Crónicas em Terras de Valdevez LEVEZA, AGRURAS E CUSTOS DA BAIXA DENSIDADE JOÃO DE CASTRO CALDAS
prefácio
FERNANDO OLIVEIRA BAPTISTA
9 Prefácio 11 Crónicas 13
Coisas dos Arcos do Vez 15 Museus e águas que correm 18 Sobre a leveza do rural 20 O rural tem horror ao silêncio 22 O passado aqui tão perto 25 A aldeia dos pequenitos 28 Pernoitar nos Arcos 31 Amesendar nos Arcos 33 Sobre o Sarrabulho 36 Disfarces de Rural 38 Passear e circular no interior 41 As feiras 45 A Paz dos Campos 48 Penedias e cães 51 Custos de interioridade 54 A Culpa das Estátuas 57 Veio a chuva, adeus à carne 60 Se bem nos lembramos das festas do Concelho 63 Ainda as festas do Concelho 66 Aquele querido mês de Agosto 69 Será disto que o povo gosta? 71 Escravos nas margens do Rio Vez 75 Flexíveis nas margens do Rio Vez 79 Perdeu-se o comboio
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O Vale era Verde 85 Por onde anda o correio? 88 Arautos da desgraça 91 Papagaios menores de paróquia 94 Somos todos parentes 96 Alternância democrática 98 Ir ao dentista. Andanças de um paciente 101 Rotina 104 Andam a ver como nos aviamos 107 Delação premiada 110 Balanços e baloiços 113 Prognósticos lunares 117 O estado de emergência e o vírus do medo 121 Vírus do medo e medo do vírus 124 Vírus sobre rodas 128 Ao herói desconhecido 132 Grupos de risco e risco dos grupos 136 Saída limpa da crise 140 Pandemia e palimpsesto 143 Não será fácil… 146 Este triste mês de Agosto 149 Sobre a toponímia 153 Cem anos de mi(ni)stério da agricultura 156 Vai uma raspadinha? 160 A complexidade de coisas simples
Prefácio FERNANDO OLIVEIRA BAPTISTA
As Crónicas que constituem este livro aproximam-nos dos Arcos de Valdevez, do quotidiano dos seus habitantes, do contexto social e económico em que estes vivem e trabalham, do que se passa em serviços e instituições locais. Preocupam-se também com o vale que acolhe populações, terras agrícolas e bouças, e com o rio que o percorre e lhe dá nome. São fragmentos que vincam contornos e uma identidade: os Arcos não são apenas uma mancha na paisagem, no rural ou nos designados territórios de baixa densidade, nem apenas mais um lugar para viver nos campos. É certo que nenhum aglomerado populacional é apenas um ponto identificado pela multiplicação dos indicadores estatísticos mas, em cada caso, para se ir além desta constatação é necessário que sejam identificadas as marcas de cada local, do seu quadro de vida e das suas heranças históricas e naturais. Este livro é, precisamente, um contributo importante para apreender os Arcos, para além do trivial dos números e da banalidade retórica que invadiu as proclamações oficiais e os relatórios administrativos. Pelas páginas que se seguem passam momentos e comportamentos do dia-a-dia, a crise do vírus, sobressaltos provocados pela meteorologia, acontecimentos e rumores, atropelos à natureza, a modernização desacertada de serviços ao público, a decadência das feiras, o modo como as televisões pretendem ouvir os indígenas locais, mas também a preocupação com os mais débeis, com as velhas e as novas desigualdades sociais e outros temas que nos introduzem nesta aproximação aos Arcos.
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Nestas Crónicas são também suscitadas interrogações sobre o futuro e a recordação de alguns episódios do passado, cujas lições ou consequências são ainda relevantes, tais como: a memória de outras pandemias que chegaram à região nos séculos XIX e XX; os primórdios de uma industrialização que não chegou a ocorrer; as atribulações dos caminhos de ferro que não se traduziram em acesso ao transporte ferroviário; a reflexão sobre a transição do Estado Novo para a democracia e, ainda, noutra vertente, também esclarecedora e significativa, o modo como chegaram aos Arcos, em 1871, os ecos da Comuna de Paris ou a referência aos almanaques editados localmente há quase século e meio. As interrogações sobre o futuro parecem balancear entre os sinais sobre o que de bom pode acontecer no concelho e de que se referem exemplos – iniciativas musicais de grande qualidade, serviços médicos confiáveis, o museu dedicado ao Rio Vez – e as apreciações sobre os novos personagens que agora invadem o território. Mas, chegado aqui, o Autor sabe bem que tudo mudou e está a mudar, e sabe também que, contrariamente ao veredicto do sobrinho do Príncipe de Salina, nesta situação nada vai ficar na mesma. Nem esse é o entendimento que percorre as páginas deste livro, onde, para além de algum pessimismo sobre o que se vai observando, se repudia qualquer vontade de “cristalizar o passado” e aponta-se mesmo o caminho que parece possível: “o rural tem sucesso quando aprende a conviver de forma criativa e inovadora com o passado”. Este enunciado, lido no mundo destas Crónicas, vem, é certo, acompanhado por alguma nostalgia que, no entanto, dada a sensibilidade e talento com que está expressa, não remete para a evocação do passado, alerta para o cuidado que deve existir – nos planos ético e estético – com as pessoas, os rios, as árvores, as terras, as pedras. Esta é, seguramente, uma mensagem que persiste quando o leitor virar a última página e se detiver a contemplar a mudança que vai pelos campos, vilas e aldeias.
