Cadernos de Jornalismo n.° 00 2007

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vox populi no jornal público

cinema de joão botelho e pedro almodóvar

colóquio cultura e comunicação social

vasco graça moura, maria teresa horta, pio abreu

aqui dentro


(Pรกgina deixada propositadamente em branco)


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, que neste número 0 se apresentam, têm como principal objectivo a divul-

gação de trabalhos de alunos da licenciatura em Jornalismo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mais do que para ser um repositório da extensa produção que tem lugar em cada ano lectivo, os “Cadernos” foram criados para acolher os melhores textos realizados no âmbito das disciplinas leccionadas no Instituto de Estudos Jornalísticos. Os trabalhos representam dois tipos de abordagem: uma de pendor prático, essencialmente fruto dos artigos realizados no âmbito das disciplinas de Jornalismo Escrito (I e II); a segunda resulta de investigações feitas no domínio do Seminário e do Relatório de Estágio. Como nem sempre será possível apresentar estes trabalhos na íntegra, dada a sua natural extensão, os

terão também

uma versão electrónica, disponível em cadernosdejornalismo.uc.pt, onde será possível consultar os textos completos. Neste Domínio serão também alojados trabalhos de rádio, televisão e multimédia. A par desta motivação, a revista abrir-se-á também a outros textos, nomea­damente a artigos académicos de investigadores na área das Ciências da Comunicação, que pretendam divulgar o seu olhar através destes “Cader­nos”, sempre receptivos a contributos de qualidade. Haverá ainda espaço para recensões (filmes, livros, revistas, etc.) e uma agenda de eventos ligados às Ciências da Comu­nicação (colóquios, seminários, congressos, apresentação de livros, etc.). Também para estas secções se aceitam propostas que deverão ser submetidas através do nosso site. Os

não se esgotam, porém, na publicação. Pretendem ser também uma

oportunidade de abertura do Instituto de Estudos Jornalísticos ao exterior, no sentido de potenciar a sua afirmação e assumir-se como dinamizador de iniciativas centradas no Jornalismo e na Comunicação. Destas “andanças”, os

irão dando conta, a um ritmo semestral marcado pe-

lo calendário académico.

Isabel Férin Directora do Instituto de Estudos Jornalísticos da FLUC


Propriedade e coordenação da edição Imprensa da Universidade de Coimbra e Instituto de Estudos Jornalísticos da FLUC Direcção Isabel Férin Coordenação Clara Almeida Santos, João Figueira Design António Barros Colaboram neste número Ana Filipa Oliveira Ana Rita Faria Anabela Ferreira António Granado Catarina Prelhaz Cláudia Sousa Diana do Mar Isabel Peixinhos Caia João Figueira Marta Poiares Paula Monteiro Rui Simões Sara Peres Tiago Pimentel Infografia Pedro Miguel Duarte – Estimulus [design] Distribuição Coimbra Editora Periodicidade Semestral Tiragem 1000 ISSN 1646-6713 Registado no ICS Impressão G.C. – Gráfica de Coimbra, Lda. Publicação com apoio da


cader nosdejor nalismo

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instituto de estudos jornalísticos colégio de s. jerónimo e-mail: iejfl@ci.uc.pt www.uc.pt/iej

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abr

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imprensa da universidade de coimbra rua da ilha 3001-451 coimbra e-mail: imprensauc@ci.uc.pt www.imp.uc.pt

cadernosdejornalismo.uc.pt

Pessoas [Entrevistas] Vasco Graça Moura . Pio Abreu .

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Maria Teresa Horta .

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[Perfil] Luís Afonso .

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Destaque Todo o jornalismo é cultura? .

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[Opinião] A definição que nunca te direi . O estado de graça da cultura .

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[Conversas] Carlos Vaz Marques . Ana Sousa Dias .

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“75% da cultura vive em situação de não comunicação” .

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Bloco de notas Vale a pena uma licenciatura em Jornalismo? .

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Best of Concorda com a existência do Vox Populi? .

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Por falar em [ Cinema ] (Re)volver o baú das recordações . O primado do detalhe .

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[Entrevista] João Botelho . Nova Iorque, 1959 Philippe Halsman e Marilyn Monroe.

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PHILIPPE HALSMAN

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E n t r e v i s t a a Va s c o G r a รง a M o u r a


Poeta

até

ao

umbigo,

os

baixos

prosa

Despido de métricas e formalidades, é com o recurso a uma citação de contornos brejeiros que o escritor se define, à medida que fala sobre as esco­lhas que o tornaram naquilo que é hoje. Do seu currículo constam prémios como o Pessoa (1997), o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e vários reconhecimentos, entre eles a Coroa de Ouro do Festival de Poesia de Struga (Macedónia), tendo sido o primeiro português a ser distinguido com o galardão. Na chegada ao refúgio do escritor em Benfica do Ribatejo, o ponteiro da rosa dos ventos apontava fixo para o Porto, cidade que o viu nascer há 64 anos. O cenário escolhido para a conversa foi, como não poderia deixar de ser, o estábulo transformado em biblioteca, onde Vasco Graça Moura guarda os mais de 30 mil livros que possui. Alguns deles adquiridos na Bélgica no contexto das tournées que realizava com Pacheco Pereira, entre outros, angariados através da mesada do período de adolescente. Entre as lombadas, algumas fotografias marcavam presença e no intervalo do fumo das cigarrilhas que Vasco Graça Moura levava à boca, pairava a brisa empoeirada de um espólio, cujo primeiro livro data de 1952. O seu timbre era rouco, mas confiante, e as mãos descontraidamente pousadas sobre o pólo verde espelhavam o à-vontade da conversa. No exterior, fazia-se ouvir o latido dos cães que clamavam pela atenção de um dono habitualmente presente em Bruxelas. Num breve passeio pela casa, também ela plena de livros, surge, junto das obras de Júlio Pomar, um dos quadros do escritor, retrato da infância dos seus quatro filhos.

