TÍTULO
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO. Humor à moda de Soure © TEXTO
Jorge Varanda © EDIÇÃO
By the Book, edições especiais DESIGN
Forma, design: Margarida Oliveira COORDENAÇÃO EDITORIAL E PRODUÇÃO
Ana de Albuquerque e Maria João de Paiva Brandão REVISÃO
By the Book IMPRESSÃO E ACABAMENTO Multitipo, Artes Gráficas, Lda. ISBN 978-989-96409-3-1 DEPÓSITO LEGAL 309 728/10 TIRAGEM 1.000 exemplares
BY THE
BOOK
Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. +351 213 610 997 bythebook@sapo.pt www.bythebook.pt
APOIO INSTITUCIONAL
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
8 CAPÍTULO I
40 CAPÍTULO III
As histórias mais antigas 9 10 12 14 15 16 17 18 20 21 23
Eduardo Lérias e o cavalo do Rei Eduardo VII O Senhor, o rapaz, o burro e a bicicleta Eh, Pá, até lavei a cara num lavatório em forma de uma viola! O caso “Matias versus Lucas” Ó César, eu amo a tua mulher “Onde é que está o seu patrão?”, vocifera o Fiscal Inimizade no cimo da Vila A Arte da Retórica e a Retórica sem Arte Experiência amarga nos primórdios da iluminação Um campo semeado a macarrão A mudança rápida e extraordinária de um brasileiro de torna-viagem
24 CAPÍTULO II
Histórias em família 25 26 27 29 31 33 34 36 38
“Estimo vê-lo mais ca vê-lo…” A Farmácia do Largo da Igreja A prevenção no carácter de meu avô Francisco Fum, fum, fum, fum! Um farmacêutico a fazer de médico Galo foragido em telhado vizinho Não bastava um, mas dois copos de vinagre!!! A difícil tarefa de conciliar irmão e irmã para a pose fotográfica Entradas turísticas por terras de Espanha
JORGE VARANDA
Entre tios, primos e pessoas próximas 41 42 43 45 46 47 49 51 53
Ponham trancas! Ponham trancas! Ai, coração, coração! O impacto de uma unha pintada de vermelho numa missa de Domingo A retenção mágica de um berlinde à entrada do esófago Fatos de banho passados por água doce? Moeda falsa na Farmácia Ralações de sogra e genro Um pequeno Alívio O meu primo do Brasil
56 CAPÍTULO IV
Coisas do Arco da Velha 57 58 60 61 63 64 66 68 69 71 73 74
O marido que perdeu a mulher numa viagem de motorizada A luta terrífica de um banhista ocasional com um fato de banho regulamentar Que fazia a Bernardina encavalitada no portão do cemitério a hora tão matutina? Erros de registo com e sem consequências A falta que um tacão faz e o potencial de equívocos associado à sua falta Hum! Cheira-me aqui a papel rasgado Um amigo de Mêda O saco da castidade Surpresa total em cama de hotel Estranhas ocorrências com caixões e cemitérios Idas à bruxa O ‘milagre’ da multiplicação de votos
8
CAPÍTULO I AS HISTÓRIAS MAIS ANTIGAS
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
Eduardo Lérias e o cavalo do Rei Eduardo VII O século XX era ainda uma criança. Estávamos em 1903. Portugal tivera um percalço sério nas suas relações externas, ficando exposto e a sangrar o orgulho nacional, devido ao Ultimatum inglês de 1890. A monarca rei nante ao tempo do Ultimatum, a celebrada Rainha Vitória, havia falecido em 1901. Seu filho, com 60 anos, subiu ao trono e deu uma nova orientação às relações externas: simpatia e abertura, em vez de severidade e canhoneiras, vindo a Lisboa sarar as feridas de 1890. As relações fami liares e amigas com o Rei D. Carlos facilitaram a tarefa e o evento assumiu enorme repercussão nacional. A visita ainda teve maior relevo pelo facto de ter sido a primeira do novo Rei, na altura ainda no apogeu do poder do maior império da História que fazia dele a personalidade mais importante a nível mundial. O seu reinado estendeu-se até 1910, pelo que pôde acompanhar o drama da Monarquia em Portugal, nos anos que se seguiram ao da sua visita. Para o enorme impacto da visita contribuiu não só o fundo dramático recente em que se inseriu, mas também o fausto do programa e a força dos meios de comunicação nacional sobre a mente das pessoas. O novo século seria entre muitas coisas o século da comunicação, sobre a qual assentou muitas vezes a propaganda. Daí que a curiosidade e a força do evento tenham impulsionado muitos portugueses a viajarem até Lisboa. Os caminhos de ferro, que o século XIX trouxe ao País, facilitavam o acesso à capital. Carruagens e locomotivas tiveram que ser atreladas aos combóios para satisfazer tanto interesse. Os atrasos tornaram-se inevitáveis. Tudo isto para referir o caso de uma figura bem conhecida em Soure – de seu nome Eduardo Lérias – que não resistiu ao apelo de ir a Lisboa ver tão elevada figura, para mais pertencente como ele ao «clube onomástico» dos Eduardos. Para tanto, o nosso Eduardo resolveu vender um cavalo de que era proprietário, arranjando assim o dinheiro necessário para a deslocação. Terá assistido, provavelmente no Terreiro do Paço, à chegada dos dois Reis e das muitas dezenas de embarcações que os acompanharam. Ouviu a salva de tiros à chegada ao Cais das Colunas. Tê-los-á ovacionado emocionadamente, no meio dos muitos milhares de
9
10
Portugueses provenientes de todo o País e não apenas de Lisboa. A multidão estendeu-se ao longo do percurso do Terreiro do Paço até ao Palácio das Necessidades. No final, Eduardo trouxe para Soure uma experiência única e inolvidável. Falou aos amigos com entusiasmo. Eles ouviram, ouviram e ele falou, falou. Quando descreveu o cavalo em que o Rei Eduardo VII ia montado, disse que era enorme. Um dos circunstantes não se conteve, porém, e disse-lhe: “Ó, Eduardo, o cavalo do Rei era tão grande que até comeu o teu!” O acontecimento foi tão importante que prolongou a memória dessa «saída» até aos nossos dias, pelo menos na memória de meu pai.
