JOÃO FORTUNA CAMPOS
Cirurgia do Cancro da Mama
Narrativa Histórica
Prefácio LUIZ DAMAS MORA
Quando, no começo dos anos 80 do século XX , iniciei a minha vida hospitalar nessa incomparável escola clínica que eram os Hospitais Civis de Lisboa, só havia um esquema terapêutico para o cancro da mama (CM) operável: mastectomia radical com esvaziamento axilar, seguida de radioterapia. A mutilação era brutal e as sequelas emocionais, ainda que nem sempre exteriorizadas, causadoras do maior sofrimento. Mas, era o estado da arte… A História da cirurgia do CM é o relato da sequência dos factos que visam dois objetivos: a cura, por um lado, e a menor deformação física possível, por outro. A minha geração participou nesta longa e, por vezes, dura caminhada percorrida entre a mastectomia radical e a tumorectomia alargada. O meu amigo João Fortuna Campos, embora seja – para bem dele! – uns bons anos mais novo do que eu, calcorreou a mesma senda dos cirurgiões da minha idade. Só quem viu, no fim de uma mastectomia, a parede torácica descarnada, a oscilar ao ritmo da ventilação assistida, e, expostos no topo superior do campo operatório a artéria e a veia axilares para além dos ramos do plexo braquial, e compara este quadro com uma pequena incisão peri-areolar encerrada com sutura intradérmica no final de uma cirurgia conservadora da mama, pode avaliar o admirável progresso obtido neste campo da terapêutica cirúrgica. Na ciência médica o pioneirismo pode manifestar-se sob duas formas: o pioneirismo criativo, que tem a ver com a invenção de um método, e o pioneirismo de implantação, que diz respeito à aplicação de um método criado algures. Ambos têm os seus créditos. Excetuando a nossa Escola de Angiologia (Egas Moniz, Reynaldo e Cid dos Santos, Hernâni Monteiro, Sousa Pereira), a Medicina Portuguesa não é muito criativa. Em compensação acompanha, com cada vez menor atraso, o que de melhor se faz nos grandes centros mundiais, sendo certo que o retardamento da adoção de novos métodos, nos tempos atuais, não decorre de qualquer dificuldade de comunicação, mas, sim, de focos de resistência interna. É a clássica e humana rejeição do que é estranho, do que é novo.
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Por vezes este choque de paradigmas leva a situações dramáticas como ilustra a pequena história que se segue. Pelos anos 70 do século passado o poderoso Cushman Haagensen (1900-1990), autor da que foi a “bíblia” da nossa geração em cirurgia mamária (Diseases of the Breast) era diretor de serviço no Columbia Presbyterean Medical Center, em Nova Iorque, e defendia, tenazmente, a mastectomia radical halstediana, que os seus colaboradores eram obrigados a praticar. Um deles era Hugh Auchincloss (1915-1998), que, um dia, na ausência do seu diretor se atreveu a fazer uma mastectomia com conservação dos músculos peitorais. Como resultado foi proibido de operar com os internos do hospital, e teve que se mudar para o Valley Hospital em New Jersey… Claro que, também por cá, se entrechocaram “radicais” e “conservadores” (aqui no sentido de praticantes da cirurgia conservadora da mama) embora em contendas menos drásticas, como aquela a que assisti, em meados dos anos 80, no anfiteatro da Faculdade de Ciências Médicas da U.N. Lisboa, no decorrer de uma sessão das “Jornadas Médicas S. José-Desterro”, que se realizavam anualmente. A sala estava cheia e nas primeiras filas reconheciam-se vários cirurgiões com nomes sonantes, entre eles alguns partidários da mastectomia radical. A mesa era presidida pelo meu diretor, Dr. Sabido Ferreira, adepto da cirurgia conservadora. Quando um dos “radicais” atacou a sua defesa deste método com palavras particularmente deselegantes, o meu diretor encerrou a questão com um singelo conselho: “– O colega desculpe, mas não lê, não estuda. Leia, estude!”. Tudo isto vem a propósito da firme posição desde o início assumida pelo João Fortuna Campos nesta controvérsia, na qual, não se limitou ao papel de um cirurgião isolado que resolveu adotar os novos conceitos da cirurgia mamária, o que já não era pequena virtude. Um dos seus grandes méritos foi ter compreendido que, para além de uma nova abordagem tecnológica (tumorectomia, gânglio sentinela, marcação do tumor com arpão, etc.), o CM não podia mais ser tratado dentro dos limites do habitual binómio cirurgião-doente. O caminho percorrido por uma doente portadora de CM não é fácil. O achado, muitas vezes ocasional, da lesão, a primeira consulta, os exames de imagem, a citologia, são marcas nesse percurso, muitas vezes extenso e demorado, durante o qual a angústia, que se inicia com a primeira suspeita, se vai acentuando, embora sempre na esperança de que cada exame feito não a confirme. Apesar de tudo o momento da revelação nunca deixa de ser uma surpresa chocante. Do ponto de vista emocional o CM não é uma doença comum. A doente pressente que tem sobre si uma ameaça de morte, e, com o espectro de uma intervenção mais ou menos mutilante, sente-se atingida na sua feminilidade.
