Senhor médico, nosso alferes

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Senhor médico, nosso alferes

Em 10 quadros, José Pratas conta-nos várias histórias reais. São muitos dramas, desesperos, sacanices, ilusões, privações, a doença a atormentar, a falta de tudo, muitos companheiros mortos, milhares de famílias infelizes, a dor por fora e por dentro, a esperança tantas vezes a fugir, tantas… mas também o humor, uma ironia certeira, brincadeiras entre homens que quase ainda não tinham tido tempo de viver mas comiam e dormiam com a morte sempre a espreitar. “Parece que não combina bem, médico e militar”. José Pratas conta-nos como foi viver essa contradição nos termos. Na Guiné do início dos anos setenta.

JOSÉ PRATAS

Senhor médico, nosso alferes

Aqui do que se trata não é de tácticas militares. José Pratas é médico e, quando ainda recém-formado, foi obrigado a fazer medicina no meio de uma guerra; dois anos de inferno. Como foi difícil ser médico! Um tempo passando tão lento que custava ver o calendário mudar de página. E tanta era a vontade de sair dali!

Nascido em Lisboa a 13 de Agosto de 1943. Curso secundário no Liceu Camões. Licenciado em Medicina na Faculdade de Medicina de Lisboa em 1969. Serviço militar na Guiné, 1971-1973. Especialista em Gastrenterologia. Chefe de Serviço da Carreira Hospitalar, Hospitais Civis de Lisboa. Director da Unidade de Gastrenterologia no Hospital de São José (1993-2007).

JOSÉ PRATAS

Curso Oficiais Milicianos (COM) na Escola Prática de Infantaria (EPI), Mafra, em 1971. Mobilizado para a Guiné (1971-1973). Alferes Militar Médico na região de Gabu e no Chão Manjaco. Adjunto do Delegado de Saúde de Nova Lamego (Gabu-Sara) e de Teixeira Pinto (Canchungo). Passagem à disponibilidade em Novembro de 1973.

Guiné, os anos da guerra

Guiné, os anos da guerra

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9 789898 614216

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M570930E



Cabelos de arame, grisalhos, as carnes esgalgadas pelas trabuzanas da vida, a pele amarrotada pela escravidão dos anos, a velha Olívia encontrava forças para trazer de volta, numa trouxa à cabeça, a roupa lavada em troca de alguns “pesos”, tartamudeando entre os dentes que lhe faltavam e as gengivas mirradas, – Senhor médico, nosso alferes. Roupa!


© Edição

By the Book, Edições Especiais título

Senhor médico, nosso alferes – Guiné, os anos da guerra © Texto

José Pratas fotografia

João Trindade tratamento de imagem

Maria João de Moraes Palmeiro Design

Forma, design: Margarida Oliveira, Veronique Pipa Coordenação Editorial e Produção

Ana de Albuquerque, Maria João de Paiva Brandão Impressão e acabamento

Real Base ISBN

978-989-8614-21-6 depósito legal

381665/14 data de edição

Outubro de 2014

BY THE

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Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. +351 213 610 997 www.bythebook.pt


Prefácio Nota prévia 15

‘Não sei se há guerras justas ou injustas, mas todas são feias.’

31

‘Amigar a circunstância de militar com a condição de médico é, por isso, harmonicamente imperfeito.’

41

‘Improvisavam-se terapêuticas muitas vezes destituídas de consistência científica’

51

‘Acredito que entre os combatentes subjazia uma ténue confiança na presença física de um médico.’

73

‘Maldita sorte ser médico.’

83

‘Talvez ninguém melhor que os médicos pudesse entender o embaraço de alguns desses capelães’

99

‘A Tropa invadiu a casa’

113

‘A casa de Mário Soares era uma placa giratória de gente que ia e que vinha…’

125

‘Os dias escorregavam apenas devagar e o fastio moído e flácido no intervalo dos combates amarrava um nó nas gargantas.’

