2006- Menção Honrosa (2º Lugar) em Vídeo Cirúrgico InovadorMicrocirurgia Vitreo-Retiniana pela Técnica 23G. 2014- Menção Honrosa (2º Lugar) em Vídeo Cirúrgico-Técnica Cirúrgica Inovadora nas Membranas Epirretinianas Maculares. Centro Hospitalar de Setúbal, GID (Gabinete de Investigação e Desenvolvimento):
Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos
Prémio GID 2016- II Edição - 1º Lugar Prémio GID 2019- III Edição - 2º Lugar Prémios Internacionais: EVRS-European VitreoRetinal Society: 2013- Prémio- 3º Lugar- Filme científico, em Rhodes- Grécia. 2015- Prémio- A melhor apresentação do Congresso em VenezaItália. Leone d´Oro. Medalha de Honra da Cidade de Setúbal atribuída pela Câmara Municipal, no dia da cidade, a 15 de Setembro de 2019.
Este é um livro luminoso, escrito por alguém a quem sobra luz. “Os segredos da vida de um médico” conta os dias de alguém que decidiu dedicar o seu tempo a cuidar dos outros. Ser médico é apenas um detalhe. Aquilo que fica destas páginas é o testemunho de um Ser Humano que nunca se esquece de reconhecer no outro a mesma humanidade. Num momento em que o mundo ignora demasiadas vezes a necessária empatia, David da Fonseca Martins vem convocar-nos para o necessário encontro com os outros, naquilo que fazemos, pensamos e partilhamos todos os dias. Este é um livro sobre a maior riqueza do Serviço Nacional de Saúde, as pessoas, o seu profissionalismo e dedicação a uma batalha que, sem elas, estaria há muito perdida. Ana Rita Cavaco, Bastonária da Ordem dos Enfermeiros
Tenho 70 anos de idade. Nasci numa palhota transformada e adaptada na Missão de Vista Alegre em Angola, a 26 de outubro de 1951. No ano de 1957, a Missão foi encerrada e, expulsos de Angola, viemos viver para Portugal no ano de 1959. Médico desde o ano de 1977, isto é, há 45 anos exatamente. Oftalmologista há 36 anos, e depois de mais de 40 anos de dedicação ao Serviço Nacional de Saúde, decidi partilhar convosco histórias, segredos e curiosidades que vivenciei ao longo da minha vida. David da Fonseca Martins
DAVID DA FONSECA MARTINS
Sociedade Portuguesa de Oftalmologia:
Partilhar “Segredos da Vida de um Médico” é partilhar a humanidade, a empatia, a solidariedade e a dedicação com que o autor consagrou 40 anos de carreira ao Serviço Nacional de Saúde. Escrito de forma sublime, simples e apaixonante, David Martins exalta o espírito de missão que é necessário ao Ser Médico. No seu testemunho vejo várias semelhanças com outros colegas e com características partilhadas por quem é um bom médico e um médico bom. Publicar estes segredos fortalece a nossa história comum, como também abrange a vitalidade da relação médico-doente. Estou grato por este livro. Que fala sobre o nosso maior pilar democrático, a seguir à liberdade, que é o SNS. Sem esquecer as pessoas que o fazem todos os dias e de que dele necessitam de forma decisiva. Esta obra é, também ela, serviço público.
David da Fonseca Martins, nascido em Angola numa palhota transformada e adaptada na Missão de Vista Alegre, a 26 de Outubro de 1951. Licenciatura na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa no ano de 1977, isto é, há 45 anos. Cumpre o Internato Geral no Hospital de Santa Maria em 19781979. Serviço Médico à Periferia no ano de 1980-1981. Inicia a Especialidade de Oftalmologia no Serviço Universitário de Oftalmologia do Hospital de Egas Moniz em Lisboa no ano de 1982, concluindo com sucesso em 1986. Especialista pela Ordem dos Médicos em 1987.
40 ANOS NO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
Prémios:
SEGREDOS DA VIDA DE UM MÉDICO
David Martins,
Entre Janeiro de 1978 e Maio de 2018, isto é, durante mais de 40 anos, exerce a sua atividade no Serviço Nacional de Saúde, no qual exerce as mais diversas funções e Responsabilidades. Percorre todos os patamares, graus da carreira médica hospitalar, atingindo o Topo da carreira como Assistente Graduado Sénior em 2008 (Chefe de Serviço). Mantém-se ativo no exercício da sua atividade médica há 45 anos, atualmente no Hospital da Luz Setúbal. Dois Mestrados em Oftalmologia pela Universidade Autónoma de Barcelona em 2007/2008: 1. Diagnóstico e Tratamento da Catarata e do Glaucoma; 2. Patologia e Cirurgia da Mácula, Vítreo e Retina. Pioneiro da Cirurgia Vitreorretiniana no Serviço Universitário de Oftalmologia do Hospital de Egas Moniz em Lisboa, no ano de 1990, após Fellowship no Moorfields Eye Hospital em Londres. Assistente convidado de Oftalmologia na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa entre 1987 e 1996. Presidente do Conselho de Administração e Diretor do Hospital de São Bernardo, em Setúbal, entre 1996 e 2003 (durante 7 anos). Competência em Gestão dos Serviços de Saúde, atribuída pela Ordem dos Médicos no ano de 2002. Diretor do Serviço de Oftalmologia do Centro Hospitalar de Setúbal entre 2008 e 2018. Responsável pela abertura do Serviço de Oftalmologia da HosporHospital de Santiago, atualmente Hospital da Luz Setúbal, nos anos de 2003-2004.