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Estão criadas as condições para uma situação de ansiedade angustiante. Fortuna Campos soube ir para além do que se passa no bloco operatório, na enfermaria e na consulta, isto é, ultrapassou a vertente clínica da sua atuação, e, interpretando os sentimentos das doentes, fundou uma associação, uma espécie de clube de entreajuda, com a sugestiva e promissora designação “Ame & Viva a Vida”. Contou com dezenas de entusiastas aderentes e teve a maior repercussão no bem-estar emocional destas mulheres, que passaram a sentir o apoio não só de pessoas que viviam o mesmo drama, como, também, de um grupo de médicos e enfermeiras empenhados em as ajudar a encarar um futuro mais desanuviado. Foi com estes princípios de implantação da cirurgia conservadora da mama e do apoio, digamos, comunitário às doentes, que Fortuna Campos criou uma valência de Senologia, totalmente informatizada, no Serviço de Cirurgia do Hospital do Desterro com inteiro apoio do seu diretor, Dr. Botelho de Sousa. São méritos que ninguém lhe pode negar, e que lhe fizeram ganhar o respeito dos pares e a gratidão das doentes. O que pode um cirurgião desejar mais do que isto? A obra que, agora, sai do prelo não é uma narrativa histórica da evolução dos conceitos sobre o CM, mas é uma informação enciclopédica ímpar dos protagonistas deste complexo e fascinante ramo da ciência médica. Só quem, por pouco que seja, tenha feito pesquisa histórica, pode avaliar o titânico esforço despendido, pelo autor. Embora estruturado segundo um critério cronológico não é um livro para se ler sequencialmente da primeira à última página. O seu grande valor está no papel que poderá desempenhar como manual de consulta. Fortuna Campos completa assim o arco que iniciara em 2017 com a publicação de Karkinos (ed. Chiado), obra essa de carácter conceptual, que interessa igualmente a doentes e profissionais de saúde. Ao longo dos tempos muitos sintomas, sinais, síndromas, doenças, instrumentos ou técnicas ficaram, indissociavelmente, ligados ao nome dos médicos que os descobriram ou inventaram, e assim se criou um léxico universal que permite identificá-los e atribuir-lhes um significado comum onde quer que sejam invocados. Designações como Halsted, Patey, Madden, Auchincloss, Veronesi ou Bernard Fisher associamo-las, imediatamente, a técnicas específicas no campo da cirurgia mamária, mas pouco sabemos das personalidades que estão por trás desses nomes, e desconhecemos as suas fisionomias, pormenor não tão secundário como à primeira vista aparenta ser.
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Ora, tudo isso, que pode e deve ser objeto de uma curiosidade elementar por quem se debruça sobre este particular aspeto da medicina, se encontra nesta obra de João Fortuna Campos agora publicada, permitindo assim o enriquecimento cultural dos seus leitores. Fortuna Campos, que atualmente já não exerce clínica, dedicou-se com entusiasmo à Senologia, cuja evolução acompanhou, operou com os seus colaboradores centenas de doentes, para quem criou uma associação de apoio moral, implantou novas técnicas e, como remate desta vida intensamente vivida, publicou esta útil obra que, agora, vem a público. Pode, pois, serenamente, olhar para o caminho percorrido e dizer: “– Valeu a pena!” .