O Senhor, o rapaz, o burro e a bicicleta Uma das maiores alterações que o mundo em que nasci sofreu foi o valor dos terrenos agrícolas. Quando era criança percorri com o meu pai todos os pinhais, tanto os de Paleão, como os do Sobral. Era preciso que conhecesse a localização e as extremas, já que eu era o único filho e sobrinho, quer do lado de minha mãe, quer do lado de meu pai. O tema era ainda o da manutenção das propriedades, na linha dos avós que sempre haviam actuado pela continuidade patrimonial. Em nome desse princípio, meu pai adquiriu ao meu tio Fernando, meio-irmão de minha mãe, os pinhais que ele havia herdado de meu avô, para que pudesse assumir os compromissos dos estudos em Pombal e continuá-los em Coimbra, sempre com o princípio sagrado da manutenção das propriedades que haviam sido da família. Manter era, assim, a palavra de ordem. Os pinhais, de dimensão unitária relativamente pequena, eram vários. Ser «expropriado» de um quando foi da construção da fábrica de maceração do linho em Paleão não foi coisa agradável. Lembre-se que o flagelo dos fogos ainda não se fazia sentir, pelo que o risco era incom-
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
paravelmente menor do que é hoje. O mato era objecto de limpeza anual, servindo de cama para os caminhos, contra a lama que impedia a passagem fluente dos carros de bois. Em troca da oferta do mato, minha avó obtinha serviço de carro e de bois para os trabalhos agrícolas, sendo que a troca de serviços evitava o curso do dinheiro que não era abundante. Dentre todos os pinhais, o que meu pai preferia era o dos Vales, lá para os lados do Rolhão. Anualmente, no começo de Setembro, era hábito de família realizar nesse pinhal um piquenique, o qual representava a junção de duas parcelas, uma que havia sido herdada de meu bisavô Morgado e outra adquirida por meu pai a um vizinho. Os ares do pinhal eram salutares, escolhendo-se sempre um ponto alto para dispor tudo o que era necessário trazer-se. A extrema estava sempre impecavelmente delineada com uma valeta e sabia-se a quem pertencia cada pinheiro, sendo que algumas vezes havia um pinheiro que se descuidava e nascia mesmo em cima da linha divisória. Os marcos em pedra lá estavam a assinalar os pontos-chave e os pontos críticos onde a propriedade mudava de rumo. Havia ainda o prazer de ter pinheiros adultos, não os deixando porém, passar para a fase de declínio de valor em que o capão os atormentava. Em mais que um pinhal meu pai lá me ia dizendo: “Este pertence à D. Glória!”. É que os pinhais de tal senhora, mítica na minha imaginação, caracterizavam-se por serem muitos, extensos, pejados de mato e de pinheiros muito velhos. Sabia apenas que a proprietária era originária da Redinha, a meio caminho entre Soure e Pombal. Meu pai, contador de pequenas histórias carregadas de humor, referia a propósito dessa grande proprietária um costume delicioso de uma pessoa que julgo ter sido ou pai ou marido de D. Glória. Sendo Soure um centro administrativo entre a Serra do Sicó (por nós chamada das Degracias) e o Vale do Mondego, muitas ligações económicas e familiares se estabeleciam, não só com as pessoas de um lado, como do outro, existindo na minha família ramos originários tanto das Degracias como de Verride. Não é pois de admirar que as pessoas tivessem de se deslocar com frequência dessas origens até Soure. Já não seria tão comum o modo como se deslocava esse familiar chegado de D. Glória, pessoa de apelido Matos Mancelos. Fazia-o com três acompa
11
12
nhantes: um burro, um rapaz e uma bicicleta. O burro era para as subidas, a bicicleta para as descidas e terreno plano, ocupando-se o rapaz do burro na parte menos esforçada da viagem. Originalíssimo. A história terminava ainda com um detalhe. O Senhor tinha assuntos a tratar na Rua Dr. Evaristo de Carvalho (Pae) com o pai da Lucianita Ferrão, costureira lá de casa. Nesses negócios havia sempre que assinar documentos, sendo que se repetia a mesma pergunta em todos os actos de assinatura: “Ponho Matos, ou ponho Mancelos?” e depois lá se despedia e montava na inseparável bicicleta, deixando o burrico para o rapaz, enquanto não aparecia a primeira subida lá para os lados da quinta da Madalena.
