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Leonardo Medeiros _Jornal360_ed213_out23
Confissões em Livre Associação 1
*Leonardo Medeiros
Meu pai era um profissional liberal. Independente e orgulhoso. Vivia em altos e baixos. Tinha épocas que era muito rico e esbanjava até o último centavo, tinha épocas que ficava pobre, vivia de empréstimos no banco, ficava irritadíssimo até com a queda de um lenço. Com ele aprendi a ser rico, e compreendi o que é ser pobre. Com uns 70 anos, papai levou um tombo na rua, bateu a cabeça e ficou meio abobado por alguns meses. Voltou a plenitude mental, mas o período de afastamento e distração cerebral serviram para que perdesse todos os clientes. Morreu sem um tostão. Não tinha dinheiro pra ir comprar pão na padaria. Reviu o orgulho, e veio a falecer um bom e compreensivo velhinho. No final, sempre que o encontrava, ele repetia carinhoso: “Eu gosto muito de você”. Acho que ele sempre quis dizer isso, mas o orgulho o impedia. Essa coisa dos machões do passado, para quem qualquer manifestação de afeto era um passo para a pederastia.
Adoro guaraná, mas não gosto de azeitonas.
Consigo sentir o gosto de um pedaço de azeitona perdido em um empadão de dois quilos. Meu paladar é aguçadíssimo para azeitonas. Para outros gostos, é simplesmente banal. Enquanto seres iluminados conseguem sentir aromas de damascos gregos em taças de vinho tinto, para mim a bebida de Baco não passa de uma bem arquitetada falácia de marketeiros. Vinho pra mim é tudo igual, e me causa uma ressaca especialmente desagradável.
Julguem-me.
Só mesmo um caipira do meu quilate pode não gostar de vinho, essa coisa requintada que tanto agrada os novos ricos. Não que eu seja um velho rico. Ser rico, velho ou novo, é cafona. Saudades dos ricos italianos da renascença, que gastavam suas fortunas fomentando a arte e nos legaram as maiores obras primas da pintura e da escultura.
Só um rico da atualidade pode despender seu suado milhão de dólares numa Ferrari. Não tenho muita simpatia por carros em geral, não entendo por que um cidadão, por livre e espontânea vontade, queima petróleo sentado sobre uma tonelada de aço e plástico. Me parece desproporcional, um tipo de desmerecimento sei lá do quê. E depois, pra que ter um motor de duzentos e
cinquenta cavalos, se o bólido fica parado no trânsito? Sem falar nos buracos e nas lombadas da tradicional rua brasileira. Quantos cavalos estariam ocultos no interior de um motor Ferrari?
Quem, quando criança, não acreditava que dentro da TV habitavam aquelas pessoinhas que apareciam na tela? Por relação, crianças devem acreditar que cavalos galopam no interior dos motores das Ferraris.
Quando criança eu tinha a pele muito clara, branca, transparente de olhar as veias. Sofria bullying, me chamavam de “branca de neve”, de “gasparzinho”, arriscava tomar um tabefe, e por isso sempre acabava me enturmando com os minorizados. Meus amigos eram nerds, bichas e pretos. Naquela época nerd apanhava na escola, ainda não existia Steve Jobs para redimir a categoria. O nerd não prestava como CDF e não servia pra jogar bola, um inútil. Aos 20, chorei no filme “A Vingança dos Nerds”.
Sou emotivo.
Antes que algum paladino do politicamente correto levante o dedo, não quero ofender ninguém com o termo “bicha”. Todo mundo que tem amigos homossexuais sabe que só se usa o termo quando existe alguma intimidade. Chega a ser afetuoso. Nos anos 70 não existiam bichas na vida real, era proibido, ficavam todos dentro do armário, posando de “gente de bem”, esse termo dúbio que serve pra qualquer coisa. Só existia aquele estereótipo da TV, aquelas bichas engraçadas, e mais o Dener e o Clodovil.