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Introdução
O cancro da mama é uma doença conhecida desde a antiguidade, havendo registos históricos sobre a sua existência desde há mais de 5000 anos. Há descrições egípcias por volta de 3000 anos a.C. e em todos os outros períodos da história são mencionados casos de cancro da mama. Desde a antiguidade e durante muitos séculos, associou-se o cancro à imagem de um caranguejo. O da mama, é dos primeiros tumores a ser reconhecido e tem atravessado a história com títulos algo desagradáveis, dado o elevado número de óbitos que ocasiona; tem sido responsável por cerca de 25 milhões de mortes através de todos os tempos.. Trata-se assim de uma doença velha, que atravessou tantos séculos sem possibilidade de cura e que chega aos nossos dias com avanços significativos, mas ainda longe de se poder dizer a última palavra sobre a desejada vitória da medicina contra a sua evolução. Com factos e contra factos, misturados com misticismo, espiritismo e tratamentos, quer artesanais, quer científicos, se escreve a luta do conhecimento humano contra esta doença. As observações antigas mencionadas nas diversas épocas, misturadas com as mais recentes, vão constituir a História. A evolução do tratamento cirúrgico do cancro da mama começa também há cerca de 5000 anos e continua até à presente data. A cirurgia é o método mais antigo de tratamento, e foi usada em todos os séculos, com mais ou menos entusiasmo e de acordo com os conhecimentos científicos de cada época. Por isso, as técnicas cirúrgicas utilizadas foram planeadas, mudadas, abandonadas ou descartadas conforme o predomínio tecnológico e científico da época. Na História do tratamento cirúrgico foram aparecendo novos conceitos, que proporcionaram práticas cirúrgicas mais ou menos mutilantes, até se chegar à atual de cirurgia conservadora.
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Praticar cirurgia no tratamento do cancro da mama, como em qualquer doença, é saber cuidar do outro, aplicando uma técnica exercida com arte e de acordo com os melhores conhecimentos científicos. A história da cirurgia do cancro da mama começou com um período empírico, pré-galénico, em que o tratamento era desencorajado, dado que parecia agravar a doença; depois, num período pessimista, por ser considerado sistémico, a cirurgia podia provocar alívio, mas não curava; em seguida, no período otimista, o cancro era considerado enfermidade local e, com muito entusiasmo, os cirurgiões afirmavam que, se fosse diagnosticado precocemente, a cirurgia curava-o; nos nossos dias, período realista, reconhecendo que a doença é heterogénea, quer na clínica, quer na morfologia e ainda na biologia, os novos tratamentos cirúrgicos são aplicados de acordo com a evolução científica.
“O conhecimento do passado ajuda a compreender o presente e a prever o futuro”. Esta narrativa histórica da Cirurgia do cancro da mama vai ser desenvolvida em duas partes: a primeira descreve todos os acontecimentos marcantes na evolução da terapêutica cirúrgica nesta doença em todo o mundo; a segunda, mencionará o que aconteceu em Portugal.
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INICIAMOS A NARRATIVA PELA PARTE DESCRITIVA, onde domina a teoria do conhecimento resultante da experiência e que ajuda a formar qualquer conceito, neste caso o tratamento do cancro da mama: é o que chamamos empirismo. Os cirurgiões baseavam a sua prática em observações empíricas, ainda que estas estivessem impregnadas de magia, com as doenças a serem atribuídas a espíritos malévolos, porque o homem nunca perdeu a sua crença na eficácia da magia, no sentido mais amplo do termo. Os casos conhecidos de cancro da mama neste período não eram operados ou não lhes era aconselhada a cirurgia, dado que não obtinham a cura e a maioria morria em breve.