DAVID DA FONSECA MARTINS PREFÁCIO: PADRE VÍTOR MELÍCIAS
Presidente da Direção de uma Instituição de Solidariedade Social, a Associação de Socorros Mútuos Setubalense entre 1986 e1997 (Durante 11 anos). Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Liga dos Amigos do Hospital de São Bernardo, em Setúbal ,entre 2004 e 2022. Membro ativo de diversas Sociedades Científicas Nacionais e Internacionais tendo apresentado múltiplos trabalhos científicos.
Segredos da Vida de Um Médico - 40 anos no Serviço Nacional de Saúde Autor: David Martins Coordenadora editorial: Irina Fernandes Design, revisão e paginação: Ricardo Alexandre Correia Prefácio: Padre Vítor Melícias ISBN: 978-989-53493-5-7 Depósito legal: 499 101/22 Tiragem: 1500 exemplares Publicado por:
BY T H E
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Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16 - 4º 1400-271 Lisboa T. + F. (+351) 213 610 997 www.bythebook.pt Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser reproduzido, armazenado ou transmitido total ou parcialmente sem a autorização prévia escrita do seu autor.
Apoio:
A Ti. E a toda a nossa Família. Um abraço agradecido, David Martins
ÍNDICE PREFÁCIO - Padre Vítor Melícias
009
INTRODUÇÂO - David Martins
011
RAÍZES E INFÂNCIA 1. O Zâmbia (Com testemunho de: professora e amiga de infância, Maria Paulo)
017
2. A Missão de Vista Alegre, o lugar onde nasci (Com testemunho de: professora e amiga de infância, Maria Paulo)
029
3. Meu pai, Minha Inspiração
039
4. Minha mãe, uma Mulher de Fé
053
ESPIRITUALIDADE E MEDICINA 5. Deus, o caminho que seguimos (Com testemunho de: paciente Miguel Vieira, judoca paralímpico cego desde os 19 anos)
065
ADEUS ANGOLA 6. Viagem no navio Uíge: chegada atribulada a Portugal
083
7. Recomeçar – a adaptação a um novo país (Com testemunho de: amigo e colega de escola, António Malha Gregório)
087
8. A música dentro de mim
099
JUVENTUDE E ESTUDOS 9. Medicina? Não obrigado!
107
10. Ser Estudante de Medicina
111
11. O meu amigo deixou-se morrer!
117
PRIMEIROS PASSOS: DO INTERNATO GERAL A MÉDICO OFTALMOLOGISTA 12. Hospital de Santa Maria: o início de tudo (Com testemunho de: Amélia Dias e Álvaro Lima recordam Sílvia Lima)
125
13. Serviço Médico à Periferia no Concelho de Palmela
137
14. Oftalmologia, a escolha certa!
147
15. Os primeiros desafios, no Hospital de Egas Moniz (Com testemunho de: paciente Fernanda Prudêncio, cega desde os 34 anos e
151
Helena Gonçalves, cuja filha teve retinoblastoma aos três anos)
16. Oftalmologia de campanha – Missões Médicas em Cabo Verde e Guiné-Bissau
173
17. Comprar uma mota ou…a vida?
181
18. Dias de urgência no Hospital de São Francisco Xavier (Com testemunho de: Gonçala Fernandes, vítima de acidente de viação e quase cegou)
185
19. Vitrectomia: de Londres para Portugal (Com testemunho de: paciente Isabel Justino cujo descolamento de retina quase a cegou)
195
20 Aprender com os melhores – no “Moorfields Eye Hospital”, em Inglaterra
199
CARREIRA MÉDICA – RESPONSABILIDADES 21. I - Ser diretor do Hospital de São Bernardo – os dias mais difíceis II - O novo bloco de partos—uma conquista para todos
231
III -Ser diretor do serviço de oftalmologia – os dias mais felizes (Mensagem de: DrºPedro Neves, ex-interno de Oftalmologia, Paulo Matos, Médico
211 239
oftalmologista e Padre José Maria, Capelão no Hospital de São Bernardo e)
DA TEORIA À PRÁTICA – COMO ATUAR? 22. Bloco operatório, um local sagrado
263
23. Não somos Deuses
271
24. Sim, um médico também chora
273
25. Como lidar com a dúvida
279
SER MÉDICO – SEM PRESSAS 26. Cada doente é único
285
27. Ser Médico em todas as horas…e também dentro de um avião!
291
INTERVENÇÃO CÍVICA 28. Erguer obra social: da Associação de Socorros Mútuos Setubalense ao Centro de Dia
299
29. Euro 2004: Olá seleção!
315
30. Desporto, o meu aliado
321
CARREIRA MÉDICA – OUTROS PASSOS 31. Hospital da Luz Setúbal, desde 2002/2003
331
32. Pandemia de Covid-19: – Eu não fico em Casa!
343
EVOLUÇÃO DA OFTALMOLOGIA EM PORTUGAL E NO MUNDO 33. Oftalmologia: técnicas do passado e futuro I- Na Cirurgia da Catarata
351
II- Na Cirurgia da Retina
359
III- A Cirurgia 3D
365
IV- O Meu Despretensioso Contributo
369
34. Os meus colegas oftalmologistas na inovação
385
35. Os meus enfermeiros
395
36. O papel da Indústria Farmacêutica
405
37. Congressos e Mitos
411
O PESO DA FAMÍLIA 38. Meu querido irmão João
419
39. Até sempre Lídia, minha irmã!
425
40. A minha Irmã Loide
437
SETOR DA SAÚDE: PRESENTE E FUTURO 41. Eutanásia: sim ou não?
