema do gosto, um reforço de posição social, constantemente reforçando a ideia da diferenciação entre bom gosto e mau gosto. Segundo Robertson, “o espaço branco é uma ferramenta expropriada do design moderno para criar um género de valores consensuais – uma certa engenharia social” 12. O espaço branco é o vazio, não carrega conteúdo, como uma imagem ou um texto, com sentido e significado. O texto pode dar sentido, pelo seu contexto, à própria imagem. Mas, o espaço branco pode também sublinhar ou diminuir a transmissão efectiva da mensagem do texto ou da imagem, através de opções gráficas de empaginação: aumento e diminuição das áreas brancas, aumento e diminuição do tamanho do corpo da letra, opções de orientação assimétrica. Mas, no fundo, o que será o espaço branco no objecto impresso? Em termos materiais, podemos considera-lo como uma extravagância, o espaço da página impressa onde se opta por não imprimir. Em termos conclusivos, o espaço branco rege-se por valores semióticos; a imagem que queremos vender é mais importante que o papel que poderíamos economizar. Numa certa estética, diríamos, burguesa, o espaço branco abunda em catarata, trabalhando para um refinamento da embalagem. Se a desordem tipográfica é marcadamente definidora de uma classe social mais baixa, o excesso de espaço branco cataliza as classes altas da sociedade. Podemos assim interpretar, desde logo, que um dado objecto impresso “não é para mim”, “não é para a minha classe social”. Se observarmos o mundo das revistas femininas, podemos verificar como as mais caras do mercado, com um elevar de ocupação de espaço branco servem como exemplo paradigmático e francamente notável desta realidade que diríamos tipográfica e social. O branco é o espaço negativo onde não há imagem, no entanto, esse negativo facilmente se enche de significado. Na aprendizagem e formação dos designers, o espaço branco ocupa um destacado problema pedagógico sem aparente contestação, isto é, a aprendizagem desse espaço, desse lugar do

grafismo, só pode ser apreendido no retorno aos caracteres móveis Gutenberguianos, onde esse espaço, invisível no computador, é palpável na tipografia (letterpress). O aspecto táctil da tipografia permite uma aprendizagem incontornável, dentro da formação escolar, onde o espaço branco tem que ser calculado, e muito importante, tem que ser colocado ou preenchido com material branco, assim denominado. Provamos, então, que o espaço branco é tão ou mais importante que o grafismo e a letra. Ele concorre para um conjunto de preocupações que estes mediadores gráficos deverão ter na produção de objectos gráficos coerentes. Visto através da lente da história, podemos observar que o espaço branco sempre esteve presente, como um elemento importante para os documentos produzidos. O renascimento marca um momento fundamental na constatação da importância do espaço branco com o uso da regra de ouro medieval no desenho da página do livro. Esta é só abandonada no século dezanove, aquando da chegada dos valores da economia e seu poderio sobre a estética e boa forma do objecto impresso. Esse relevo conferido ao espaço branco não pretendia conferir um status social com a paginação gráfica, as razões dessa correcção e detalhe com o branco tinham a ver com uma correcta proporção matemática tão evidente na arquitectura do renascimento. CARACTERES — Diz-nos João de Deus na sua Cartilha Maternal que “não apresenta os seis ou oito abecedários do costume” 13. A sua preocupação foi encontrar um género tipográfico muito legível e negro, simultaneamente fértil em claros, de modo a ser tipograficamente legível para as crianças. Muitos dos livros escolares e de aprendizagem apresentam gravíssimos problemas tipográficos, levando as crianças a rejeitar estes manuais. É no aspecto tipográfico que a cartilha maternal continua a ser um referência fundamental para as gerações vindouras. João de Deus desenhou um género tipográfico muito próximo da letra Clarendon 14 que é particularmente indicado para livros infantis. A velha cartilha, segundo João de Deus, apresenta um “tipo mais frequente, e não todo, mas por partes, indo logo com-


binando esses elementos conhecidos em palavras pela plêiade de intérpretes notáveis que veio a que se digam, que se ouçam, que se entendam, que revelar ao longo dos anos, contribuindo decidise expliquem; de modo que, em vez de o principi- damente para um alargamento sem precedenante apurar a paciência numa repetição néscia, se tes da criação de novos caracteres e o reavivar familiarize com as letras e os seus valores na leitura de uma antiguidade. Contudo, é sintomático animada de palavras inteligíveis” 15.Estabelece-se verificarmos que, lá fora, todo este panorama aqui o desafio de fazer uma análise da letra en- é acompanhado em paralelo pela tipografia de quanto matéria prima (material de trabalho) dos caracteres móveis e pelo contínuo renascimento vários agentes da comunicação sripto-multimedial. tipográfico. O que uma lacuna como esta signifiSerá também assumindo a complexidade resultante ca para a instância de mediação, em termos da de uma narrativa sobre a propositada levitação da ignorância que traduz, da sua parte, face a esta cegueira causada pelas ilegibilidades gráficas pre- tecnologia mãe, pode medir-se, se pensarmos sentes nos media. Traçar uma nova interpretação que não passou por ela enquanto se formou, e da tipografia urbana, porque o livro (suporte mais assim nunca teve uma noção cabal do grafismo, característico) é também um do projecto gráfico e do objecto urbano confrontado tipografismo. com a informação electróniA Inglaterra não conheceu NUMA CERTA ESTÉTICA, ca, os jogos rítmicos e cinéo processo de rotura com DIRÍAMOS, BURGUESA, O ticos das fachadas, a publicia tradição tipográfica que ESPAÇO BRANCO ABUNDA EM dade enorme e avassaladora. se verificou em Portugal, CATARATA, TRABALHANDO Conscientes deveremos estar preservando, com maior PARA UM REFINAMENTO de que falar da letra é falar continuidade, ao longo DA EMBALAGEM. SE A dos objectos comerciais, do século, a sua herança DESORDEM TIPOGRÁFICA numa propositada adesão ao tipográfica do passado, inÉ MARCADAMENTE vulgar e uma certa permeacluindo o legado mais antigo DEFINIDORA DE UMA bilidade à cultura de cone de maior valor material. CLASSE SOCIAL MAIS sumo, para assim converter Esse interesse permanente BAIXA, O EXCESSO DE a tipografia em laboratório, pela preservação, estudo ESPAÇO BRANCO CATALIZA um laboratório de análise e prática do património AS CLASSES ALTAS DA tipográfica, na medida em histórico — gráfico inglês SOCIEDADE. que são as letras que ilusencontrou, desde muito tram os objectos da arqueocedo, protagonistas altalogia contemporânea. mente qualificados, como Plataforma básica dentro sejam Alan Kitching, Ken de um mosaico complexo Kempbel ou Phil Baines 16. que é o grafismo e o design, a tipografia tem sido A tipografia e a beleza dos caracteres tipográtotalmente omitida e tão pouco conhecida em ficos, enquanto entidades puramente visuais e Portugal, tanto no meio especializado, como, por quase abstractas, tem uma natureza verdadeiramaioria de razão, do público em geral. Este aspec- mente “infecciosa”, que contagia, sem qualquer to revela-se de muita gravidade, se o observarmos possibilidade de resistência, tanto o maior dentro da esfera pedagógica e educativa. amante das artes gráficas sofisticado, mais arÉ verdade que o movimento de redescoberta da reigadamente preso à tradição tipográfica, como o tipografia e desenho de letra, impulsionado pelo cidadão mais desprevenido e menos afecto a estas computador, se conseguiu entretanto impor pela coisas, algo eruditas, da tipografia. A força da sua coerência das abordagens histórico-estilísticas e comunicação emocional transpõe as distâncias 21


históricas, dispensa os códigos ergonómicos de uma aprendizagem tipométrica, atravessa barreiras de gosto, de geração, seduz à primeira vista. Coloquemos uma questão pertinente e óbvia para alguns: deverá a tipografia de caracteres móveis continuar? Para mim e para alguns dos meus contemporâneos, a resposta é muito simples: sim, deve continuar. Contudo, sim, não é suficiente. Para fazer justiça com a tipografia de caracteres móveis, para mostrar a sua mais valia, um pequeno inquérito deve começar, para que todos percebamos por que razão deve continuar. Pelo menos até chegarmos a um tempo, em que um programa de instruções tipográficas seja criado para as técnicas modernas e que tenha os mesmos valores educacionais e pedagógicos da tipografia tradicional de caracteres móveis. Na procura de algumas graças da tipografia, além dos usuais e antiquados ventos humanistas do fantasma de William Morris, ela é de longe uma pedra fundamental, mais importante do que nós possamos pensar e certamente válida na progressão do bom design e da boa tipografia. Para muitos estudantes, a única época em que eles podem tocar fisicamente a letra e o tipo é durante a sua educação. É por essa altura que eles estão no seu mais

impressionante e intenso acto absorvente de tudo à sua volta: são esponjas. Há uma necessidade definitiva de garantirmos a oportunidade de absorver e perceber a mecânica da letra, com o objectivo de o design ter método e metodologia no futuro. A tipografia manual permite aquisição de perícia manual e a adopção de impulsos criativos e projectuais. Hoje, a aquisição de perícia manual é o computador. Mas será este, sozinho, capaz de impulsionar uma correcta apropriação de conteúdos tipográficos e projectuais? Como pode um estudante ganhar uma apreciação do corpo de letra e área de texto quando o computador permite um “esticar para caber”, eliminando os problemas? O tamanho da letra e sua medição é outro dúbio problema: que uso tem a medição pelo sistema de ponto ou corpo hoje? (outro tópico de discussão). Mas, enquanto isto continua, os estudantes deveriam ser alertados para o hábito que tende a vincular-se. Pela aprendizagem e compreensão deste limite inicial, um senso de proporção, forma, equilíbrio e ritmo são frustrados e, com eles, a consideração pela composição. Estamos perante uma tragédia, quase uma ópera de Wagner, uma sinfonia lenta e pesada de Gustav Mahler. Poderia chamar-se: Requiem para a Letra.

NOTAS 1. Barthes, Roland | O Prazer do Texto; Lisboa; Edições 70; 1997. 2. Barthes, Roland | Cit. [1] 3. Barthes, Roland | Cit. [1] 4. a.a.v.v. | Enciclopédia Einaudi nº 11 – Oral/Escrito — Argumentação; Lisboa; incm; 1987. 5. Benavente, Ana (coord.); Rosa, Alexandre; Costa, António Firmino da; Ávila, Patrícia | A Literacia em Portugal. 6. Benavente, Ana (coord.); Rosa, Alexandre; Costa, António Firmino da; Ávila, Patrícia | Cit. [5]. 7. Benavente, Ana (coord.); Rosa, Alexandre; Costa, António Firmino da; Ávila, Patrícia | Cit. [5]. 8. Benavente, Ana (coord.); Rosa, Alexandre; Costa, António Firmino da; Ávila, Patrícia | Cit. [5]. 9. A Nation at Risk; Cambridge, Mass.; The Nacional Commission on Excellence in Education, USA; 1984. 10. Derrida, Jacques | Of Grammatology; Baltimore, London; The John Hopkins University Press; 1998. 11. Robertson, Keith | On White Space / When Less is More; New York ; Allworth Press; 1994. 12. Robertson, Keith | Cit. 13. Deus, João de | Cartilha Maternal ou Arte de Ler; Porto; Associação de Jardins – Escolas João de Deus; 1876. 14. Clarendon é um tipo classificado como egípcio. Foi editado pela fundição inglesa R. Besley & Co. em 1845. Tem como principal característica as patilhas rectangulares. 15. Deus, João de | Cit. 16. Phil Baines, Alan Kitching e Ken Kempbel são designers tipográficos com larga experiência em tipografia de caracteres móveis e uma vasta obra publicada e exposta usando esta técnica.


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A POLARIZAÇÃO DA AMBIGUIDADE HEITOR ALVELOS

O presente texto deriva de uma palestra proferida no âmbito da segunda edição do Ciclo “Intervenção Artística no Espaço Urbano” ocorrido na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto a 6 de Dezembro de 2006. A solicitação do desenvolvimento de um discurso em redor da clandestinidade encontrou no recente projecto de intervenção urbana “±” o contexto ideal para uma reflexão sobre o modo como o espaço público português é, ele mesmo, um espaço clandestino Numa breve e necessária contextualização, o projecto “±” nasce em 2005, como projecto curricular de investigação por um aluno finalista da licenciatura em Design de Comunicação da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Miguel Januário. Mas seria um equívoco considerá-lo estritamente como tal. Este contexto curricular funcionou em grande parte como oportunidade de estudo aprofundado e fenomenológico de um conjunto de questões sociais e culturais que o aluno em causa ponderava de modo mais vasto, sendo ainda uma oportunidade de aplicação das suas práticas associadas à cultura do graffiti num

projecto de maior dimensão e longevidade. No entanto, o projecto parece derivar em última instância de uma forte vontade de mudança de contextos socio-culturais, reafirmando insistentemente a possibilidade de criação e aplicação local de um modelo de intervenção, para já nada português, de “personal politics”. O espaço público português é, em grande parte e nos últimos trinta anos, auto-regulado e autoregulador, por oposição a outros espaços públicos que hoje florescem nos grandes centros urbanos internacionais, fortemente regulados por entidades e interesses privados, e consequentemente potenciadores de uma efectiva clandestinidade por ruptura de realidades encenadas e patrocinadas. Estas realizades publico-privadas produzem inclusivamente os seus próprios reportórios transgressivos como forma de integração total num universo simultaneamente real e simulado, assegurando a manutenção de um imaginário fortemente polarizado e a construção de narrativas ficcionais que acompanham o dia-a-dia do cidadão comum. 25


Em contraste com este cenário que, advindo dos grandes centros urbanos (as metrópoles norte-americanas, Londres, Tóquio, São Paulo), cativa inevitavelmente a periferia, no contexto português temos a falência do espaço público, marcado pela ausência de planeamento geral, pelo abandono da sua geografia e história, pelo distanciamento entre as vontades das entidades protagonistas e as efectivas ambições da população, e pela inexistência de identidades agregadoras dessa mesma população. Por outro lado, encontramos uma tradição endémica de tolerância e “laissez-faire”, onde convergem um temperamento historicamente fluemático e uma forte, embora quase sempre inconsequente, convicção relativa a liberdades de expressão individual, em grande parte herdada da revolução de 1974, e algo paralela ao Maio de 1968 parisiense. Assim se torna ambíguo falar de intervenção clandestina no espaço público, quando o espaço público português surge caótico e ingovernável, a sua geografia discretamente polarizada entre arrogância e frustração. Essa mesma ingovernabilidade é atestada neste projecto “±”, nunca tendo o seu autor sido alvo de qualquer confronto por parte das autoridades, mesmo quando estas assistiram a intervenções suas, e apesar da ubiquidade e dimensão dessas mesmas intervenções. Deste modo, logo à partida se reconhece que o projecto “±” foi, na sua fase de ubiquidade, uma verdadeira testagem dos limites da intervenção individual em espaços públicos, limites esses que aparentemente permanecem por identificar, de tal forma são flexíveis. A óptica da ambiguidade está, evidentemente, presente na própria escolha do ícone agregador desta intervenção. O símbolo matemático “±” representa a ideia de aproximação e tolerância, vendo neste contexto o seu significado expandido mediante a ideia de coexistência de opostos. Mas mais decisivo que a descodificação inequívoca do ícone em causa, será o reconhecimento de que se trata de um ícone onde quase tudo pode ser projectado, e foi precisamente essa a razão que antes de mais fundamentou a sua adopção.