Mesopotâmia 6000 a.C. Na Mesopotâmia (Suméria, Assíria e Babilónia) a doença era conotada com o pecado, punição ou desordem moral. Cada doente tinha de orar a divindades ou sacerdotes, a fim de poder livrar-se dos castigos; não conseguindo qualquer resultado, o tratamento era prosseguido por um curador prático, que podia utilizar pequenos atos cirúrgicos. A cirurgia era pouco praticada e o cirurgião era muito conservador, ainda que tenham sido realizadas significantes operações. Há conhecimento de que utilizavam vários instrumentos cirúrgicos. Considerava-se que todas as doenças resultavam de um qualquer mau comportamento do paciente, pelo qual estava a ser punido pelos deuses ou pelos espíritos, o que levava a que fosse isolado para que os demónios não contaminassem outras pessoas. Na presença de algum sinal ou sintoma, era logo feito um diagnóstico e também um prognóstico, tal como era indicada uma terapêutica. Em regra, esta doença era tratada como as outras, com drogas e banhos medicinais de água quente ou fria. Trata-se de um tempo em que as causas das doenças eram atribuídas aos demónios, o que alimentava a suspeita de grande relutância dos curadores em tratar o cancro da mama. Afinal, acreditava-se que, depois, se não curassem a doente, podiam ter algum 18
castigo (Código Hammurabi, na prática a mais antiga legislação de que se tem conhecimento). Na parte final do código, o monarca intitulava-se o “rei sábio”, aquele que ensinou o seu povo com leis justas.
China 2500 a.C. Na medicina tradicional chinesa, o médico Hang Di, (Imperador amarelo, assim chamado por ter um mandato celestial) no mais velho livro de Medicina – Nei Ching, descreve o quadro clínico do cancro da mama, que inclui: progressão, metástases, prognóstico e morte no período de 10 anos após o diagnóstico. Este médico tratava os tumores da mama com vários modos de terapêutica: farmacológica, acupunctura, dieta e evocação aos espíritos. Nesta medicina tradicional acreditava-se que o cancro “Ruyan” (ou da glândula mamária) tinha como causa a emoção, e as doenças daí resultantes, por estagnação dos fluídos no fígado, baço e estômago, levavam à formação de matéria viscosa e depois ao fleimão, que dada a obstrução conduziriam à formação do tumor.
Egipto No Antigo Egipto não se fazia cirurgia em casos de cancro da mama, porque os egípcios tinham muitas crenças religiosas e achavam que seriam os deuses a conseguir a cura… A mais antiga descrição data da VI Dinastia Egípcia (2311-2140 a.C.). Os egípcios descreveram tumores incuráveis da mama e consideravam que este cancro era incurável se fosse “frio ao toque, abaulado e espalhado por todo o seio”. Estas descrições foram encontradas num papiro descoberto por Edwin Smith, que se encontra na Biblioteca de Leipzig, na Alemanha, com 20,23 metros de comprimento e 30 centímetros de altura, onde estão referidos oito casos de úlceras/cancro da mama, possivelmente descritos por Imothep, médico/arquitecto/engenheiro.
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Estes casos, considerados misteriosos e sem aconselhamento para qualquer tratamento cirúrgico, foram tratados com cauterização utilizando uma ferramenta chamada broca (fire drill). Neste papiro são descritos 48 casos de doenças, sendo que os casos 39 e 45 reportam tumores da mama. No primeiro é descrito um tumor quente com conteúdo líquido e cujo tratamento implica drenagem, enquanto no segundo caso se descreve um tumor duro e frio, que “é um mal que não deve ser tratado”. Num outro papiro, descoberto por Ebers cerca de 1600 a.C., não há referência a qualquer caso de cancro da mama e apenas é referido que o cirurgião/médico não pode fazer nada quando o tumor já tem envolvimento ganglionar. Aconselhavam apenas a aplicação de unguentos e laxativos, e procediam a encantamentos em honra da deusa Isis.
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Índia Existem papéis escritos há 2000 anos onde se refere que os tumores eram excisados, cauterizados ou tratados com a aplicação de componentes à base de arsénico.
SUSHRUTA Viveu em 600 a.C. e é considerado o “pai da cirurgia”. Num dos 184 capítulos presentes no seu famoso livro Sushruta Samhita, refere oito princípios básicos: observação, excisão, escarificação, punção, extração, exploração, evacuação e sutura, procedimentos que adotou para tratamento das doenças e que “podem causar dor ou miséria no corpo ou na mente humana”. Descreveu igualmente uma grande variedade de instrumentos para proceder ao tratamento cirúrgico do cancro da mama e de outras doenças.