443
42. Construir o Serviço Nacional de Saúde do futuro
447
43. Valorizar o Mérito
453
NA HORA DA DESPEDIDA 44. Reformar-me? Ainda não!
461
ANEXOS
465
Francamente, admito-vos, que tenho pena de não ter um filho médico, porque é uma área apaixonante. A quem se preparar para escolher um curso superior ou formação profissional aconselho a que optem por uma área de que gostem verdadeiramente. É importante refletir com tempo e sem preocupação em demasia, caso a resposta tarde em aparecer. Ela vai aparecer, não duvidem! Por vezes, só depois de entrarem no caminho, vão perceber que é mesmo por aí. Prossigam! Se rapidamente perceberem que erraram na escolha feita, não hesitem e voltem atrás. Nunca é tarde para se construir um novo caminho. É preferível isso a uma vida de frustração no trabalho ou em qualquer outra área da vida! Um dos meus filhos, o Luís Miguel, agora com 29 anos, somente encontrou a sua verdadeira vocação aos 24. Começou por estudar Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi até convidado a trabalhar num escritório de advogados, mas acabou por sentir que não era esse o seu caminho, a sua paixão. Voltou então a estudar, desta vez Psicologia Clínica, interessando-se particularmente por temáticas como a ansiedade, as dependências, a depressão e o suicídio. São problemas sociais e de saúde pública e ele está muito feliz pelo que faz. Reencontrou o seu destino. Já o meu filho mais velho é da área de cultura. É diretor de uma Companhia de Teatro no Montijo, toca, canta, tem um grupo, e é um apaixonado pela arte, cultura e música. Embora seja uma área muito difícil do ponto de vista de estabilidade financeira, ele é um homem feliz e eu também o sou por ele! Por sua vez, o meu filho mais novo de 19 anos optou pela área da Informática, da qual gosta bastante, e é um aluno excelente. Encontrou também o seu rumo. Fui, na altura, o primeiro a sagrar-me médico na família, na minha geração, pois uma prima direita do nosso pai já era médica psiquiatra. Agora já temos mais – é o caso de uma prima direita, e vários primos em segundo grau. Trabalho como médico, apaixonadamente, há 44 anos, desde 1978. Uma última palavra para partilhar convosco, um segredo e dar-vos um conselho: se querem ir para Medicina para ganhar dinheiro facilmente e enriquecerem, desistam, a não ser que queiram enveredar por caminhos tortuosos!
109
Deixo convosco num capítulo mais à frente uma cópia do meu último vencimento como diretor de serviço, cirurgião de retina e vítreo e de outras patologias, nomeadamente cataratas, tendo chegado ao topo da carreira médica através de concursos públicos, no Serviço Nacional de Saúde de que muito me orgulho e ao qual servi durante mais de 40 anos, ininterruptamente. E também, a cópia do meu recibo de reforma. Perguntar-me-ão: então como viveste com tão pouco? É óbvio que não. Desde que legalmente foi possível, tive consultório com colegas e também trabalhei e trabalho num hospital privado desde que abriu, em Setúbal, no ano de 2003 e até agora. Mas este facto, implicou que para poder ter uma vida condigna, fui forçado a trabalhar fora do hospital público e no total, cerca de 60 a 70 horas por semana durante mais de 40 anos! Eu e muitos colegas como eu. E eu pergunto: acham justo este tipo de vencimentos na carreira médica no Serviço Nacional de Saúde? Como atrair e fixar os jovens médicos e especialistas, no Serviço Nacional de Saúde? Compete aos Políticos pensar nisto!
Uma escolha errada é um fardo demasiado pesado para se carregar ao longo de toda uma vida. 110
INTRODUÇÃO
Tenho 70 anos de idade. Nasci numa palhota transformada e adaptada na Missão de Vista Alegre em Angola, a 26 de outubro de 1951. No ano de 1957, a Missão foi encerrada e, expulsos de Angola, viemos viver para Portugal no ano de 1959. Médico desde o ano de 1977, isto é, há 45 anos exatamente. Oftalmologista há 36 anos, e depois de mais de 40 anos de dedicação ao Serviço Nacional de Saúde, decidi partilhar convosco histórias, segredos e curiosidades que vivenciei ao longo da minha vida. Ao longo das páginas que se seguem irão perceber que a minha principal motivação para fazer nascer este livro foi a de prestar homenagem à minha família, aos meus professores e colegas, aos meus doentes e a todos os que, de uma forma ou de outra, acompanharam o meu trajeto de vida. Sem o suporte imprescindível da minha família, estou certo, eu não chegaria até aqui. Eu tenho sido um Homem com sorte: no núcleo central da família, os meus pais e os meus irmãos sempre me incentivaram e acompanharam em todo o meu percurso.