Para além desta dimensão projectiva, em que o transeunte é convidado a deambular mentalmente perante um enigma iconográfico, encontramos duas outras dimensões igualmente determinantes: por um lado, a dimensão “vírica” do projecto, fortemente associável a estratégias publicitárias contemporâneas, que colocam determinados reportórios no imaginário colectivo através de uma sobre-abundância de referências e suportes, fazendo ainda reverter a seu favor o carácter enigmático que se disseminará enquanto tema de conversas; por outro lado, a dimensão associada ao graffiti hip-hop, que há três décadas se vem alimentando de processos e objectivos análogos (ubiquidade, transgressão, utopia), e que, ironicamente, a própria publicidade tem vindo a mimetizar, quer formal, quer estruturalmente. Julian Stallabrass, aliás, afirma precisamente que o graffiti e a publicidade aspiram hoje a um mesmo fim: a omnipresença do nome enquanto marca, desprovido de objecto, propósito ou conteúdo. A este conceito, pareceme oportuno acrescentar a ideia de que a marca desprovida de objecto ou aparente propósito ambiciona apresentar-se num “estado de virgindade”, desse modo mais propício a um “enamoramento” por parte do transeunte/utilizador/consumidor. Esse estado revela-se de uma enorme maleabilidade semântica, conforme atestado em muitas das intervenções deste projecto, garantindo assim uma outra dimensão que é a do enraizamento junto dos nossos referentes sociais e culturais mais comuns. Após uma primeira fase que poderia apelidar de “ubiquidade silenciosa”, o projecto “mais menos” tem-se desenvolvido segundo modelos mais complexos: pela disseminação internacional, à semelhança de outros projectos estruturalmente análogos como os “Space Invaders”, “André the Giant” ou “Banksy”, disseminação esta que permite a testagem de leituras dramaticamente distintas a partir do material original; e pela inclusão de níveis de comunicação agora já bem menos ambíguos, frases quasi-sloganísticas que desenvolvem um discurso de intervenção social, convites a que o cidadão individual sinta em si o poder para fazer a diferença no contexto social em que se insere. Será ainda


de salientar a forma como os media assinalaram a existência deste projecto, atribuindo-lhe um outro espaço de operação que tem revertido, ele próprio, a favor do reportório original, bem como a existência de propostas de integração do seu reportório icónico e simbólico em espaços de comunicação oficial, como seja a decoração de fachadas. Em ambos os casos, este projecto acompanha a tendência de integração dos seus reportórios em contextos progressivamente consensuais, à semelhança do que sucede com os já referidos projectos de intervenção urbana - Banksy e Giant - que recebem encomendas para criação de capas de discos, edição de monografias, produção de videos, etc. Será ainda importante assinalar uma outra frente de trabalho do projecto, desconhecida do grande público porque desenvolvida precisamente sem expressão pública, mas que será a dimensão verdadeiramente determinante para uma real validação do mesmo. Trata-se do desenvolvimento de trabalho de campo sobre a experiência fenomenológica de intervenção pública, no qual o autor tem vindo a recolher e interpretar dados relativos à percepção que os transeuntes têm deste pro-

jecto. Esta vertente do trabalho atesta a seriedade contida no mesmo, testemunhando uma vontade de sintonia com a realidade em que se insere, à margem de modelos de imposição que imperam e permanecem de modo insistente na esfera “oficial” de operação sobre o espaço público. E aqui talvez se possa, finalmente, reconhecer uma dimensão inequívoca de clandestinidade, ironicamente exemplar perante o nosso espaço público falido: o modo clandestino, porque discreto e não oficial, como o projecto “mais menos” se tem vindo insistentemente a dedicar a uma auscultação e exposição de desejos, vontades e necessidades dos indivíduos, em total contraste com o modo nada discreto e frequentemente impune como os mecanismos oficiais e institucionais têm vindo a ignorar esses mesmos desejos, vontades e necessidades. Não se trata de ceder a visões circunstanciais ou infundadas por via de um qualquer populismo avulso, trata-se da construção de espaços de consenso e debate - geográficos, mentais, afectivos. Estes sim, abandonarão um dia a sua ficção mediática autofágica, e serão um dia verdadeiramente públicos, como nunca o foram. 27



O CIRURGIÃO INGLÊS EDUARDO CÔRTE-REAL

Considerações sobre a permanência do Conceito de Design ”Dessin (l´art du-) Se compose de trois choses: la ligne, le grain, et le grain fin; de plus, le trait de force. Mais le trait de force, il n´y a que le maître seul qui done.” Gustave Flaubert

Porque que é que esta palavra Design aparece sempre sublinhada a vermelho no meu processador de texto? Se, no séc. XVI, Francisco d\’Hollanda tivesse escrito em word com corrector ortográfico para português a palavra Desenho, que tão esforçadamente procurava mostrar aos seus leitores, também daria erro. Desenho era uma novidade com cem anos em Itália. Durante esse século (do fim do séc. XIV ao principio do séc. XVI), o disegno de Cennino Cenini, ainda preso à ideia de registo gráfico, veio a englobar o conceito de projecto. As propostas de Hollanda, Vasari e Zuccari, entre outros, de definir Desenho constituíam-no como um vasto sistema que albergava uma multiplicidade de actividades que faziam fé no registo gráfico como modo de atingir o controle formal para os objectos a produzir. Em Espanha, onde a palavra Dibujo se manteve, ao contrário do nosso Debuxo (curioso, debuxo já não se usa mas não aparece sublinhado), o Diseño adquiriu o significado de Design. Tudo se parece jogar entre os prefixos de e di. Diseg-

no Diseño, Desenho, Design, Dessin soam como semelhantes. Design, na enciclopédia britânica é identificado como verbo, assimilado para o inglês médio através do francês. Num dicionário da Internet encontro que Designo, em latim, queria dizer: destacar, designar, descrever e definir. O que parece ressaltar destes significados é a sua relação com processos essenciais do pensamento humano. Vamos então, tentar, a partir da tradução de Designo, definir Design. DESTACAR

Da experiência de mundo é possível isolar factos, objectos, formas. Antes de qualquer juízo, a nossa atenção pode focalizar-se, hierarquizar o objecto de uma experiência sensível. (Olho para o écran do meu computador esquecido da chuva que cai lá fora, da estante de livros que está à minha direita, da porta aberta do escritório, do ícone que daria inicio a uma tabela de excel, etc., etc). Sendo eu sujeito a estar no tempo e, consequentemente sendo actor, no sentido de praticar acções, poderei categorizar essas acções? Desta29


co, em primeiro lugar que aquilo que procuramos definir é uma acção humana. Ao colocar esta questão tenho que postular que o humano é actuante. Ou seja, que há um modo de reconhecer o humano que passa pela avaliação do mundo como situação antes e depois do movimento (acção) do humano. Esta premissa geral baseia-se no facto da indissociabilidade do humano e do Tempo que, de uma forma reflexiva, o posiciona. Ao termos inventado a História sabemos que agimos com consequências. Ou sabemos que o modo como construímos mundo depende desse sistema de causalidade. Agimos e temos tempo para observar as consequências das nossas acções.

O Humano é, então, a possibilidade de o Tempo poder ser aferido como uma multiplicidade de resultados dos quais apenas um foi concretizado. Isto é, obviamente, a construção humana do tempo e nenhum de nós poderá ter outra visão diferente. Agir comporta participar numa linha definida, apenas porque está definida pela sua visibilidade posterior. O primeiro ponto de vista a partir do qual posso destacar aquilo que procuramos definir é o da Ética. Na construção do Homem moderno, sobretudo a partir de Alberti, os aspectos éticos foram sobrelevados. Na construção do humano como ser que projecta recorrendo à técnica e à arte (seria perigoso falar aqui de Es-


tética), Alberti socorreu-se da Virtude, Virtús dos romanos, Aretê dos gregos. É claro, neste momento, que o primeiro modo de destacar que usarei se prende com a História. Destaco a idade moderna e a idade contemporânea como períodos onde pode ser destacado aquilo que procuramos definir. Os dois mais importantes tratados de Alberti: De Pictura (1435) e De Re Aedificatoria (1443-1452) constituem-se como um manual de construção do homem como ser social mais do que como tratados das disciplinas a que se dedicam. A questão central em De Pictura é a representação. Não a representação arbitrária e sensível mas a representação como resultado da adopção de um processo maquínico indesmentível. Ao De Pictura devemos, primeiro, uma definição de Desenho quando Alberti escreve no início: ”Signum hoc loco apello quicquid in superficie ita insit ut possit oculo conspici”. Este signum é traduzido para segno, ao que juntando o prefixo di que indica acção, obtemos disegno. O disegno é, então a acção de produzir sinais — signos. Em segundo lugar, devemos a Alberti a definição e codificação da perspectiva. Embora a ”invenção” perspectiva seja recordada sobretudo pela sua aplicação na Pintura ela comporta mais do que o seu destino pictórico. A perspectiva é a grande máquina do Renascimento porque normaliza a representação. Ao propor um método rigoroso de representação, mais do que obter verosimilhança para as obras pictóricas, a constuzzione legitima alarga a possibilidade de um mundo a haver através da sua visibilidade. As tábuas de Urbino, do círculo de Piero della Francesca exemplificam este processo. Outro facto pertinente é o uso da aparelhagem conceptual da geometria euclidiana. Ponto, recta, plano e volume são os elementos da construção de um edifício abstracto, hipotético – dedutivo que constrói o mundo artificial. A possibilidade do projecto resulta da aceitação de um protocolo com o universo euclidiano como aquele que é logicamente válido para en-

tender o espaço e aquilo que o povoa. Qualquer criação humana visível pode ser descrita à luz daquela aparelhagem conceptual até porque passa a ser feita com o seu concurso. O Trabalho de Alberti abre a porta ao projectista e, sobretudo, ao projectista, que usa recursos gráficos para projectar. Consequentemente destaco de todas as acções humanas, as realizadas desde a idade de Alberti até hoje, que se caracterizam pela ideia de projecto. Dessas destaco, ainda, aquelas que aceitam o registo gráfico como o lugar onde é possível tornar visível o universo euclidiano. DESIGNAR

Se aquilo que foi destacado for suficientemente compacto e repetível como experiência posso atribuir-lhe um nome. Naturalmente que não posso atribuir um nome à experiência de comer pão com queijo e marmelada num fim de tarde de Verão debaixo de uma ramada enquanto os insectos zumbem e os pássaros procuram acomodar-se nas tangerineiras mas posso atribuir o nome queijo que reunirá todas as formas finais de um processo particular de transformar o leite. A possibilidade de designar comporta a possibilidade de operar com conceitos que, ainda que vagos, encontram uma existência provisória num plano lógico. Ao propor um nome para esta acção das outras destacada faço-o recorrendo a uma palavra de uma língua que não é a minha. Ocorre-me o D. Quixote de Mènard do conto de Borges. Mènard, francês, escreveu, nos anos trinta do século XX, um D. Quixote em tudo igual ao de Cervantes. Sem nunca esclarecer se este outro Quixote brotou da imaginação de Mènard ou foi copiado, Borges, alerta-nos para o facto de, por ter sido escrito por um francês em castelhano clássico e no séc. XX, o livro ser em tudo diferente, embora igual. Escolho então Design. Chegada ao inglês provavelmente por via normanda, a palavra terá ganho o seu sentido projectual pleno sobretudo como resultado da querela sobre o Disegno encetada no séc. XVI em Itália. No final do séc. XVI, artistas ingleses como Inigo Jones 31


chegaram viajaram para Itália com propósitos semelhantes aos de Hollanda. A querela sobre o primado das artes tinha-se esbatido dando origem às academias del Disegno de Florença e Roma. Que palavra poderia Inigo Jones trazer para Inglaterra que significasse Disegno? As definições de Disegno de Zuccari, ideólogo da Academia de Roma, aproximam-se de um sentido globalista e divino. Uma palavra inglesa como drawing não poderia abarcar a multiplicidade de actividades que o Disegno englobava. Escolho Design, no início do séc. XXI, porque alguém já o fez. Quase em todos os cantos do mundo, a palavra é reconhecida e é aplicada. Neste processo de aplicação viemos a encontrarnos com a ruptura da demarcação que tinha feito anteriormente. Uso Design para designar (a aliteração é irresistível) factos, objectos e acções que ultrapassaram o registo gráfico e o universo euclidiano. Podemos dizer que a instabilidade do humano, criada desde o fim das luzes e do início da idade contemporânea e que se inaugura com o Romantismo, com a designação abrangente de Design, que se assume como um grande sistema interdisciplinar, se pacificará num paradigma semelhante ao criado pelo Desenho para a Idade Moderna. De facto, ao elencarmos, todas as atribuições da palavra Design, reparamos que ela tende a absorver as artes visuais, as engenharias, a arquitectura, a biotecnologia, a ciência, o jogo e, obviamente, a participar decisivamente na criação da cibercultura. Em resumo abrupto, o Design, hoje, participa em qualquer construção de mundo ”artificial” sujeito a uma prefiguração a que chamamos projecto. Aquilo a que posso chamar Design com segurança é todo o processo que produz uma representação de algo a produzir. Certas tribos da floresta amazónica não têm uma palavra para ”verde” mas sim, seis palavras diferentes para seis tons de verde diferentes. De certo modo, encontramo-nos no momento em que descobrimos que entre essas ”seis” palavras diferentes há suficientes atributos semelhantes para ”descobrirmos” uma única palavra.

DESCREVER

Tendo destacado algo passível de ser designado posso descrevê-lo. De certo modo, descrever implica regressar às razões que provocaram o destaque e a designação. Ao descrever percorro os limites do destaque para entrar na justificação da designação. A descrição aceita o destaque como limite do seu desenvolvimento. Descrevemos aquilo que foi destacado precedido da sua designação. No entanto, a descrição exige mais. Exige uma formulação de atributos internos que, ainda que provisoriamente, possam justificar tanto o destaque como a designação. Partindo do destaque, a descrição trata daquilo que é interno ou intrínseco ao destacado/designado. Por outro lado, a descrição de algo designado comporta sempre as limitações do conhecimento sobre aquilo que foi destacado. A descrição de ”Noruega” é praticamente infindável, no entanto posso descrever Noruega como um país, europeu, escandinavo cuja capital é Oslo caracterizado pelos seus fiordes cujo regime é monárquico, etc., etc. Quer isto dizer que entre esta descrição sucinta e o mapa do imperador de Borges, que, desenrolado, cobria exactamente todo o império, há uma multiplicidade infinita de descrições mas que todas dependem do destaque e da possibilidade de designação. Descrever o Design, que, como vimos, designa quase tudo, parece ser tarefa impossível. Descrever pode ter sido tarefa do Desenho, mas foi, sobretudo tarefa da Literatura. Recorro a Italo Calvino e à ”Trilogia dos Nossos Antepassados”. Escrita nos anos cinquenta do séc. XX, esta trilogia é constituída pelos livros: ”O Cavaleiro Inexistente”, ”O Barão Trepador” e ”O Visconde Cortado ao Meio”. O CAVALEIRO INEXISTENTE — PRÓTESES E EXTENSÕES —O