Eh, Pá, até lavei a cara num lavatório em forma de viola! Posso testemunhar o ambiente de rivalidade que, em pequenas comunidades, se gera com qualquer “coisa que mexa à sua volta”. Soure hoje não se mede com Pombal, mas quando eu era miúdo pedia meças ao que na altura era uma vila semelhante e vizinha. Depreciativamente, os sourenses referiam-se aos pombalenses apelidando‑os de «cagões», por qualquer traço de vaidade que neles detectavam. Já nessa altura se poderia observar alguma actividade económica que indiciava a futura expansão económica e social do concelho vizinho. Lembro-me de um empresário de madeiras «Qualquer-coisa Henriques» que era apontado como muito rico, mais do que qualquer um que actuava ao tempo em Soure. Nada me puxava para Pombal, mas meu tio Fernando estudou no Colégio de lá, sendo contemporâneo do meu Professor de Teoria Geral do Direito, o malogrado Professor Mota Pinto. Pombal, para mim era o Largo do Cardal, as festas do Bodo e um clube que julgo chamar-se ou ter-se chamado Sporting de Pombal. Era também a passagem de caminho de ferro e a travessia para Lisboa, por vezes com tempo de espera à mistura.
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
Contava-se que a primeira variante externa teria sido decidida por Salazar, sujeito a uma espera por manobra de combóios. Para mim, foi também ocasião de um namorico de Outono, subsequente ao S. Mateus. Rivalidade forte, com o futebol por fundo, foi com Paleão. Meu pai que fora dirigente do Sourense ensinara-me em miúdo a assistir aos jogos de futebol na Douroana com uma bandeirinha à minha medida e de propósito feita para mim. Por força da sua profissão, participou na fundação e foi desde a primeira hora dirigente do Norte e Soure, clube com recursos financeiros incomparáveis aos do popular Sourense. Na minha cabeça eu era e devia continuar Sourense, o que me levava a ser uma carraça para o meu pai em dias de derby. Aí as paixões e a rivalidade atingiam o rubro. A coisa foi de tal ordem que os de Paleão/Norte e Soure receberam o pior dos epítetos da época, o de «satiagrás», os rebeldes que atacavam as forças portuguesas nas fronteiras de Goa, Damão e Diu. Mas quando toca a rivalidade ela pode gerar-se dentro do mesmo aglomerado urbano, como é o caso dos Bairros de Lisboa. Ora, Soure teve um tempo em que a rivalidade era interna, com foco na Baixa e na Alta da Vila. A emulação diz-se que era mais que muita. As iniciativas duplicavam-se. Em tempo de arraial popular, a Baixa promovia um e a Alta outro. O da Baixa era no Largo da Igreja, segundo a tradição oral que a mim chegou. Penso que chegou a manifestar-se em ranchos folclóricos diferentes. Percebe-se, pois na Baixa viviam as famílias tradicionais e mais ricas, mas a tendência evolutiva era inexorável: a Baixa iria agonizar e a Alta tinha o futuro à sua frente. Por isso, a rivalidade teve o seu tempo, tendo eu vivido a minha infância e juventude na fronteira final desse tempo. Do tempo das actividades folclóricas locais, é um episódio que se conta de um rancho de Soure, convidado a actuar em Braga, facto quase épico, tão longe era a cidade dos Arcebispos. Tudo correu bem e a recepção terá sido tão boa que, à chegada, a pintura feita da experiência foi empolgante. Um dos membros do Rancho disse para quem o quis ouvir: “Vejam lá que fomos tão bem recebidos, que até me deram um lavatório em forma de violão para lavar a cara!...”