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Vivendo em Portimão até 1970, tinha eu 19 anos de idade, mudaram-se para Lisboa para me acompanharem quando ingressei no ensino superior na Universidade e Faculdade de Medicina de Lisboa. No meu primeiro casamento, Alzira Chambel e sua Família, foram um notável apoio sempre presente durante todo o tempo. Relevante! Saibam que para se ser médico é necessário muito esforço e dedicação. Desde que iniciei os estudos na Faculdade de Medicina no ano de 1971, posso afirmar que cheguei a estudar em média 10 a 12 horas por dia durante semanas e meses, na companhia de o meu grande e melhor amigo de então, Victor Hugo da Silva Fernandes, que viria a falecer após terminar o curso, em circunstâncias estranhas e dramáticas que perceberão durante a leitura deste Livro. Entre o primeiro e o segundo ano do curso de Medicina senti também eu vontade de desistir – um sentimento comum entre os estudantes de medicina – por culpa de a anatomia que era disciplina “pesada” e que, se cumprida, seria como dobrar o Cabo Bojador. Estive quase para desistir, mas valeu-me o “empurrão” dos que me são mais queridos e, particularmente, da minha primeira esposa. Durante os mais de 40 anos de dedicação à causa da Saúde, no Serviço Nacional de Saúde e noutras causas que abracei, a luta e o empenho foram diários. Posso afirmar-vos, com toda a verdade, que trabalhei à volta de umas 50 a 60 horas por semana, e muitas vezes também aos fins de semana, no hospital, consultório, bloco operatório e preparando trabalhos científicos e não só! Quando revejo esses tempos, fico a pensar como terei conseguido aguentar-me!
Ser médico exige espírito de missão. E este meu testemunho pessoal de missão, garanto-vos, estende-se à maior parte dos meus colegas com que privei ao longo dos anos. 12
A cada etapa contei com o amor daqueles que me rodeiam. Ora vejam: durante o primeiro casamento, do qual nasceram os meus queridos filhos Levi Pedro e Luís Miguel, e que durou cerca de 26 anos… a paciência e o suporte da família foram uma constante. Já imaginaram o que será estar casado com alguém com uma vida destas? Só posso agradecer e afirmar uma vez mais que sem esse apoio, eu não chegaria onde cheguei. Curiosamente, e acredito que em resultado dessa experiência familiar, nenhum dos meus filhos quis seguir medicina! Durante o ano 2000, vivi um período de mudança. Uma crise pessoal a nível espiritual e sentimental instalou-se dentro de mim e muito por minha responsabilidade. Aqui, uma vez mais o suporte espiritual e de Amor infinito dos meus pais e irmãos foram a minha âncora. O meu Pai parte em dezembro de 2002 e, de um momento para o outro, a minha vida retoma o rumo certo! Nesse ano vivi a alegria de voltar a ser pai. Nasceu o meu terceiro filho, muito amado, o Emanuel David, no dia 24 de dezembro de 2002. Já em 2003 dá-se um acontecimento marcante na minha vida: conheço a Carla Sofia com quem venho a casar no dia 25 de junho de 2004! Filha de uma doente que eu tinha operado a descolamento da retina, no Hospital de Egas Moniz em Lisboa, no ano de 1993! Durante estes 17 anos de vida em comum, e durante os quais atravessei o melhor período da minha vida de médico e oftalmologista, como irão perceber adiante no livro, a paciência e acompanhamento da minha mulher têm sido extraordinários. Quantas foram as vezes que me ajudou a preparar trabalhos científicos, sobretudo em inglês – ela domina o idioma, mas eu não [risos]! Quantas foram as vezes que preparou o jantar para os “meus” internos, que vinham à nossa casa, para juntos organizarmos trabalhos científicos para apresentação em congressos nacionais e internacionais? Imprescindível, em todos os momentos! Outro sentimento que me levou a escrever este livro foi o de honrar os meus professores e colegas que conheci e com quem trabalhei ao longo destes mais de 40 anos de atividade e vivência médica, sobretudo nesta área da especialidade de oftalmologia, nos hospitais, em cursos, congressos e reuniões científicas e que tanto têm dado ao nosso País e aos doentes, na medida em que tudo o que falamos e às vezes até discutimos acaloradamente, é para que todos melhorem e se atualizem na sua prática clínica diária!
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O público e as pessoas em geral desconhecem muito do que se passa nos bastidores da saúde! Tenho alguns segredos a revelar! É interessante que conheçam alguns, pelo menos. Também não faria sentido escrever este livro sem vos transmitir o meu apreço e reconhecimento pelos enfermeiros e seu papel na área da saúde, cada vez mais interpenetrados no trabalho da equipa médica! E também os assistentes operacionais, autênticos técnicos auxiliares de saúde que têm um sentido de equipa e responsabilidade de enaltecer. No Bloco Operatório então, revelar-vos-ei o espírito de equipa que se constrói permanentemente com grande compromisso, cumplicidade e amizade! Entrar no Bloco Operatório para operar um doente é das experiências mais bonitas, marcantes e interessantes que nós profissionais de saúde podemos experienciar! Mas que responsabilidade quando o fazemos! Não duvidem! Tenho comigo a trabalhar os mesmos enfermeiros há muitos e muitos anos! Não prescindo do seu trabalho e companhia! Que profissionais! Por fim, e como mensagem especial que me inspirou, o doente, o centro de tudo, da nossa atenção, cuidado e preocupação. Ao longo destas páginas vou revelar-vos acontecimentos e aventuras que vivi durante a minha atividade de médico traçando, em paralelo, um olhar crítico sobre o funcionamento e panorama atual do setor da saúde. Muitas das mensagens, curiosidades e segredos deste livro são centradas na pessoa, doente ou não, sabendo que todos nós um dia podemos estar em situação de necessitar de cuidados de saúde. É bom que possam ter algum conhecimento da vida real nos Hospitais e de situações mais ou menos complexas que todos os dias acontecem! E das consequências e resultados da atuação de todos os atores no “Teatro” da Saúde. Aqui vão ter oportunidade de conhecer os casos clínicos de alguns dos meus doentes que, na primeira pessoa, contam as suas experiências. Uns perderam a visão, mas nem por isso a paixão de viver! David Martins.