As suas obras vão ao encontro de outras artes, como a música ou a pintura. São paixões secretas ou apenas áreas de interesse? Hesitei muito entre Direito e Belas Artes porque sempre tive uma tentação muito grande pelas artes plás­ticas. O mesmo se passa com a música. A minha formação não tem nada de teórico, adquiri-a com a experiência auditiva frequente. Tanto que, neste momento, o meu brinquedo favorito é o i-pod. [risos] porque, apesar de as condi­ções acústicas serem diferen­tes, é bom saber que posso contar com uma sonata de Beethoven na algibeira.

por Diana do Mar

Tendo em conta que privilegia estas áreas, na vida e na escrita, quais são as estrelas da sua cons­telação? Não sou capaz de hierarquizar. Gosto particularmente de Piero della Francesca, de Rembrandt e de Picasso. Mas penso que a nossa inclinação para um sector de cria­ção não é apenas feita de nomes cimeiros. Toda a criação é um local de cultura de onde emergem grandes figuras explicadas pelo seu tempo. Bach, Brahms, Mozart, Beethoven, Schubert são as cinco estrelas da minha constelação, mas há

muitos outros que no momento em que estou a ouvir considero o máximo, pela empatia que ge­ram, pela faísca que podem provocar em mim ou pela alusão a uma proposta estética ou musical. Referiu a importância do mo­mento. Não é controverso para quem traduz clássicos, exaltar a instantaneidade? Os clássicos são traduzidos porque nos fazem compreender o mundo e os problemas que o envolvem. Traduzir um clássico não é um exer­cício de arqueologia. Importa restitui-lo na nossa língua

para que este possa continuar a transmitir algo ao leitor de hoje. Claro que há situações pontuais em que as circunstâncias históricas do clás­sico não são perceptíveis, mas para isso existem referências. O facto de os clássicos sobrevi­verem aos processos de filtragem das sociedades prova que traduzir um clássico é uma espécie de actua­lização. É evidente que se travam combates: com a própria língua, com os limites aos quais ela pode ser levada, com a língua do clássico e com a obra no seu todo.

Considero-me o autor de segunda mão O que traduz é obra sua? Considero-me o autor de segunda mão, porque há sem dúvida uma dimensão minha nas traduções. Tradutore, traditore... Sim e não. Às vezes trai-se para dar uma fidelidade maior ao texto. Costumo dar o exemplo de

um poema de Garcia Lorca que, apesar de traído, permitiu muito mais fidedignidades no conjunto da tra­dução. A traição é um acto intrínseco e está relacionada com a incorporação do texto traduzido na cultura da língua de chegada. Sempre que possível procuro uma fórmula que é próxima,

camonia­na, pessoana ou bernardiniana e introduzo-a exactamente para atar­raxar o nosso património a um determinado texto. Walter Benjamin foi o autor que mais lhe resistiu à tradução. Porquê? Benjamin deixou 73 sonetos

plenos de tonalidades afectivas, pouco ou nada conclusivos, dificultando a percepção daquilo que quis dizer. Gottfried Benn, também escrevia belas coisas independentemente do sentido. Mas, Benjamin exigiu-me uma dife­ rente espécie de virtuosismo na tradução.


Alguma vez sentiu que não tinha conseguido passar a mensagem inicial do autor? Às vezes sente-se que é impossível traduzir rigorosamente. A primei­ ra lição que tive na vida foi com o meu pai que costumava citar uma tra­dução feita por Ramalho Ortigão: “Honi soit qui mal y pense” por “Mal-haja quem não cuida”. Esta não tem uma única palavra relacio­nada com o texto original, mas ilustra na perfeição o que se pretende di­zer. Quando traduzi Seamus Heaney, escrevi-lhe a pro-

pósito de uma passagem dos poemas dele que não tinha tra-­ dução directa possível em portu­ guês. A resposta dele foi bastante interessante: faça o que quiser des­de que tenha humor! [risos] Numa adolescência pautada pela literatura e pelas artes porquê a advocacia? É uma tradição familiar. Desde o princípio do século xx que há uma continuidade na tradição forense e, naquela altura, isso funcionava como uma condicio-

nante interessante na escolha de uma profissão. Foi imposta? Não. Poderia ter escolhido aquilo a que se chama agora línguas e li­te­raturas modernas. Mas tive de fazer uma escolha e o currículo mais eficaz na perspectiva do ga­nha-pão era a advocacia. Para além da perspectiva do ganha-pão, dava-lhe prazer advo­ gar? Porque abandonou definitivamente a profissão?

Deixei de advogar há mais de 20 anos, quando o exercício da advocacia se tornou incompatível com o desempenho do cargo de gestor público na Casa da Moeda. A advo­cacia convocava uma série de saberes. A chamada luta foren­ se traduz-se em qualquer coisa de lúdico, mas um lúdico que implica uma bagagem muito complexa e afinada. Advogar é uma forma civilizada de ser agressivo. Gostei muito de advogar, mas não me realizava por completo, por isso, optei por outro caminho.

Não me dilacero entre o escritor e o comentador político Contido na escrita e desenfreado nos comentários. Concorda? Enquanto autor tenho de me preocupar com questões de ordem estética e enquanto cidadão exprimo a preocupação com a franque­za. Como autor, posso simular. Co­mo cidadão, seria desonesto se o fizesse. Portanto, tento colocar­-me frontalmente em relação às coisas. Um segundo momento des­sa intervenção é o da eficácia daquilo que se diz. Aí devemos entrar em linha de conta com a estilística, com uma série de processos literários, com a tradi­ção polémica portuguesa, mas de facto não tem nada a ver uma coisa com a outra. A não ser eventualmente, algum texto mais feliz que possa ficar para a posterioridade, o que duvido muito. [risos] Há uma espécie de tensão entre as duas vertentes? Não. Nunca me preocupei muito com questões de heteronímia. Con­vivo perfeitamente comigo mesmo e não me dilacero entre o escritor e o cidadão ou comentador político. São áreas diferentes e há que saber conviver com isso

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utilizando-o da maneira mais sensata. Não me parece que seja uma situa­ção de dialéctica contraditória. Quando é que nasceu verdadeiramente a sua veia literária ? [Pausa] A minha mãe guardava versos meus escritos aos seis anos, de maneira que depois a prática foi nascendo. Escrever para mim como preocupação literária é uma situação em que me encontro desde que aprendi a ler e a escre­ver, mesmo com as evidentes deficiências da infância. É muito difícil dizer quando é que tive o verdadeiro sentido de vocação de escritor: sempre o tive! Enquanto leitor alterou a sua pers­pectiva de ver a literatura, a partir do momento em que come­çou a escrever? Quando comecei tinha alguma influência do surrealismo. A dada altura, apercebi-me que realmente não me dizia nada esse tipo de estética e cada vez intuí mais no sentido da clareza, que não é ne­cessariamente a rejeição de obscu­ridades. Tenho um certo pendor para um equilíbrio na forma

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e no conteúdo sem me preocupar mui­to com escolas ou filiações porque, quando escrevemos, isso é resultante de um passado que nos expli­ca e nos condiciona. Não somos só do plano literário. Na criação artística, áreas como as da música, da pintura ou cinema, funcionam como catali­sadores multidisciplinares e conferem uma determinação mais complexa à escrita. O que é que ainda espera da lite­ratura? A literatura tem muito para lhe dar ou é o Vasco que tem muito para dar à literatura? Espero da literatura que ela continue a tornar possível realizar-me enquanto escritor. Em cada mo­men­to posso esperar. A vivência do momento, da vida ou da cria­ção são extremamente importantes. Da perspectiva da criação de um autor que já tem algum tra­quejo e que adquiriu ao longo da experiência vivida e acumulada um certo tipo de destreza esse tipo de questão já não o preocupa. Há uma tarimba que se foi adquirin­do e esse capital deve ser usado sempre. Viver como escritor é vi­ver o momento e estar