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Crónicas 1 7 DE DEZEMBRO DE 2020
Em Novembro de 2018 Mário Pinto desafiou-nos a escrever crónicas para o Notícias dos Arcos, publicação que sabemos centenária com leitores espalhados por todos os recantos da diáspora arcoense. Gratificados pela amabilidade deste desafio, justificado apenas por uma longa amizade, pedimos tempo para reflectir. Sabíamos que não se tratava de uma crónica ao estilo de Fernão Lopes, em fascículos, sobre o mandato do irrequieto presidente Marcelo mas de narração curta sobre temas da actualidade, ou de embirração, também ela crónica, do autor, não intimista, visando o quotidiano mas não a informação. Apesar de por cá andarmos há uns tempos e com incursão, por desfastio, no passatempo de escrevinhar, nunca esta aventura nos tinha passado pela imaginação, costumamos ler múltiplas crónicas publicadas na imprensa e sempre admirámos a coragem de compromissos para a produção periódica de um determinado número de caracteres. Acabámos por aceitar à experiência avisando que não podia haver compromisso porque desconhecíamos os limites da inspiração e propusemos que os escritos fossem assinados por um anónimo J.L. Não tivemos arte para criar um pseudónimo, e não revelámos identidade para evitar contaminação do escrito com o perfil do autor, ou seja tolerância generosa em caso de simpatia pessoal, desfeita em caso de acinte também pessoal. A coisa seria para valer ou desmerecer pela sua própria essência. Evitámos assim a escrita na primeira pessoa, como evitámos também despropositados desabafos íntimos que só ao próprio dizem respeito, com a excepção das linhas 1. A apresentação destas crónicas não segue a cronologia em que foram publicadas no Notícias dos Arcos. Mantendo a referência à data de publicação, optámos por lhes dar uma ordem que procura corresponder ao que se nos afigurou ser um fio de meada. O leitor escolherá a sequência que mais lhe agradar. 11
sobre o ir ao dentista, porque de facto enquanto tivemos aparelho de mastigação, que não o comprado para ir substituindo o caído em combate, sofremos de crónicas dores de dentes na primeira pessoa. Foram dois anos que passaram a correr e em que conseguimos não falhar um único número do jornal, facto que nos legitima a suspeição de sermos dotados com o dom da escrita automática por um fluxo do inconsciente que dispensa a árdua tarefa do cogitar. Procurando assegurar descomprometimento para além dos deveres de cidadania fomos discorrendo sobre a leveza, as agruras e os custos do dia-a-dia em território de baixa densidade. Por temperamento não conseguimos evitar pequenas e grandes embirrações que, quando não atrapalham, dão colorido à existência, mas foi a pandemia que lamentavelmente acabou por se apossar do tal fluxo inconsciente característico da escrita automática. Para esconjurar tragédia restou-nos evocar, em última crónica, a complexidade das coisas simples. Não sabemos se tivemos leitores e se, em caso afirmativo, conseguimos proporcionar alguns minutos de entretenimento em dia de leitura do jornal, o que sabemos é que na escrita foi para nós um gosto acarinhar leitores imaginados. Tanto basta para deixar aqui o nosso reconhecimento em primeiro lugar ao Mário Pinto, responsável pelo nosso atrevimento ao vestir a pele de cronista e à redação do jornal, Águeda Faia Domingues e Armando Fernandes de Brito, que com competência paciente foram dando forma de página ao ficheiro informático enviado pela via do misterioso éter. Interrompemos aqui os escritos para evitar fadiga crónica e após repouso para carregar imaginação voltaremos ao convívio se for esse o entendimento e a conveniência do Notícias dos Arcos que tanto nos distinguiu com crónica presença ao longo de dois anos. 12
Coisas dos Arcos do Vez 6 DE DEZEMBRO DE 2018
É mais do que sabido ser a água um bem renovável que constitui destacado contributo para a riqueza de um país ou de uma região, não sendo raro associar-lhe a imagem da própria vida ou de condição indispensável à permanência de uma população num território. A água doce dos rios, ribeiros e nascentes fecunda na produção agrícola, proporciona a pesca, move moinhos, azenhas e turbinas para a produção de energia, transporta gentes e mercadorias por estradas fluviais, recria, facultando contemplações cénicas e lazeres de beira rio, cura os males do corpo e do espírito, quando proveniente de “milagrosas” fontes ou de locais sagrados. Esta água é, finalmente, hoje indispensável para um grande número de actividades industriais e elemento indissociável de bem-estar nos modernos aglomerados populacionais, onde, canalizada, viabiliza o saneamento básico e fica disponível ao domicílio com um simples accionar de torneira. Os Arcos e o seu Vez não são excepção, antes pelo contrário, as marcas da água, que nasce e desagua nas fronteiras do Concelho, estão impressas