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RAÍZES E INFÂNCIA
CAPÍTULO 01
O ZÂMBIA
Sou – à semelhança de alguns de vós – filho de Angola. Filho de África. Nasci a 26 de outubro de 1951, num local muito especial: uma palhota na missão de Vista Alegre fundada e erguida pelo herói e patriarca da nossa família: o meu pai, Joaquim António Cartaxo Martins. Os meus pais eram portugueses e tinham raízes no Alentejo. O meu pai era natural de Reguengos de Monsaraz – nasceu na aldeia alentejana de Perolivas – e a minha mãe, Joaquina Maria da Fonseca Coias Martins, era natural de Estremoz. Ambos se converteram ao Cristianismo evangélico tornando-se missionários, o que muito influenciou quem hoje sou como médico e homem. Chegaram a Angola em 1949. Depois de ter passado por outras cidades angolanas como Lobito ou Benguela, e de muito procurar, o meu pai encontrou no Kirimbo, a 70 km de Porto Amboim, mais para o interior, o local ideal para vivermos. Havia aí uma estação de comboios que ligava as cidades de Porto Amboim – onde existia um porto e a economia era marcada pela pesca – e Gabela, a nordeste da capital Sumbe.
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À esquerda: Os meus pais. À direita (em cima): Os meus pais na Missão; (em baixo): O comboio.
Foi aí que o meu pai adquiriu um terreno, cheio de capim e mato, no qual havia uma palhota onde eu vim a nascer. Após trabalhos de limpeza desse terreno, instalou então a Missão Evangélica de Vista Alegre. Nos arredores habitavam comerciantes proprietários de terrenos agrícolas, lojas, roças de café. Não sou filho único. Éramos quatro filhos: eu, a minha irmã Lody Ribeiro (74 anos), a minha irmã Lídia Rita Robertson (que teria agora 72 anos e que, para tristeza de todos nós, veio a falecer), e o meu irmão João Martins (64 anos). Fui um bebé muito loiro e muito amado. Todos me receberam com grande felicidade e entusiasmo, para a Lody e a Lídia fui o melhor dos presentes pois, nas suas mãos, era como que um boneco que chorava, mas a viva voz! [risos]
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À esquerda: Com os meus pais e irmãs. À direita (em cima): Com as irmãs na Missão, Loide e Lídia; (em baixo): Escondido do sol atrás da minha irmã Lídia.
Na Missão de Vista Alegre, em tenra idade, fiz um amigo do qual me tornei inseparável. Ele chamava-se Moisés, brincávamos e andávamos sempre juntos dia e noite. Ali vivia em liberdade e em contacto com a Natureza, aquela era uma terra onde prosperavam mato e animais. Nada me fazia mais feliz do que pular e correr naquele chão lamacento, quando chovia.
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A vida na Missão era para mim um paraíso. Cresci com um único sentimento ao peito: era a criança mais feliz do Mundo! Familiares e amigos que viveram connosco na Missão contam que adorava brincar na água e, em especial, nadar e mergulhar nas águas de um rio designado de Zâmbia, o qual ficava a um quilómetro de distância do centro da Missão de Vista Alegre. Por esse motivo, atribuíram-me uma alcunha, passando a chamarme de “o Zâmbia”. Este era o rio que fornecia a água para a Missão, tendo sido feitos pequenos canais que asseguravam o transporte da mesma. Na hora de chamarem por mim, ouvia-se ao longe: « – Ó Zâmbia, chega aqui!» Naquele tempo, entretinha-me a brincar com paus e outros objetos que arranjava pois, como calculam, não havia muitos brinquedos. Para nós, para mim, o Moisés e outras crianças da Missão, era um verdadeiro deleite conduzir os aros da roda de bicicletas. Talvez por isso nunca tenha esquecido o Natal em que me ofereceram uma bola. Se há coisa que sempre gostei de fazer desde miúdo é jogar à bola! Aquela, lembro-me bem, era uma bola cheia de cor, foi sem dúvida a prenda que mais gostei durante toda a minha infância!
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Embora tivesse visto com frequência o meu pai e a minha mãe a cuidar de quem estava doente ou com feridas nos pés, pois muitos andavam descalços pelo mato, as brincadeiras de médico nunca fizeram parte do meu imaginário infantil. Nada apontava que a medicina viria a revelar-se a minha grande conquista em Homem.
À esquerda: eu e o meu pai. À direita: a minha madrinha: Pearl Stark.
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CAPÍTULO 14
OFTALMOLOGIA, A ESCOLHA CERTA!
A Oftalmologia aparece na minha vida por um mero acaso. Nada apontava que iria ser a minha especialidade. Durante os dois anos de internato de policlínica, no Hospital de Santa Maria, passei por quase todos os serviços desde Ginecologia, Urologia, Infeciologia, Cirurgia Geral, entre outros. Estive também no serviço de Hematologia, que trata as doenças do sangue, e devo lembrar-vos que há 45 anos um médico via morrer muita gente. Vi muitos casos de crianças com leucemia, por exemplo, e outros sem tratamento curativo. « – Não quero ser médico para ver este fim». O juramento de Hipócrates lembrava que o sentido de a nossa função deveria ser a cura e o tratamento dos doentes. Acompanhar casos de crianças, jovens ou adultos com doenças terminais impactava em mim e na forma como via a Medicina. Outra especialidade que excluí foi a Infeciologia.