Pessoas

preocupado no sentido de projectar no nosso trabalho aquilo que somos e o que pensamos. Enquanto escritor como viveu o período da ditadura em Portugal? Vivi-o numa fase em que a preo­cupação de escapar ao processo de censura tinha muito a ver com cer­tos códigos de expressão. Tentava-se encontrar formas mais ou menos metafóricas de dizer coi­sas para que nem todos o enten­dessem. Esta geração acabou por criar, sem querer, uma nova forma de criação literária e as mensagens já iam tão envolvidas em códigos, que muitas vezes não eram colocados entraves à sua publicação. Pessoalmente nunca tive problemas com os meus textos, mas muitas obras foram censuradas em Portugal. Na minha adolescência adquiria com alguma facilidade obras estrangeiras, principalmente em francês, cujos conteúdos, se descobertos, seriam apreendidos. Mas para a PIDE, as obras censuradas em língua es­tran­geira passavam pelas que terminavam em ine: como Estaline, Lenine ou Racine!! [Gargalhadas]


O poeta é sempre mais melancólico Volvidos mais de 20 anos, os seus poemas continuam a ser “Instrumentos para a Melancolia”? Quando o escrevi havia muito de atitude de ponto de partida lite­rário. Sim, de algum modo, o poe­ta é sempre mais melancólico do que eufórico. Muito mais propenso à meditação, à amargura, à reflexão sobre o absurdo do mun­do. Penso que isso também acontece muito na literatura, mas talvez tenha dado uma ênfase particular a essa dimensão melancólica sobretudo nesse livro. A utilização de letras minúsculas nas suas obras é um estilo? Não. Foi apenas uma tentativa de não privilegiar nenhum elemento vocabular na minha escrita. Um pouco como o que aconteceu com Stravinsky no Ordipus Rex usou o latim, uma língua morta, para não privilegiar nenhuma sílaba. É um acto semelhante, mas não faço uma questão extraordinária nisso. Tornou-se somente num tique. Alguma vez compôs algum texto no parlamento, à semelhança do que fez Natália Correia, por exemplo? Uma vez. [sorriso] Durante um plenário compus, para uma colega francesa, um poema em francês

a gozar com o Chirac. Infelizmente, não fiquei com a cópia! Dos romances, qual lhe deu mais prazer escrever? O primeiro romance deu-me um enorme prazer porque era para mim a demonstração de que também podia escrever ficção. Os primeiros três romances foram de carácter experimental, apesar de no terceiro ter tentado a aproximação à novela. A Zulmira deu-me uma certa satisfação fazer, mas um gozo de outra natureza foi o de Por detrás da Magnólia. Apesar de não ter uma dimensão autobiográfica directa ou factual, relata uma série de experiências, de espaços que conheço bem e situações próximas que me terão ocorrido e reunir tudo isso numa história foi único. Redigiu o Testamento de VGM em 2001. Não é precoce a escrita de um texto deste género? Quando François Villon escreve o seu testamento aos trinta anos, não é assim tão precoce para mim, que o escrevi aos sessenta. Apesar de tudo, há aqui uma dimensão engraçada: Villon era um homem à frente do seu tempo, mas era um sujeito marginal com uma actividade confusa, o que não é o meu caso. Sou um médio burguês

perfeitamente sintonizado com essa situação e, logo aí, há uma dife­rença grande. Agora na ma­neira como as coisas são tratadas no tipo de escrita e na forma que ele utilizou, inspirei-me patente mente. Como o tinha traduzido adquiri algum treino nesse campo. Despido das artes, da literatura, da advocacia, dos ensaios, como se definiria? A única definição que eu gosto de aplicar a mim mesmo é a de um poeta maneirista de finais do século XVI, Diogo de Sousa, referindo-se a Sá de Miranda: Poeta até ao umbigo, os baixos prosa. [risos] É uma defi­nição onde me revejo bastante porque retrata três tipos de características: a coexistência de uma capacidade lírica com um espírito prático e prosaico. Das variadas facetas, qual é a que o realiza por completo? A de escritor. Mas isso não é algo contraditório, uma vez que afirma que nunca se imaginou a escrever a tempo inteiro? Nunca quis correr o risco. Certa­mente, seria muito mais difícil viver segundo padrões de alguma mediania se vivesse apenas da lite­ratura.

Referiu em vários momentos que as insónias são criativas. Tem tido muitas ultimamente? Sempre dormi pouco e penso que as insónias nos permitem reflectir, ter ideias e desenvolver ou aperfeiçoar alguns aspectos em que estejamos a trabalhar. Há muitas vantagens na insónia embora seja exasperante, por vezes, não conseguir dormir. Essas ideias prevêem inéditos para os próximos tempos? Que ou­tros projectos tem em mente? Estou numa fase de organização de materiais. Neste momento, está pron­ta a tradução de Le Cid, do Corneille, das Elegias de Duíno de Rilke, do Misantropo, de Molière e de Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, mas aguar­dam publicação. Tenho ainda uma série de textos ensaísticos por organizar, pois tenho muito material disperso. Qual é o seu livro de cabeceira, neste momento? O último que pousei foi Memó­rias de um rústico erudito, o último da Agustina e um do historia­ dor inglês, Norman Davies. Mas há sempre uma série deles empi­ lhados na Bélgica e em Portugal, à espera de vez.

Não sou eurocéptico, sou eurofrustrado Como membro da Comissão Parlamentar de Educação e Cul­ tura, que panorama traça para a Europa neste domínio? Há uma contradição permanente entre as grandes frases que os responsáveis políticos proferem e os quase e nenhuns meios de que a Europa dispõe para pros­seguir os seus objectivos.

A coexis­tência das culturas na sua diver­sidade dos agora 27 é uma das preo­cupações da Europa. O objectivo é bom, mas a metodologia utilizada é má. A existência de um gran­de saco onde os projectos são apresentados e seleccionados, pode conduzir a uma aceitação pouco exigente dos mesmos. Outra

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preo­cupação tem a ver com o prin­cípio da subsidiariedade. Claro que existem sintonias, como é o caso do processo de Bolonha, mas há uma série de aspectos que não estão a ser levados em conta. Depois há o problema das línguas: não me admira que o português, na perspectiva da comparação demográfica, tenha um papel rela-

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tivamente menor na Europa. Mas admira-me que haja, por parte da Europa, pouca sensibilidade no que toca à projecção das línguas no mundo, sendo que a língua portuguesa é a terceira mais falada à escala global.