Grécia As primeiras alusões a assuntos cirúrgicos são encontradas nos poemas de Homero, nos quais são mencionados os nomes de Esculápio (Deus da Medicina, que viveu cerca de 1200 a.C.) e dos seus filhos Machaon e Podalirius, como cirurgiões. A Antiguidade grega baseava-se na patologia humoral e acreditava que o cancro da mama fosse causado por desequilíbrios nos fluidos essenciais que controlavam o corpo, especialmente pelo excesso de bílis negra. Para restaurar este desequilíbrio, o tratamento passava por combinar dieta, exercício, uso criterioso de ervas e, ocasionalmente, cirurgia.
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DEMOCEDES Natural de Crotone, no sul de Itália, viveu na segunda metade do século VI a.C.. Foi descrito por Heródoto como o médico mais hábil do seu tempo e seria reconhecido como tal ao imobilizar a fratura do tornozelo do rei Dario. Mas não só pois, no ano 518 a.C., curou a rainha Atossa, filha de Ciro (rei persa) e esposa do rei Dario, de cancro da mama ulcerado (mastite?).
HIPÓCRATES (460-370 a.C.) A ele se deve a “rutura” entre a Medicina e a magia, ao abandonar o pensamento religioso e introduzir o método científico. Hipócrates associava quatro elementos (ar, terra, fogo e água) aos quatro “humores” do corpo humano: o sangue, o phleugma, a bílis amarela e a bílis negra. Considerava também que o útero deslocado era a causa de muitas doenças da mulher, associava o aparecimento do cancro da mama à paragem da menstruação e atribuía um excesso de bílis negra às mulheres pós-menopáusicas, porque era nesta fase da vida que dava origem ao aparecimento de caroços que, progressivamente, se iam tornando mais duros, mas não supuravam. Acreditava ainda que as mulheres na pré-menopausa não tinham excesso de bílis negra, porque a menstruação regular eliminava esse fluido. Refere ainda que os tumores da mama têm mau prognóstico quando estão muito escondidos, daí considerar que não beneficiariam da cirurgia. Foi também Hipócrates quem nomeou o cancro com a palavra “Karkinos”, por se assemelhar a um caranguejo; aplicou também, pela primeira vez, a palavra “Karkinoma” quando se considerava que não havia cura para esta patologia e descreveu ainda o caso clínico de uma mulher da cidade grega de Abdera que perdia sangue pelo mamilo e que morreu quando o líquido estancou.
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Hipócrates afirmava que é mais importante saber que tipo de pessoa tem uma doença, do que saber que tipo de doença uma pessoa tem. A ele é comummente atribuída a autoria do Corpus Hippocraticum, uma coletânea de 60 tratados, a grande maioria do início da Grécia Clássica, no qual menciona a atuação e a conduta médica no exercício da medicina. Num dos tratados, Do Médico, consta que a cirurgia é feita por corte, ou por cauterização, com rapidez, ou com lentidão, de acordo com as circunstâncias: quando a cirurgia é efetuada com um único corte, é preciso fazer a incisão rapidamente; quando são necessárias várias incisões, deve-se efetuar-se lentamente. E afirmava ainda: É muito vergonhoso não obter com a cirurgia o que se quer.
Eis alguns Aforismos de Hipócrates: A vida é breve, a arte longa, a oportunidade fugaz, a experiência incerta e a crise difícil. “Primum no nocere” é outro famoso aforismo seu. Trata-se da expressão latina, permanentemente presente na mente dos cirurgiões, que significa “primeiro, não prejudicar”, e que é também conhecida como princípio de não maleficência. As doenças que não são curadas pela medicina são saradas pelo ferro, e as que não são curadas pelo ferro são curadas pelo fogo, e se não forem reparadas pelo fogo são consideradas incuráveis. Na era pré-cristianismo, a sobrevivência do cancro da mama passava por invocar a ajuda dos deuses. Os médicos/cirurgiões antigos não conseguiam diferenciar tumor benigno de maligno, mas reconheciam a capacidade de os tumores semelhantes aos “Karkinos” se infiltrarem nos tecidos vizinhos. No século II a.C. advogam-se cataplasmas de repolho, como panaceias, para tratar o cancro da mama. Mas após Hipócrates e durante o período helénico não são referenciados mais casos desta doença.