13
14
O caso “Matias versus Lucas” Quantas pessoas haverá ainda em Soure que se lembrem do local de funcionamento do Tribunal antes da construção do Palácio da Justiça? Algumas, mas não a maioria dos habitantes. O novo edifício já está adquirido na mente dos sourenses e o passado foi enterrado. Outra questão pertinente: quem imaginaria hoje o funcionamento da Câmara, das Conservatórias e do Tribunal nos Paços do Conselho? A diferença de situações dá-nos uma aproximação ao grau de complexidade assumido pela sociedade, desde os tempos da mudança nos anos 60. Já noutro momento tive ocasião de referir o ambiente gerado à volta do local de implantação do Palácio da Justiça. A situação era simples: a velha Baixa lutou pela sua construção junto ao Castelo, para se defender do seu declínio, tendo o Dr. João Esteves sido um dos seus principais defensores. Dado o acesso que os defensores dessa localização tinham ao Engenheiro Delgado Santos, um dos donos da Fábrica de Paleão, em cujo escritório o meu pai trabalhava, tentaram que a sua influência pesasse na decisão. Meu pai manteve-se firme e o processo seguiu conforme a opção técnica mais aconselhável. Para que tal fosse conseguido, houve uma personalidade que nisso teve influência decisiva, a do Ministro da Justiça, Professor Antunes Varela. Mais do que uma vez meu pai teve que se deslocar a Lisboa para se avistar com o Ministro. Todos esses esforços resultaram e o edifício foi construído. Como curiosidade, refiro que este tipo de cons truções costumava empregar mão-de-obra prisional. Uns anos mais tarde, nas Caldas da Rainha dei emprego sistemático aos presos da cadeia local em obras de reparação no Hospital Termal, em linha aliás com a tradição da Rainha D. Leonor, que fundara o burgo com um conjunto de trinta homiziados a quem foi concedida a liberdade para o efeito. A história que conto de seguida é uma homenagem a meu pai, contador inveterado de pequenas histórias de humor local; julgo que era uma das que ele mais apreciava. A cena ter-se-á passado no velho Tribunal de Soure, numa audiência referente a um qualquer processo impossível de identificar hoje. O Juiz tinha como apelido Lucas, que em linguagem popular podia ser utilizado com o sentido de tolo, palerma
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
ou pacóvio. Por sua vez, a pessoa que estava a ser ouvida era de apelido Matias. Ora, o referido Juiz estava a abusar do nome Matias e a meter-se com a testemunha, ao bom estilo da época: Matias para a esquerda, Matias para a direita. Pisou e repisou. A testemunha ouviu, ouviu, até que passou por cima da contenção exigida ao falar com o Meritíssimo Juiz. “Olhe, Senhor Doutor Juiz, eu posso ser muita coisa, mas o que eu não sou é lucas! Chame-me o que quiser menos Lucas!”. Não sei se o Juiz era músico ou não, mas o certo é que teve de meter a viola no saco…
Ó César, eu amo a tua mulher A praça teve em tempos um banco em cada canto, na companhia de uma árvore. Hoje, como não tem habitantes, não precisa de bancos. Nas noites estivais eram especialmente úteis. Em geral, facilitavam a cavaqueira, promoviam o convívio. Para os miúdos, serviam para se sentarem nas costas com os pés no assento, ou para escorregarem pelas costas arredondadas. Dois amigos, em noite ternurenta de sinceridade, falavam sobre as relações familiares. Um deles tinha uma alcunha pesada, chamavam-lhe João Anarquista. O outro era um dos vizinhos da praça, de seu nome César. Naquela noite, César reconheceu o trabalho e o papel familiar da mulher. As relações entre os dois eram sabidamente ásperas. Sempre rugosas. Nas suas palavras, de coração aberto, a mulher era o sustentáculo do trabalho da família e da respectiva economia. Dissertou, dissertou, espraiando-se em elogios, especificações e reconhecimento. O outro ouviu, ouviu, ouviu... Em certo momento, já não podia mais, não se conteve e confidenciou, abrindo o coração pela boca: “Ó César, eu amo a tua mulher!” Mas não fosse haver más interpretações de tais palavras, securizou: “Mas descansa, homem, que é um amor platónico!”. O César, percebeu o sentido de tão nobre sentimento, que, afinal, mais não era do que a amizade que os unia.
15
56
CAPÍTULO IV COISAS DO ARCO DA VELHA
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
O marido que perdeu a mulher numa viagem de motorizada Pelas sete da manhã, era digno de se ver um dos meus dos vizinhos do Largo da Igreja, o Sr. Hermínio da Cunha Cantante, a aquecer a motorizada, dando algumas voltas à praça central, até conseguir pô-la a funcionar com o êxito pretendido. Para aquela pessoa, como para muitas outras, a motori zada foi uma etapa da evolução dos seus meios próprios de transporte. A sequência poderá ter sido: tracção animal, bicicleta, motorizada e auto móvel. Para quem possuía propriedades e queria acompanhar os trabalhos agrícolas programados, a melhoria dos transportes gerava comodidade e eficiência. Infelizmente, o processo geral de evolução levou à ruptura da agricultura tal como a conheci, sem que tenha sido possível criar uma alternativa evolutiva eficaz e modernizadora, a partir da realidade herdada do passado. Também o meu pai seguiu essa lógica evolutiva: da bicicleta passou ao Cucciolo, do Cucciolo a uma Sachs e desta a um automóvel Fiat. Isso permitiu-me experimentar também os modelos de locomoção: aprendi a andar numa bicicleta do meu primo José Maria da Costa Santos, numa tarde em que me decidi a tanto, correndo alguns riscos, como é natural. A bicicleta permitiu-me circular principalmente entre Soure, o Sobral e Paleão, em tempo de férias. A Sachs permitiu-me ir mais longe até à Figueira da Foz. Aquele meu vizinho que tinha dificuldades matinais para colocar a motorizada em funcionamento foi protagonista de um acontecimento assaz raro. Para se entender o que se passou é preciso recordar que as regras de transporte de pessoas eram menos exigentes que hoje. Alguém com licença e capacidade para conduzir ousava transportar quem quer que fosse na parte de trás do veículo, sem mais cuidados do que o de se escarranchar e agarrar-se, ponto final. Em certo dia o meu vizinho encavalitou-se na mota e, por detrás dele, sua mulher, a D. Emília. Seguiu-se o trabalho árduo de convencer o motor a pegar e depois partiu confiante para o destino escolhido, dois quilómetros mais adiante. Chegado ao objectivo, depara-se com um mistério: que era feito da mulher? Pela sua cabeça terão passado todos os receios, como é natural. Mas, afinal, o que é que tinha acontecido?