não só no moldar de relevos, paisagens, composição biológica de ecossistemas e formas de utilização do território, como na inspiração de artistas e em múltiplas relações insuspeitas, relativamente ocultas, ou que caíram no esquecimento. A própria identidade do território está impressa na toponímia evocando o rio que o percorre, os Arcos não seriam a mesma terra sem o seu Vez e as atitudes das suas populações face às suas águas são alimentadas por uma multiplicidade de imagens e de mitos com origem em diferentes momentos da sua relação com esta dávida da natureza. São momentos de profunda fragilidade perante os caprichos do clima ou de divindades poderosas. São momentos de segurança face à possibilidade do controlo de caudais e de reservas através do progresso técnico. 13
Mas as necessidades de água não exigem apenas determinadas quantidades, exigem quantidades de qualidade determinada. Sintomático do peso e da importância que as questões da qualidade da água representam actualmente é a aparição de um novo personagem no espaço público. É o dependente da garrafa. Personagem geralmente abstémio, faz-se quase permanentemente acompanhar da garrafa de plástico, com água recolhida em bica de garantida confiança, ou trazida de prateleira de supermercado. No caso de matar a sede com água engarrafada pelos negócios das multinacionais fica remetida para um passado longínquo a percepção do valor simbólico e não monetário da água, traduzida na convicção de que um copo de água não se recusa a ninguém. Daqui a perplexidade perante crises resultantes de práticas que conduzem à penúria, à partilha desigual e à poluição, provocando o correr de efluentes de uma qualidade tal que transformam idílicos e cantados cursos de água em substância de morte e degeneração, comprometendo os ecossistemas associados e muitas das suas múltiplas funções, nomeadamente as de recreio. Serve tudo isto, que não é novidade para ninguém, para dizer que parece estar em curso uma conspiração de morte contra um rio que já chegou a merecer o rótulo de menos poluído da Europa. Basta percorrer o passadiço da praia da Valeta passando a volta da Lamela até ao Riva Café para constactar o resultado de descargas poluentes a montante, e não é garantidamente vestígio de sangue medieval da Matança fundadora na Veiga. São descargas viscosas já insistentemente denunciadas e publicamente documentadas. Só não as vê quem não quer ver e não é enterrando a cabeça na areia que o problema se resolve. Não, não é simples espuma resultante do turbilhão da corrente, não, não são descargas pontuais: é uma acção continuada, descarada e impune, agravada em ocasiões de aumento de caudal. Para quem tiver como atribuição identificar e punir estas práticas, basta seguir um rasto gorduroso e bem visível que se acumula na vegetação das margens. Podendo haver quem duvide ter sido aqui que Portugal se fez, não se pode duvidar que o Vez corre não só para o Lima, mas corre também para um futuro com risco anunciado de doença prolongada. 14
Museus e águas que correm 2 DE JULHO DE 2020
Uma sociedade feliz não precisaria de museus. Mas seria insuportável. 2 Na busca de uma definição consensual de museu, constatamos que o tema tem vindo a merecer amplo debate no seio da comunidade museológica internacional. Segundo os estatutos do Conselho Internacional de Museus (ICOM) aprovados em 2007, museu seria uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite. Entendem agora os peritos rever esta definição de museu, procurando uma formulação o mais consensual possível que seja reflexo das profundas mudanças da sociedade e das realidades da comunidade museológica internacional 3. Nós que não somos peritos, acreditamos na pertinência de um amplo debate, para o qual não podemos contribuir por falta de competência e arte, mas visitamos museus e, como em tudo na vida, com mais proveito e agrado nuns do que noutros. Vem isto a propósito do Museu da Água ao Ar Livre do Rio Vez que temos vindo a calcorrear com gosto e a valorizar como iniciativa meritória e, segundo consta, bastante original. Ao que foi tornado 2. Joaquim Pais de Brito, ex-director do Museu de Etnologia, em entrevista conduzida por Ana Sousa Dias, em 16 de Janeiro de 2018 na TSF. 3. https://icom-portugal.org/2019/09/10/sobre-a-proposta-da-nova-definicao-de-museu/ 15
