รกrvores contadas de outro modo
PEDRO CA STRO HENRIQUES
BY T HE
BOOK
© AU TOR
Pedro Castro Henriques © E diç ão
By the Book, Edições Especiais I m pre ssão e ac a ba m en to
Real Base ISBN
978-989-8614-18-6 depósito l eg a l
376014/14
Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. 213 610 997 www.bythebook.pt
Antonino Pena, que amava a escrita, e Adofo Hilário, que a detestava, faziam parte do mesmo mundo
Quando este nosso mundo estava coberto de árvores – dizem – e desconhecendo-se o que era um livro, não estavam reunidas as condições para uma relação entre as árvores e o papel. Esse romance veio a surgir mais tarde, no dia em que alguém dedicado à escrita, cansado de barros e papiros, se decidiu pela invenção dum novo suporte para a escrita. A partir de então, papel e árvores, apesar de unidos num casamento de conveniência – às páginas dos livros ainda se chamam folhas – nunca se deram bem. A simples existência do papel abriu o campo à possível inexistência da árvore. Acresce ainda, para complicar as coisas, que a cabecinha dos homens também teve grande influência no desenrolar da história: houve e há tipos que adoram a escrita e outros que a odeiam, do mesmo modo que houve e há gente que venera as árvores e outra que, caso pudesse, as liquidava de vez. Séculos atrás em Folgazes, aldeia da Beira Interior que não possuía tipografia, vivia um homem muito pobre e amante da escrita, Antonino Pena que, por não ter meios de adquirir papel, decidiu ele próprio fabricá-lo. Nessa aldeia morava um seu vizinho, Adolfo Hilário, que detestava a escrita e amava as árvores e, como tal, odiava o Pena. Ora acontece que cada vez que este último cortava uma árvore para fabricar papel, o Hilário, como represália e se bem que contra a sua vontade, não encontrara melhor forma de o contrariar senão cortando outra árvore. 115
Assente no são princípio do ‘não hás-de tê-las!’ cuidava assim atalhar a prazo à expansão da escrita do seu rival. Não havendo porém muitas árvores na redondeza, acontece que certo dia, por força dos cortes dum e doutro, deixou de haver árvores de todo. Tempos passados, preocupados perante a aridez reinante, Antonino Pena e Adolfo Hilário chegaram à fala, concluindo que a acção combinada dos amadores de livros e dos amantes de árvores tinha conduzido a um inesperado resultado: ficar o mundo sem árvores e não haver papel para os livros! Daí, ambos terem desistido dos seus propósitos. O Antonino deixou-se de escritas e o Adolfo, por ausência das mesmas, perdeu todo o ódio que lhes votava o que lhe permitiu esquecer o seu vivo amor pelas árvores. Desta nova atitude resultou que as árvores cresceram de novo, perante a indiferença de ambos. Anos mais tarde, toda esta história foi esquecida, floresceu um comércio dito ‘electrónico’ e nas escolas passou a estudar-se um período histórico denominado ‘era do livro’, época em que um estranho objecto – esse mesmo livro – somatório de número variável de folhas de papel fazia de palco essencial ao que se denominava por ‘escrita’. Na nova época, dominada pelo computador, o contentamento apossou-se dos ecologistas, tal como séculos atrás andavam radiantes os inventores da pasta de papel. Quanto ao papel… ainda há dias, em importante leilão via Internet, foi vendida a um coleccionador chinês – substituto de antigos e milionários coleccionadores doutras partes – pela módica quantia de 331.845 euros uma folha de papel formato A4, único exemplar de uma resma vendida em Lisboa em 1973 pela Papelaria Castro ao Arco do Cego, oriunda duma antiga fábrica de pasta de papel sita em Cacia-Aveiro e testemunho de uma saga que alguns dizem estar em vias de acabar. 116
Aristides de Sousa pertencia a uma família dedicada à causa silvícola mas atingida pela modernidade
O avô, Aristides de Sousa, silvicultor dos antigos, profundo conhecedor da árvore e filho de mestre-florestal, sentou-o ao colo – João David tinha seis anos – e uma vez mais tentou cativá-lo. O seu maior receio era que o neto, já muito influenciado pela modernidade e sobretudo por ‘modernices’, não seguisse as pisadas já tradicionais na família, assentes no amor pela árvore e no prazer da silvicultura. O pequerrucho era a esperança de uma quarta geração de florestais e um pouco de doutrinação – ‘de pequenino se torce o pepino’ – talvez ajudasse a manter a chama acesa. Daí as histórias que o avô contava ao João, todas elas polvilhadas pelo variado e exótico vocabulário que a morfologia externa das plantas superiores requer. E, nesse particular, Aristides de Sousa não se fazia rogado: ‘se as palavras existem é para serem empregues e não me venham com sinonímias ou simplificações!’ Acícula, aclamídea, adunada, amentilho, androginóforo, anisofilia, apedada, aquénio, assalveada, baciforme, basifixa, biáxica, bipinulada, brolho, calaza, caliptra, caprificação, carenal, cariopse, carúncula, catáfilo, circinada, coleorriza, corimbiforme, crenada, curvilíneo-paralelinérvea, decussados, deiscente, dicásio, dímero, divaricada, drepânio, emborrachamento, epígeo, escabro, espique, estipula, estivação, eucíclica, flocoso, gálbula, geniculado, giba, glabro, glumela, haplocaula, haustório, hemicriptófita, heteroclamídea, hilo, imparipinulada, indumento, introrsa, labelo, lampo, lígula, lirada, mascarina, merítalo, 129