Cavaleiro inexistente é apenas constituído pela sua armadura. Externamente aparenta ser humano mas é apenas a sua ”pele” defensiva. Ele simboliza todas as próteses e extensões do humano. Na armadura do cavaleiro estão simbolizados todos os objectos que em contacto ou não com o corpo prolongam as suas


capacidades. Esta é uma descrição de Design que evoca o seu primeiro destino associado à segunda revolução industrial sob o império da produção em série e de massa. O cavaleiro inexistente é o Ford T ou o Fiat 600 alinhados na cadeia de montagem, vazios, mas já humanos. (não posso deixar de sentir prazer quando as escovas da lavagem automática percorrem o dorso da minha Peugeot 505 e até um certo arrepio quando passam pelas cicatrizes dos erros de estacionamento). O Design construiu um Homem contemporâneo inexistente sem a sua armadura de extensões Só a armadura o mantém vivo e consequentemente humano. Os santos e os deuses eram reconhecíveis pelos seus atributos. Na mitologia greco-latina e no conjunto dos santos apostólicos romanos nenhum é, por si só. Um objecto, uma pose, uma indumentária, uma acção culminante são determinantes para a sua representação. A função comunicativa dos objectos que possuímos

têm o mesmo valor. Não esqueçamos que as representações dos deuses são realizadas por humanos. Basta pensarmos nos quatro evangelistas, sempre acompanhados dos seus entes de estimação. Não se pretende, consequentemente justificar a construção da armadura do homem contemporâneo com um desejo de divinização, mas sim um desejo de atingir os atributos dos deuses criados pelos homens para os reconhecer. Gregor Samsa, transformado numa enorme barata torna eloquente o cavaleiro inexistente. Intimamente, ainda ele, Gregor Samsa não tem acesso à sua armadura. O conjunto dos objectos e dos espaços que constituíam a sua armadura são-lhe inacessíveis, mais valia que se tivesse tornado incorpóreo como o herói de Calvino. A história de Samsa ilustra quão ajustados ao nosso corpo estão os objectos, quão apertado é o “fato” que julgamos múltiplo e espaçoso. Em Vitruvio encontramos uma possível origem para a história do cavaleiro inexistente e para a incomodidade de Gregor. O conceito de Decor 33


constituinte da categoria Venustas, parte da tríade arquitectónica, postulava que a forma se deveria adequar à função comunicativa do edifício. Este conceito dá origem a duas palavras em português Decoro e Decoração. Ambas as palavras, no seu uso corrente desvirtuaram a sua origem. No entanto, julgo que o paradigma central do Design industrial ou de Produto é o Decoro. É este decoro que reforça a estreiteza do fato. Os objectos ajustam-se, não só ao corpo, mas sobretudo, ao que pretendemos comunicar. As cavalgadas do marketing e dos targets transportam o cavaleiro inexistente para toda a parte. A múltipla produção de objectos permite que cada um construa a sua armadura, tornando-se cada vez mais invisível substituído pelo sistema de objectos que a si associa. O cavaleiro inexistente simboliza, também, a vaca e o burrinho do presépio do Design: A Ergonomia e a Antropometria. Não é por acaso que a primeira se desenvolve na Guerra e a segunda na criminologia. Poucas actividades humanas esvaziam tanto o humano da sua individualidade. A armadura animada de Calvino é correctamente proporcionada e medida e as articulações permitem-lhe um desempenho ergonómico perfeito. Assim o fazem o Homem Invisível de H.G. Wells, Michael Jackson e Stephen Hawkins que são, afinal, a mesma pessoa e exemplares extremos do que pretendemos descrever. O BARÃO TREPADOR — CIBERMUNDO — O jovem barão decide, aos doze anos, passar a viver nas árvores e nunca mais por o pé em terra. Assim se passa a sua existência, sempre em contacto com o mundo dos restantes humanos, mas onde os caminhos são mais curtos. Ele é ao mesmo tempo mensageiro e profeta. Na floresta, que cobre grande parte da Europa ele desloca-se na multiplicidade dos ramos onde é sempre possível encontrar uma ligação. Para o Designer o mundo é visto como um incomensurável conjunto de feixes de comunicação. À primeira vista este facto pode parecer resultar da generalização da world wide web. Na verdade, o universo www nasceu com o telégrafo e desenvolveu-se com

a televisão. A www não passa de um telégrafo televisível ou de uma televisão telegráfica. A produção de objectos de comunicação e a atribuição de valor comunicacional a objectos é que criou a possibilidade da web. O telégrafo permitiu a globalização de capitais e mercados. A televisão permitiu a consolidação do Marketing e da Publicidade. A web não é mais do que a cristalização daquilo que já existia: um fluxo constante de significados no seio do mundo artificial. O Design recria continuamente esses feixes de significados. O projecto conta com eles como parte essencial da sua estratégia. A representação de algo a produzir é, fundamentalmente, a criação de um feixe de significados. O designer opera, assim, num mundo abstracto de ligações comunicacionais que se realizam nos mais insuspeitos sistemas de objectos. A Design, associamos normalmente, a ideia de Inovação. Esta não passa da reconfiguração de sistemas. Ao encontrar um caminho por entre a míriade das ligações possíveis que os ramos das árvores oferecem (um caminho mais curto que os terrestres) o Barão Trepador, opera num nível diferente do sistema de objectos vigente a que podemos chamar, genericamente, Tradição. Os seus contactos com o mundo não-projectual são pontuais, interferindo e modificando a Tradição, criando tradições provisórias através dos indícios do seu verdadeiro movimento. Quando se recolhe para as árvores, para o projecto, a visão que retém do mundo embaixo é fragmentada, resultante daquilo que é apenas visível por entre os ramos. Entretanto, o vestígio do resultado da sua aparição, a nova tradição provisória, ganha autonomia e movimenta-se lentamente pelos caminhos da terra. A relação entre o Barão Trepador e os seus conterrâneos é, assim, sempre carregada de surpresas, de novas perplexidades. Embora haja sempre um preço a pagar pelas surpresas o Design encontrou o plano onde operar. O Designer decidiu nunca mais pôr o pé na terra porque não é deste mundo. É do mundo que há – de vir. O VISCONDE CORTADO AO MEIO —ARTE E CIÊNCIA — O


visconde, atingido por um tiro de canhão vê-se dividido em duas partes. Esta catastrófica fractura separa-o na metade boa e na metade má. A metade má exerce a sua crueldade no governo do seu senhorio provocando a miséria e o terror dos seus súbditos. A metade boa surge depois. A sua bondade provoca também toda a sorte de acidentes e desgraças. Finalmente, por amor de uma donzela, defrontam-se em duelo. Feridos de morte, são salvos por um cirurgião inglês que os consegue recoser. O Visconde é o Homem da Idade Moderna, inteiro como projecto, na Renascença, que, neste caso, a pouco e pouco se vai separando em Arte e Ciência. O Desenho tinha criado essa bela ilusão de que um homem completo e íntegro dominaria todos os aspectos do seu devir. Os desastres de Leonardo com a sua máquina voadora indiciavam já que ao segredo do voo das aves não se chegava através do Desenho. Por mais que conhecesse pelo desenho o maquinismo de funcionamento da asa, a diferença de pressão entre a face superior e a face inferior (razão da sustentação) não era visível e, consequentemente indesenhável. Mais tarde, a acção conjugada de Lavoisier e Dalton conseguiu reunir a Química, a Matemática e a Física criando um mundo onde o Desenho não podia chegar. No início da Idade Contemporânea, a reacção da Arte surgiu com o Romantismo que desferiu a machadada final separando as duas metades. O artista romântico fechou o seu campo à ciência franzindo o sobrolho às explicações. O início da reunião deu-se através de uma visão do mundo natural que se tornou cultural: a teoria da evolução das espécies. A natureza que tinha sido o referente da harmonia e estabilidade formal passava a significar mutabilidade, transformação, morte e extinção, adaptabilidade. No final do século XIX o evolucionismo tinha já penetrado profundamente na cultura da sociedade da esfera protestante. Em certa medida, reforçava os aspectos do livre arbítrio. Embora arte e ciência não se tivessem recosido, os primeiros passos foram dados. A Bauhaus resulta de duas interpretações da teoria evolucionista. A de Alois

Riegl, com a sua Kunstvollen (vontade da arte) e Max Nordau com o seu Enfartung (degeneração) criaram condições para que a Bauhaus surgisse como adopção da primeira e reacção à segunda. Esta reacção comportava sobrelevar os aspectos éticos da produção que através da técnica e da ciência se deviam auto justificar na forma. Apesar deste início cada uma das metades seguiu o seu caminho durante o séc. XX, fazendo maldades e bondades mas sempre incompleta, fazendo os súbditos sonhar com a plenitude dos desejos de prosperidade e paz que o jovem visconde inteiro tinha augurado. É sedutor pensar que o cirurgião inglês se chama Design. Parece ser o único capaz de saber tanto da anatomia de uma metade como da outra.Nesta evocação não se pode decidir que é o mau e quem é o bom. Na história de Calvino, o Visconde volta a ser uno e completo embora enriquecido pela experiência do seu tempo de ser dividido. DEFINIR

Se o cirurgião é o Design, se o mau e o bom são a ciência e a arte, resta saber quem é a donzela que catalisa a união e, também, quem é o sobrinho narrador. O sobrinho é a História, a contínua possibilidade de construir uma linha temporal através da narrativa. A donzela é o deleite e a possibilidade de perpetuação. É o indefinível presente em cada acção humana. É a possibilidade de uma relação amorosa com o mundo que está para além daquilo que seria plausível pensar. É a Venustas vitruviana, a genitrix, o agente catalisador nas novas formas que buscam o tão indesmentível como inexplicável deleite na reprodução sexuada em que os opostos se misturam. Gerar o novo, ainda que participado pelo antigo, é, ainda, a condição essencial para definir Design. Em Conclusão, para podermos definir o Design poderemos dizer, então e agora que: O Design é o cirurgião inglês, que, na voz da História, cose pedaços do Homem para que este se possa perpetuar… até nova separação. 35



MODOS DE “VER” O ESPAÇO JOÃO PALLA

Actualmente arquitectos e designers têm dado grande importância ao aspecto conceptual de projecto, nomeadamente na compilação e registo do processo criativo, através de escritos e matéria gráfica. Pela existência do processo é possível para terceiros analisar, comparar e aferir desde o processo criativo e mental dos primeiros registos até à obra final acabada. Por outro lado possibilita ainda daí poder extrair novas formas de expressão para fins pedagógicos, ou como novo interesse artístico e estético. É porventura interessante verificar que pouco se tem falado da importância do uso da fotografia no trabalho criativo dos arquitectos, pois apesar de se apresentar como uma rotina muito generalizada, ferramenta de memória de registo dos espaços, o uso da fotografia pode ser visto como meio de expressão e mediador entre realidade e ficcionado. É prática corrente dos arquitectos fotografar os locais de intervenção, o terreno ou a paisagem e encontramos amiúde tais representações nas paredes dos ateliers. A fotografia do local aparece como base de uma fotomontagem onde coexiste a simu-

lação do objecto de arquitectura seja por meio do desenho, seja por meio da reprodução da maqueta ou ainda com a ajuda do CAD – desenho assistido por computador. Este trabalho sobre as fotografias das pré-existências serve estágios diferentes sobre a concepção do objecto. Por um lado funciona como suporte mental de reconhecimento de uma realidade em que se pretende operar, facilitando o processo de criação, na formação de uma imagem. Depois, serve o arquitecto na medida em que pode testar várias alternativas volumétricas e formais, confrontando-as com a envolvente da paisagem. Por último, pode fornecer ao cliente uma visualidade fotográfica com grande proximidade à realidade a construir. Estas fotografias ou visualizações funcionam assim como suporte ao processo cognitivo e cognoscitivo. Verifica-se porém que uma só fotografia se torna insuficiente para a leitura global de espaços ou de paisagens mais vastas, pelo que arquitectos optam com alguma frequência por fotografar os locais em torno de um ponto, com várias tomadas de vista em diferentes direcções e de forma sequencial. É pos37


teriormente na montagem das fotografias – uma colagem do conjunto das diferentes vistas com momentos de sobreposição – que se obtém uma vista abrangente sobre o local de intervenção. É um processo de entendimento da realidade do lugar, com o sentido de mapeamento da recolha visual, de apreensão global do espaço, servindo de palco a uma série de ensaios possíveis, onde o objecto arquitectónico projectado terá de se inserir e de dialogar e onde se pode comparar o antes e o depois. Para um arquitecto, estas fotografias são vistas enquanto parte do processo criativo de projecto, talvez base de um desenho de representação do objecto, uma colagem de vistas, nunca como objecto acabado, sublimado ou fotograficamente artístico. Existem no entanto casos em que este procedimento se aproxima em objecto de criação artística. Veja-se o caso do romeno Iosif Kiraly, arquitecto e artista visual, com a sua série Triaj exposta recentemente na Fundação Gulbenkian e integrada na Lisboaphoto 2005. Iosif Kiraly toma como premissa esta prática de registo do espaço com a máquina fotográfica para considerar a fotografia com preocupações em descobrir a distância enigmática entre a realidade do mundo e as suas projecções. São fotografias de espaços urbanos que através de pedaços de informação se constroem adquirindo uma continuidade na leitura espacial, admitindo sobretudo grandes fracturas temporais entre vários pedaços destas imagens. O fotógrafo volta a recuperar a mesma tomada de vista para indicar essa fractura com o tempo; no mesmo arruamento, os passeios apresentam-se com transeuntes que se passeiam ao sol, e no momento seguinte vemos a calçada coberta de neve com pessoas que aparecem agora cobertas funcionando no mesmo conjunto. Iosif Kiraly captura a presença do espírito envolta, a alma do sítio com as pessoas, os cães e as poças de lama, sem preocupação de uma boa fotografia artística ou para publicação. O objectivo deste projecto iniciado pelos arquitectos e artistas Mariana Celac, Iosif Kiraly e Marius Marcu Lapadat é segundo estes, documentar o conjunto de blocos de apartamentos construídos durante o comunismo na sua relação de transformação ao longo do tempo.

David Hockney lembra que quando observava fotografias, havia algo que não estava, uma ablação que ele veio a mostrar que era a própria representação do tempo. Hockney começa por perseguir uma visão simultânea de vários aspectos circundantes, querendo ter o domínio do espaço de uma forma livre como tinha no desenho ao que ele chamou de “Desenhos com câmara”. Chegou inclusivamente ao ponto de experimentar estas construções com fotografias durante uma conversa entre dois amigos onde havia diferentes expressões dos personagens que eram registados em diferentes momentos e a montagem iria incluir as emoções destes “actores” de forma a equiparar-se a uma narrativa visual. Existem nestas colagens fotográficas quer de Kiraly quer de Hockney a representação de algo mais que o referente imediato, alia-se uma memória, uma visão que une a vontade de criar a uma vontade de relembrar, sendo a acção da representação do tempo determinante neste sistema. Se por um lado estas fotografias correspondem a um entendimento arquitectónico do espaço, por outro lado, pretendem representar mais do que isso. A possibilidade de uma fotografia de um espaço ganhar significado depende, em parte, da realização de uma representação que deve também referir-se a alguma outra coisa. Estas fotografias parecem colocarem-se a dois níveis, o da qualidade da fotografia como representação do espaço, e o do âmbito da filosofia da comunicação. Parece hoje um dogma a afirmação de Walter Benjamin quando dizia que a fotografia gerou a primeira revolução em relação ao papel da criação artística \”Pela primeira vez a mão se libertou das tarefas artísticas essenciais, no que toca à reprodução das imagens, as quais, doravante, foram reservadas ao olho fixado sobre a objectiva. Todavia, como o olho apreende mais rápido do que a mão desenha, a reprodução das imagens pode ser feita, a partir de então, num ritmo tão acelerado que consegue acompanhar a própria cadência das palavras\”. Nesse sentido, entende-se melhor o papel da fotografia na transformação do tempo em espaço e do espaço em tempo.