público, o troço que está museologicamente aberto corresponde à primeira fase de um projecto financiado por verbas comunitárias que pretende contar a história do Rio Vez e preservar o mais possível as condições naturais do território e as marcas da atividade humana que, durante séculos, soube, de uma forma equilibrada, tirar partido da água e dos ecossistemas que lhe estão associados, transformando este vasto património em pilar do desenvolvimento socioeconómico do concelho 4. Calçando como uma luva a transitória definição acima referida, este museu não só não tem fins lucrativos como não requer pagamento de ingresso para o desempenho dos seus fins de educação, estudo e deleite. O projecto inclui, como a maioria dos museus por onde temos passado a preencher lacunas de cultura geral, um centro de acolhimento e informação, dotado neste caso de equipamento multimédia que permite transmitir conhecimento não só sobre pontos de interesse na perspectiva arquitectónica e etnográfica como sobre a diversidade da fauna e da flora. Pelas palavras dos responsáveis e promotores do projecto ficamos cientes de que se pretende a preservação das marcas da atividade humana nas águas e margens do Rio Vez. Acontece que ao verificarem-se continuadas práticas de descaradas e impunes descargas poluentes, que deixam manchas bem visíveis mesmo para observador menos atento, o rio ganha novas marcas que se transformam em peça de museu a ilustrar a atividade humana. Parece-nos urgente fazer escolhas, classificámos as descargas na categoria de descaradas e impunes porque nos colocámos no quadro da legislação em vigor e julgamos saber que, segundo a dita legislação, as Câmaras não são entidades fiscalizadoras em matéria de controlo de descargas ilegais nem da consequente qualidade da água, compete-lhes apenas, como a qualquer cidadão, registar e dar conhecimento à Agência Portuguesa do Ambiente ou ao Serviços Especiais de Proteção da Natureza e do Ambiente da GNR, mas não é abusivo admitir que, se for essa a determinação, a denúncia continuada e persistente das entidades 4. D eclarações do Presidente da Câmara de Arcos de Valdevez, em 29 de Maio de 2019, em https://www.altominho.tv/site/ 16
responsáveis por este emblemático projecto seja mais eficaz do que a denuncia de um visitante eventual. O que também pode acontecer é estar a prevalecer a opção de guardar as marcas da atividade humana em museu onde se reúnem coisas que falam de nós, coisas para facilitar a nossa inscrição no tempo. No tempo próximo, no tempo profundo, no tempo longínquo, ficando traçado um percurso em que vemos o que fomos sendo, ou os outros que fomos no passado e o que vamos produzindo 5. Neste último caso teremos que abandonar o patrocínio do emblemático e discreto Cinclus cinclus que, dando pelo nome de melro d’água, foi eleito como imagem perfeita de um rio de montanha de águas límpidas e saudáveis.
5. Joaquim Pais de Brito, entrevista citada. 17
Sobre a leveza do rural 20 DE DEZEMBRO DE 2018
Com base numa abordagem que considera a densidade populacional, a demografia, o povoamento, e as características físicas do território, o concelho dos Arcos passou a ser, para efeitos de incentivos e apoios ao desenvolvimento, um dos 164 municípios classificados como sendo de baixa densidade. A esta baixa densidade associam ruralidade os leigos na matéria, sobretudo os residentes em áreas urbanas sobrepovoadas, a que também podemos, por oposição, designar alta densidade. Esses mesmos leigos na matéria associam também automaticamente ruralidade a áreas a preservar, com ligação à agricultura, floresta, artesanato e gastronomia. Se a pouco denso podemos nós, leigos em muitas matérias, associar leveza, formalizaríamos simplificadamente a questão nos seguintes termos: há uma parte levezinha do país que representa paraíso perdido no imaginário dos que vivem sobrecarregados com o peso de uma vida urbana congestionada. Ora acontece que o rural pode ser pouco denso mas não é sempre leve no quotidiano das suas populações. Foi bem pesado quando a habitação rural, era celebrada pelo Estado Novo como valor nacional e elemento de identidade de um país genuíno numa pobreza humilde e honrada cristalizada num modelo ideal de casa portuguesa. Em 1938 o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) lançou o concurso da Aldeia mais Portuguesa de Portugal que elegeu Monsanto da Beira como a candidatura que maior resistência oferecia a decomposições e influências estranhas e o mais elevado estado de conservação no mais elevado grau de pureza em características como habitação, mobiliário e alfaia doméstica. António Ferro, director do SPN, viria a afirmar que Monsanto era mais uma fortaleza moral da nossa terra, síntese das virtudes da raça, nossa bandeira de pedra e que era de