57
58
Logo no solavanco inicial, a senhora saltou e ficou no ponto de partida. Com o sentido do ouvido um tanto ou quanto embotado e o barulho do motor, nem deu pela perda de metade dos ocupantes do veículo. Sua mulher, como era do tipo «peso pluma», com facilidade foi débordée. Valha-nos S. Cristóvão! Quanto não terá sofrido, perscrutando o caminho na viagem de regresso...!
A luta terrífica de um banhista ocasional com um fato de banho regulamentar Ir a banhos à Figueira era habitual nas famílias com rendimentos suficientes em Soure. Desde há muito que esse hábito se enraizara. Os jornais da época noticiavam nos primeiros anos do século XX a saída e a chegada das famílias na época balnear. Para mim, a Figueira era a praia e o mar, naturalmente, com todo o potencial de diversão e de brincadeiras que me proporcionavam. O mar era frio sempre, e gelado por vezes. Ainda sinto esse frio terrível que nos acometia quando a água se limitava aos 14 graus de temperatura. Meu pai, por isso mesmo, demorava tempos infindos para entrar na água. Pela minha parte era mais afoito, entrando a maior parte das vezes de sopetão, ou seja de mergulho, desde que a eterna bandeira verde e o apito do banheiro que nos vigiava me permitissem a entrada na água. Para além do mar, eram as lojas de brinquedos, o trotoir das ruas próximas do Casino, os carrinhos de choque, os cisnes do jardim, a doca, a torre do relógio, a praça de touros, o Catitinhas, os vendedores de guardanapos de bolacha, as vendedoras de cestinhas de camarões cujo sabor evoluía na proporção inversa ao tamanho, a volta a Portugal em bicicleta seguida através do Primeiro de Janeiro, etc, etc. Muito especiais eram as corridas de pequenos garraios no Casino. A Figueira era todo esse mundo de agitação e de muito trabalho familiar para deslocar a logística de Soure para o Alto do Viso ou outro sítio onde a casa fosse alugada.
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
A Figueira da Foz da minha infância era algo de bem dife rente daquilo que é hoje. Entre os banhistas, os que mais se notavam eram as famílias espanholas com as suas empregadas impecavelmente fardadas de preto e de avental branco rendado. Para quem vivesse nas proximidades da fronteira portuguesa era mais acessível a Figueira do que qualquer praia espanhola, para mais com os meios de transporte e as estradas da época. Quem beneficiava naturalmente eram os hotéis da cidade. Na outra ponta social, avultavam as pessoas do mundo rural em que algumas do sexo feminino ousavam tomar banho em combinação, muitas vezes em grupo de mãos dadas, sob a vigilância, orientação e presença do banheiro. Existia toda uma estrutura de apoio com barracas onde as pessoas podiam deixar a roupa e vestirem os fatos de banho e onde até os fatos de banho podiam ser alugados. Na sociedade rígida e fechada do começo dos anos 50, a indumentária fato de banho masculino tinha que cobrir também o tronco. Prevaricar significava uma multa, o que queria dizer que a tendência era toda a gente – homens e mulheres – usar fatos de banho de uma peça com alças, cobrindo decorosamente o tronco. Claro que mais papistas que o Papa eram as banhistas que usavam uma peça caída em desuso, chamada combinação. Era vê-las de mão dada com os banheiros, quando o mar tinha laivos de ameaça. Ora houve um grupo de quatro amigos sourenses que resolveu ir à Figueira da Foz passar o belo de um domingo, juntando-se aos muitos banhistas de fim de semana. Não tendo fatos de banho, lá se submeteram ao inevitável aluguer dessa peça imprescindível junto de um dos banheiros encartados e com estabelecimento balnear. Os procedimentos de mudança de vestuário começaram todos ao mesmo tempo, mas para um deles as coisas complicaram-se, pois não se entendeu com a peça. Lutou, lutou. Meteu as pernas pelas alças, experimentou das formas mais diversas e a coisa não se deslindava. Já os outros regressavam do banho quando o amigo saiu da barraca com as duas pernas dentro do buraco de uma e o resto a abanar. Pobre criatura!