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Considera-se um europeísta?

tucional, chumbado em França e

tal iria “fortalecer os grandes esta­

em que a figura do Ministro dos

Sim. Não sou é federalista. A fase

na Holanda. Tenho tido algumas

dos em detrimento

dos mais

Negócios Estrangeiros da União,

dos estados nacionais veemente-

doses de cepticismo, mas não

peque­nos”. Isso não é já o que

passaria a presidir o Con­selho

mente autónomos está ultrapassa-

sou eurocéptico, sou eurofrustrado

acontece?

de Ministros dos Negócios Es-

da e que as questões de integração

por ver que a Europa está ainda lon­

De facto. A diferença é que ao não

trangeiros e exerceria o cargo de

europeia se colocam em ter-

ge de ser uma entidade política com

estar constitucionalizado há mais

vice-presidente da Comis­são Eu-

mos complexos, desde que não

toda a projecção que devia ter no

margem de defesa por parte dos

ro­peia. Em vez de haver distinção

se chegue a uma fase justifica-

mundo. As coisas andam muito

mais pequenos. A Constituição

entre esses órgãos havia um ele-

tiva de uma situação federal com-

devagar…

tam­bém não iria resolver aquele

mento que fazia a ligação, o que

que é o principal problema da

me parecia extremamente peri­

pleta. Penso que não estamos Não seguiu a política do seu par-

Europa: o da Segurança e Defesa.

goso. E várias outras razões pode-

sobretudo nos termos em que ela

tido e pronunciou-se contra a

Para além disso, violava a pureza do

riam ser enunciadas.

foi desenhada pelo projecto cons­ti-

Constituição Europeia, porque

método comunitário, na medida

ANABELA FERREIRA, 2007

na rota de uma situação federal,


Entrevista a Pio Abreu

Nascemos para ser manipulados

Psiquiatra, professor, escritor, mas, sobretudo, um espírito inquieto. Aos 62 anos, Pio Abreu pode falar de tudo um pouco: desde a sua experiência precoce na política, na psiquiatria e mesmo na hipnose, até ao envolvimento profissional, há 3 anos, no processo Casa Pia. Reparte o seu tempo entre os Hospitais da Universidade de Coimbra, a Faculdade de Medicina e a Sociedade Portuguesa de Psicodrama. Confessa não gostar do protagonismo, mas revela satisfação por ter recebido, este ano, o prémio italiano “Città delle Rose” pela obra Como tornar-se doente mental. Prestes a lançar um novo livro, Pio Abreu partilha memórias e “estórias” de vida tão diversas como os seus interesses. por Ana Rita Faria O seu nome ficou muito associado ao livro Como tornar-se doen­te mental, que tem tido uma grande receptividade por par­te do público. Esta obra foi um ponto de viragem na sua carreira de escritor? Na altura em que o publiquei, hou­ve uma certa polémica com um colega meu, Allen Gomes, que disse que o meu nome tinha ficado ligado a este livro, e a este título. E tinha razão, pois publiquei outras coisas que são, de facto, melhores e mais sérias. Mas que não são lidas. Contudo, não penso que Como tornar-se doente men­tal seja um livro jocoso ou irónico. O livro é sério. O que lá está escrito é mais ou menos o que penso em termos da corres­ pon­dência entre os mecanismos psicopatológicos. Mas, por exemplo, escrevi um outro livro, O tempo aprisionado – ensaios não espiritualistas sobre o espírito huma­no, que, como tem este título, nin­guém o leu. Vou tentar ree­ditá-lo com um outro nome – A fenomenologia da sexualidade. Assim vende-se [ri-se]. Tentou então adaptar Como tor­nar-se doente mental ao mercado? Num outro livro meu, Comuni­cação e Medicina, explico um dado óbvio: vivemos num excesso de infor-

mação, e portanto o pro­blema não é explicar aquilo que nós pensamos e sim chegar ao pú­bli­co. Não há comunicação sem a relação com o auditório. E en­tão precisa-se do polémico, do paradoxal, daquilo que Milan Kunde­ra fala em A Arte do Romance: “o leitor tem de ser apanhado no primeiro parágrafo”. Por isso usei todos esses truques da comunicação no livro. Crê que “de médico e de louco todos temos um pouco”? No li­vro, é como se sancionasse essa ideia… Sim, isso é verdade. É interessante ver que, entre as pessoas que gos­taram imenso do livro, estão mui­tos actores e pessoas ligadas à ceno­grafia e dramaturgia. E o que eles disseram é que os seis tipos apresentados no livro [fóbico, para­nóico, obsessivo-compulsivo, his­triónico, maníaco-depressivo, esquizofrénico] correspondem aos seis tipos de personagens mais importantes em toda a dramaturgia. Mas não era essa a minha intenção. Não escrevi um livro sobre a natureza humana, mas sobre as doenças psiquiátricas. Mas a ideia que as pessoas têm é de que é um livro sobre a natureza humana. Quis que este livro fosse psicoterapêutico: que as pessoas com determinadas patologias,

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lendo o livro, pudessem melhorar, ao perceberem o caminho em que estão envolvidas. Concorda com o psicólogo Óscar Gonçalves quando ele diz, no prefácio a Como tornar-se doen­te mental, que a doença mental é a mais ficcionável de todas as fenomenologias clínicas? Não é tão ficcionável assim. Pode­mos encenar uma doença psiquiá­trica, mas isso não quer dizer que fiquemos doentes. Agora os que ficam doentes, realmente ficam doentes. Perdem a liberdade até de encenar outras doenças. Ou de serem outras pessoas. Fazem aquilo e só aquilo. Entram naquela per­sonagem e depois há um ponto irreversível, em que não conseguem voltar atrás. Hoje em dia é mais fácil, ou me­nos difícil, tornar-se doente men­tal? Há mais condições para isso hoje do que no passado? Penso que sim. Vivemos numa socie­d ade muito complexa e difícil de entender. As pessoas perde­ram muito o sentido de futuro, e estão constantemente a perder. Não conseguem fazer expectativas, as coisas são imprevisíveis. Ao mesmo tempo, há grupos de marketing concentrados em mani­pu­lar e robotizar as pessoas. Portanto a capacida-

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de de reflexão e crítica fica anulada. E a tendência de as pessoas passarem várias horas por dia em frente à televisão é verdadeiramente desorganizadora da vida mental. Vivemos num excesso informativo, sem referências. E há ainda a perda do sentido de comunidade e da partilha. Mas isso é importante na natureza huma­na, pois somos animais comunitários. Precisamos de nos compreender uns aos outros e de saber que o outro tem as mesmas informações que nós. A natureza humana está a mudar. Se tivesse de escolher uma doen­­ça mental, qual escolheria? Se­ria fóbico, paranóico, maníaco-de­pres­­sivo…? [exclama rindo] A mania, a mania! Mas só queria se fosse só maníaco. São pessoas muito en­gra­çadas e interessantes… e feli­cís­simas! O problema está aí. O que vê como grandes sucessos nos seus cerca de 40 anos de actividade profissional? Os grandes sucessos foram todas as pessoas que ajudei. Não são grandes sucessos, são pequenos sucessos, sucessos diários. E não só as que ajudei, mas as que ensinei também.