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facto, a imagem empolgante da nossa pobreza honrada e limpa, que não inveja nem sequer a riqueza de ninguém, selo da pátria espiritual que fomos e queremos ser 6. O Inquérito à Habitação Rural, promovido pela Universidade Técnica de Lisboa nos anos quarenta, pôs a nu as difíceis condições de sobrevivência da pobreza honrada e limpa da maioria da população rural, revelando situações próximas da miséria e, no final dos anos cinquenta, o Inquérito à Arquitectura Popular, organizado pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos, revelava uma diversidade de soluções construtivas contrária aos pressupostos ideológicos do movimento da casa portuguesa. Nos anos sessenta os mais aptos dos representantes destas apregoadas virtudes da raça recusaram um futuro de miséria e mostraram que queriam ser coisa diferente do selo da pátria espiritual. Foi uma sangria que encheu os espaços rurais de viúvas e órfãos de vivos. Foi o aligeirar de um rural pesado que conduziu à baixa densidade. O Estado Novo promoveu um concurso para cristalizar o peso do passado e a densidade de um presente sem futuro. No século XXI promoveu-se um concurso para demonstrar que a baixa densidade, ou a leveza do território fora dos centros urbanos é uma fonte de oportunidades e mostrar um Portugal que inspira. Um Portugal que se renovou, que tem casos de sucesso, que tem gente que mudou de vida e que se afirma tendo por base os valores da proximidade, da simplicidade, da autenticidade, daquilo que é criado por pessoas e para pessoas 7. Do concurso de 1938 ficou em Monsanto da Beira um imobilizado e mudo galo de prata, no cimo da Torre do Relógio, vamos esperar e olhar com atenção para ver o que em Sistelo e nos seus velhos socalcos de novo se vai poder criar. 6. C itado por Pedro Félix, O concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” em https://books.openedition.org/etnograficapress/569). 7. h ttps://7maravilhas.pt/7-maravilhas-de-portugal-aldeias/ visitado a 10 de Dezembro de 2018.
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O rural tem horror ao silêncio 24 DE JANEIRO DE 2019
Em meados da década de sessenta do século passado o progresso viabilizou que se instalassem nos campanários das igrejas sons de carrilhão electrónico para dar horas com o Avé de Fátima em fundo. Foi o princípio do fim do sossego num mundo onde pontificava apenas o velho sino de badalo. Esse sino tinha, ao tempo, funções identificáveis com toques a diferentes ritmos, chamava crentes para o culto divino, soava a rebate por acidente ou calamidade, anunciava celebração de entrada para a comunidade dos fiéis de neófitos purificados por águas baptismais e chorava partidas para a eternidade. As badaladas sobrevivem mesmo quando já há sirenes de bombeiros e quando todos os outros acontecimentos, felizes ou trágicos são comunicados pela desenfreada competição de canais televisivos e pelo fervilhar das aplicações de telemóveis a que praticamente toda a gente tem acesso. A par dos carrilhões electrónicos, desenvolveu-se também a prática de instalar, em períodos festivos, nos campanários das igrejas, instrumentos de qualidade mais do que duvidosa, transportando para o espaço público cerimónias religiosas que, dizendo respeito à comunidade dos crentes reunidos nas igrejas, passaram a atazanar também, no exterior, os ouvidos e a consciência mais ou menos pesada dos infiéis, com sermões, ladainhas e cantares desafinados nada apelativos para místicos reencontros com a fé perdida. E há depois novenas e festas em honra de uma multidão de representantes da Corte Celestial. Aí somam-se, nas novenas, os sons profanos de transmissão rofenha de ruído a que nem com muito boa vontade se pode chamar
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música. E vem o foguetório que, por pura maldade, inclui alvoradas em dias de descanso e noitadas em vésperas de jornadas de trabalho. O que vem sendo dito respeita a uma interpretação pobre da religiosidade popular e das tradições, vem depois a ruidosa modernidade. A modernidade é talvez mais estrondosa e comporta contradições dificilmente ultrapassáveis. É moderno o apelo às maravilhas da antiga paz rural: amenidades e silêncio para repouso de forasteiros que estimulam economias locais, tendo como sons recomendados os viras e desgarradas populares sem amplificação artificial, e talvez um ou outro toque espaçado de velho badalo, desde que não signifique o anúncio continuado de horas e meias horas. Mas aqui surge a primeira contradição: o território tem, felizmente, população residente com os seus legítimos gostos, anseios e paixões. O futuro será tanto mais promissor quanto mais jovem for essa mesma população e quanto maior for a capacidade do território para a fixar. Ora nunca se viu juventude saudável a querer silêncio. É portanto compreensível que se montem palcos para ruidosos concertos que se prolongam noite e madrugada dentro impedindo literalmente o sono não só dos forasteiros que se querem atrair mas também de quem reside nos centros históricos das vilas e cidades ditas rurais. Aqui nasce uma outra contradição, é também moderno promover a reabilitação do parque habitacional dos centros históricos, mas o ruído ensurdecedor destes concertos empurra definitivamente para fora quem aí se procura instalar, e é gente que não tendo cuidado na escolha pode cair no raio de acção de um campanário de igreja. Está institucionalizado, de forma permanente, um abençoado país rural com horror ao silêncio.
