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A Menina Bossa Nova
João Gilberto é a Bossa Nova. A Bossa Nova é João Gilberto. São conceitos que se confundem. A batida tímida de samba ganhou o mundo com João e Tom Jobim. O que poucos sabemos é que se popularizou no exterior na voz de Astrud Gilberto.
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De saída, pra cantar Bossa Nova é bom ser “não cantor”. Nos anos 1950 a tecnologia de microfones de estúdio aumentou drasticamente a qualidade de captação do som, e os vozeirões do passado tornaram-se obsoletos. Adeus aos plenos pulmões e aos vibratos operísticos. Sai bolero e samba- canção, entra Bossa Nova.
Escute Vicente Celestino cantando “Matei” e depois Astrud Gilberto cantando “Girl from Ipanema”. (Tem no Youtube.) Deu pra entender? A genialidade do Brasil transformada em ícone e reverenciada por todo planeta. A Terra cai de joelhos. Uma onda arrasadora de brasilidade se esparramando pra todo lado com cafunés intraduzíveis. Algo único e inesperado como nunca antes aconteceu com algo produzido por aqui. Vai ser patriota assim no raio que o parta.
João Gilberto, a Bossa Nova encarnada, obsessivo pelo domínio da técnica, ensaiava horas o mesmo acorde ao violão, enlouquecendo os vizinhos. Não arredava enquanto não alcançava a sonoridade perfeita. Forjou a “voz pequena” do estilo, em intermináveis repetições em busca da transcendência.
Vendo Astrud nos vídeos do Youtube dá pra entender por que João se apaixonou por aquela pequena, a mocinha tímida da Zona Sul do Rio, que a muito custo soltava a voz nas festas da rapaziada, incentivada pela amiga Nara Leão. Não queria ser cantora, tinha pavor do palco. Era a tradução da Bossa Nova em forma de mulher. João ficou fascinado, namoraram, casaram-se.
O estilo brasileiro começou a encantar os gringos, que chamaram lá pra Nova Iorque os ícones do ritmo. Principalmente João e Tom Jobim, que embarcaram para shows em 1962, e logo depois para a gravação de um disco de jazz com o saxofonista Stan Getz. O álbum Getz/Gilberto (1963) é uma obra prima que deve ser revisitado como os livros sagrados. Em NY Astrud ficava por ali ao lado de João, encabulada e constrangida, fazia as vezes de intérprete porque falava bem inglês, e acabou gravando a voz das canções cantadas naquela língua, a princípio só pra servir de referência. Ninguém contava com a enormidade de sua pequena voz nas gravações. Astrud era a personificação da Bossa, por causa da voz pequenina e do jeitinho maroto. Getz ficou amarrado no timbre e o LP é lançado com duas canções cantadas por ela. Getz e João não se deram muito bem, eram almas musicais diferentes. No ano seguinte João e Astrud se separaram. Será que foi por isso?
João voltou ao Brasil pra continuar sua carreira polêmica por aqui, cada vez mais obcecado com a sonoridade perfeita. Astrud ficou por lá, alçada à categoria de diva, chegando a gravar uns 20 álbuns de Bossa Nova e Jazz fora do Brasil. Lá fora todo mundo sabe quem é Astrud Gilberto. Por aqui nós, jecas culturais, não a conhecemos. Tem gente que nem sabe quem é João Gilberto. Acreditem.
Astrud nos deixou neste mês de junho de 2023. Seu corpo faleceu, mas sua obra está gravada para ser ressuscitada por nossos ouvidos. Vamos dar uma pausa nas playlists de sertanejo e escutar um pouco de Astrud Gilberto?
* Ator, diretor e escritor