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Alguma vez sentiu que fracassou ou se sentiu frustrado? Sim, os médicos sentem muito isso, sobretudo a sensação de impotência. Volta e meia somos confrontados com a morte. Mas isso também nos ajuda a perceber que não somos omnipotentes. Temos fracassos, mas ajudam-nos a aprender. Como dizia o Dalai Lama: “se algum dia perderes, não percas a lição”.

Mas no livro Como tornar-se doente mental diz que sente que era “tola” a “ilusão” de que “me­lhorando as pessoas até a socie­da­de melhoraria”. Por que diz isso? Eu também tive uma vivência polí­tica, de intervenção e de cida­dania. E percebi, de facto, que é mais fácil mudar o individual a partir do so­cial, do que o social a partir do individual.

Se pensa isso, por que não desenvolve uma maior intervenção política? Parece quase fugir dos palcos políticos… A intervenção política é difícil por­que há regras e instâncias que não controlamos. Este liberalismo acéfalo e predador é pura e simplesmente o oxigénio que nós respiramos. É difícil intervir, e não se pode intervir de um momento para o outro.

Não gos­to muito do protagonismo, aliás temo-o. Mas estou dentro do Partido Socialista, sou membro da Margem Esquer­da e faço alguns artigos de opi­nião que às vezes têm algum impacto. Prefiro não me envolver mui­to nes­tas coisas e manter o meu espí­rito crítico, embora às vezes me cale, e neste momento estou calado.

das pessoas. As religiões também li­dam com isso. E existe muito a ten­dência para as próprias teorias psicológicas se transformarem nu­ma religião, com crenças arrei­gadas. Deste modo, as discussões começam a ser mais ideológicas do que científicas. E uma discus­são ideológica é paranóica, en­quan­to numa discussão científica as pessoas ouvem-se umas às ou­tras. Ora, tanto a psiquiatria como a psicologia estão muito impre­gnadas de questões ideológicas e religiosas.

do mesmo. Quan­do há separação de campos, e quando lutamos uns contra os outros, está tudo estragado. Mas penso que a psiquiatria está muito ligada à medicina. Não a vejo como uma especialidade médica, e sim como um dos três ramos da medicina, juntamente com a cirur­gia e a medicina interna. A cirurgia lida com a matéria, a medicina interna lida com a energia, e a psiquiatria lida com a informação. Talvez o grande futu­ro da psiquiatria seja ligar-se mais à medicina e ajudar a medicina a não ver as pessoas segmentadas, mas sim como uma pessoa completa e global. Portanto, a psiquiatria pode humanizar a medicina, que neste momento também corre muito risco de se desumanizar.

A psiquiatria pode humanizar a medicina Só conhecemos uma ínfima parte do cérebro humano. Partindo des­se pressuposto qual é o actual nível de desenvolvimento da psi­ quiatria? Neste momento, existem dados para poder fazer uma ideia global do modo como funciona o cérebro humano e do modo como funcionamos em relação com o cérebro humano. Constantemente saem dados na literatura científica, mas são dados parcelares. Falta fazer uma integração.

nacionais para usar o seu medicamento, sem critérios e sem um conhecimento da fisiologia. E às vezes exageramos e damos dema­siados medicamentos às pessoas.

Mas então a psiquiatria ainda es­tá longe da maturidade plena? [Pausa] Na prática está, em teoria não tanto.

Nesse sentido, a psicologia poderia ser mais indicada do que a psi­quiatria no tratamento de algu­mas doenças? Afinal, os psi­có­logos não podem receitar me­di­­camentos… Sim, por vezes a psicologia podia ser mais indicada. Mas a grande questão é que quando fazemos quer psicologia, quer psiquiatria, lidamos com o espírito, a alma

Nas técnicas utilizadas, é isso que quer dizer? Em técnicas, em tratamentos. Por­ que usamos os medicamentos, mas nem sempre os usamos bem. Existe muita pressão das multi-

Mas é possível mudar essa concepção de doença como “tubo de ensaio”? Acho que é possível, desde que consigamos ter aquilo que cada vez existe menos: uma capacidade crítica.

Em que tipo de doenças mentais a psicologia poderia ser mais indicada? Nas doenças que podem acontecer a todos nós: as fobias, as depres­sões… Em quase todas. Mas os psicólogos deviam trabalhar com os psiquiatras, pois andamos todos à procura

A memória não é um vídeo que a gente gravou Estivemos este tempo todo a falar da sua profissão, e ainda não fiz uma pergunta fundamental: por que é que escolheu a medicina, e nomeadamente a psiquiatria? [Grande suspiro] A minha família queria que eu fosse para engenha-

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­ria, mas escolhi muito cedo a me­di­ cina e gostava muito da psiquiatria. Aos 15 anos, já lia muitos livros sobre psiquiatria e decidi que queria investigar a natureza huma­na. Na altura, a psicologia não estava organizada e, portanto, para

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saber como funcionava a natu­reza humana, tinha de saber como funcionava o organismo humano. Logo, tinha de ser médico. Aos seus 15 anos o que é que lia? Aos 15 anos já lia Carl Jung,

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Freud… Lia muita coisa também sobre hipnose e escritores como Sartre. Alguma vez praticou hipnose? Sim, aos 17 anos.


Praticou com quem? Com os colegas da escola em San­tarém. A certa altura, alguém des­cobriu que eu sabia umas coi­sas de hipnose e pediu-me para fazer. Mas, depois, isso tornou-se muito complicado para mim, porque gerou um ambiente social pato­lógico. As pessoas solicita­vam-me constantemente para fazer expe­riências, e cheguei a ficar doente com uma úlcera por causa disso. E depois entrei para Coimbra com essa fama da hipnose. Ainda agora há muita gente que se lembra dis­so. Na altura, a hipnose era considerada esotérica. Mas é um instru­ mento importante para qual­­­quer psiquiatra, embora levante várias questões, como a criação da dependência dos outros em relação a nós e a facilidade em manipular as pessoas. De facto, nascemos pa­ra ser manipulados. E hoje ainda recorre a essa técnica? Não, não quero, não gosto. Estou sempre a lutar contra isso, porque vejo que as pessoas são muito manipuláveis e dou muito valor à liberdade individual e interpessoal. Podemos conseguir mudar uma pessoa com a hipnose, mas é muito efémero, porque as pessoas acabam por reagir contra isso. Uma pessoa só muda o seu comportamento quando é ela própria a decidir mudar. Além disso, existe muito a ideia de que a hipnose serve para reavivar memórias esquecidas. Mas