Este tipo de representação em Iosif Kiraly é interessante porque resulta de uma procura de novas narrativas capazes de recuperar uma consciência crítica das implicações culturais após a mudança política e social na Europa de Leste. É resultado de uma realização já no período capitalista sobre um cenário visivelmente comunista. Bucareste é ainda hoje em dia percepcionada pelos seus massivos blocos de habitação construídos durante o período de ditadura de Ceaucescu. É pois sobre esta ferida aberta deixada pelo modernismo socialista, pela modernização industrial e pela construção de novas arquitecturas anti-modernas, que o autor investiga, procurando pistas. Indaga sobre o modo como nos relacionamos com as produções culturais que também assimilaram transformações urbanas. Ele usa este modo de apropriação da fotografia como ferramenta quase convencional para a sua visão crítica, uma vez que o modo como se vê a cidade está directamente ligado ao potencial para se criar a mesma. Nos anos 80 o filósofo Vilém Flusser no seu ensaio “Phantom City”, criticava os fotógrafos por estes manipularem a imagem da cidade retirando as pessoas e apresentandoa como desejariam que ela fosse acusando-os de uma atitude anti-humanista. Dizia ele que estas fotografias são documentos de um propósito, da inversão da relação objecto-sujeito. A percepção da cidade ou da arquitectura pode assim não corresponder à realidade. Embora falemos de fotografia como modo de ver o espaço, a fotografia de apresentação de arquitectura actualmente serve na maior parte das vezes o carácter promocional do objecto apresentado, manipulado para uma fotogenia intencional que pouco tem que ver com a obra propriamente dita. A forma como os próprios arquitectos julgam as obras através de fotografia pode ser um engano, havendo muitas obras de qualidade espacial e arquitectónica que não são fotogénicas, logo a questão da sua representação é um problema que só se dissolve com a percepção do construído. No processo de percepção da cidade, Iosif Kiraly não toma como garantidos pré-conceitos sobre imagens arquitec-

tónicas e urbanas, pelo contrário, ajuda a definir instrumentos e uma forma de “ver” concebendo um modelo para compreender e talvez actuar sobre as complexidades do meio ambiente urbano Ao arquitecto de hoje impõe-se um novo desafio de “ver” o espaço, dada a cultura emergente dos novos conhecimentos que ocorrem na sociedade. A lógica rectilínea do espaço cartesiano, onde os pontos podem ser mensuráveis nas suas coordenadas x, y e z, torna-se obsoleta uma vez que a tecnologia virtual encontrou como adicionar a coordenada temporal. A arquitectura e a cidade são agora vistas como um complexo sistema dinâmico e interactivo que se funde a todo o momento; Para Zaha Hadid, o espaço hoje em dia é contrário ao objecto. No seu projecto para o Centro de Arte Contemporânea em Roma, o edifício entrecruzase com o contexto urbano ganhando uma nova dimensão pública, de fusão ou não distinção entre objecto/edifício e espaço urbano. É o não edifício. Este aspecto de hibridação entre duas entidades aparentemente distintas oferece uma nova concepção de espaço e de temporalidade, resultante da densidade polivalente do séc. XXI. É esperado, que esta complexidade seja modelada por processos não lineares, possibilitando ainda novas formas de interpretação do espaço urbano e arquitectura, movendo-se assim para além do estaticismo físico do construído, do espaço fechado ou mesmo de argumentos funcionalistas ou causativos. O tempo, duração e temporalidade parece terem começado a perseguir a retórica de arquitectura. Note-se o caso do projecto do Centro Nacional de Natação para Pequim projecto do gabinete australiano PTW, actualmente o paradigma da imaterialidade, não só no seu aspecto construtivo – espuma simultaneamente regular e irregular, podendo ser solidificada desde o duro ao macio e do transparente ao opaco – mas também no plano simbólico ou da Cultura imaterial, inserindo-se na filosofia chinesa e nas relações de equilíbrio de Yin e Yang. Ao adaptar-se às condições exteriores, garantindo preocupações energéticas e de iluminação este edifício aproximase de um ser vivo capaz de instantaneamente trocar a sua matéria ou imaterializar-se. 39



FOTOGRAFIA DE ARQUITECTURA, DEFEITO E FEITIO PEDRO BANDEIRA

A propósito das exposições Em Obra de Luís Ferreira Alves e Mundo Perfeito de Fernando Guerra. No dia 28 de Abril de 2008, por volta das 18 horas, inaugurou na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto a exposição Mundo Perfeito do fotógrafo de arquitectura Fernando Guerra (1970). À mesma hora, na mesma cidade, inaugurou na sede do Jornal de Notícias a exposição Princípio e Fim de Um Projecto com fotografias de Luís Ferreira Alves (1938) sobre a obra de Eduardo Souto de Moura. Na semana seguinte, Ferreira Alves inaugurou no Departamento de Arquitectura da Universidade do Minho, Guimarães, a exposição Em Obra comissariada por mim e acompanhada de um texto da minha autoria intitulado “Mundo Imperfeito” 1. Serve esta breve introdução para prevenir alguma parcialidade que possa emergir nas linhas que abaixo se seguem. A coincidência da inauguração quase simultânea de três exposições estimulou um debate, ainda que informal, capaz de enfatizar o antagonismo entre: uma cultura analógica e uma cultura digital; entre o propósito condicionado da fotografia

documental de arquitectura e a igual legitimidade de uma fotografia interpretativa; ou ainda, entre uma imagem utópica da arquitectura (o mundo perfeito) e uma realidade plena de ruído e imprecauções (mundo imperfeito). Dicotomias à parte (há cores entre o preto e o branco), convém também lembrar que Luís Ferreira Alves e Fernando Guerra partilham uma mesma condição – a do fotógrafo dito de “encomenda”, com clientes específicos e compromissos comerciais. MUNDO PERFEITO

É sabido que a exposição Mundo Perfeito de Fernando Guerra na Faculdade de Arquitectura do Porto causou um certo mal-estar acentuado pela publicação do catálogo com o mesmo nome sob a chancela das Publicações FAUP 2. Esta inquietação que muito provavelmente parte de alguns equívocos, não deixará de expressar um certo cepticismo em relação ao que as imagens de Fernando Guerra possam representar: a excessiva mediatização da arquitectura através da sua imagem fotográfica. Para muitos arquitectos, e em especial para os herdeiros de uma Escola do 41


Porto, a imagem fotográfica raramente faz justiça aos edifícios que projectam e idolatram e, algo paradoxalmente, mais raramente denunciam os defeitos das obras que desadoram. Inadvertidamente ou não, as imagens estetizam o inestético. As fotografias não são simplesmente fiáveis, porque omitem, porque alteram, porque adicionam. Por outro lado, a cultura de “resistência” que sempre caracterizou a arquitectura do Porto exige a manutenção de uma certa marginalidade em relação a uma sedução fácil baseada na superficialidade das imagens, mas também em relação aos fenómenos de mediatização tomados por modas e tendências. Isto pode parecer contraditório sabendo de que arquitectos falamos. Mas podem verificar que mesmo Álvaro Siza ou Souto de Moura sempre tiveram o pudor de não ter sequer uma página oficial na internet que publicite o seu trabalho. Poder-me-ão dizer que não precisam, é verdade, mas comparativamente ao star system são de facto excepção. Se, por um lado, há uma delegação dessa responsabilidade na iniciativa de outros, por outro lado, há uma certa convicção de que as obras (necessariamente construídas, materializadas) terão que falar por si mesmas numa escala de um para um. Depois, há a relação da Escola do Porto com o desenho, com o esquisso, com o “processo”. Durante décadas, o desenho era tido como imprescindível para pensar arquitectura, reivindicando a relação mais curta entre ideia e obra. Além disso, perseguindo uma tradição beaux-arts, é no esquisso que se afirma a autoria do arquitecto (que raramente dispensa assinar e datar os seus desenhos para a posteridade). Por tradição, a fotografia é vista como algo impessoal, que raramente entra no processo de concepção do projecto e que só emerge verdadeiramente no fim, assumidamente pela lente de outros: “acabada a assistência técnica, a obra permanece ali exposta para o cliente desfrutar, é então altura de chamar o fotógrafo para ver e confirmar” 3. É a relação de desconfiança em relação à fotografia que os arquitectos procuraram esbater estabelecendo relações de confiança com os fotógrafos. Foi assim com os arquitectos modernistas (Mies van der Rhoe com a dupla HedrichBlessing; Richard Neutra com Julius Schulman;

Le Corbusier com Lucien Hervé…), foi assim com Fernando Távora, Álvaro Siza e Souto de Moura com Luís Ferreira Alves. E depressa a desconfiança dá lugar à amizade: “segue-se geralmente um almoço em que falamos de tudo, das fotografias, da arquitectura, sem cerimónias, frases contundentes que só a amizade consegue segurar e continuar” 4. Nesta relação de proximidade entre arquitecto e fotógrafo, este último tende a tornar-se invisível: “o fotógrafo modernista abdica de qualquer protagonismo para dar visibilidade à arquitectura e, não menos importante, às pretensões discursivas do arquitecto. Este sentido de “encomenda” tornaram durante décadas invisíveis fotógrafos como Schulman ou Ezra Stoller que viam as suas imagens serem publicadas sem reconhecimento de créditos fotográficos. Esta humildade assentava na ideia de que «uma boa fotografia de arquitectura depende (necessariamente) de uma boa arquitectura» 5, o que hoje sabemos ser falso” 6. Uma coisa é certa, essa invisibilidade autoral do fotógrafo abriu caminho para a imagem propagandística ou, no mínimo, acrítica. E, neste sentido, a tão discutida “objectividade” fotográfica não passa de um (pre)conceito formal e estético. A fotografia comercial de arquitectura, dependente do cliente-arquitecto, fundou-se sobre este pressuposto de uma fotografia acrítica. Como refere Fernando Guerra, os seus trabalhos são “sempre uma encomenda, uma prestação de serviço” 7. Neste sentido, Guerra terá em primeiro lugar que agradar aos seus clientes, tentando, simultaneamente, impor uma marca própria, autoral, que eleve o seu trabalho fotográfico a uma condição “artística”. Sob esta condição “artística”, e aproximandose da “nova” fotografia de arquitectura que se vai encomendando lá for a 8, a fotografia não poderá ser um humilde documento fotográfico mas antes “uma mensagem sempre pessoal que pode por vezes ser ficcionada ou quase romanceada” 9. A procura de Guerra do “momento decisivo”, numa clara referência a Cartier-Bresson, exprime essa vontade de produzir uma imagem que ultrapasse a suposta banalidade e realismo do documento fotográfico mais convencional (onde também se insere a fotografia que os arquitectos fazem para


registar as suas próprias obras, sem grandes pretensões, ou intenção de virem a ser publicadas). A ambição “artística” de Fernando Guerra está bem patente no conjunto das suas imagens que, se por um lado exprimem a personalização de um “modo de ver” (caracterizado, por exemplo, pela presença encenada de vultos e sombras ou pelo dramatismo “pós-fotográfico” de alguns céus – uma encenação que entrará algo em contradição com a ideia de “momento decisivo”), por outro lado, essa mesma personalização ou “estilo” tenderá, perversamente, a homogeneizar também o modo como vemos o “estilo” das diferentes arquitecturas: “entre os edifícios que fotografa, não se percebe, exactamente, um juízo de valor sobre os conteúdos da arquitectura; antes um controlo, ao nível das emoções, que busca homogeneizar todos os registos (…) filtrar todos os projectos pela mesma rede, reduzindo-lhes a espessura própria que os distancia” 10. No seu conjunto, na sua visão “quase romanceada”, o trabalho de Fernando Guerra aproxima-se, perigosamente, da construção fotográfica de uma «arquitectura genérica», para usar o termo de Rem Koolhaas. Este será o motivo mais do que suficiente para que os poucos arquitectos ainda comprometidos com um sentido de «arquitectura de autor» abdiquem dos serviços do «autor» Fernando Guerra (teoria dos dois galos na mesma capoeira?). A julgar pelo número de encomendas, pelo número de visitas ao site ultimasreportagens.com, serão poucos os arquitectos a resistir à sedução das imagens de Fernando Guerra que, melhor que ninguém em Portugal, soube compreender “o poder da massificação e da celeridade do consumo mediático” e compreender “ a imagem como instrumento insubstituível da difusão cultural” 11. Inteligentemente usando a arquitectura de Siza como “isco” 12, conquistou uma atenção rara dos arquitectos, estudantes de arquitectura e, não menos importante, das publicações da especialidade. Fernando Guerra parece ter hoje em dia o monopólio das imagens da arquitectura portuguesa criando uma relação de dependência entre arquitectos e editores que não querem ficar de fora do jogo da mediatização. Os arquitectos não só procuram os seus serviços pelas

imagens, mas por aquilo que elas potenciam em termos de divulgação e reconhecimento. Dir-se-ia que se não foi fotografado por FG+SG é porque não existe 13. Este incómodo é partilhado por muitos e só aqueles arquitectos suficientemente convictos daquilo que fazem (e para quem, de facto, fazem) verdadeiramente ignoram. No mesmo plano do papel ao da página web, boas ou más arquitecturas (tanto faz) partilham o mesmo glamour da obra elevada à sua condição mediática. Poderá ser por um período efémero (será certamente para a grande maioria), mas esse breve momento de celebração e 15 minutos de fama representará todo o investimento do arquitecto, aparentemente crente num “mundo perfeito” – a metáfora ideal para descrever o tempo que muitos veneram demarcado com rigor entre a conclusão da obra e a consequente entrada do cliente. E o preço a pagar: vultos e sombras, como fantasmas, que habitam casas vazias, sem móveis, sem livros, sem saber por onde ir, circulam de imagem em imagem sem encontrarem um lugar para apropriar e viver. MUNDO IMPERFEITO

O tema da exposição Em Obra de Luís Ferreira Alves está nas antípodas do “mundo perfeito”, por isso o subtítulo “mundo imperfeito”. Com isto não se quis expressar qualquer antagonismo entre a prática profissional de Luís Ferreira Alves e Fernando Guerra (como já se referiu, Luís Ferreira Alves é também um fotógrafo do “mundo perfeito” encomendado pelos arquitectos 14) mas antes a oposição entre a sedução da arquitectura acabada de inaugurar e o caos ou desleixo que caracterizam arquitectura em obra ou em ruína – procurando-se aqui uma indistinção assustadora simbolicamente representada pelo “princípio” e “fim” da arquitectura. Sobre esta exposição escrevi: “Na exposição Em Obra, Luís Ferreira Alves oferece-nos uma reflexão sobre a arquitectura em fase de construção, ou reconstrução, o que explicará o título da amostra. Um grupo de imagens do Palácio do Freixo exibe sem pudor um património despido, decadente, à espera de atenção. Num primeiro olhar, estas imagens poderiam significar a denúncia de um 43


tempo que menosprezou toda a dignidade da arquitectura, falamos de um património decadente, disfuncional, que não lhe foi sequer oferecida a possibilidade estética e romântica de se apresentar como “ruína”. Num segundo olhar, estas imagens de uma qualidade estética em si inquestionável, estimulam uma abordagem capaz de exaltar uma beleza oculta mas pronta a emergir. Em Obra é por isso uma mensagem de esperança a partir das imagens que se recusam a ser auto referentes para ser cúmplices de um momento único de transição e expectativa. Mas há outro nível de cumplicidade entre as imagens e a obra. No que refere à especificidade das imagens do Palácio do Freixo, do Mosteiro de Tibães ou do Liceu de Braga, Luís Ferreira Alves oferece-nos a visão de um património “humanizado”, isto é, um património fragilizado na sua essência mas paradoxalmente próximo de uma condição existencialista e algo absurda. Pormenores de frescos apagados, objectos estranhos à obra, estruturas expostas, entulho, lixo são imagens que perfazem uma ideia de desmistificação do património tornando-o perversamente mais próximo e quotidiano. Mas, paradoxalmente, será isto que legitimará repensar o património como lugar aberto a novos olhares e intervenções; um património dinâmico em transformação. Todas estas imagens de Em Obra fixam em papel um momento de transformação entre a ruína e a obra terminada. Há um qualquer fascínio inerente a este momento de transição do qual os arquitectos não abdicam, há a exposição de algo que o tempo tornará invisível, mas que não se pretende esquecer. Mas mais do que documentar este momento há também uma oportunidade de explorar outros sentidos estéticos. Lembro a este propósito as fotografias de Lewis Baltz, da sua série Park City (1980) ou mais recentemente o trabalho desenvolvido por Candida Höfer sobre a Embaixada Holandesa em Berlim projectada por Rem Koolhaas. Neste último caso, imagens da Embaixada ainda em obra foram editadas num livro 15 que parece querer enfatizar uma estética que é também arquitectónica e coerente com o sentido de transitoriedade que Rem Koolhaas tem vindo a reclamar para a arquitectura 16.