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O passado aqui tão perto 7 DE MARÇO DE 2019
Alguém que nos anos quarenta e cinquenta do século passado se aventurasse por estradas e caminhos da “província do Minho”, questionando atento o edificado nas vilas, aldeias e lugares, deparava-se, não só com a “arquitectura popular” das habitações de caseiros, pequenos agricultores familiares e jornaleiros onde se vivia num purgatório de pobreza, mas também com casas com outro estatuto, albergando outros modos e níveis de vida. Subindo dos vales e terras baixas para as comunidades agro-pastoris de montanha passava este alguém por “brandas” da montanha com albergues de pastores e gado que lá permaneciam no período estival em rudimentares abrigos de pedra, a que dificilmente se poderia chamar casas, mas por vezes de surpreendentes soluções construtivas, como é o caso dos “cardenhos” na branda de Santo António de Vale de Poldros, no concelho de Melgaço. Abandonando a montanha apareciam pelo caminho quintas com casas “sobradas” (por terem dois pisos) e “telhadas” (por terem telhas em vez de colmo), de dimensão e conforto muito variáveis. Quando rebocadas e aprimoradas por cantarias decorativas seriam provavelmente casas de quintas pertencentes a médicos, advogados, notários ou outros notáveis locais. Podiam ver-se também casas de brasileiros de torna viagem do século XIX, celebrados por Camilo e feitos com frequência barões ou viscondes pelo regime liberal. Construídas para dar nas vistas e exibir sucesso, com elementos decorativos capazes de escandalizar os mais ortodoxos, eram casas normalmente inseridas no casco urbano das vilas ou em quintas entregues ao cultivo por caseiros, seguindo a norma da “fidalguia velha”.
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Havia depois os solares armoriados dessa “fidalguia velha”, erguidos ou reerguidos com recursos vindos também do Brasil nos séculos XVII e XVIII. De dimensão e imponência variável e ostentando vistosas pedras de armas albergavam o que restava de uma elite em declínio pelas sucessivas partilhas dos patrimónios depois de extintos os morgados. Nas sedes dos concelhos havia residências da população ocupada em profissões liberais, na administração pública, e em serviços de diversa natureza, desde doutores a humildes trabalhadores por conta de outrem. Conforme o estatuto e o nível de rendimentos podiam viver em casas imponentes com jardim, ou em andares de edifícios que raramente ultrapassavam os três pisos. Havia também, no casco urbano, casas armoriadas com fachadas de maior ou menor espalhafato de cantarias, poiso eventual ou permanente de famílias que tinham tido senhorio em quintas solarengas. Nos bairros mais antigos havia velhas construções degradadas e insalubres onde se alojavam os mais velhos e os mais pobres juntamente com uma população esquecida e andrajosa de pedintes que em dia certo de semana se juntava à porta das casas mais abastadas à espera da moeda de tostão. A seguir foi a emigração em busca de melhores futuros e o disseminar da “casa do emigrante”, fenómeno já amplamente debatido 8cuja abordagem não cabe no espaço desta crónica. Nos primeiros mandatos das autarquias democraticamente eleitas foram atendidas as necessidades mais prementes das populações, como o acesso a água canalizada, o saneamento básico, ou a beneficiação de estradas e caminhos municipais. Depois, até à obrigatoriedade de elaboração de Planos Directores Municipais, as intervenções no território foram na maior parte dos casos feitas ao sabor da especulação fundiária. Demoliu-se muito sem critério e construiu-se muito com o critério do enriquecimento rápido, macaqueando por 8. Ver, por exemplo, Ana Cristina B. P. Cesar, A casa do emigrante português. Caracterização arquitectónica e sua contextualização, Dissertação apresentada na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto para a obtenção do grau de Mestre em Construção de Edifícios, 1996; e Ana Saraiva, Casas (Pós-) Rurais entre 1900 e 2015, Ed. Colibri, 2017. 23
vezes o que de pior se edificou nas grandes cidades 9. Há também por todo o Minho exemplos de inovação com qualidade e de cuidada preocupação na conservação e reutilização de património, mas é inegável o despropósito do muito que se fez de novo e da presença de uma corrente nostálgica do passado. Neste último caso estão os empreendimentos do “turismo no espaço rural” a construir imaginários da antiga “habitação rural” (até nos “cardenhos”), refazendo a coisa, a pintar o purgatório como se fora paraíso; estão também casas cuidadosamente rebocadas pela sabedoria dos antigos a ficaram de pedra à vista e por vezes ornadas com vetustos merlões, envelhecendo a coisa, a parecer que é medieval (falta construir castros e citânias para parecer pré histórico); e está ainda a (re)construção de imponentes casarões a dar nas vista e a exibir sucesso, como o dos brasileiros do século XIX, que recebem pedra de armas seguramente outorgadas pela República, afidalgando a coisa, para enganar os próprios e parecer que era dantes. Não é só uma questão de gosto, porque isso não discutimos aqui, é sobretudo uma questão de senso e uma atitude face às apostas no futuro. Parece-nos inquestionável a importância de cuidar e (re)utilizar o património, mas os bons exemplos mostram que o rural tem sucesso quando aprende a conviver de forma criativa e inovadora com o passado.