quando se estuda cientificamente essa questão, des­cobre-se que as memórias são alteradas. As memórias induzidas pela hipnose podem conter elementos que as pessoas vão buscar à sua história, mas têm outros que são sugeridos. A maior parte das vezes, são falsas memórias. A memória foi também uma questão que se levantou no pro­cesso Casa Pia, quando foi solicitado o seu parecer de especialista em relação aos alegados abusos sexuais de menores… Na altura, fiz um estudo sobre a memória e actualizei-me sobre os seus processos. Porque, de facto, aquilo que se sabe hoje sobre a me­mória é completamente dife­rente do que se pensava há 20 anos. Na altura da Casa Pia, a prisão preventiva de Paulo Pedro­so [em Maio de 2003] tinha sido decidida pelo juiz Rui Teixeira com base em perícias psicológicas, que diziam que as crianças esta­vam a contar a verda­de. Mas as perícias psicológicas não tinham pés nem cabeça: esta­vam erradas e mal feitas. Era uma aldrabice completa. Já na altura, muita gente dentro da área judicial internacional chamava a atenção para a falibilidade da memória humana e para a possibilidade de criar falsas memórias. Estes processos de suspeita de violação, que afinal não são violação, já são conhe­cidos há muito empo por todo o mundo. Mas agora existe na justiça uma prova que se

sobrepõe às ou­tras: a prova do ADN. A nossa me­mó­ria é a coisa menos fiável que pode existir. A memória não é um vídeo que a gente gravou. E que processos de manipulação da memória podem ocorrer? Na altura da Casa Pia foi evidente: basta colocar sistematicamente os arguidos a aparecer ou a falar na televisão. Outro modo de induzir memórias é apresentar, às alegadas vítimas, line-up’s em fotografias simultânea.Temos, então, o pro­blema das fontes de memória. Para me lembrar dos acontecimentos, visualizo-os. O problema é saber se essas imagens dos acontecimentos me entraram na cabe­ça devido a factos reais ou a foto­gra­fias, se entraram na altura em que supostamente ocorreram ou a posteriori. E, depois, houve também uma construção social da verdade, que foi uma aldrabice completa, mas que influenciou toda a gente, inclusive as próprias crianças e vítimas. Para além disso, há também formas de perguntar que induzem a resposta, sobretudo a crianças, jovens, ou a pessoas cuja memória já está perturbada devido a uma série de expe­riências, como acontecia com os miúdos alegadamente vítimas de abuso. Vi isso nos testes e depoimentos das alegadas vítimas de Paulo Pedroso. Penso que ajudei a desmontar aquela aldrabice toda, montada com a colaboração de alguns psicólogos e até psi­quiatras,

muito ingénuos e ignorantes, ou então ligados a esco­las do pensamento psicológico muito ideológicas. Quando o parecer sair cá para fora, se sair, talvez as pessoas possam perceber o fundamento desta opinião. Qual foi a imagem que ficou da Casa Pia na sociedade portuguesa? Que consequências? Foi uma coisa horrorosa. Foi de facto um golpe de estado contra o líder do PS na altura [Ferro Rodrigues]. Há muita coisa neste processo que quando se descobrir… O problema é que este pro­cesso envolve muita gente, mas também, e sobretudo, esconde muita gente. Mas foi um golpe de estado, que criou um sentimento de depressão e tristeza. Veja o caso do Carlos Cruz: houve uma sensação de perda de uma das pessoas mais amadas do país. E, sobretudo, houve muita satisfação do Durão Barroso, que usou o pro­ces­so Casa Pia para dizer aldrabices e vir com a história da “tanga”. Deprimiu ainda mais o país com essa história e depois imolou-se pelo fogo, pois a seguir foram aqueles fogos todos que incendiaram o país! [ri-se] Foi terrível! E depois ainda houve aquela violação da privacidade das pessoas, em que tudo saltou para a televisão de uma maneira incrível: os depoimentos dos miúdos, às vezes completamente falsos, salta­ram para os jornais.

Absolutamente um espírito inquieto Continuando com as memórias, mas desta vez as suas… Nasceu em Santarém, depois veio tirar o curso em Coimbra… Por que é que escolheu esta cidade? Coimbra tinha muito aquela mística das Repúblicas… Eu pró-

prio cheguei a viver numa, o Palácio da Loucura. E foi dessa República, e sobretudo da dos Pyn-Guyns, que nasceu a crise de 69. Na altura esteve bastante envolvido nesse movimento de contes-

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ta­ção. Que principais re­cor­dações lhe ficaram desses tempos? As recordações são de grande satis­fação e de grande realização. De­pois da crise de 69, tive de ir de castigo para a tropa, estive na guerra colonial na Guiné, onde con­

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tinuei a conspirar. Mas foram tempos que valeram a pena. Há quase uma sensação de part­i­ cipação colectiva de toda uma gera­ção na história. Cada um fez muito e todos fizemos muito. E depois tudo desembocou no 25

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de Abril, que foi a última revo­ lução romântica da Europa. Volvidos todos estes anos, como vê hoje o movimento de contestação que encetou no passado? Uma coisa deliciosa. Tive o privi­légio de sentir que estava no sítio certo, à hora certa, a fazer as coisas certas. O que pensa do movimento estudantil dos dias de hoje? Dedica-se a coisas muito secun­ dárias, não existe uma visão em profundidade das coisas, é muito conflituante e acaba por ser muito levado pela televisão. Ficam à mar­gem questões substanciais, como o ensino que não dá qualificações, os cursos que criam estudantes para o desemprego, a universidade que não presta e que se está a borrifar para os alunos. Mas aquilo de que as pessoas se lembram é da imagem de um miúdo a ser arrastado pela polícia, mos­trada pela televisão. É espantoso como todos os estudantes conti­nuam agarrados a essa história. E os líderes estudantis propagam essa ideia, falam nisso constantemente, e os estudantes aceitam.

Se hoje fosse estudante, voltaria a lutar, como no passado, pelos objec­tivos propagados actualmente? Todos os que fizeram a crise de 69 lutaram contra os dirigentes instituídos na altura, muito liderados pelo partido comunista. Foi um movimento que pretendia ser cada vez mais abrangente: dos estudan­ tes para a cidade, e da cidade para o país. E conseguimos fazê-lo gra­ças a uma luta terrível contra essa gente que queria a liderança do movimento. Se hoje fosse estudante, continuaria a fazer isso: lutar contra os dirigentes de carreira, contra os líderes auto-propostos, contra as pessoas manipuladas por outras instâncias, contra as pessoas que querem ter uma glória, afinal de contas, efémera, à conta de coisas que não são subs­tanciais. Para si, qual foi a principal conquista do movimento de contestação juvenil de 69? A crise de 69 clarificou o regime. Pensava-se que o Marcelo Caeta­no, que governava na altura, iria fazer a esperada transição, mas não fez. Em termos de conquistas humanas, a maior em todos estes movimentos da década de 60 foi a emancipação

das mulheres, a sua capacidade de saírem do buraco.

fazer mais contactos. Estou de facto farto de Coimbra.