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Curiosamente quando, em estágio, em 1978/79, tive contacto com a área de Oftalmologia, confesso-vos que não a achei interessante nem apelativa. Naquele tempo resumia-se à extração intracapsular de cataratas, descolamentos da retina pela técnica clássica e pouco mais. Percebi, rapidamente, que não seria caminho a trilhar. Embora tenha ficado na minha memória um facto interessante que me “tocou”: um médico oftalmologista com quem privei nos poucos momentos em que fui ao serviço para tomar contacto com a especialidade, o Professor Ramalho, chamou a minha atenção para uma doença grave que levava à cegueira, o glaucoma, sendo que a prevenção passava pela medição regular da tensão ocular. E mostrou-me como medir a pressão intra-ocular. Analisei os prós e contras de cada uma das especialidades em que poderia investir e fazer carreira médica, mas, a verdade é que, sabia apenas o que não queria para mim. Seguir Cirurgia Geral, por exemplo, também foi uma hipótese que afastei pois não me fazia sentido uma vez que, naquela época, era muito traumatizante para mim ver tantas e tão profundas incisões abdominais e não só. As únicas áreas que me faziam sentido seguir era Pediatria, pois gosto de crianças, ou Cardiologia, pois acho o nosso coração um órgão fascinante… Porém, nunca equacionei seguir a especialidade de Oftalmologia. Muito indeciso quanto ao que haveria de fazer, até porque havia a questão das vagas, embora eu tivesse a possibilidade de escolher uma qualquer devido à minha nota final, um dia decidi ir ao encontro de um velho amigo e colega, que trabalhava no Ministério da Saúde. O Mário David, que era assessor no Ministério da Saúde, havia sido meu colega e por isso fui falar com ele. « – Escolhe a especialidade de Oftalmologia porque é uma área que tem saída sempre, no futuro e em qualquer parte do mundo», aconselhou-me o Mário David. « – Vai ser sempre uma especialidade necessária». As suas palavras pareceram-me certeiras e sábias. E eu decidi acatá-las. Não estou nada arrependido e estou-lhe muito agradecido. Sou muito feliz com a escolha que fiz – muito feliz. A cada minuto, em cada dia.
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Devolver a visão às pessoas é algo que me apaixona e que gosto muito de concretizar. É o mais gratificante de tudo! Por outro lado, é um exercício que me inspira a ser um homem e um médico cada vez melhor. Arrisco até a partilhar convosco que penso que a Oftalmologia se conjuga muito com a minha personalidade. Há colegas que dizem que, para além de perfeccionista – atenção, não disse perfeito – sou minucioso. E é de facto uma verdade: sou um homem que valoriza o detalhe. A Oftalmologia, e a cirurgia oftalmológica, que é microcirurgia, fazem-se minuto a minuto de paciência e detalhe. E eu sou perseverante! Quando, nos anos 90, comecei a fazer uma vitrectomia levava horas e horas a operar e não me cansava – tal como hoje também não me canso. As enfermeiras e os meus colegas brincam comigo porque, no fim da cirurgia, às vezes o olho fica com resíduos de sangue e secreções. Eu procuro, sempre que possível, lavá-lo, limpá-lo e penteá-lo para ficar com aspeto bonito e o mais natural possível. «– Lá está ele a pentear as pestanas!», dizem-me, a rir-se.
149
O Professor José Cunha Vaz, em 2021.
Exame de especialidade de Oftalmolgia.
Júri do exame de especialidade de Oftalmolgia.
CAPÍTULO 15
OS PRIMEIROS DESAFIOS, NO HOSPITAL DE EGAS MONIZ HOMENAGEM AO MEU PROFESSOR L.N. FERRAZ DE OLIVEIRA
Ano de 1982. O país vivia mais um Verão e eu, longe de ter um dia de praia ou direito a banhos de sol, assistia algo nervoso ao aproximar de uma das mais importantes datas na minha vida. Eis que chegara a hora de eleger a especialidade médica que queria seguir e o hospital para exercê-la. Na minha escolha pesaram vários fatores. Tinha a ambição de tornar-me num profissional de excelência e por isso desejava aprender com os melhores. Ter professores de referência era, para mim, ponto assente. Os hospitais universitários revelavam-se a melhor opção para alcançar o meu objetivo. No Hospital de Santa Maria, todos admiravam o professor Ribeiro da Silva, com quem me havia cruzado durante os dois anos do meu internato. Já no Hospital de Egas Moniz todos elogiavam o professor Ferraz de Oliveira, que, diziam, ser uma pessoa extraordinária não só como docente, mas também como cirurgião e oftalmologista. Também eu fiquei com vontade de evoluir ao seu lado. Não me haveria de arrepender.
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Homenagem ao Professor Doutor Ferraz de Oliveira.
O Professor Doutor L. N. Ferraz de Oliveira era, dizia quem o conhecia, um homem completo. Comparativamente a outros professores da época, era um homem visionário, à frente do seu tempo. Para além da personalidade humana, era um Professor Catedrático de excelência e um cirurgião ímpar. Nunca vi uma pessoa a operar com tal delicadeza. Na minha opinião, foi das pessoas que conheci com mais “skills” cirúrgicas. 152
Tenho até aos dias de hoje uma admiração profunda por este homem. Foi um mestre em todos os sentidos! Depois de avaliar todos os prós e contras, e após ouvir algumas pessoas que já lá trabalhavam, concretizei o meu objetivo. Sob a orientação e direção do professor e mestre Ferraz de Oliveira, escolhi exercer Oftalmologia, no serviço universitário de Oftalmologia do Hospital de Egas Moniz em Lisboa. Iniciei atividade a 1 de agosto, desse ano. Depois de um período de dúvida e inquietação quanto ao caminho a escolher, ali estava eu ansioso por viver o meu primeiro dia de trabalho enquanto médico interno da especialidade de Oftalmologia.