59
60
Que fazia a Bernardina encavalitada no portão do cemitério a hora tão matutina? Os raios da madrugada ainda não se faziam sentir. A caminho da fábrica de Paleão iam como de costume mais do que um grupo de operários, residentes em Soure. A vida de cada um determinava diferentes momentos de saída. Amigo não empatava amigo! A fábrica, para facilitar a vida das pessoas e atrair os seus potenciais operários, promovia o uso de bicicleta para vencer os poucos quilómetros que a cada um cabiam, consoante a sua origem. Recordo, do tempo das férias em casa de minha avó Maria do Carmo, o toque da sirene da fábrica, convocando às seis da manhã os operários para o início do trabalho. A estrada em macadame não facilitava a condução e a comodidade da viagem como hoje o faz o piso em alcatrão. Poucas pessoas se avistavam no caminho até Paleão. As últimas manifestações urbanas eram a casa do João António e o cemitério. Raríssimas eram então as habitações entre as duas povoações: a dos caseiros da quinta da Madalena, pouco antes do engenho, a de uma pessoa que, por desconhecimento do nome, designo de «mulher dos bilros», pela perícia em rendas tão sofisticadas, já depois do velho engenho, coberto de silveiras, a quinta de S. Pedro, a casa do Sr. Nogueira e, mais abaixo, as casas da borda do rio. A segurança que se vivia, no entanto, própria de um mundo em boa parte rural, não causava receios adicionais, aos que cada um de nós poderia carregar. Tempo houve em que as coisas não tinham sido assim: lá para o pinhal da Ega falava-se de um assaltante que se deitara na estrada obrigando uma figura conhecida de Soure a parar para o roubar. Verdadeiramente, o único receio colectivo que me lembro foi gerado por um criminoso da Carapinheira, de apelido Pessoa, durante o tempo em que andou a monte, até ser preso e levado para a Penitenciária em Coimbra. Nada disso, porém, preocuparia os viajantes da noite na época. Aconteceu, todavia, o inesperado naquela noite. Um dos grupos de operários foi surpreendido por um grito lancinante vindo do lado do cemitério. Imagine-se o susto! Uma alma penada? Quem é que gritava ali por socorro? Vendo melhor, havia um vulto no topo do portão de ferro do cemitério. Pior ainda, dado o carácter estranho de tal visão. O tom de aflição posto na voz de quem gritava, impediu a imediata identificação da companheira habitual de viagem e de trabalho. A aproximação permitiu,
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
mesmo assim, ir clarificando a situação. Afinal era alguém conhecido que se encontrava em apuros. Para surpresa de todos, foram dar com a Bernardina alcandorada lá no topo do portão gradeado. Às cinco da madrugada, em tão inusitada e inimaginável situação? A presença dos colegas lá a convenceu a descer de local tão estranho, tão impróprio para quem imagine a realidade a partir de circunstâncias normais. Quase sem voz, explicou que fugira dos toiros do Dr. Freitas, escapulidos da Quinta da Madalena. Imagine-se a aflição que a atingiu e a única alternativa que encontrou para se defender: abandonar a bicicleta de qualquer maneira e trepar como um macaco pelo gradeamento do portão da última morada dos sourenses. Pedro Homem de Melo, autor do Povo que lavas no rio cantado por Amália Rodrigues, especialista em folclore e com programa na RTP de outros tempos, disse um dia nesse programa que havia seme lhanças entre o folclore da região e o do Ribatejo. Pertenceriam ao mesmo género de folclore. Mas as semelhanças, a existirem, terão de ficar pelo folclore, pois a geografia e a estrutura fundiária de Soure nunca favoreceram a criação de gado bravo. Fora excepção, essa dos toiros na Madalena. O pouco domínio do manejo de tais animais talvez tenha ajudado a criar condições para a fuga que ia vitimando a Bernardina. Verdade, verdadinha é que os toiros desapareceram de Soure para sempre, sem que se saiba ao certo se foi ou não a Bernardina a afugentá-los de vez.
Erros de registo com e sem consequências Em sistemas com muita intervenção humana, baseados no papel e na escrita manual e, principalmente, com mais do que um nível de intervenção, os erros são quase inevitáveis. A agravar tudo isto aparecem os problemas de comunicação, principal fonte do erro: ou palavras por alguns desco nhecidas ou conceitos diferentes para as mesmas palavras ou erros de transcrição. É um pouco disso tudo que aparece na raiz de dois dos três
61
62
casos que conheci ou de que ouvi falar, e também dois deles com consequências individuais importantes. Há um erro antigo que pode considerar-se clássico, pois de ocorrências semelhantes ouvi falar relativamente a outras terras que não Soure: um pai que vai registar uma filha, a quem o funcionário do Registo Civil pergunta que nome lhe quer pôr, ao que ele responde “prante-lhe Ana”. A partir daí a rapariga fica a chamar-se Prantelhana. O verbo prantar, de uso popular, equivale ao verbo pôr e era de uso comum. Em Paleão conheci uma mulher com esse nome. Ficou para sempre Prantelhana e assim era conhecida e designada por toda a gente. Mais complicado foi o caso de um colega meu no 1º ano do Colégio em Soure a quem os pais haviam registado com o sexo femi nino, por má interpretação de uma qualquer malformação nos órgãos sexuais. O rapaz, ao que se dizia, vestiu saias até tarde, quando as ambiguidades começaram a aparecer umas atrás das outras. Era como se estivesse constituído numa espécie de Cavalo de Tróia no meio feminino da mesma idade lá na terra. Terá havido um momento em que a ambiguidade se desfez: provavelmente algum namorado que descobriu a verdade, sem margem para dúvidas e o rapaz verdadeiro surgiu de calças e abandonou o engano das saias. O terceiro caso que chegou ao meu conhecimento dizia respeito a um erro no desempenho da função de registo, induzido pela escolha do nome feita pelo progenitor do rapaz. Foi meu pai quem despoletou a descoberta na Fábrica de Paleão, onde o pai de Dolores trabalhava. Devido ao abono de família, um dia aconteceu questionar o pai do dito rapaz, se Dolores era nome de filha ou de filho. Ele esclareceu que era filho, sem qualquer hesitação. Mais explicou que tinha lido um romance e que gostara tanto do nome que decidira pô-lo ao filho, nascido por essa altura. Levado pela intuição, meu pai aconselhou-o a esclarecer, pelo sim pelo não, se no Registo Civil o rapaz estaria ou não registado com o sexo masculino. Meu dito, meu feito, o rapaz, para efeitos oficiais, era uma rapariga. Felizmente, não tinha havido até à data nenhuma consequência sobre a vida do jovem cidadão.