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Século I Já na nossa era, nos primeiros anos d.C., a medicina praticada pelos médicos/cirurgiões romanos baseava-se na “Teurgia” (evocação de deuses). Afirmava-se que tudo o que existe é criado por DEUS e é Ele que tem o poder de curar os doentes. Assim, era estimulada a arte de tratar as doenças pondo os enfermos a orar nos templos, uma vez que os próprios profissionais da medicina se socorriam dos métodos religiosos, na convicção de que a saúde e a doença dependiam dos poderes celestiais. É ainda importante referir que o exercício da medicina em Roma era praticado principalmente por gregos, pois nesses tempos, a profissão de cuidar dos doentes era indigna… para os cidadãos romanos.. Ainda assim, no início da era cristã, alguns cirurgiões romanos executavam cirurgia no cancro da mama, recorrendo à excisão do órgão e à remoção dos músculos, utilizando instrumentos feitos de bronze e ferro. Outros, como Asclépío, Deus Grego da Medicina, acreditavam na força curativa da natureza, utilizando na terapêutica ervas e unguentos oriundos de plantas. Hábil cirurgião, Asclépío é referido na Ilíada de Homero como um dos primeiros defensores do tratamento cirúrgico, recomendando uma ampla excisão de tumores da mama. Isto num tempo em que a terapêutica compreendia pouco mais do que a aplicação de medicamentos tópicos, sangrias, excisão e cauterização.
CORNELIUS CELSIUS (42 a.C.-37) Já Cornelius Celsius era contra esta prática cirúrgica e também não aconselhava a utilização de cáusticos, nem o uso do cautério. Definia quatro estádios no cancro da mama: precoce e curável pela cirurgia, sem ulceração da pele, com ulceração da pele e avançado. Foi ainda o primeiro a chamar a atenção para as veias dilatadas e tortuosas, aquelas que, nos tumores da mama, fazem lembrar as patas do caranguejo. 24
Foi também Celsius quem descreveu a cirurgia como uma “quae manu curat”, ou a cura feita através das mãos. É autor de oito volumes que constituem o famoso tratado médico De Medicina, que nos dois últimos contém referências concretas à cirurgia, que realizava sobretudo em cancros precoces, por considerar que em casos avançados podia agravar a doença.
Século II RUFUS DE EPHÉSE (70-110) Médico anatomista grego, escreveu vários trabalhos médicos, sendo o principal deles intitulado Sobre os Nomes das Partes do Corpo Humano. Mas também escreveu muito sobre doenças renais e da bexiga. Seguidor de Hipócrates, afirmava que o cancro da mama não tinha cura.
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CLAUDIUS GALENUS (129-201) O médico grego Galeno é considerado um dos primeiros defensores do tratamento cirúrgico, recomendando uma ampla excisão de tumores de mama, há quase 2000 anos. O seu predecessor, Hipócrates, também reconheceu que o cancro de mama deveria ser considerado uma doença sistémica. Afirmava que os tumores eram diferentes uns dos outros e só propunha excisão dos que se encontrassem em estádios precoces. Durante a cirurgia, para parar a hemorragia, usava cautério muito quente e depois colocava ligaduras impregnadas de mel, leite, lentilhas e farinha de pão. Quando a cirurgia não estava indicada, aconselhava tratamentos com dietas, purgas ou sangrias, e aplicação de medicamentos derivados de plantas e animais, que ele considerava anticancerosos. Em 170 d.C., quase 500 anos depois de Hipócrates, Galeno defendia igualmente a teoria dos humores e atribuía a origem do cancro à acumulação de bílis negra no sangue, que era correspondente ao humor melancólico. E corroborava a crença de que as mulheres melancólicas têm mais tendência a ter cancro da mama. Afirmava também que a menstruação expulsava a bílis negra, daí propor a prática de pequenos golpes cirúrgicos, a fim desta bílis ser expulsa do corpo, e depois aplicava ligaduras. Escreveu Opera Omnia em 26 volumes. É também autor de um tratado sobre Os tumores cancerosos e os não cancerosos, onde descreve as primeiras operações para tratar o cancro da mama, que eram primitivas e brutais. Em regra, estes procedimentos consistiam em amputação seguida de cauterização, realizada o mais rapidamente possível para minimizar a hemorragia, e para controlar a dor utilizavam-se pedaços de tecido impregnados de sucos de plantas (como da papoila). Infelizmente, a maioria das pacientes que sobreviviam ao procedimento cirúrgico inicial morriam de infeção. A teoria humoral do Cancro da Mama perdurou até ao século XVIII.