São fotografias como estas de Luís Ferreira Alves que permitem aceitar a incomodidade provocada pelas obras de modo absolutamente tranquilo. De certa maneira, estas imagens vão mais longe, ao desvendar uma beleza oculta onde à partida não há nada de belo, estão a contribuir para uma domesticação de um cenário que apesar de efémero tem cada vez mais impacto. Uma obra acaba e logo outra começa, há transitoriedade mas também há permanência das obras, há o incómodo mas também há expectativa de que: “Portugal é bom quando estiver acabado” 17, até lá estas imagens representam a bondade possível. Durante séculos o nosso património arquitectónico era, para o bem e para o mal, entendido como um organismo vivo potencialmente sujeito a transformações. De certo modo, o próprio reconhecimento de valor patrimonial expressava essa acumulação de intervenções que espelham a riqueza e complexidade histórica. Hoje, as políticas de preservação patrimonial têm quase sempre como consequência uma estagnação arquitectónica (dificilmente imaginamos Álvaro Siza ter a encomenda que Nasoni teve na Sé do Porto). As imagens de Luís Ferreira Alves devolvem-nos, nem que seja ilusoriamente, esse sentido de um património dinâmico em suposta transformação, mas oferecem-nos mais do que isso, estas imagens não deixarão de evocar um sentido que quase nos levará a confundir a transitoriedade das obras com a eternidade da ruína, fundindo o início e o fim da arquitectura”. MUNDO DIGITAL

A maior parte das fotografias da exposição Em Obra são ampliações de película médio formato 6x7. Mas a revelação química tem um tempo próprio cada vez mais incompatível com as expectativas da “encomenda”. Os profissionais da fotografia foram passo a passo cedendo ao digital que tecnicamente, a cada dia que passa, acumula pontos de qualidade. Ainda assim, Ferreira Alves, que hoje fotografa arquitectura com uma câmara digital Canon EOS-1DS Mark 3 (topo de gama) lamenta-se da qualidade dos céus e das impressões. Fotografar em película, fotografar com médio e grande formato é uma garantia


de qualidade mas que implica uma disciplina e rigor difíceis de serem monetariamente reconhecidas pelo mercado. Fotógrafos como João Armando Ribeiro ou Luís Oliveira Santos quando trabalham com a fotografia analógica fazem com sorte 10 imagens por dia, depois esperam pela revelação dos laboratórios que só existem no Porto ou Lisboa. Paulo Catrica costuma ironizar, sem estar muito longe da verdade, que só para montar o tripé demora duas horas. Quem trabalha com digital sabe que pode fazer 100 fotografias num único dia sem que isso tenha qualquer custo acrescido (não há película, não há laboratório), além de poder verificar o resultado na própria obra (e raramente ter de voltar) e saber que quando estiver novamente em estúdio terá uma segunda oportunidade denominada Photoshop que servirá para reenquadrar, corrigir perspectivas, manipular cores, adicionar ou retirar informação, etc. Claro que este tratamento pós-fotográfico também se pode fazer a partir da película digitalizada, mas há uma “cultura do analógico”, uma cultura

“resistente”, que o desaconselha. Só quem já passou pela revelação e ampliação dos próprios negativos saberá do que estou a falar. Não se entenda isto como um juízo contra a facilidade da manipulação digital. A manipulação sempre existiu desde a invenção da fotografia, entenda-se antes que a cultura do analógico valoriza com mais expressão o próprio «acto de fotografar» do que do processo «pós-fotográfico», quanto mais não seja porque os custos da película e da sua revelação nos obrigam a ser mais selectivos com as imagens que fazemos. O digital facilita a displicência do disparo que se tenta compensar quantitativamente. Neste aspecto, o digital é incontinente, é difuso, mas simultaneamente apresenta-nos a possibilidade de uma arquitectura que não conhece limites para chegar à perfeição. A fotografia analógica, condicionada à partida, teve de aprender a viver com os seus erros, com o seu ruído, com o seu próprio envelhecimento. Presta-se então à metáfora de uma arquitectura envolta de patine ou solitária como uma ruína.

NOTAS 1. Pedro Bandeira, “Mundo Imperfeito” in cartaz da exposição Em Obra, Guimarães: DAAUM, 2008. 2. Poder-se-á dizer que a edição do catálogo “Mundo Perfeito” provocou um debate interno sobre a política editorial da FAUP. 3. Eduardo Souto de Moura, “Princípio e Fim do Projecto” in catálogo da exposição com o mesmo nome, Porto: Jornal de Noticias, 2008, p. 3. 4. Eduardo Souto de Moura, idem. 5. Ezra Stoller: Modern Architecture Photographs by Ezra Stoller. New York: Harry N. Abrams, Inc. Publishers, 1990, p. 6. 6. Pedro Bandeira, idem. 7. Fernando Guerra, “Dibujos Visuais” in revista Mais Arquitectura #22, Março 2008, p. 27 8. Ver, a título de exemplo, o trabalho desenvolvido pelo fotógrafo-artista Thomas Ruff sobre a obra de Mies van der Rohe ou de Herzog & de Meuron, em que a fotografia é assumidamente interpretativa e reconhecida como prática autónoma. 9. Fernado Guerra, idem, p. 29. 10. Ana Vaz Milheiro, “Mundo Perfeito” in Mundo Perfeito: Fotografia de Fernando Guerra. Porto: Publicações FAUP, 2008, p. 21. 11. Nuno Grande, “Foto-Síntese” in Mundo Perfeito: Fotografia de Fernando Guerra. Porto: Publicações FAUP, 2008, p. 14. 12. O destaque que Álvaro Siza tem no site Últimas Reportagens ou no catálogo Mundo Perfeito exprime uma inteligente política de marketing. 13. Aproveitando a citação de Castello-Lopes “para a maioria das pessoas o que não foi fotografado de certa forma não existe, ou existe menos” citado por Fernando Guerra, idem, p. 33. 14. O percurso de Luís Ferreira Alves enquanto fotógrafo “oficial” dos arquitectos da Escola do Porto estará, do ponto de vista estético, distante das imagens de Fernando Guerra, mas não deixará de partilhar a mesma vontade na comunicação de um mundo “perfeito”. 15. François Chaslin e Candida Höfer, The Dutch Embassy in Berlin By OMA Rem Koolhaas. Rotterdam: NAi Publishers, 2004. 16. Para desenvolvimento deste tema consultar Pedro Bandeira: “Imagens de Rem Koolhaas” in Arquitectura como Imagem. http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/6878 - www.tinyurl.com/5sc9j3 17. Como ironizavam Jorge Figueira e Luís Tavares Pereira na Revista Unidade #3, 1992.

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HISTÓRIAS DE UMA MALA VASCO PINTO

Há um princípio bem conhecido, mas não infalível, que diz: mais vale uma boa síntese que um milhão de análises. A história da arquitectura podia bem ser um dos territórios de sentido desta proposição, se ela não anulasse uma boa parte da espessura e fecundidade intrínseca de momentos intersticiais normalmente indecisos. As sínteses remetem normalmente para momentos e objectos mais estáveis ou mais heróicos, que assentam numa clareza, essencialidade e fortaleza de carácter que os faz por si só marcos distintos, afirmativos e reconhecíveis, ainda que por vezes também fáceis, retóricos e redutores. O facto de vivermos num destes momentos críticos, ao mesmo tempo controversos, prolixos e nebulosos, ou na melhor hipótese, liminares, facilita em certa medida a tarefa de reconhecer os autores, os percursos e os objectos singulares. João Mendes Ribeiro é um destes casos. Lentamente, foi acumulando uma obra transversal, de uma coerência extrema, a ponto de ser hoje uma das figuras centrais da arquitectura erudita 1 de expressão portuguesa.

A transversalidade da obra de João Mendes Ribeiro transpõe largamente o campo strictu senso da arquitectura para áreas periféricas como a cenografia, onde é actualmente uma das referências mais sólidas e estimulantes, o desenho de espaços efémeros e expositivos, a arte pública, a instalação e o design, campo só eventualmente “menor” onde vou buscar o objecto metafórico, ou mais propriamente metonímico, desta minha síntese: a mala-mesa de João Mendes Ribeiro. Nesta minha abordagem a uma obra alargada - que vai da reabilitação de espaços e edifícios patrimoniais (Pátio da Inquisição e Laboratório Chimico, ambos em Coimbra) até ao desenho de edifícios/paisagens/objectos/imagens tão impressivos e marcantes, como a Casa de Chá em Montemor-o-Velho, o “condutor de espaços” 2 para o castelo de Rivoli, em Turim ou as cenografias para Propriedade Privada e D. João - pode parecer redutor eleger para ponto de partida e de chegada um objecto tão elementar e bem identificado como a mala-mesa. Para esta síntese mínima esta escolha pode parecer irónica ou exagerada, 47


mas é, pelo menos convicta e intencional, para não dizer arriscada. Numa obra abrangente como a de JMR, em que nunca deixa de ser perceptível o referencial da arquitectura moderna, e como queria Gropius “do puxador à cidade”, é sedutor ver onde me poderá levar este género de indução crítica, que se permite falar de tudo a partir de muito pouco. Há outra razão para esta escolha, a obra de JMR começa a estar amplamente difundida, documentada e comentada, tanto pelo próprio como por terceiros. Começa, por isso, a tornar-se difícil não repetir comentários já feitos, na minha mais que provável falta de imaginação para encetar caminhos completamente novos. Bom, talvez não seja assim e talvez não esteja tudo dito, e valha a pena esta sincera homenagem a um objecto singular, que é, ao mesmo tempo um dos símbolos mais reconhecíveis da obra de JMR e porque não, e a partir de Paisagens Invertidas 3, da própria arquitectura portuguesa. Se tivesse que resumir numa palavra o trabalho de João Mendes Ribeiro, escolheria a palavra serenidade, sabendo bem, que a serenidade é hoje uma qualidade dúbia, uma espada de dois gumes e um presente envenenado. Duvido que o João alguma vez se importe com isto, na busca incansável da beleza, ainda e sempre, essa cintilação de verdade eterna a iluminar o universo da arte. Alexandre Alves Costa tem razão quando refere a obra de JMR, como “escandalosamente artística” e Jorge Figueira acrescenta que “apesar de manter uma ética de arquitecto, sem assumir arrogância e distância de artista… a suprema ironia de JMR - e o João não é um arquitecto irónico – é trazer a artisticidade da arquitectura moderna para cima do palco” 4. Deste emaranhado de razões, fica-nos a ideia de uma vontade de elevação da prática arquitectónica a um ideal de beleza que resvala claramente da arquitectura, enquanto prática de mediação e de cedência, para o território da obra de arte. A cenografia, permite-lhe em parte esse espaço de experimentação e liberdade, mas essa vontade, eventualmente mais rigorosa e menos arriscada, não deixa de parte outras obras e projectos de mais grave arquitectura. Para JMR, o

prazer estético voluptas é o nível mais alto a que pode (e deve) aspirar, numa lógica ainda albertiana, a obra de arquitectura, depois de estarem atingidos as conveniências de ordem construtiva e programática (necessitas) e a adequação à dignidade e conforto da actuação humana (comoditas). Este apego a uma ordem explicativa de referência clássica e racionalista, ajuda a explicar a filiação de JMR entre a derivação mais miesiana da arquitectura moderna aprendida na Escola do Porto, universo formal que funde com a influência de artistas plásticos, designers e arquitectos contemporâneos de pendor minimalista, como Judd, LeWitt, Morrison, Chipperfield ou Pawson. Daqui a “essencialidade”, “eficácia”, “elegância”, “abstracção” e “alegria” que Manuel Graça Dias 5 infere da obra de JMR e a “neutra excepcionalidade” que refere Ana Tostões 6. Outras qualidades, que se adivinham, serão a delicadeza e a sensibilidade. Entendo-as como uma forma de profundo respeito e quase reverência, pelos espaços e edifícios onde actua, incutindo-lhes uma marca pessoal autêntica e contemporânea, contemporaneidade entendida como rigor projectual que permite restabelecer a dignidade e o nexo de temporalidade na obra de arquitectura. “Em Anjos, Arcanjos, Querubins e… Potestades, num palco vazio, cada personagem transporta uma mala. A mesa oculta transforma-se a partir da mala, cuja súbita metamorfose exercita os movimentos dos bailarinos. A mala é também uma caixa que contém dois bancos, utilizados pelas personagens para se sentarem comodamente à mesa. Com estas mesas constrói-se uma longa bancada onde se encena uma espécie de ‘última ceia’, cuja montagem e desmontagem assume a extensão do próprio corpo, condicionando e exacerbando os movimentos dos bailarinos.” 7 A primeira versão da mala-mesa surgiu em 1998, para Anjos, Arcanjos, Querubins e… Potestades, coreografia de Olga Roriz para o grande auditório do CCB, retomando a colaboração e cumplicidade de JMR com a Companhia Olga Roriz, que vinha de Propriedade Privada (1996) e Start and Stop Again (1997). Propriedade Privada recriava a


partir de um conjunto de caixas desdobráveis, uma série de habitáculos modulares, num momento eloquentíssimo de “cenografia como experimentação arquitectónica” e da definição de um “objecto múltiplo” 8, que é sucessivamente exterior e interior, recriando tanto o universo da rua como os espaços íntimos. A urbanidade e conflito de Propriedade Privada, davam lugar em Anjos, Arcanjos, Querubins e… Potestades à expressão da “tradição e religiosidade do Portugal profundo” 9, num registo fortemente memorial e autobiográfico. Olga Roriz relembra com entusiasmo o momento em que “o João apareceu na sala de ensaios com a mala na mão”, que abriu e desmontou, transformando numa mesa, “parecia mesmo a mala de piqueniques do meu pai” 10. Efectivamente, um dos aspectos interessantes da mala-mesa, é que, à parte a surpresa, toda a gente parece já a ter visto nalgum lugar e com uma configuração qualquer, é ao fim e ao cabo a recuperação de um objecto arquetípico, aqui reinventado pelo desenho de JMR. A utilização no espectáculo, perfazia uma longa mesa para um banquete. Nesta versão, a mala funcionava ao alto e era mais alta, desdobrando-se no sentido do comprimento e formando uma mesa mais

longa, com tampo mais espesso e apenas quatro pernas, em vez das oito actuais. Do seu interior, surgiam bancos desmontáveis de uma versão que difere ligeiramente da actual pela divisão do assento em dois elementos. Olga Roriz reutilizaria posteriormente a mala-mesa em mais três criações: F.I.M. [Fragmentos, Inscrições, Memórias] em 2000 no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, nos momentos I e II de Felicitações Madame de 2005 e em A Sesta, registo videográfico e performance produzidos para a representação oficial portuguesa na 11ª Quadrienal de Praga em 2007. A primeira aparição da mala-mesa como suporte expositivo aconteceu em 2001, integrada na mostra Inventário do Património Edificado de Origem Portuguesa, apresentada em El Jadida (Mazagão), Marrocos. Nesta primeira deslocação ao estrangeiro, a mala foi reinterpretada sem bancos de apoio e numa configuração e dimensões próximas das actuais. Da versão anterior, divergia apenas no facto de cada elemento dispor de mais duas pernas ao meio, compensando a maior esbelteza do tampo. Também mais finas, todas as pernas rebatiam agora no sentido da largura da mesa, para quatro caixas, dispostas nas extremidades de cada metade da mala. Na