9. V ejam-se os esclarecedores trabalhos de Álvaro Domingues, Viver no Campo, Dafne Ed., 2011 e Volta a Portugal, Contraponto, 2017. 24
A aldeia dos pequenitos 7 DE FEVEREIRO DE 2019
Com a Europa em guerra, o ano de 1940 foi, para o Estado Novo, a celebração de uma apregoada espécie de “ressurgimento nacional”. Comemoravam-se um pouco por todo o país, oitocentos anos da nacionalidade e quatrocentos de restauração da independência. (Re) construiram-se castelos medievais, nalguns casos sobre ruínas duvidosas e imperceptíveis e inauguraram-se padrões dos centenários em cerimónias que levaram a remotos concelhos altas individualidades com discursos patrióticos, em que bafordos medievais se transformavam em épicas batalhas. Mas foi na capital que a celebração atingiu o máximo esplendor com a Exposição do Mundo Português. O objectivo era exibir a grandeza do império, a magnificência dos monumentos e a singela humildade de um país onde o rural era repositório de todas as virtudes e alma da nação. Estavam, assim representadas aldeias de vários pontos do território, devidamente maquilhadas para esconder a realidade da miséria apresentada como virtude. Inaugurava-se no mesmo ano, em Coimbra, o Portugal dos Pequenitos, (e não dos pequeninos como às vezes é referenciado), concebido por iniciativa de Bissaya Barreto, médico e professor da Universidade de Coimbra homem de ciência e de razão e (…) activo participante da causa republicana e anti-monárquica e de filiação maçónica, inicialmente ligado à loja ‘Portugal’ e posteriormente à loja ‘Revolta’, convertido ao Estado Novo e amigo pessoal de Salazar. O arquitecto escolhido foi Cassiano Branco, um dos mais destacados representantes da corrente modernista, que não gozava das simpatias do regime
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mas tinha como, Bissaya Barreto, também filiação maçónica através da Loja de rito francês ‘Madrugada’, sob o cognome de ‘Vitrúvio’ 10. Tendo como alvo as crianças, o conjunto destinava-se a ser lição viva de portugalidade e da presença portuguesa no mundo. Ficou uma miniatura sintética e expurgada de toda a impureza, com espaços dedicados ao império, à monumentalidade, às cidades e a um “conjunto de casas regionais portuguesas”, solares de Trás-os Montes e Minho, “casas típicas de cada região com pomares, hortas e jardins, capelas azenhas e pelourinhos” 11. Hoje em dia, cerca de oitenta anos passados, já não aspira a ensinar portugalidade nem tem vocação imperial, mas é um sucesso de bilheteira, chegando a atingir mais de 300 mil visitantes por ano. São agora casinhas de bonecas para as crianças e memória de infância para os adultos. Nas comemorações de 1940, os Arcos não tinham ruína de castelo que se pudesse candidatar à (re)construção, o mais próximo, se não estamos em erro, deve ser o (re)construído no Lindoso, mas os Arcos tinham bafordo, por vezes evocado como batalha e com direito a painel de Azulejos na estação de São Bento desde 1916. E os Arcos tiveram padrão, que chegou a estar no Jardim chamado dos Centenários, e que foi seguramente inaugurado com a presença e discursos patrióticos de altas individualidades civis, militares e religiosas. Agora, os Arcos têm a sua Aldeia dos Pequeninos (e não dos pequenitos como poderia parecer). Lá os mais pequenos têm uma zona à sua altura onde vão encontrar todo o universo da montanha em versão reduzida: as casas e a igreja, o moinho, os espigueiros, o fojo, as brandas 12. Além de Sistelo, aldeia promovida a uma das Sete Maravilhas, e parente distante de Monsanto da Beira, em tempos a Mais Portuguesa de Portugal, os Arcos têm também na Porta do Mezio a Aldeia 10. Ver Nuno Távora Gomes da Silva, Retrato de um País Suave: o “Portugal dos Pequenitos”, Tese de Doutoramento em Arquitectura, Universidade Lusíada de Lisboa, 2016. 11. http://www.memoriaportuguesa.pt/portugal-dos-pequenitos visitado a 1 de Fevereiro de 2019. 12. https://www.viagensemiudos.pt/porta-do-mezio/
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dos Pequenitos (ou será dos pequeninos) e, à conta do bafordo, passou a rimar ser em Arcos de Valdevez que Portugal se fez. Não acreditamos em comunhão de filiações ideológicas nem de objectivos políticos e, para também rimar, não cremos que seja igual, mas parece tal e qual. É de esperar o mesmo sucesso no número de visitantes.