Continua a ser um espírito in­quie­to? Absolutamente. E desde logo contra o domínio feminino em todas as instâncias, pedagógicas, jorna­lísticas, médicas… [ri-se]. Devia existir discriminação positiva na Assembleia da República, nos ór­gãos de poder, para as mulheres. Se bem que as mulheres não vão para lá porque são demasiado esper­tas, e sabem que ali o poder é muito efémero. [ri-se] Mas também devia haver discriminação positiva para os homens. O equilíbrio entre os sexos é fundamental em todas as actividades. Vou publicar agora um livro sobre isso, sobre o problema da identidade. Vou pôr os genes a falar na pri­meira pessoa, bem como a cultura.

Porquê? Porque estou cansado da pequena Coimbrinha, da Coimbra da Universidade, que é uma feira de vai­dades, e de cada Coimbrinha que vive na inveja dos vaidosos. Em Coimbra, transporta-se a história dos estudantes e futricas para todas as instâncias e estas duas per­sonagens tornam-se um pro­blema cultural a vários níveis. A guerra entre os médicos hospitalares e os médicos professores, que não faz sentido nenhum num hospital universitário, mas que existe. Na Câmara Municipal, há guerras para saber quem é mais importante: se o reitor da Universidade, se o presidente da Câmara. Dentro do próprio partido a que pertenço, já vi altos responsáveis dizerem que ganham eleições contra a universidade. Isto não tem sentido nenhum. A Universidade vive de costas voltadas para a cida­ de, e a cidade para a Universidade. Se a autarquia não se ligar à Universidade, e se a Universidade não se ligar à Câmara e à própria iniciativa privada, está tudo perdido.

Para além do novo livro, que ou­tros planos tem para o futuro? Não sei. Ainda não sei se me vou reformar. Mas se se reformar pretende continuar ligado à psiquiatria? Sim, pretendo continuar ligado à psiquiatria, à escrita, e sobretudo

ANABELA FERREIRA, 2007

A nossa memória é a coisa menos fiável que pode existir. A memória não é um vídeo que a gente gravou.


Manual do (n茫o) utiliza dor, Ant贸nio Barros [obra comp贸sita sobre livro de Pio Abreu]


E n t r e v i s t a a M a r i a Te r e s a H o r t a


Proíbem-me e eu incandesço

Os livros são um mundo paralelo àquele onde vivemos. É um universo que se constrói, onde podemos viajar sem limitações. Para Maria Teresa Horta foi determinante, porque a expôs perante as injustiças do mundo. Firme e muito convicta nas suas palavras, recebe-me no seu apartamento, em pleno coração de Lisboa, numa manhã de Inverno. Rodeada de livros, sentada num grande sofá vermelho do pequeno escritório, fala do seu percurso do qual diz nunca se ter arrependido. Encarou sempre as proibições como desafios, e a sua maneira de ser não lhe dá espaço para hesitações. Não tem dúvida que a sua vida tem sido construída com base em percursos femininos. Prova disso são as suas influências – “todas mulheres” – como faz questão de salientar. Conta-me que as pessoas se riem quando diz que prefere Virginia Woolf a James Joyce. Hoje, com 69 anos, diz que a luta das mulheres é uma luta difícil, e nota-se o cansaço. Durante cerca de três horas, fala das mulheres, da falta de consciência e relembra as vitórias do Movimento de Libertação das Mulheres que liderou até à sua extinção. por Ana Filipa Oliveira Disse numa entrevista que as leituras que fez na infância foram “uma espécie de janela que lhe abriu novas perspectivas sobre o mundo”. Porquê? Acho que os livros me davam a oportunidade de entrar em universos que se multiplicam, muito mais divertidos e muito menos limitativos do que a vida que eu tinha nessa altura. Comecei a ler sozinha em casa. A minha avó, que vivia comigo, contava-me muitas histórias e gostava muito de livros. E o meu pai, que era médico, tinha uma biblioteca considerável. Isso, aliado à minha grande curiosidade, levou-me muito cedo a querer saber ler todas aquelas histórias que esta­vam na estante do meu pai. E tinha livre acesso a todos os livros? Não era bem assim. A minha avó dava-me livre acesso, quando estávamos em casa sozinhas. Quando percebi que não podia ler tudo o que queria, comecei a ler às escondidas. E foi sensivelmente aos 14 anos que li O segundo sexo de Simone de Beauvoir e aí tudo começou a fazer sentido. De facto, foi determinante para a minha

formação enquanto ser humano e mulher. Portanto, descobriu as injustiças do mundo através das suas leituras. Sim, não tenho dúvida que sim. Descobri o mal e o bem. Para além de Simone de Beauvoir, quais são as suas refe­rências? Todas as referências da minha vida são mulheres. Prefiro um livro de Virgina Woolf ao James Joyce. Muita gente se ria disso! Marguerite Duras também foi uma grande influência. Portanto, as minhas referências são as Virginas Woolf, as Emilys Dickinson... Sem elas, eu acho que não era eu. É poeta, ensaísta, ficcionista e ainda jornalista. Em que área é que se sente mais realizada? Na escrita. Como poeta? A poesia é o meu lado claro. É uma poesia ardente, clara, cheia de luz. Uma poesia do verão. A minha ficção é o meu lado mais obscuro, mais negro. Primeira escritora, depois jorna-

lista. É assim? Sim. Escritora sou eu ser humano. O início da sua poesia é associada ao movimento Poesia 61, caracterizada como uma poesia depurada, quase anti-discursiva, mas cedo se afastou do grupo. Afas­tou-se devido à exigência formal? Acho que nos afastámos todos. Como é que surgiu a ideia de integrar esse movimento? A ideia surgiu de uma carta minha com alguns poemas ao António Ramos Rosa, que vivia no Algar­ve. E ele escreveu-me a dizer que gos­tava muito da minha poesia e que achava curioso porque conhe­cia mais jovens que estavam a fazer uma poesia idêntica. Foi aí que conheci o Gastão Cruz e o Casi­miro de Brito que estavam no Al­gar­ve. Quando o Gastão veio para a faculdade; para Lisboa, conhe­ceu a Fiama Hasse e a Luiza Neto Jorge. Demo-nos bem, por­que to­dos nós convergíamos para o mes­mo fim cultural e também político: éramos todos de esquerda e nenhum de nós queria o fascismo. Quando sai a Poesia 61, dá a sensa­ção que nos dávamos muito bem. Mas éramos

tão diferentes. Acho que a Poesia 61 foi uma for­ma de entrar na poesia. Foi o que todos nós queríamos, mas em contrapartida havia algo que nos parecia muito parado, muito ultrapassado. Era essa exigência formal. Sim, era essa exigência formal... A minha poesia era diferente. É completamente portuguesa, tem a ver com Camões, com as cantigas de amigo, com os cancioneiros… E parte sempre de uma matriz feminina. Utiliza a sua escrita como arma de luta? Como uma forma de denúncia? Não. É como as Novas Cartas Por­tu­guesas. Nunca nos passou pela cabeça ser o manifesto do que quer que seja. Não? Então, o que pretendiam? Dar o retrato do nosso país, sobretudo no que diz respeito ao feminismo. Dar um retrato das menta­ lidades portuguesas. Por isso, refere a guerra de África. Se fosse um manifesto feminista não se ia falar da guerra. Por isso fala de esquerda e de direita. Por isso teve um processo político.