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exposição de Marrocos, as mesas ficavam dispostas em duas linhas simétricas de seis elementos justapostos, dispondo cada uma, de dois candeeiros de secretária que iluminavam painéis transportados no espaço interior da mala. A segunda viagem da mala-mesa, já no modelo actual com oito pernas e dois bancos rebatíveis, foi a Berlim, integrada na exposição Paisagens Invertidas, promovida pela Ordem dos Arquitectos e apresentada no XXI Congress of World Architecture em 2002, na entourage de um auditório modular e um conjunto de outras caixas-malas para fins específicos. A mesma exposição itineraria em 2003, ano internacional da arquitectura por algumas cidades portuguesas. A última digressão internacional da mala-mesa foi à Quadrienal de Praga, em 2007, como suporte da exposição João Mendes Ribeiro -Arquitecturas em Palco/Architectures on Stage. A exposição era composta de vinte malas-mesa, integradas num pavilhão de painéis modulares forrados a tela branca. Ao lado, foi construído um pavilhão negro que enquadrava o auditório modular de Paisagens Invertidas, reutilizado para exibição do filme A Sesta de Olga Roriz, uma fábula, em que personagens com cabeças de animal encenam um piquenique campestre que se socorre das mesmas vinte malasmesa expostas. Nesta dupla referência, objectual e encenada, a mala-mesa torna-se protagonista, signo e símbolo, verdadeiro emblema metafórico para o trabalho exposto. Vencedora da medalha de ouro para a melhor obra de cenografia, a exposição de Praga seguiu para Barcelona, S. Paulo, Lisboa, Porto, Aveiro e Coimbra… O que tem afinal este objecto de tão especial? Será afinal tão só um produto de design 11, ou seja, uma forma repetível que não implica um lugar específico, como admiti no princípio? Não será antes uma micro-arquitectura de cena ou ainda uma obra de arte? Prefiro deixar esta classificação aberta e referir alguns aspectos pertinentes que podem ajudar a formar juízos sobre a categorização em causa. Comecemos pelo domínio do concreto: a mala na sua materialidade e geometria próprias. Construtivamente, há um aspecto que

gostaria de realçar que é um certo sentido de verdade, perceptível nas ligações entre as placas que a constituem, claramente assumidas e facilmente inteligíveis. Porque a tentação não é esconder, mas trazer à superfície, qualquer carpinteiro faria facilmente um novo objecto a partir de um modelo fornecido. A escolha do material, o contraplacado (de bétula), essa “madeira tecnológica”, e a sua clara distinção entre folha e secção, reforça essa identificação, e revela outro aspecto que não é menos importante, o primado da forma (esse lado mais abstracto da realidade) sobre a matéria. Rigor, geometria, escala e proporção são aspectos fundamentais da obra de JMR. Se já se prefigurava na Casa de Chá esta obsessão, a recentemente inaugurada Casa das Caldeiras, em Coimbra, projectada com Cristina Guedes é, por si só, uma prova cabal nesta matéria. No processo de sedimentação da mala atrás descrito percebese claramente este sentido evolutivo, desde a primeira versão para Anjos, Arcanjos, Querubins e… Potestades até ao modelo actual, mesmo que isso tenha obrigado a fugir ao modelo arquetípico da mesa, das quatro para as oito pernas. A este respeito, devo acrescentar que a duplicação do número de pernas, dá origem a uma interpretação lógica perfeitamente razoável se se considerar que a mesa é composta por duas metades, cada uma com quatro pernas e com a área adequada a um utilizador individual (um por banco). Deste entendimento, deriva o corolário lógico de que o modo correcto de associação entre várias mesas é no sentido da largura (como em Praga e Berlim) e não no do comprimento (Marrocos e A Sesta), ordem lógica que fica mais indecisa se se considerar o efeito poderosamente dinâmico das imagens e fotografias de A Sesta. Em termos funcionais, mas também ontológicos, a mala-mesa não foge de um dos conceitos chave em JMR, o de multiplicidade, multifuncionalidade e multioperatividade. Se a cenografia é o reino destes objectos mutantes, que chegam a assumir uma pluralidade de formas e identificações, os casos extremos são as cenografias para Propriedade Privada, O Bobo e a Sua Mulher Esta Noite na Pancomédia, Uma


Visitação, D. Juan e, já agora, no sistema de painéis móveis para o CAV (Pátio da Inquisição, Coimbra). Enquanto nos dispositivos de cena mais complexos, os graus de liberdade são muito amplos e intercambiáveis, permitindo pela acção da luz variações quase infinitas, a mala-mesa limita-se a uma estrita dualidade de acepções, aberto/fechado, ligado/ desligado, mesa ou mala. Mais do que dualidade, isto remete para a ideia de bivalência e digitalidade, quando a ideia poética por trás das máquinas e dispositivos de cena de JMR é francamente analógica, são máquinas encenadas e low-tech, inteligentes e sensoriais, mas intencionalmente primitivas, que não dispensam (antes procuram) a mão humana e remetem para uma temporalidade própria, que é a do espectáculo 12. “São máquinas um pouco tristes, máquinas intermédias” 13.

Voltemos à mala e tentemos decifrar a sua personalidade profunda. Mesas desmontáveis sempre existiram e existirão sempre, mas o que suscita todo o significado poético não é tanto a sua portabilidade, mas a sua transmutação numa mala. Fase e oposição de fase: o objecto simbólico da transitoriedade versus o objecto simbólico da convivialidade e da estabilidade. Não me esqueço que a mesa nasceu para um espectáculo sobre “o pulsar do povo português” 14, país de partidas e de “odes marítimas” em que as relações se continuam a fazer teimosamente à mesa. Andamos assim à volta de um “objecto fetiche”, do símbolo de um autor e da metáfora de um país. E se, numa altura em que se volta a falar da internacionalização da arquitectura portuguesa 15, a contemporaneidade fosse uma mala de contraplacado?

NOTAS 1. O termo erudito é aqui obviamente uma provocação, como se houvesse um real construído por diferentes ordens de objectos, desde a arquitectura de autor até aos meros exercícios técnicos, especulativos ou negligentes que determinam, mais do que aquela, as cidades e o território. Esta oposição entre a “grande” Arquitectura e a “outra” arquitectura é um dos temas implícitos no retrato da arquitectura portuguesa presente em Paisagens Invertidas. 2. Expressão que se vulgarizou para a projecto de JMR apresentada ao concurso Rizalita Mecanizzata al Castelo di Rivoli e que aparece tanto no comentário de Susana Ventura em JMR 92.02 – João Mendes Ribeiro Arquitectura e cenografia, XM, 2003, como no texto introdutório de Ana Tostões para João Mendes Ribeiro – Obras e projectos, ASA, 2003. 3. Exposição Paisagens Invertidas, promovida pela Ordem dos Arquitectos e apresentada no XXI Congress of World Architecture em 2002, comissariada por Ana Vaz Milheiro e Jorge Figueira. 4. Jorge Figueira, no debate com Manuel Graça Dias e João Luís Carrilho da Graça no Teatro da Cerca de S. Bernardo, Coimbra, 15-2-2009, organizado no âmbito da apresentação em Coimbra da exposição Arquitecturas em Palco. 5. V.A., JMR 92.02 – João Mendes Ribeiro Arquitectura e cenografia, XM, 2003. 6. V.A., João Mendes Ribeiro – Obras e projectos, ASA, 2003. 7. V.A., João Mendes Ribeiro – Arquitecturas em Palco / Architectures on Stage, Almedina 2007, pág.102. 8. Idem, pág 88 e 98. 9. Mónica Guerreiro, Olga Roriz, Assírio & Alvim, 2007, pág.190. 10. Olga Roriz, na conferência de apresentação da representação portuguesa na Quadrienal de Praga, Teatro D. Maria II, 4-6-2007. 11.A mala-mesa com 2 bancos OR na sua acepção enquanto produto comercial é editada e representada pela marca ZTDA. 12. João Mendes Ribeiro: “Os registos da realidade inscritos no cenário correspondem, normalmente, a um registo temporal e deliberadamente neutro. Esta neutralidade permite reforçar a ideia de que a representação se centra entre o passado que todos carregam e o presente do acto teatral”, in Arquitecturas em Palco / Architectures on Stage, 2007, pág.98. 13. Jorge Figueira, Coimbra, 15-2-2009. Diz Jorge Figueira: “O que é interessante no trabalho de JMR é o seu carácter intermédio. [os objectos de JMR] não são completamente figura e não são completamente fundo. Não são neutrais, nem disputam a cena. São para-arquitecturas, objectos intermédios.” 14. Arquitecturas em Palco / Architectures on Stage, 2007, pág 101. 15. Referência à exposição Arquitectura: Portugal Fora de Portuga, comissariada por Ricardo Carvalho, de 9 de Março a 9 de Abril na Galeria AEDES-Pfefferberg, Christinenstrasse 18-19, Berlim. 51



NOTAS SOBRE PROJECTOS, ESPAÇOS, VIVÊNCIAS LIZÁ RAMALHO E ARTUR REBELO

«...os espaços multiplicaram-se, fragmentaram-se e diversificaram-se. Existem de todos os tamanhos e de todas as espécies, para todos os usos e para todas as funções. Viver, é passar de um espaço para outro, tentando o mais possível não esbarrar.» Georges Perec

PAISAGEM, ENCONTRO, REFERÊNCIA

Já fora de Lisboa, num desvio no caminho, e sem procurarmos nada em concreto, demos com um descampado e duas barracas. Nesse vazio de vegetação, um pai tinha alinhado computadores obsoletos e televisores velhos. Estes formavam uma estação de trabalho com 5 postos, sem possível ligação à corrente eléctrica, para os seus filhos brincarem. Erraticamente, noutro desvio, encontramos um «a» minúsculo à beira da estrada, na realidade uma peça industrial, ali abandonada. Um «a» verdadeiramente gigante para quem compõe diariamente «a»s, com cerca de 9 pontos para texto corrido. Também ele no meio do nada e à beira da estrada, inesperado naquele espaço, um volume contornável, escalável, imponente e bruto. Noutras pesquisas tivemos igual sorte nos achados. Como o que aconteceu numa incursão à morgue de um conhecido hospital nacional. Percorrendo os seus corredores sombrios, entrámos numa das mais sinistras câmaras. Definindo a parede, um quadro de giz pregado para o registo da autópsia e, suspensos, um crucifixo e uma serra eléctrica.

É nestas paisagens, nem sempre descampadas, que encontramos perguntas e respostas para muitos dos projectos que desenvolvemos. São para nós deliciosos espaços, contentores ocupados que nos alimentam num diálogo entre vernacular, insólito, desordem e rigor, grelha, estrutura. Espaços e experiências que contaminam os nossos projectos e a nossa vida. Espaços habitados, interpretados, acasos, levaram-nos a encontrar preciosidades que coleccionamos quando a escala, o material e a propriedade o permitem. TIPOGRAFIA, MATÉRIA, TEXTURA

Os projectos constroem-se sobre diálogos permanentes que reenviam sistematicamente ao olhar crítico do outro. Com o conteúdo do projecto como ponto de partida, procuramos traduções com diferentes doses de interpretação, racionalidade e intuição. A envolvência impregna o nosso trabalho, opera associações e por vezes faz-nos integrar realidades e objectos, encontros na vida e no projecto, intencionais ou fru53


tos do acaso. Coisas coleccionadas e analisadas, objectos descontextualizados, transformados, ajustados, desviados, alavancas de uma nova abordagem. Procuramos por vezes conferir materialidade à tipografia, a matéria dos espaços e dos objectos que nos rodeiam. No cartaz desenhado para a peça de teatro Molly Bloom de James Joyce, utilizamos tipografia recolhida em diversos tecidos. Recorremos à textura e à forma das letras bordadas para conferir volume às palavras que jorram do interior de Molly. Esta materialidade foi também explorada na série de cartazes desenvolvidos para a divulgação da exposição Reunião de Obra 1, como derivação do conceito do projecto. Com enfoque na importância da passagem do projecto à execução, a tradução visual do evento no cartaz passou pela utilização dos materiais de construção e o desenho do projecto. Tratando-se de uma série, fez-se o levantamento sistemático de materiais representativos de cada Reunião de Obra 2, com os quais se procurou construir texto. Na instalação que concebemos para a fachada da Ermida Nossa Senhora da Conceição 3, agora transformada numa pequena galeria, as letras ganham textura; aqui, a tipografia não sugere apenas volume – ela é de facto tridimensional. O conceito desta intervenção centrou-se na anterior função daquele espaço, que passou de local de culto a galeria. Cobrimos a parede da fachada com expressões características de uma oralidade tão religiosa quanto quotidiana, evocações nem sempre conscientes de uma divindade omnisciente e omnipresente. Através desta intervenção, tanto expressões como divindade regressam ao local onde antes convergiram, agora no seu imperecível muro. O acabamento do texto composto no tipo de letra Knockout 4 tem a mesma materialidade da fachada (pintada de branco para o efeito), dando a sensação que o texto, como que empurrado do interior do templo, surge da capela para a rua.

ESCALA, REPRODUÇÃO, PROJECTO TÉCNICO

A reprodução de projectos de arquitectura em formatos mais pequenos (como acontece nas publicações) obriga a uma simplificação e um redimensionamento das espessuras das linhas. O desenho técnico do projecto reproduzido num livro chega a sofrer reduções na ordem dos seiscentos por cento. O tratamento do desenho implica que o traço mais fino tenha, para impressão em offset, pelo menos 0.5 pontos, indo até aos 0.4 se for computer to plate 5. No processo de impressão serigráfica, utilizado para os cartazes de rua, a linha mais fina não poderá ter menos de 0,71 pontos. No catálogo que acompanhava a exposição de Raoul De Keyser 6 reflectimos de uma forma mais incisiva sobre como poderíamos manter uma relação mais próxima entre a real variação das proporções das obras reproduzidas ao longo desta publicação. A amplitude de tamanhos e escalas entre elas impedia uma óbvia redução proporcional. A solução encontrada assentou num agrupamento de obras de acordo com a sua dimensão, tendo cada conjunto uma redução correspondente. Na capa, um pormenor de uma das pinturas é apresentado à escala real. Noutros casos, como no cartaz Boca 7, procurando um certo efeito de estranheza e simultaneamente de proximidade, ampliámos aproximadamente novecentos por cento a imagem de duas bocas tocando-se levemente. Tanto o conteúdo, como a escala da imagem, reforçaram os diálogos estabelecidos entre esta e a cidade nas paredes, tapumes e janelas cimentadas onde o cartaz foi afixado. Aqui, é o contexto que, por oposição, acrescenta significado à imagem. LETRA, SIGNO, EDIFÍCIO

Adrian Frutiger refere frequentemente a proximidade existente entre a arquitectura e a tipografia. No prefácio do livro sobre a obra do arquitecto Paul Andreu 8, Frutiger menciona esse tema como recorrente na colaboração de ambos para o projecto do Aeroporto de Charles de Gaulle. O seu é


apenas um exemplo da linguagem comum entre tipógrafos e arquitectos; como refere Félix Studinka 9, ambos falam sobre grelhas e estratificação, proporção e estabilidade visível, e como organizar o preto e o branco. Foi também essa proximidade que contribuiu para um I Love Távora inteiramente tipográfico. O evento que publicitou devia o seu nome ao próprio arquitecto Fernando Távora que, enquanto docente, concebeu uma t-shirt com estas palavras para que os seus alunos e outros interessados a adquirissem. No cartaz, recorremos a caracteres e outras peças tipográficas que, como se de edifícios se tratassem, procuram evocar um plano urbanístico onde se pode também ler um coração. No desenvolvimento de símbolos para identidades visuais para arquitectura, tivemos projectos em que utilizamos referências ao edifício. Por mera coincidência, dois deles desenhados pelo arquitecto Álvaro Siza: o Pavilhão de Portugal, para a Trienal de Arquitectura de Lisboa e o Conjunto Habitacional da Bouça no Porto, para o Atelier da Bouça. Na Trienal, partimos da forma do edifício sendo que durante o processo de investigação experimentamos uma aproximação que traduzisse de forma mais literal a «pala» do Pavilhão de Portugal. Contudo, uma maior abstracção revelou-se mais eficaz: a evocação à existência da pala é feita através de um reforço ao braço do «T», conferindo mais carácter ao símbolo. A forma é um híbrido – parte letra, parte edifício – que nasce de uma sugestão da forma do Pavilhão ao integrar igualmente as letras «T» e «L» de Trienal de Lisboa. A problemática da representação de um edifício em projectos de identidade visual tem particular interesse no caso do Centre Georges Pompidou 10. O símbolo da instituição, inspirado na fachada do edifício onde se destacam as escadas mecânicas, foi interpretado em 1977 por Jean Widmer. A primeira proposta apresentada – e recusada – não traduzia literalmente os pisos existentes, procurando um equilíbrio próprio. A forma inicial foi então substituída por uma versão menos abstracta do símbolo, reflectindo os 5 pisos reais do edifício.