137

‘Remoía a desilusão de que, em quase nada, afinal, havia contribuído para mudar o rumo da guerra que, depois de mim, outros ainda tiveram de continuar a penar.’


Vista aérea de um dos rios do território; vegetação intensa invadida por inúmeros braços de água


Nota prévia

Este é um auxiliar da memória colectiva, para que um dia não se extinga sem deixar rasto a lembrança daqueles que experimentaram as penas da “Guerra do Ultramar”, especialmente dos que mais sofreram, no corpo ou na alma, a dor que as guerras sempre trazem. Militares e suas famílias que o tempo não pode fazer esquecer, porque são merecedores de mais este breve contributo ao recordar o seu esforço e generosidade que a Pátria não lhes reconheceu. É a honra de uma geração que não pode ser ignorada, e é por ela que se exaltam alguns dos seus feitos perdidos no anonimato da história. A experiência dos militares portugueses na guerra de África foi um exemplo da sua vocação multifacetada para que, armados de G3, servissem simultaneamente as populações no apoio sanitário, escolaridade elementar, saneamento básico, ajuda ao transporte, em que estiveram envolvidos meios do exército, da marinha e da força aérea. Na Guiné, embora incorporada no projecto de fidelização dos naturais aos desígnios político-estratégicos do governador, a “Saúde Militar” terá prestado os mais relevantes serviços à comunidade civil, numa demonstração da capacidade organizativa e esforço acrescentado em tempo de conflito armado. Apesar dos alegados privilégios de que se diz terem beneficiado os médicos durante a guerra, é das suas adversidades e do seu testemunho no campo de batalha que também se ocupa este espólio de alguns factos ocorridos na Guiné entre 1971 e 1973. Que sirva de incentivo à capacidade de luta, resistência e sacrifício que se adivinham tão necessários para o futuro daqueles que nos sucederem. 13


Homem Grande, da etnia Biafada, do sul da GuinĂŠ


‘Não sei se há guerras justas ou injustas, mas todas são feias.’

Várias décadas depois, a guerra na Guiné poderá não estar totalmente pacificada no labirinto das minhas memórias. É como se a paz ainda não tivesse definitivamente acontecido e permanecessem dentro de mim a dúvida, a desconfiança e a incerteza, próprias de um combatente no campo de batalha. A mesma dúvida, a mesma desconfiança, a mesma incerteza que, com prudência e sotaque do Norte, o instrutor recomendava em Mafra aos seus instruendos quando os prevenia que um militar em combate, ao progredir no terreno de uma posição para outra, deveria sempre interrogar-se – Por onde vou…? Quando vou…? Como vou…? advertências que, nas teias da vida, fizeram sentido no meu subconsciente; fantasmas que me acordam ainda em sobressalto de vez em quando. Na altura, porém, custou-me o olhar admoestador do senhor oficial quando, em sussurro e cá para comigo, acrescentei às suas recomendações – …e se vou… E ele ouviu! Um dia, há já alguns anos, despertei em Lisboa de uma anestesia, retomando a consciência em cima de uma maca, no meio de um turbilhão de razões desfocadas e juízos confusos. À cabeceira estava o meu colega e amigo João Trindade, que estivera comigo na Guiné e que fora, porventura, a última pessoa de quem me despedi quando de lá regressei, uns dias antes dele, no fim das nossas comissões, – Mas então a guerra ainda não acabou…? Ainda estamos em Bissau…? até que os últimos efeitos de Propofol 1 se es1. Fármaco anestésico fumaram no tecto ocre desvanecido da sala injectável. de recobro. 15