micrópilo, mucrão, napiforme, naveta, nuculâneo, obcordiforme, obovada, ócrea, ornitófila, pálea, panícula, pápula, paripinulada, pecíolo, peltada, pentâmera, pepónio, pistilo, pixídio, pleno, pola, puberulento, pulvino, quilha, racemoso, ráquila, ripídio, romboidal, rostrado, sâmara, secundina, septífraga, sicone, sinantéricos, sorose, supero, tearâneo, tépala, testa, tetrâmera, tirso, trímera, tunicado, umbélula, unha, unifacial, úrnula, valécula, vexilo, violina, xeromorfismo, zigomorfa faziam parte do extenso vocabulário que preenchia as prelecções dadas ao João David nos fins-de-tarde de Verão na casa de Surrimães onde o avô pousara definitivamente, após a árdua jornada que foi finalizar a florestação dos baldios do continente, tarefa que lhe consumira a parte mais activa da vida. Muitos anos depois, já Aristides de Sousa jazia na campa e o pai se reformara, João David, que nunca se interessou pela silvicultura, enveredando por uma carreira de designer de moda, preparava a apresentação da sua última colecção. Os vestidos não suscitaram quaisquer reacções efusivas mas outrotanto se não pode dizer do modo como os designou – conduplicada, convolutosa, involuta, revoluta, equitante, valvar, plicada, circinada e inflectida – reflexo evidente da sua infância em Surrimães. Foi grande a surpresa de todos os presentes que, à falta de génio para dar a volta aos tecidos, não hesitaram porém em premiar com fartos aplausos a originalidade linguística. A acreditar na palavra dum coveiro que lhe limpava a campa e que jura ter ouvido um ‘valha-me Deus… sempre ficou alguma coisa!’ tudo leva a crer que o avô Aristides esteja confortado com o sucesso designativo do seu neto.
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quando o ministro do ambiente, terra, mar, ar e espaço sideral decide sobre o outono
A preocupação e, em certos casos, o drama, instalara-se na cabeça da fervorosa mulher que detinha a pasta do Ambiente, Terra, Mar, Ar e Espaço Sideral (MATMAES) e desde logo se espelhou pelos membros do seu gabinete, contaminou os secretários de Estado – nada menos de quatro – sob sua tutela, espalhou-se à velocidade da luz pelos diversos Institutos e Direcções-Gerais do Ministério, ofuscou o espírito de 76% dos funcionários (os restantes estavam de baixa ou de férias) e atingiu inúmeras autarquias que, mais por força da lei do que por convicção, mantinham relações institucionais com o MATMAES. Em boa verdade, a razão de tanta agitação era de peso: aproximava-se o 21 de Setembro, o início do Outono, dia muito especial no Ministério dado ser o momento em que caíam as folhas de várias árvores de acordo com o astronomicamente estabelecido, biologicamente assente e legalmente consagrado. Mas Outono havia desde sempre. Porque carga de água este Outono era diferente dos antecedentes? Bem, era aqui que residia o busílis. De facto, pela primeira vez na história da República Portuguesa, por força da eucaliptização e pinheirização, a paisagem portuguesa estava entregue às árvores de folha perene. Como comemorar a data de forma condigna, sem perturbar ainda mais o já perturbado espírito dos cidadãos, não tirando matéria a poetas e outros literatos, músicos e pintores e, sobre-
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tudo, não agravando ainda mais a taxa de desemprego, dado que tudo indicava terem de ser dispensados vários varredores de rua? Como nestas coisas a fé não basta, nomeou-se de imediato uma comissão destinada a dar rápida resposta ao problema que, tal como habitualmente, não resolveu a questão de fundo: a importância de não possuirmos árvores de folha caduca. Graças sobretudo à grande experiência em eventos – desde a Expo 98 ao Europeu 2004 passando pela chegada das andorinhas (a última vez foi em 2013), só para citar alguns exemplos recentes – rapidamente se encontrou uma solução financeiramente apoiada no programa 69 CAFMP (Coisas Que Ainda nos Fazem Manter de Pé) da UE destinado a países situados imediatamente a Norte de Marrocos e abaixo dos Pirinéus. Assim, a 21 de Setembro a partir das 11.00 TMG, um avião tchetcheno – na realidade um Antonov de origem russa com tripulação moldava – especialmente fretado para o efeito, voando a baixa altitude e seguindo uma rota que incluía Porto, Coimbra, Lisboa e Faro (por causa dos turistas) espalhou folhas de árvores de folha caduca pela Avenida dos Aliados, ex-mata do Choupal, Avenida da Liberdade e doca de Faro. Nada falhou! A entrada no Outono foi celebrada a preceito – houve até quem acreditasse em milagre – e a ministra, pelo sim, pelo não, deu um saltinho a Fátima. Facto curioso, ninguém reparou que os milhares de folhas de Sorbus aucuparia arranjadas à pressa numa escala na Turquia e que o avião tão eficientemente largara em Portugal nada tinham a ver com a flora cá do burgo…
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