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Pernoitar nos Arcos 21 DE MARÇO DE 2019
Pela estrada plana, toc, toc, toc,/ Guia o jumentinho uma velhinha errante/ Como vão ligeiros, ambos a reboque,/ Antes que anoiteça, toc, toc, toc/ A velhinha atrás, o jumentinho adiante!… GUERRA JUNQUEIRO,
Os Simples
Dois viajantes que nos anos oitenta do século XIX pernoitaram nos Arcos 13, vieram ambos a reboque pela estrada plana, toc, toc, toc, atravessaram o Vez pela ponte acabada de construir em substituição da velha ponte medieval, e encontraram hospedaria nova, mesmo na sua embocada sul, em frente do cruzeiro do Senhor dos Milagres. Eram dez horas da noite e pediram dormida. O estalajadeiro respondeu embaraçado - só tenho um quarto e os senhores são dois. Que não era problema dormiriam os dois no mesmo quarto. Era problema sim, só tinha uma cama disponível, por sinal a cama que deixara na véspera o sr. Guerra Junqueiro o poeta do D. João que pernoitava sempre ali todas as vezes que vinha aos Arcos fazer compras de velharias. Daquela vez tinha comprado numa aldeia um prato por uma libra e a mulherzita quando viu a libra, queria por força que ele lhe levase toda a outra loiça que tinha em casa. O agora esquecido poeta, não só do D. João, mas também dos Simples e da Velhice do Padre Eterno 14, não vinha de longe, seria à data secretário do Governo Civil de Viana e cultivava o hábito de coleccionar objectos antigos. 13. José Augusto Vieira, O Minho Pittoresco, Tomo I, Parceria António Maria Pereira, 1886, pp. 308-309. 14. Para citar apenas dois dos títulos que por aqueles tempos eram bem conhecidos. 28
O estalajadeiro, chamado José Maria, que tinha vinte e cinco anos e lia o D. João e várias coisas mais, acabou por arranjar um colchão e improvisou-se uma cama no sobrado. Um século depois o viajante de Saramago, munido também com a arte das letras, passou pelos Arcos, ficou tristíssimo com a ruína do Paço de Giela e talvez por causa destas penas passou o viajante por Arcos de Valdevez sem parar 15. Se tivesse parado encontrava hotel onde eventualmente se poderia instalar, mas tinha também, por ordem decrescente de preço e comodidade, pensões e casas de dormidas com águas frias e quentes, servindo diárias de vinhos e petiscos, e estamos certos que poderia encontrar ainda estalajadeira ou estalajadeiro com pendor secreto para o improviso e para leitura de poesia. Mudaram-se os tempos e as vontades, o Paço de Giela já não deixaria triste o viajante de Saramago, que teria agora pena do largo da Lapa a dar horas aquáticas, e dos pobres cavalos que perderam as patas no Trasladário. Tudo mudanças a sinalizar a chegada de um sector de turismo moderno e cosmopolita com a construção de resorts − que traduzido quererá dizer lugar usado para relaxar fora de centros urbanos −, e Hotels Collection Nature & SPA − que quer dizer isso mesmo, seja lá o que for − , ao mesmo tempo que floresceram empresas de realização de ruidosos eventos e de actividades radicais, de glamping com pernoita em yurts − que é o mesmo que dizer campismo de luxo com tranquilidade e privacidade em tendas circulares a simular as usadas por pastores mongóis, mas com todas as comodidades que a civilização proporciona − pobres pastores mongóis sem as comodidades, só com o improviso. 15. José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 1983, p. 57. 29