Remoí, ao longo dos anos, convicções, saudades, medos, angústias e raivas vividas, que, apesar de tudo, fui capaz de gerir razoavelmente durante mais de quatro décadas sem que perturbassem sequer o rumo da minha vida, mas que poderão ter interferido nalguns dos meus comportamentos ainda que eu não me tenha disso apercebido. Tive com certeza uma boa sorte que me protegeu nos momentos de maior perigo. Regressei sem danos físicos aparentes, apesar da exposição aos riscos que a permanência em teatro de guerra comportava. Felizmente, e mau grado as consequências trágicas que vitimaram alguns dos que me acompanharam, sobrevivi quase incólume. Não creio sofrer de “stresse pós-traumático”, porventura sobrediagnosticado em alguns casos e subvalorizado noutros, como defendem alguns dos que se interessam por esta área dos comportamentos. Cerca de dois anos em quartéis da quadrícula 2 mal defendidos, por estradas e 2. Instalações onde sedeavam unidades milipicadas inóspitas, cruzando os ares em traitares, em vários locais çoeiras aeronaves, voando entre o céu distanque, no conjunto, teoricamente permitiam te e o inferno na terra, dos Bijagós a Bolama, assegurar que as operade Bafatá ao Pelundo, de Pirada ao Cacheu, ções militares cobriam não chegaram para me causar dano físico. todo o território. E, apesar do desconforto, das privações, da solidão e do perigo, fui seguramente um afortunado. O mesmo não poderão dizer hoje mais de quinze milhares de homens, com graves sequelas físicas e transtornos morais permanentes contraídos no “Ultramar”, a maioria dos quais desprotegidos da pátria que deles se serviu e depois desamparou. São os mutilados, os cegos, os alcoólicos, os portadores de doenças psiquiátricas correlacionadas, os que deixaram de rir. Um dia destes, no hospital em Lisboa, antes de começar a endoscopia – O senhor precisa de ajuda para passar da cadeira de rodas para a marquesa? – Ó senhor doutor, se eu não fosse capaz sozinho ao fim de quarenta anos, estava bem fodido! Guiné, 1968, uma mina, soldado condutor, estrada Mansoa-Mansabá, sem duas pernas; por aí fora! 16


– E o Estado português? – Uma miséria, já se sabe. Até tenho vergonha! – Então abra lá a boca e engula agora este aparelho… É perante estes e aqueles outros que pereceram, antes de terem tido tempo para viver, que me curvo com infinito respeito pelo seu sacrifício, pela sua dor e pela mágoa das suas famílias. São merecedores da admiração de um povo inteiro e credores de uma infinita gratidão. Está ainda por acautelar a justiça e a honra devidas aos ex-combatentes do ultramar. Ridículas pensões de invalidez, negligente apoio de reinserção social aos incapacitados, abandono dos restos mortais não repatriados do chão africano, iníquas e enviesadas contagens de tempo de serviço para efeito de cálculo de pensões de reforma, nem um papel na mão para mostrar aos netos que deles se orgulhassem. O melhor será mesmo esquecer, enquanto as suas vidas já se apagam e a gente envelhece. A memória da nação ressuscita, porém, timidamente, como se saísse do coma, à medida que nas bancas dos livreiros, nos últimos anos, felizmente surgem os relatos que começam a dar voz aos bravos e recuperam a dignidade dos esquecidos. São documentos vivos duma geração que se vai silenciando sem ter desabafado antes de morrer. O notável trabalho registado em DVD por Joaquim Furtado, no qual pela primeira vez se revêem os antigos combatentes como nunca antes acontecera em televisão, ilustra, com a autenticidade das imagens, a rudeza dos depoimentos e a imparcialidade da narrativa, “a guerra” que combatemos em África há cinquenta anos. Diante do memorial em Belém ressoa também todos os dias, do fundo do tempo, perante quem os visita, o coro dos finados que, ao som do toque de clarins, gritam solenemente em uníssono – Presente! para que os não esqueçamos. É o dever de os recordar que obriga a prestar-lhes esta silenciosa homenagem que contribua para perpetuar a sua honra e distinguir o seu sacrifício. 17