PERCURSO, INVENTÁRIO, CARTOGRAFIA

A nossa foi a penúltima de uma série de onze intervenções no edifício da Casa da Música realizadas por designers, arquitectos e artistas portugueses 11. Não incidiu numa das suas salas em particular, mas concentrou-se nos vários espaços e percursos do edifício. Iniciámos duas análises distintas: por um lado, procurámos trajectórias e percursos; por outro, quisemos encontrar uma apreciação emocional das diversas salas por parte dos seus visitantes. Questionámos os trajectos usuais, propondo novas formas de descobrir estes espaços, organizados por ordem alfabética, escala, lotação, cor... Inventariámos, classificámos, contextualizámos; estabelecemos relações entre construído e o habitado. Cartografámos os seus conteúdos e as experiências que proporcionaram aos seus visitantes, representadas de diversas formas em séries inacabadas de «partituras» de dados. Os dados recolhidos foram apresentados sob forma de um livro aberto em cada degrau da escadaria norte da Casa da Música. Parte do conteúdo de cada dupla página contaminava as paredes e listava as palavras obtidas, em questionários aos visitantes 12 , para caracterizar cada um dos espaços. EDIFÍCIO, SIGNO, INTERSECÇÃO

Há edifícios que se deixam contaminar literalmente pelo seu conteúdo: o Pato de Long Island 13 é o ex-libris dessa categoria. Outros podem representar para os designers um espaço incontornável na procura de uma marca gráfica, como explica Stefan Sagmeister sobre a imagem que desenvolveu para a Casa da Música 14. Este refere que, por mais que se tentasse afastar do edifício de Koolhaas, todos os seus desenvolvimentos lhe pareciam arbitrários face à forma única deste edifício. Em oposição, a sede da Citröen nos Campos Elísios, projectada por Manuelle Gautrand, é sugerida pela marca gráfica originalmente desenhada por André Citröen. Em alguns casos, a intervenção gráfica num espaço pode ser tão essencial que, sem ela, todo o edifício que o proporciona 55


perderia; um exemplo disso é a Printshop Veenman, projectada por Neutelings Riedijk Architects e com intervenção gráfica de Karel Martens. Tradicionalmente, o designer de comunicação – como refere Ellen Lupton 15 – enquadra os espaços, sítios e objectos e torna-os legíveis, funcionando como mediador. A contribuição actual à reflexão do espaço e da arquitectura por parte de alguns designers esteve patente na exposição Forms of Inquiry 16, cuja itinerância teve início na Architectural Association em Londres em Outubro de 2007. Entre outras

coisas, esta exposição apresentou explorações críticas de vários designers face às problemáticas do espaço e da sua representação.17 Apesar de desenharmos para diferentes funções, partilhamos a mesma linguagem. É essa linguagem comum que torna possível uma colaboração próxima e um diálogo profundo entre designers e arquitectos. É dela que nasce a discussão sobre o interesse mútuo das duas profissões. E é nos territórios partilhados, assim como nas intersecções do espaço urbano, que juntos abrimos novas perspectivas.

NOTAS 1. Série de exposições realizadas pela Ordem dos Arquitectos Secção Regional Norte. 2. À excepção da Reunião de Obra nº1, por se tratar do primeiro evento, recorremos a um elemento generalista. 3. Situada na Travessa Marta Pinto em Lisboa, reabriu como galeria em 2008. 4. Família de tipos desenhada por Hoefler & Frere Jones. 5. Tecnologia de impressão mais moderna que permite passar directamente de um ficheiro criado digitalmente para a impressão da chapa de offset. 6. LOOCK, Ulrich, Raoul De Keyser, Fundação de Serralves, 2005. 7. Cartaz desenhado em 2004 para o Teatro Bruto, com base numa fotografia original de Marco Maurício. 8. ANDREU, Paul; JODIDIO, Philip; FRUTIGER, Adrian, «A Building, a typeface», Paul Andreu, Architect, Birkhäuser, 2004, 6-7. 9. STUDINKA, Félix, Poster Collection: Typotecture, Typography as Architectural Imagery. Museum fur Gestaltung Zurich & Lars Muller Publishers, 2002, 5. 10. SMET, Catherine de «Histoire d’un rectangle rayé», Les Cahiers du Musée national d’art moderne, Édition du Centre Georges Pompidou, 2004, 4-23. 11. Nuno Grande, Ricardo Jacinto, Flúor, Pedro Bandeira, Luísa Cunha, Pedrita, as*, Fernanda Fragateiro, Miguel Palma e Filipe Alarcão são os autores das outras intervenções. 12. Questionários realizados entre Setembro e Outubro 2007, a 106 visitantes. Foram analisados os seguintes espaços: Cybermúsica; Entrada; Sala 2; Sala Laranja; Sala Renascença; Sala Roxa; Sala Suggia; Sala VIP; Terraço. 13. VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; BROWN, Denise Scott – Aprendiendo de Las Vegas: El simbolismo olvidado de la forma arquitectónica. 2ª ed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 1982. 14. RAMALHO, Lizá, «Un logo, des locaux», Étapes França nº148, 2007, 52-56. 15. LUPTON, Ellen; MILLER, J. Abbott , «Critical Wayfinding», The Edge of the Millennium,. ed. Susan Yelavich. New York: Whitney Library of Design, 1993, 220-232. 16. KYES, Zak; OWENS, Mark – Forms of Inquiry: The Architecture of Critical Graphic Design. London: Architectural Association Publications, 2007. 17. Entre os projectos apresentados, destacamos a interpretação gráfica da capela de Notre Dame du Haut de Le Corbusier, por Karel Martens e David Bennewith para a Architectural Association emLondres.




DESIGNERS: ENTRE CÉTICOS E DOGMÁTICOS DIOGO DANIEL CASAS

Mesmo aparentemente distantes, o pensamento cético e o design possuem uma relação estreita. De modo que o ceticismo e seu oposto, o dogmatismo, estão presentes cotidianamente no modo de agir e pensar dos profissionais ligados à atividade de design. A proposta do artigo é confrontar o design, em suas principais perspectivas, com as bases do pensamento cético, a fim de estabelecer uma relação entre as abordagens de design e suas possíveis bases epistemológicas. Com o passar dos anos, desde sua fundação, o design passou por transformações que alteraram seu discurso e objetivo inicial, que, em certa medida, reflete seu amadurecimento e seu reconhecimento social, principalmente ao deixar de ser uma vanguarda, ou um projeto alternativo, e passar a ser absorvido pela empresas e pela sociedade, através da consolidação de um mercado de design. Essa discussão tem como embasamento a análise de Nuno Portas (1993), sobre as três principais correntes ou tendências em Design, que,

segundo ele, norteiam a formação e a visão da maioria dos profissionais da área sobre a atividade e, consequentemente, as ações projetuais e as políticas desenvolvidas pelos mesmos. Como suporte e complementação a abordagem de Portas, utilizaremos a reflexão crítica de Norberto Chaves (2001) sobre os discursos assumidos pelo design no decorrer de sua trajetória, polarizados e contrastados como discurso dos fundadores e discurso do mercado, mas também se referindo a uma terceira corrente pós-moderna, que, nesse ponto, se diferencia de Portas, e assim expande as perspectivas sobre os rumos da atividade de design. O pensamento cético, em síntese, pode ser encarado como a suspensão do juízo, sem aceitar ou negar uma teoria, o que demonstra seu caráter de investigação permanente. O cético pirrônico, conforme Sexto Empírico, também pode propor teorias, mas, no entanto, a diferença entre ele e o dogmático, é que o cético suspende o juízo e continua investigando. Conforme o Dicionário Básico de Filosofia (JAPIASSÚ, 1990), por oposição ao 59


ceticismo, o dogmatismo é a atitude que consiste em admitir a possibilidade, para a razão humana, de chegar a verdades absolutamente certas e seguras. Na concepção cética geral, portanto, a especulação filosófica daria lugar ao senso comum e à vida prática. Considerando apenas o que é aceite no senso comum entre os autores de design utilizados que, como vimos, é uma das essências do pensamento cético, a ênfase se dará, então, na abordagem funcionalista relacionada com o discurso dos fundadores da teoria do design, e a abordagem do Styling, adotada pelos agentes do mercado. Essa duas abordagens são aproximadas do pensamento cético, através de seus principais expoentes - como Sexto Empírico, Descartes, Hume, Kant entre outros-, e, assim, buscar estabelecer relações epistemológicas das duas principais correntes de design. As outras perspectivas também são indicadas no texto, como concepção sistêmica ou ecológica (Portas) e a pós-moderna (Chaves), porém, sem o mesmo destaque das duas anteriores, por não serem consensuais entre os autores. Em suma, o presente estudo aborda também a transformação do design no decorrer dos tempos, de sua origem até a atualidade, traçando um paralelo com o pensamento cético. Busca contrastar as principais correntes de design, desde a origem funcionalista e mais dogmática, passando pelo Styling e pelo pragmatismo em relação ao êxito de mercado. Encerra-se com as correntes mais recentes, como a pós-moderna e o design sistêmico, que, de certa forma, se caracterizam, respectivamente, como uma postura mais cética e mais dogmática em relação ao design. OS PENSAMENTOS CÉTICO E DOGMÁTICO NO DESIGN

Para Lobach (2001), o design pode ser compreendido, no sentido amplo, como a concretização de uma ideia em forma de projetos. Para o cético, o conhecimento do real é impossível à razão humana. Portanto, o homem deve renunciar à certeza, suspender seu juízo sobre as coisas e submeter toda afirmação a uma dúvida constante. E ser dogmático, consiste

em admitir a possibilidade, para a razão humana, de chegar a verdades absolutamente certas e seguras. Uma aplicação rápida dos pensamentos acima, em relação aos projetos do design, é o exemplo do walkman, representado pela Figura 01. Ele demonstra o potencial do design no surgimento de novos produtos, utilizando-se do ceticismo metodológico para refutar propostas de produtos que não “resolvem o problema”. Como resultado desse processo, tem-se um produto que resistiu a todas as dúvidas impostas sobre suas qualidades, sobre o atendimento das necessidades do usuário, aos aspectos técnicos de sua produção e comercialização e, mais recentemente, até mesmo sobre o seu descarte. De certa forma, portanto, o designer é cético com relação ao fato de ter alcançado definitivamente a melhor forma para uma determinada função. Pois, como no exemplo anterior (fig.01), os produtos sempre se transformam para atender uma mesma função, quando não é a própria a função que se altera. Por outro lado, o designer também precisa ser pontualmente dogmático, porque cada produto é uma espécie de teoria, ou enunciado, que corresponde a uma resposta considerada verdadeira com relação ao atendimento da necessidade proposta. Nesse sentido, em certos casos, o designer assume o pragmatismo dos céticos, considerando certos procedimentos e produtos úteis, apesar de não serem necessariamente “verdadeiros”. Em outros casos, entretanto, assume o dogmatismo ao mostrar-se convencido de que design é ciência capaz de encontrar a verdade. Conforme Burdek (1999), todo objeto de design há de ser entendido como resultado de um processo de desenvolvimento que sempre reflete nas condições sob as quais surgiu: o contexto histórico, social e cultural, as limitações da técnica e da produção, os requisitos ergonômicos, ecológicos, os interesses econômicos, políticos e até as aspirações artísticas. A partir disso, podemos considerar as constantes mudanças sócio-culturais que, com o passar dos anos, mudam as necessidades, gerando


demandas por novas funções para produtos já existentes e, também, por novos produtos. O designer, como atuante fundamental no sistema de produção e consumo, deve estar atento às mudanças, visando aprimorar e adequar o sistema sócio-produtivo. RELAÇÕES ENTRE DESIGN E CETICISMO

O ceticismo inspira a atitude crítica e questionadora da filosofia contemporânea, como a relatividade do conhecimento e dos limites da razão e da ciência, que a epistemologia atual trata. Desde a antiguidade, existem os filósofos céticos e os filósofos dogmáticos. Os primeiros se recusam a crer nas verdades estabelecidas, enquanto os segundos defendem as verdades de sua “escola”. No Design, dentro das suas diversas abordagens e “escolas”, a atitude cética e a dogmática pode ser utilizada como extremos de uma escala para posicionar o comportamento, ou mesmo o discurso dos profissionais da área. Como vimos, a relação entre design e ceticismo é clara, ao observarmos o desenvolvimento dos produtos, mas, a partir de agora, passaremos a confrontar as diversas “escolas de pensamento”, ou “discursos” de design, com o pensamento cético e a epistemologia. O DESIGNER FUNCIONALISTA E O DISCURSO DOS FUN-

Azevedo (1998) afirma que, para compreender melhor a atividade do design, é preciso observar os movimentos que, ao passar do tempo, incentivaram o homem na busca por novas formas, materiais e métodos. Mas, em essência, a idéia de design surge no mundo quando o homem começa fazer suas ferramentas e objetos. Principalmente antes do século XX, a confecção de um objeto era função do artesão. Mas, com o surgimento da indústria, tornou-se necessário aproximar a atividade do artesão e da máquina, pois era preciso adaptar o processo de construção do objeto, de modo a facilitar sua produção pela máquina. Assim, a partir do modelo industrial de produção, o processo de concepção do objeto passou a ser entendido como design, ou mesmo, como desenho industrial. DADORES —