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LEÓNIDAS (II) Médico/cirurgião grego da escola de Alexandria, foi o primeiro a notar que a doença invadia a axila e descreveu minuciosamente a técnica operatória. Referia que a cirurgia devia ser imposta e que a cura do cancro podia passar pela remoção da mama, com incisão em tecido são: mastectomia, seguida de cauterização, (deixava uma margem ampla). A incisão para a prática desta cirurgia subsistirá por 1500 anos. Foi o primeiro a descrever a retração do mamilo como sinal clínico de cancro. Mas, como os outros, não aconselhava cirurgia em casos avançados e rejeitava-a se o tumor fosse duro ou estivesse aderente aos músculos do tórax.
Descrição da Técnica Operatória I personally am in the habitat of operating for cancer in the breast thusly: I make the patient lie down; then I incise the healthy part of the breast beyond the cancerous area and I cauterize the incised parts, until the loss of blood ceases by the formation of a coating. The I again incise and excise the breast from its depths, and I again cauterize the incise area, and repeat this procedure often, first cutting, then cauterizing until bleeding has stopped.Thus the danger of severe hemorrhage is avoided. Following amputation of the entire breast. I cauterize again all the areas until all the bleeding has ceased. The final cauterizations are made to the blood; the last one to destroy the remaining parts of the disease. Often I performed my task with-out cauterization, were there was an indu-rated tumor which was threatening a cancer-ous degeneration. In such a form of the disease, it is sufficient to amputate up to healthy tissue, since no danger of hemorrhage threatens.
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SORANO DE EPHÉSE (II) Estudou medicina na escola médica de Éfeso. Médico metodista grego, exerceu a arte médica em Alexandria e Roma, destacando-se em várias áreas, como a ginecologia e a obstetrícia. Escreveu Gynaecia, conjunto de quatro livros, no segundo descreve as doenças das mulheres e no quarto aborda os fármacos e a cirurgia. Descreve ainda os procedimentos das parteiras, da dieta, da cirurgia e a anatomia feminina, da conceção e do parto.
Século III HERÓFILO (280-335) Primeiro anatomista da história, foi um dos fundadores da Escola Médica de Alexandria e a ele se atribui o método experimental na medicina. Foi ainda o primeiro cientista a dissecar cadáveres humanos, para caracterizar a evolução da doença, e é mais um seguidor da teoria humoral de Hipócrates para o cancro da mama. A ele se deve um tratado de Anatomia. É-lhe atribuída a descoberta do sistema nervoso, conjuntamente com Erasistrato. Aproximava-se o tempo da queda do Império romano, que agonizou em 476, devido às invasões bárbaras, à crise económica e à disputa dos militares pelo poder, mas antes disso houve as perseguições aos cristãos, de que é exemplo o caso da mulher de Catânia, região da Sicília, a quem o governador mandou amputar as mamas por esta se ter recusado a satisfazer os seus desejos. Ainda hoje, os sicilianos comemoram e aclamam Santa Ágata, nome da mártir que ali sofreu às ordens de quem mandava, como padroeira das doenças mamárias (Senologia).
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Século IV ORIBASIO (320-400) Cirurgião do Imperador Justiniano, deixou-nos uma obra com cerca de 70 volumes, chamada Collecta Medicinalis, considerada uma recompilação de todo o conhecimento médico de então. Num dos volumes trata da patologia feminina. Foi o precursor da medicina racional e científica. Em relação aos cancros, opinava que eram incuráveis, dolorosos e reapareciam após a excisão.
Idade Média Este período, entre os séculos V e XV, decorreu sem grande evolução na ciência médica. As guerras, a fome, as epidemias e as invasões bárbaras marcaram a primeira metade da Idade Média – Alta Idade Média – e, por isso, a medicina estagnou, pois estes povos praticavam unicamente uma medicina primitiva e nada trouxeram de avanço na arte de curar. Para tratar qualquer doença, recorria-se ao curandeiro, ao benzedor ou à astrologia. Nestes tempos, o médico media o pulso, mirava a urina e ordenava ao sangrador para fazer sangrias.
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