Guardo de todos em geral, os que de uma maneira ou de outra serviram nas forças armadas em terras de África, uma admiração genuína, mas detenho-me em especial perante os soldados portugueses, porque em todas as circunstâncias sempre foram os mais castigados pelos sacrifícios exigidos naquela época. Nos navios de transporte de tropas eram embarcados como gado nas catacumbas dos porões onde viajavam como sardinha enlatada em molho de vómito, mal iluminados, sufocados pela humidade pegajosa dos trópicos que se confundia com o suor do rosto, a disfarçar uma lágrima teimosa de saudade dos braços da terra que ficou longe. 3. Espaço fora da urbe. No mato 3, comiam do rancho em refeitórios improvisados, sentados em bancos de tábua corrida ou numa pedra tosca e bruta, rapando o fundo da marmita com direito a uma refeição quente; bem melhor do que a ração de combate nas missões fora dos quartéis. Dormiam como toupeiras em abrigos subterrâneos, insalubres e tórridos, com acesso às valas ou trincheiras muitas vezes alagadas pelas tormentas desaguadas na época das chuvas. Menos mau, ainda assim, do que ao relento da noite nas orlas das matas, assediados por mosquitos e rastejantes, olhos e ouvidos alerta, mortos de cansaço e resignação. Pagos por um quinto do salário do oficial subalterno que os comandava, endividavam-se todos os dias para espumar umas cervejas no bar e pagar o sabão que desenxovalhava o camuflado. Com as remessas das famílias de maiores posses, só alguns tinham o privilégio de vir de férias à “metrópole”. Os mais pobres permaneciam todo o 4. Período durante o qual se cumpria o sertempo da comissão 4 nas unidades do CTIG 5, viço militar obrigatório gozando, quando muito, alguns dias de licennuma das colónias. 5. Comando Territorial ça no centro de férias e recuperação de BolaIndependente da Guiné. ma, em modestíssimas casernas, autorizados a trajar à civil, dispensados durante escassas semanas de algumas obrigações militares. Tornaram-se adultos na tropa, transplantados das suas aldeias, e a guerra despertou neles uma solidariedade ímpar que só aqueles 18


que por lá andaram terão conhecido. Dividiam um pedaço de pão por dois ou três, que ainda ficavam com fome. Partilhavam o resto da água morna e racionada dos cantis com o companheiro ferido, tombado na berma do trilho. – Ó Ezequiel, conta-lhes lá como foi! Mais de vinte anos depois, o ex-radiotelegrafista hesita por modéstia. – Ó senhor doutor, então aquilo foi assim… A meio da tarde, estávamos de abalada de regresso ao quartel, quando fomos atacados e só à noite o fogo dos turras 6 6. Guerrilheiros do PAIGC. abrandou! Escuro de breu na mata cerrada. Sabe como é… Todos escaramalhados, não sabíamos uns dos outros. Dei por mim ao lado de um rapaz de lá perto do meu concelho. Os pais dele eram de Olhão. Estava incapaz de andar e gemia as dores de uma perna ensanguentada. Eu carregava a arroba de um rádio às costas, a antena roçagando os ramos das árvores, arma, a minha e a do outro, em bandoleira, cartucheira e cantil à cinta, trouxe-o aos ombros. Sei lá o que andámos em direcção ao rio… Até que, ao amanhecer, consegui contacto com o helicanhão, que nos recuperou na clareira da Bolanha. Prémio Governador: uma viagem paga na TAP, meia dúzia de dias de férias na metrópole! – Nada mau! ria-se para mim, a dentuça arreganhada sob a farta bigodaça, os olhinhos já a luzir de alvoroço e a boca a secar-se, – Mas trouxeste o homem! eu a encorajá-lo. – Vivo ou morto, nunca o deixaria, tinha de vir mais ele o beiço a tremer e a voz a atraiçoá-lo, quase se esquecia de respirar. Eram assim. Gente crescida, com pouco mais de vinte anos, que enquanto lá andava revivia as memórias de infância com os da mesma aldeia e eu, um urbano pasmado, deambulava pelos atalhos rurais das histórias que contavam nas noitadas de vigília, junto ao arame, debaixo de um oleado que nos separava da chuva.

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