Com origens históricas na Europa Central do primeiro pós-guerra, sobretudo, lançado pela escola alemã Bauhaus, o design assumia um discurso essencialmente funcionalista, na medida em que a criação da forma dos produtos deveria traduzir a constituição lógica da produção do objeto e, sobretudo, a lógica da sua função – da utilidade, do uso – a que se destinava. O que levou ao desenvolvimento de múltiplos estudos – como a ergonomia - da adaptação dos utensílios e espaços ao homem (PORTAS, 1993). Isso porque, segundo Portas (1993), o designer honestamente funcionalista deve racionalizar a concepção do produto para, acima de tudo, torná-lo mais útil e adaptado, melhor manipulável pelo usuário, cujas atividades ou necessidades se vão conhecendo pela via científica, e não por questões de marketing, preocupando-se principalmente com o uso imediato do objeto e em melhorar sua utilidade dentro das condições econômicas e técnicas aceitáveis pela indústria. Conforme Chaves (2001), este é o estágio inicial da emergência do design, aparecendo como uma alternativa a todas as formas prévias de definição da forma dos produtos de uso e do habitat. Em seguida, o design foi englobando praticamente a totalidade da produção material. Dessa forma, o design veio ser a linguagem e a expressão da própria revolução industrial. Ainda segundo Chaves (2001), o discurso funcionalista, não somente segue vivo, como em alguns casos é o único possível, pois, para certos problemas, possui uma eficácia incontestável. Porém, a relação imaginária que os designers estabeleciam com o “Usuário”, como este sendo uma espécie de ser supremo imaginado a partir de um modelo de “Usuário” concebido como imagem e semelhança da utopia intelectual do setor. Este “Usuário” era um ente anatômico e fisiológico carregado de necessidades práticas e objetivas, privado de história e pré-disposições culturais socialmente adquiridas, que não coincidia com nenhum setor concreto da população. Em suma, uma concepção de usuário demasiadamente racionalizada e teórica, idealizada 61


a partir de médias antropométricas e neces- quisador/autor e seu objeto de pesquisa. A ciênsidades fisiológicas, mas que, por muitas vezes, cia retrataria de forma neutra e clara uma dada desconsidera aspectos emocionais, psicológicos, realidade a partir de seus fatos, sem recorrer a culturais e simbólicos. Aspectos esses, que são opiniões e julgamentos do pesquisador. marcantes no Styling, escola de design subseSTYLING NO DISCURSO DO MERCADO — Conforme a qüente nesta análise, mas para o design funcio- análise de Chaves (2001), com o tempo, o design nalista tornou-se uma limitação dentro da lógica torna-se um instrumento indispensável da sociede mercado que se consolida a partir do segundo dade contemporânea, deixa de ser uma proposta pós-guerra. e torna-se uma cultura efetiva, com um mercado De certo modo, a corrente funcionalista é que concreto, onde existem produtores, distribuidores mais se aproxima da postura puramente dog- e consumidores de design. Este metabolismo somática, com fortes influências epistemológicas cial da disciplina definiu uma estrutura e conteúdo Racionalismo e do Positivismo. Isso, porque dos bastante distintos dos iniciais. Enquanto, no a ênfase na racionalização do produto, e até início, os agentes eram a própria vanguarda da armesmo do próprio usuário, quitetura e do design, como aproxima-se do Racionaagentes econômicos diretos, lismo, que tem na razão posteriormente, o design é A PREFERÊNCIA PELA VIA o fundamento de todo o desenvolvido por empresas, CIENTÍFICA DE AQUISIÇÃO conhecimento possível, e, corporações e organismos DE INFORMAÇÕES portanto, somente ela é vinculados com o desenCORRESPONDE À capaz de conhecer o real. volvimento dos mercados. ABORDAGEM POSITIVISTA, Nesse ponto, em relação Então, o discurso do design QUE PREGAVA A ao pensamento cético, a passa das mãos das vanguarCIENTIFIZAÇÃO DO perspectiva funcionalista das às mãos das empresas e, PENSAMENTO E DOS do design aproxima-se do logo, surgem novas razões, ESTUDOS HUMANOS, ceticismo metodológico de novos princípios e novos PARA OBTER RESULTADOS Descartes, que, segundo sentidos para a disciplina. VERDADEIROS: Dutra (2005), é voltado Este novo discurso de CLAROS, OBJETIVOS E para a compreensão do design, segundo Portas COMPLETAMENTE CORRETOS. ceticismo como atitude de (1993), ficou na história duvidar de nossas opincom o nome de Styling, iões - Cogito, ergo sum -, com origem na América confiando que aquelas que do Norte, no período entre realmente forem expressão guerras e, no pós-guerra, da “verdade” irão resistir a qualquer dúvida e, na Europa e no Japão, e assim, defender opiniões, teorias e teses ou, corresponde à imagem mais comum que se tem conforme os céticos, estabelecer dogmas. de design na atualidade, que é “a do embelezaA preferência pela via científica de aquisição de mento de um dado produto para o tonar mais informações corresponde à abordagem Positiv- atrativo em termos de venda, ou seja, como fator ista, que pregava a cientifização do pensamento adicional de competitividade comercial” (PORe dos estudos humanos, para obter resultados TAS, 1993, p.233). verdadeiros: claros, objetivos e completamente O discurso do Styling quase não tem nenhuma corretos. O fundador desse movimento, Auguste palavra em comum com o discurso inicial. SeComte (1798-1857), acreditava num ideal de gundo Chaves (2001), neste contexto, a socieneutralidade, isto é, na separação entre o pes- dade virou “mercado”, o usuário tornou-se “con-


sumidor”, a qualidade de design tornou-se “valor agregado”, produto é “mercadoria”, satisfação de necessidades de uso é “motivação de compra”, racionalidade é “competitividade”. O racional é aquilo que consegue resolver o problema de ingressar no mercado. Esta é a racionalidade da sociedade atual. O racional não é produzir algo intrinsecamente bom, mas produzir algo que funcione na lógica do mercado. É o discurso da gestão empresarial do design, o discurso do marketing, o discurso promocional das instituições de apoio e desenvolvimento da competitividade das empresas. É o que Chaves (2001) chamou de “razão pragmática”, em contraste com os fundadores, que foi por ele rotulada como “razão ingênua”, em virtude de excesso de crença na razão e na neutralidade da ciência. Sendo que o Pragmatismo considera o conhecimento humano com um caráter utilitário e operacional, isto conduz ao tema da ação, de nossa atuação no mundo, das consequências que ela produz e sua relação com o próprio conhecimento. De forma geral, o Pragmatismo americano, principalmente de Dewey, se concentra na tese de que o significado de um conceito reside em sua consequências, e não na forma como o idealizamos (DUTRA, 2005). Esse pragmatismo, de certo modo, aproximase do ceticismo pirrônico, que consiste em seguir as manifestações da natureza, os costumes da sociedade em que se vive, isso conduz também a adotar o significado comum dos termos, sem inquirir a todo o momento sobre o significado real dos termos. O significado que interessa é aquele que é eficiente na comunicação e entendimento dos falantes (DUTRA, 2005, p.36-37). Sob o ponto de vista do Styling, o design “é o instrumento não da substituição de um produto por outro substancialmente melhor, mas sim da persuasão do consumidor para substituir os produtos que usa por outros, apenas porque o aspecto é diferente” (PORTAS, 1993, p.234). Volta-se a atenção, portanto, para parâmetros psicológicos principalmente através de estudos

sobre o comportamento do consumidor. Isso propõe no campo filosófico uma retomada do ceticismo de David Hume (1711-1776), para quem nossas crenças ou opiniões sobre relações de causa e efeito não são legítimas, no sentido de possuírem força de argumento, mas são inevitáveis, em virtude de nossa constituição psicológica (DUTRA, 2005, p.34). É preciso destacar, ainda, as correntes antagónicas do behavorismo e do mentalismo. Para o Behavorismo, o comportamento do humano é regido pelo ambiente, seja esse natural ou social, que abriga os indivíduos humanos ou animais. O Mentalismo, em oposição, propõe o comportamento do homem como produto dos processos mentais prévios à ação e internos ao indivíduo, como defende a psicologia cognitiva contemporânea (DUTRA, 2005). O Mentalismo apoia-se em pontos do ceticismo filosófico, ou melhor, na corrente intelectualista, como na filosofia de Kant, que reconhecia a possibilidade de existência dos objetos, ou da coisa-em-si, mas considerava que nós apenas alcançamos o “fenômeno”, ou seja, o objeto da nossa experiência, decorrente da relação da coisa-em-si, com a nossa estrutura de sensibilidade. A restrição do objeto ao fenômeno reforça o ceticismo grego, com Agripa e, principalmente, com Enesidemo, que “esforçaram-se para mostrar que os sentidos somente nos revelam a aparência e não a essência dos objetos, em outros termos, que as qualidade sensíveis não pertencem propriamente ao objeto, mas apenas impressões sentidas pelo sujeito” (VERDAN, 1998, p.97). O Styling, como corrente de design, apresenta, em suas bases, pontos de convergência com o pensamento cético e o pragmatismo, a partir do momento que desloca a atenção do objeto em si, para o fenômeno do consumo, ou seja, seu interesse principal não é configurar o melhor produto, mais sim, aquilo que apresenta os melhores resultados em termos de vendas no mercado. Conforme Chaves (2001, p.27), compreendese que o empresário deve ser mais que um mero “fabricante”, porque precisa ser um excelente 63


comunicador. Deve vender, independente do que e onde, pois o produto, como objeto concreto, tende a ter sua importância econômica diminuída em relação ao universo imaginário que o rodeia. Nessas condições, os designers tornam-se as “estrelas”, definindo-se pela sua capacidade de inovação estética e simbólica, porque o que vale agora é a incorporação de um elemento de inovação, que proponha um acontecimento atraente para o mercado, sem necessariamente buscar a solução de problemas relacionados às necessidades objetivas do usuário. O DESIGNER SISTÊMICO E O PÓS-MODERNO — Nuno Portas (1993) apresenta a corrente do design sistêmico - ou ecológico - como terceira principal corrente de pensamento em design. Assim, diverge da análise crítica feita por Noberto Chaves (2001), que indica como alternativa a corrente pós-moderna em design que, segundo ele, representa o estágio atual do desenvolvimento cultural do Ocidente. Para Chaves (2001), o design pós-moderno combina valores das elites culturais com demandas irrenunciáveis do mercado, retendo os valores “universais” da disciplina articulados com a cultura do consumo. Para o autor, há uma “razão cínica”, com atributos como irracionalismo, formalismo, amoralismo, apoliticismo, individualismo, narcisismo, oportunismo, entre outros. Isso provocou a hipertrofia da inovação formal que, geralmente, é observada nas áreas lentas ou paralisadas do mercado, onde não é mais possível introduzir inovações radicais. De certa forma, o design pós-moderno tem grande proximidade com a corrente Styling e, consequentemente, tende a se posicionar mais próxima da atitude cética, do que a corrente do design sistêmico. Segundo Portas (1993), o design sistêmico resulta do alargamento da visão do designer funcionalista. Desse modo, reconecta o design a uma perspectiva que transcende a lógica do produtor e do consumidor ou usuário, pois não se limita ao objeto em si, repensado-o como componente de sistemas mais vastos.

Nessa linha, Manzini (2005) argumenta que o design assume uma abordagem sistêmica, quando a tarefa de desenvolvimento de um novo produto torna-se o ato de projetar o ciclo de vida inteiro do sistema-produto, o que inclui a pré-produção, produção, distribuição, uso e descarte. Em última análise, entretanto, a corrente do design sistêmico tem uma proximidade maior com a atitude dogmática e, assim como o design funcionalista, apresenta uma argumentação baseada na racionalizaçao do objeto, mesmo reconhecendo que “a simples racionalização tecnológica e formal pode ter na base uma irracionalidade de necessidades do ponto de vista da economia do país, dos interesses reais (não fictícios) dos consumidores ou do equilíbrio ecológico ou ambiental” (PORTAS, 1993, p.238). A Teoria Geral de Sistemas, uma das principais bases científicas da corrente do design sistêmico, propõe um programa ao mesmo tempo científico e filosófico que, sem abandonar o rigor das ciências clássicas, exige a criação ou o aperfeiçoamento de uma linguagem própria, com esquemas teóricos particulares e, até mesmo, de uma particular “visão do mundo”. (JAPIASSÚ, 1990). Neste ponto, cabe destacar outra contribuição do ceticismo de David Hume para a filosofia e para a ciência, considerando também sua contribuição para o design, cujo objetivo é determinar os limites da razão lógica e definir o domínio que lhe é próprio, a fim de evitar que ela se perca em problemas insolúveis (VERDAN, 2005). Essa é uma contribuição fundamental, principalmente, para a abordagem sistêmica, no que consiste em definir os limites do sistema-produto. Pois, em última instância, um produto se relaciona com praticamente todos os outros sistemas existentes. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tradição do design clássico-positivista é incompatível com o ceticismo moral ou filosófico, porque é alinhada ao dogmatismo científico-positivista. A origem teórica do design é idealista/ racionalista e sua prática é funcionalista, como


decorrência direta da Revolução Industrial, que foi um fenômeno material e social decorrente da matriz ideológica positivista. Na cultura ocidental, entretanto, o positivismo foi superado pelo liberalismo, promovendo a superação do racionalismo pelo pragmatismo, que uma das expressões possíveis do ceticismo. O percurso que destituiu o racionalismo dando lugar ao pragmatismo foi expresso e percebido na evolução do design no Ocidente. O imediatismo pragmático, contudo, está sob suspeição, na medida em que o consumo desenfreado provoca o desperdício dos recursos materiais não renováveis em função da necessidade de renovação simbólica como estratégia de renovação do próprio consumo. Essa situação de calamidade eminente propôs o discurso da sustentabilidade ambiental que envolve o reaproveitamento de matéria prima e a suspensão do abuso sobre os recursos naturais. O design sistêmico, que prevê o planejamento de todo ciclo do produto, da concepção ao descarte, apresenta-se como a solução possível para garantir a renovação dos recursos de produção e a renovação dos ciclos de consumo, ampliando a esfera do consumo simbólico e restringindo o desperdício de recursos não renováveis. A divisão entre as abordagens do design é, portanto, em certa medida, artificial, porque não representa realidades ou categorias totalmente distintas. Essas abordagens diferenciadas assinalam a própria evolução da cultura industrial e pós-industrial com relação: 1- A necessidade primeira de atendimento à grande demanda reprimida de consumo de bens industrializados, que vinha como herança da era artesanal;

2- A necessidade posterior de ampliação do consumo, diante da demanda por ampliação dos postos de trabalho e a consequente necessidade de ampliação dos setores produtivos; 3- A necessidade de manutenção e ampliação do consumo e dos postos de trabalho nos setores produtivos, mas sem colocar ainda mais em risco a vida no planeta terra. O idealismo positivista/racionalista da abordagem original foi uma resposta dada à necessidade de se criar uma sociedade industrial que, até então, era inexistente e, portanto, inacessível à experiência, sendo alcançável apenas idealmente ou racionalmente. O pragmatismo cético, com relação à verdade precedente do projeto sobre a realidade do mercado, como o conjunto de distribuidores e consumidores, decorreu da constatação de que nem tudo que fosse oferecido seria prontamente aceite por uma sociedade já praticamente saciada, com relação às demandas objetivas. A visão sistêmica também instaura, por fim, o ceticismo, com relação à capacidade da razão clássica em garantir o futuro da sociedade, da cultura e do planeta. No percurso evolutivo do design, o ceticismo e o dogmatismo expressos entre os profissionais da área pode ser entendido segundo a perspectiva neopirrônica do pensamento cético, que considera ambas as atitudes como comportamento de investigação possíveis, corroborando o ponto de vista mais pragmático, ou seja, adotando a atitude que alcance melhores resultados conforme o contexto (DUTRA, 2005), de acordo com os aspectos econômicos, sociais, culturais e ecológicos do momento.

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FICHA TÉCNICA TÍTULO DESIGN & IDENTIDADE PESQUISA BRUNO ALMEIDA 1ª EDIÇÃO PORTO, ABRIL 2010 PUBLICADO POR BRUNO ALMEIDA MORADA RUA FONTE DE BAIXO, 4505-686 CALDAS DE SÃO JORGE ORIENTAÇÃO MÁRIO MOURA TRABALHO REALIZADO NO ÂMBITO DA DISCIPLINA DESIGN II, FBAUP WEBSITE WWW.BRUNOALMEIDADESIGN.PT.VU EMAIL BRUNOALMEIDADESIGN@GMAIL.COM DESIGN GRÁFICO BRUNO ALMEIDA IMPRESSÃO NORCÓPIA TIRAGEM 1 EXEMPLAR




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