O contexto hospitalar acarretaria altos desafios, e eu sabia-o. Avistavam-se horas de trabalho e muito estudo, mas, no auge da minha juventude – tal como ainda até hoje – nada temia. O entusiasmo era enorme, tal como a expetativa. O nosso professor e diretor tinha organizado um curso de formação básica para os internos do serviço. Foi assim o início da nossa formação oftalmológica nos primeiros meses de trabalho, com os seguintes temas: ótica física e ótica aplicada; anatomia ocular e das estruturas anexas; embriologia e histologia oculares; genética; radiologia da órbita e noções de ecotomografia óculo-órbitária; Os meses foram passando. Os olhos são órgãos complexos e por isso exigiam de mim máxima atenção. Não poderia descurar qualquer detalhe durante as consultas. Via-me ali pela primeira vez em confrontação com os livros e a prática clínica. Aprendemos a identificar e tratar casos de doenças como cataratas, glaucoma e problemas na córnea, degenerescência macular, retinopatia diabética, descolamentos da retina, buraco macular e uveítes, entre outros.
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Com apenas quatro anos de exercício enquanto médico interno da especialidade de Oftalmologia, em 1986 – ano em que concluí a especialidade – vivi um dos casos clínicos mais complexos daquela que veio a ser a minha carreira de 40 anos e 4 meses no Serviço Nacional de Saúde. Corria mais um dia de trabalho quando Helena me bateu à porta – estava então a dar consultas em Setúbal. Ao colo, carregava uma menina de três anos, a filha Bárbara. Os nervos e as lágrimas atraiçoaram-na aos primeiros minutos da nossa conversa. Ali contou-me que algo de errado se passava com o olho direito da menina, que, com ou sem luz, mostrava-se dilatado e com uma mancha branca na “menina dos olhos”. Observei a criança e aí identifiquei um sinal de alarme: a Bárbara tinha uma mancha branca na pupila. Tratava-se de uma leucocoria, indicativa de doenças como catarata congénita, descolamento da retina, retinopatia da prematuridade, anomalia vascular da retina, retinoblastoma, por exemplo. Numa criança de 3 anos poderia ser um retinoblastoma, tumor maligno da retina. Logo ali, o meu coração temeu o pior, mas não quis preocupar desnecessariamente os progenitores. Pedi-lhes que fossem novamente ao meu encontro, mas desta vez no Hospital de Egas Moniz para que a Bárbara fosse submetida a exames, e partilhar o caso com o Professor e colegas para ser feito um diagnóstico correto e definitivo. O assunto era sério! Levei dias e dias sem dormir, e a pensar na situação. O diagnóstico foi feito, entretanto, acabando por confirmar o maior dos meus receios: era de facto um retinoblastoma, que ocupava quase todo o olho. Tenho de admitir-vos que me vi mergulhado num misto de emoções: tristeza, revolta, mágoa, medo. Porém senti, ao mesmo tempo, um apelo em ser corajoso pois cabia-me a mim a responsabilidade de dar a notícia à família e amparar-lhes a dor. «– A única salvação da Bárbara é retirar o olho», disse-lhes. Enquanto homem e médico vivi, juntamente com esta família – e não tenho vergonha em assumi-lo publicamente – um dos piores dias da minha vida! Em lágrimas, o pai, a mãe e eu procurávamos amparo uns nos outros perante o diagnóstico. « – É a única forma… É um tumor maligno gravíssimo», repeti justificando a ação cirúrgica.
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Quando tudo isto aconteceu, eu já era pai de o meu primeiro filho. O Levi, nascido a 26 de maio de 1983, tinha então também três anos. Para mim, não foi nada fácil gerir toda a situação… sempre gostei muito de crianças. Nem tudo é fácil na vida de um médico. Tirar o olho a uma criança é algo que naturalmente ninguém gosta e para o qual poucos estariam preparados para o fazer. É certo que vos falo-vos falo de situações extremas, mas tenhamos consciência de que por vezes são uma realidade. A enucleação foi uma intervenção cirúrgica complexa do ponto de vista clínico, técnico e emocional para a equipa médica e família. Apesar das adversidades conseguimos assegurar o mais importante de tudo: salvámos a vida da Bárbara! Hoje ela é uma mulher feliz. Soube construir a sua vida e família. É mãe de duas meninas. No olho direito tem uma prótese sendo que vê cem por cento do olho esquerdo. Ainda é minha paciente. É, acima de tudo, um caso de sucesso do ponto de vista clínico e um exemplo ímpar de superação! Neste hospital, conheci uma outra mulher incrível. Falo-vos da minha paciente Fernanda Prudêncio, natural e residente em Armação de Pêra, concelho de Silves, no Algarve. A poucas semanas de partir para Inglaterra, no ano de 1989 para cumprir estágio no Moorfields Eye Hospital, em Londres, conheci-a. O sangue parecia ter deixado de correr-lhe nas veias, toda ela era medo e ansiedade. E tinha as suas razões: aos 30 anos corria o risco de ficar cega, para a vida toda. No Hospital de Egas Moniz, os médicos que a tratavam não lhe deram grandes esperanças em vir a conseguir reverter a situação. Tratava-se de uma paciente com um diagnóstico de retinopatia diabética proliferativa grave. Sofria de diabetes desde a juventude. « – Doutor ajude-me que eu não posso cegar!», pediu-me num timbre de voz que nunca esqueci. Depois de um ciclo de sessões de laser, Fernanda sofrera derrames (hemorragias) sem dar sinais de melhoria. Àquela altura sem qualquer perspetiva de tratamento em Portugal, Inglaterra aparecia como a sua melhor – e única – hipótese segundo opinião de médicos que consultou.