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
63
Naquele tempo o registo podia ser feito na Junta de Fre guesia e, entre a Junta local e o Registo em Soure dera-se a troca, provavelmente um erro de transcrição induzido pelo carácter feminino de Dolores. Ao verificar o erro, o Dr. Reis, na época Conservador do Registo Civil em Soure, resolve o problema de forma simples e directa, anotando à margem da folha de registo da pessoa em causa as palavras: “É rapaz”. Assim, foi posto um ponto final em tão delicada questão.
A falta que um tacão faz e o potencial de equívocos associado à sua falta Elísio de seu nome, Elisinho para os amigos. Pode considerar-se meu vizi nho de outros tempos, ali a dois passos do Largo da Igreja, no final da pequeníssima mas larga Rua da Vitória, fazendo a ligação com o Largo do Castelo. Agarrada à sua, com frente para este Largo ficava a casa das Pitadas, com uma escadaria de pedra, larga e em redondo, dando acesso à porta de entrada e a um varandim frontal. Hoje, no local das casas que foram do Elísio e das Pitadas estão implantadas as piscinas. O Elísio era inventivo e sensível à adopção precoce de inovações. Por isso, não tardou a adquirir uma Vespa quando a marca apareceu no mercado, rivalizando com as Lambretas. Trabalhando no escritório da Fábrica de Paleão, a passagem da bicicleta para a Vespa significava um real progresso: mais rápida, mais segura, com melhores condições de protecção para as pernas. Isso era muito importante para o nosso personagem, amante como era das pequenas comodidades e prazeres da vida. Era colega de meu pai, ainda parente afastado, e sua mu lher era próxima de minha mãe e pessoa confiável, amiga de seus amigos. Seus pais tinham vivido no largo da Igreja, salvo erro na casa que foi do Senhor João Madeira, paredes-meias com a de meu avô. As pessoas da terra encontraram na sua estatura relativamente baixa e no carácter anafado do seu perfil, semelhanças com as
64
estatuetas do Menino Jesus dos presépios de Igreja, dadas a beijar por altura do Natal. Por isso, o apelidaram de «Menino Jesus», imaginando-o deitado em apropriadas palhinhas. As suas relações com a Vespa nem sempre foram fáceis. Era uma máquina potente e a sua estatura não ajudava o relacionamento. Os colegas de trabalho, entre os quais o meu pai, estavam atentos ao que lhe acontecia, como é natural. Mesmo quando passava tempos sem fim a tentar pôr a Vespa a funcionar. O pedal obrigava a um esforço desmedido para a sua estatura e a muita repetição agravava enormemente a situação, até que alguém lhe lembrava: “Ó, Elísio, vê lá se ela tem gasolina!”. Tanto esforço desperdiçado! Um dia foi vítima de um acidente, lá para os lados de Condeixa, sendo transportado para o hospital local. Recuperado do susto, com uma ou outra escoriação, deu consigo a andar no corredor com uma sensação estranha: “Então não é que fiquei como uma perna mais curta. Oh! Oh!”. Invadido pela preocupação, tristeza e dor continuou a habituar‑se à nova situação de conviver com uma perna mais curta que a outra. Eis senão quando, irrompe um velho amigo lá da terra, o José Alcobaça, e o interpela: “Ó, Elísio, este tacão é teu?”. E foi assim que a sensação de perda física desapareceu na cabeça preocupada do Elísio, cuja perna, com um simples tacão, voltou à sua dimensão inicial, graças ao cuidado de um amigo de velha data!
Hum! Cheira-me aqui a papel rasgado Das janelas da casa de meus pais podia assistir a representações várias. O largo era propício e tinha dimensão e tradição para festas populares. O senhor António Marques permitiu-me obter uma cópia de uma fotografia que poderá ser a mais antiga da praça, apinhada com populares masculinos vestidos, diria, à moda do Ribatejo e uma armação festiva a meio, indiciando uma qualquer festa e feira tradicional, quiçá a de S. Mateus.
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
Essa fotografia mostra a casa de meus pais ainda com janelas de guilhotina, telha de canudo e janelas de águas furtadas. Com alguma frequência, em época de festejos podia divertir-me com os robertos, no que, em linguagem da Rádio Comercial, poderíamos hoje apelidar do mais pequeno palco do mundo. “Ah! João, João!”. E seguia-se o som de pauladas na cabeça do João e por aí adiante. No mesmo Largo assisti por altura da Páscoa, uma única vez, a uma representação popular por pessoas para mim desconhecidas, armadas «com cabeças de bacalhau», ao que se dizia provenientes de Vila Nova de Anços, representando o enterro do fiel amigo e o fim dos jejuns da Quaresma. Sem serem actividades de espectáculo, muito me divertiam também os vendedores de feira. Todas as segundas-feiras lá armavam eles o seu próprio cenário de venda, de altifalante em punho, para convencerem as pessoas a comprar, desde a roupa à pomada jibóia, capaz de curar um número infindo de maleitas. Esses verdadeiros actores, munidos da psicologia específica de convencimento do povo português esfalfavam-se para vender o produto: “Não compra por 100, nem por 50, nem por 20. Compra por 5 e ainda leva outro de oferta”, era mais ou menos este o estilo. Não se pode dizer que Soure fervilhasse de diversões, mas que se divertia era um facto. É claro que tudo culminava na Feira de S. Mateus, com os carrinhos de choque, as tendas no Largo do Castelo, os feirantes no «meu» Largo, dormindo no próprio local, e os espectáculos no Largo do Município à noite, rezando-se a S. Mateus para que nos desse bom tempo para que as Festas fossem um êxito. No meu tempo de Soure não me recordo que tenha sido feito teatro, mas na geração anterior havia memórias de teatro local. A D. Albertina, tia do Carlos Marouvo, referia uma peça sobre a Inês de Castro de um grupo também de Vila Nova, com uso de linguagem rústica, em que um actor perguntava: “Que é dela a Inês?”, ao que outro respondia: “Está a estrabuchar no bosque com uma catchaporrada que lhe deu Patcheco!”. Meu pai também terá participado numa peça de teatro organizada localmente, em que havia uma cena onde um actor tinha que queimar uma carta, entrando pouco depois outro que dizia alto e bom
65
66
som: “Cheira-me aqui a papel queimado!”. Acontece porém, que o primeiro se enganou, rasgando o papel em vez de o queimar. O segundo, dentro do espírito adaptativo dos portugueses, e perante o facto de não poder rebobinar a cena para a corrigir, entra em palco e diz: “Hum! Cheira-me aqui a papel rasgado!”. Dir-se-ia uma cena de alargamento do âmbito do sentido do olfacto.
Um amigo de Mêda Pode recear-se hoje que Mêda, entretanto elevada a cidade, seguindo as pisadas de Pinhel (que o fora antes da era da multiplicação das cidades em Portugal), esteja em vias de extinção. Em 15 anos, perdeu um quinto da população residente. A situação fronteiriça não ajuda, aliada a condições sociais e económicas que também não. A agricultura tradicional condena-a a um minguamento contínuo, sabe-se lá com que destino final. Tudo apela a uma centrifugação demográfica: para Espanha ali ao lado, para a Guarda ou Viseu, como pólos regionais mais apelativos e depois para o litoral português, com Lisboa à cabeça. Os seus vizinhos, uns mais beirões, outros mais durien ses, têm dado nas vistas: Vila Nova de Foz Côa, pela barragem quase construída, mandada parar por valorização de um património único de gravuras rupestres. Trancoso, pela recordação da fortaleza militar fronteiriça que foi, e por esse facto único de ter recebido em território português a Princesa de Aragão, que viria a ficar para a história de Portugal e do Mundo como Rainha Santa. Ali se terão realizado as cerimónias nupciais com o Rei D. Dinis, num dia do verão de 1282. E ainda pelo Bandarra, esse sapateiro e poeta visionário que anunciou um Império para Portugal, há mais três séculos atrás. Mêda, quando fala de si, fala de castelos, do castelo de Marialva e ainda do de Longroiva. Os nomes das suas dezasseis freguesias
HISTÓRIAS A AMARELO E PRETO
JORGE VARANDA
ressoam às origens de Portugal: Aveloso, Barreira, Carvalhal, Casteição, Coriscada, Fontelonga, Longroiva, Marialva, Mêda, Outeiro de Gatos, Paipenela, Poço do Canto, Prova, Rabaçal, Ranhados e Valflor. Nada faria imaginar que esta terra desse origem a uma amizade especial com um sourense por adopção – o Sr. Hermínio da Cunha Cantante – dedicado ao comércio local, actividade que pode aproximar pessoas de origens geográficas bem diversas, como aconteceu na situação. O comércio, de facto, os relacionou, trocaram correspondência, contactaram ocasionalmente, com a distância e as dificuldades de comunicação a impedirem uma maior proximidade. Até aí tudo bem. Isso é a consequência habitual das trocas e dos interesses comuns de quem vende e de quem compra para vender mais tarde, um quase na fronteira e o outro não muito longe do mar, em latitudes não muito distantes. O carácter especial deste amigo estava no nome e na conjugação de factores para o resultado final. Imagine-se a coincidência de uma invulgaridade com o nome da terra onde se nasceu: chamava-se Penico e era de Mêda, o amigo desse sourense dedicado. Era um Penico, de Mêda.
A propósito de tal palavra, vejamos uma conversa a que a mesma pode dar origem, entre um brasileiro e um comerciante argentino: Um brasileiro recém-chegado a Buenos Aires entra numa loja e diz: – Me dá um penico, por favor – Penico? Que es un penico? pergunta o argentino. – É aquilo lá, ó cara, diz o brasileiro, apontando para o objecto. – Ah... Este no es un penico, nosotros lle llamamos cá de brasileiro! Que tamaño de brasileiro usted quer? – Me vê aí um em que caibam uns cinco argentinos!
67