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De imediato disponibilizei-me a ajudar no que pudesse e a acompanhá-la no processo. Depois de muitos tratamentos e intervenções no Moorfields Eye Hospital e já de volta a Portugal a vida acabou por atraiçoá-la, deixando-a cega. Era mãe de uma menina de 11 anos e, ao lado do marido Walter, assumia o comando do restaurante ‘O Walter’, ainda hoje de portas abertas na vila piscatória algarvia. Naquelas primeiras semanas vi-a cair numa tristeza e dor profundas. O seu espírito havia-se ‘apagado’ para a vida. Separados pela distância física, entre Algarve e Lisboa procurei apoiá-la o mais possível. Ligava-me e eu, do outro lado da linha, procurava acalmar-lhe a revolta. Também eu estava a viver um processo de aprendizagem: amparar uma paciente que havia perdido a visão.
Caricatura dos elementos do serviço, desenhada por um secretário da direção. Ao centro e ao lado do Professor, a D. Lina, secretária à antiga.
Mas a Fernanda tinha ainda muito para nos revelar. Ela não era uma mulher qualquer, existia nela uma bravura arrebatadora. No ano em que cegou perdeu o pai, pouco depois morreu-lhe o marido. Apesar de os tombos da vida – tal como ela faz questão de apelidar a sua cegueira – nunca perdeu a vontade de viver. Voltou ao restaurante onde trabalhava desde os 20 anos, para ser aquilo que antes já era: uma mulher cheia de energia. Da confeção dos alimentos ao empratamento, nada escapava a Fernanda, na gestão e organização do restaurante. Fez as malas e internou-se num centro de aprendizagem para pessoas invisuais, em Lisboa, onde, durante meses, aprendeu a vestir-se, a andar de bengala na rua e a ser massagista! Por amor à filha regressou a Armação de Pêra. É lá que ainda vive, e não há dia que não saia à rua para ver o mar. Pela mão da Bárbara e da Fernanda Prudêncio aprendi que enquanto médico, também eu, iria voltar a ser posto à prova. E, tal como elas, não teria outro caminho a seguir se não… superar-me.
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TESTEMUNHO CEDIDO POR: PACIENTE FERNANDA PRUDÊNCIO, COZINHEIRA. CEGA DESDE OS 34 ANOS
«Um cego, minha gente, não é um trapilho!» A vida é uma bênção. E eu, o meu marido [Walter] e a nossa filha – na altura, com onze anos – sempre vivemos com gosto, alegria e felicidade. Tínhamos 12 anos de casados quando a minha situação de saúde se agravou abruptamente. Diabética desde os 21 anos, após uma consulta de rotina com o professor Ferraz de Oliveira foram identificados alguns problemas. Fui por isso aconselhada a fazer sessões de laser para evitar que, um dia, cegasse. Mas o meu destino – quis Deus – estava traçado. Naquela altura, o tratamento a laser era recente em Portugal. Até ali, não sentia queixas. Lia bem, conduzia e fazia a minha vida normalmente. À segunda sessão de laser comecei a fazer derrames. A partir daí, a minha vida começou a andar para trás. « – A Fernanda não tem hipótese!», antecipou a equipa médica. « – Nem aqui nem em outra parte do mundo?», perguntei levantando a hipótese de ser operada no estrangeiro. 158
«– Talvez consiga melhorias em Inglaterra», aconselhou-me o Dr. Cardoso, que também acompanhava o meu caso. Mais do que meras palavras aquela seria a minha única possibilidade de não ficar cega. Nessa altura tinha já um descolamento de retina e não sabia – tive conhecimento mais tarde, quando estava internada em Inglaterra. Foi, nesse momento, que conheci o doutor David Martins. Ele trabalhava no Egas Moniz e ia para lá fazer estágio, e ofereceu-se para me acompanhar. O doutor David sempre foi um bom amigo, foi ele quem me ouviu nos momentos mais difíceis. Foi ele quem me amparou quando em mim só havia fúria e revolta. Estava, como podem calcular, muito assustada. Temia o pior. O que eu mais queria era continuar a ver! Era muito nova. Por nada neste mundo queria cegar. Quando fui para Inglaterra via com névoa e cores. Fui atendida dia 27 outubro de 1991, tendo sido operada ainda nesse mês. Transmitiram-me que ao ser aspirado o vítreo com sangue, hemovítreo, ficaria boa. E eu, como qualquer pessoa no meu lugar, agarrei-me a essa esperança. Aquela operação haveria de ser a minha salvação, acreditei. Estive 16 dias com a cabeça para baixo, para sair o gás da retina, e para ver se os furos ficavam cicatrizados. Em dezembro acabaram por me operar ao outro olho. No pós-operatório disseram-me que estava a recuperar bem, e por isso autorizaramme a que viajasse de regresso a Portugal. A última vez que fui submetida a uma cirurgia foi em maio de 1992, tendo regressado a Portugal dia 8, ainda nesse mês. Nessa noite fiquei em casa de uma prima minha em Lisboa, e só no outro dia viajei para o Algarve. Passados dois ou três dias, voltei a ter sintomas indicativos de que algo não estava bem. Novos derrames voltaram a manifestar-se.
De nada me valia abrir os olhos, pois estava como que perdida em um dia de nevoeiro cerrado. 159