Aquando da publicação das Novas Cartas Portuguesas, Por­tu­gal era um país fascista, conservador e católico… …muito católico.

Mas nas Novas Cartas Portu­guesas, ninguém sabe que texto é de quem… Isso é diferente. É um autor-conjunto.

Alguma vez hesitaram publicar o livro? Não! Nunca hesitámos. Hesitar não faz parte da minha maneira de ser e por isso nunca faria um livro com pessoas hesitantes. Nun­ca hesitei. Antes pelo contrário, quando me proíbem de fazer alguma coisa, é quando eu faço. Tenho muita dificuldade em controlar isso. Não há nada a fazer. Proíbem-me e eu incandes­ço!

Nunca vão revelar quem escreveu o quê? Não. Eu tenho marcado no meu volume das Novas Cartas Portu­ guesas, quais é que escrevi.

Foi por isso que, no meio do reboliço das Novas Cartas Portuguesas que implicou um processo judicial, escreveu Edu­cação Sentimental? Exactamente. Seria o único livro que, uma pessoa que está em tribunal por um livro que escreve, não publicava. É um livro muito mais ousado e continua a ser o meu livro mais forte do ponto de vista da sexualidade. Foi uma forma de provocar? Eu acho que nem é uma forma de provocar, é a minha maneira de ser. Quando escrevo, não tenho nenhuma ideia de provocar. O seu discurso é conotativo, aberto a múltiplas dimensões de leitura. Por vezes, denota-se também a projecção de um “segundo eu”. São formas de se salvaguar­ dar? Não. Eu nunca me defendo da­qui­lo que escrevo. Essa é a minha característica primeira: a grande exposição.

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Há um esbatimento? Nem a Maria Teresa Horta sabe qual escre­veu? É difícil de saber entre mim e a Maria Velho da Costa. A Maria Isabel Barreno é mais filosófica. Eu sou a única das três que é poe­tisa. Mas não sou só eu que faço poesia… E acho que isso é muito evidente.

Voltando à sua poesia, não existem duas Marias? A minha poesia é como uma nascente que brota água e eu não sei de onde vem. Não sei se vem de uma rocha ou de um coração partido. Só sei que sou eu e que daquilo que é mais natural em mim, por isso é mais ardente, mais clara, porque eu sou uma pessoa meiga, afável. Não sou nada a femi­nista dura, radical, anti-homem. Há, de facto, dois “eus” na minha poesia e então no meu último livro [Inquietude] é tão evidente. Esses dois “eus” são assim tão distintos? Há um outro eu dentro de mim que é uma menina. Quando fiz psicanálise, cheguei à conclusão que há uma criança dentro de mim. Quem sofre é essa menina. Quando falo num outro eu, é de facto essa menina que vive e sofre dentro de mim.

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O seu percurso passa também pelo movimento cineclubista. Sim, fui a primeira dirigente de um cineclube em Portugal. Foram tempos muito empolgantes, tempos do fascismo que eram tempos péssimos mas simultaneamente tempos de coragem. As pessoas tinham que fazer coisas a partir dos sonhos. E os centros cineclubistas foram sempre centros de resistência ao fascismo. Como jornalista, também é inter­ ventiva? Muito. De que forma? Na forma de escrever. Sou uma jornalista da área da cultura. E assim não se nota tanto, a luta não é tão evidente. Mas, por exemplo, quando faço crítica literária, escrevo sempre sobre mulheres. Há uma coisa muito importante que é o contacto com os outros. As coi­sas que eu mais gosto são as entrevistas. O Mário Neves, que era o meu grande chefe de re­dacção, na altura em que fui para A Capital, dizia-me que havia muito empe­nho nas entrevistas que eu fazia. De facto, muito do que aprendi no jornalismo foi graças a ele. Ele foi uma referência para mim.

de contactar com as traba­lha­doras. Era uma revista que tentava mudar mentalidades. No prin­cí­pio, quem dirigia a revista era a Maria Lamas, que na realidade era apenas mentora do projecto. Basi­camente, eu era chefe de redacção e directora. Como o Partido Co­mu­nista [que financiava a revista] achou que eu era muito feminista, e então considerou que devia ter alguém que me controlasse. Aliás, durante toda a minha vida alguém me quis sempre controlar: a minha família, o Partido Comunista. E aí, o partido põe uma mulher chamada Helena Neves, que eu não me entendi muito bem porque eu era uma pes-soa muito aberta. Tivemos sempre grandes discussões. Mas sob o ponto de vista feminista, curiosamente, a Helena Neves ade­riu completamente e transformou-se numa feminista. Por ve­zes, era eu que tinha de exercer o meu bom senso, quando era para publi­car alguma coisa. Alguma vez se sentiu descriminada por fazer parte da revista? Sim, tantas vezes! Quando íamos para alguma conferência de impren­sa, éramos humilhadas, os colegas passavam-nos à frente.

Então, nem todas as suas referências são femininas… O Mário Neves entendia-me bem, deve ter sido a minha única refe­rência masculina.

O que é que pensa das revistas femininas de hoje? Mal, muito mal. Apenas reforçam estereótipos. Não põem em causa, não questionam, não perguntam, não alertam, que era isso que fazia a revista Mulheres, que foi a única revista feminista no país.

A sua experiência na revista Mulheres ajudou-a a estar mais próxima dos problemas das mu­lhe­res? Ajudou-me a estar mais próxima da mulher real. Deu-me oportuni­dade

Considera que o jornalismo ain­da é feito no masculino, ou já exis­­te um equilíbrio? Não, não há equilíbrio. Acho que há menos desequilíbrio do

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que havia. Não há directores mulheres. Há menos chefes de redacção, menos editores. E os jornais polí­ti­cos e económicos são muito masculinos. A economia é muito masculina. Aliás, a construção social foi feita pelo homem, à medida dele.

Continuam a existir os tais tectos de vidro… Sim, e acho que o nosso ritmo não é esse. As mulheres têm ritmos diferentes dos homens. A socie­ dade é feita à medida deles. É a mesma coisa que vestirmos um fato que não é a nossa medida.

Andamos com o fato, é melhor que ter frio, e adaptamo-lo. É isso que as mulheres estão a fazer neste momento. Estamos a fazer corte e costura até que fique do nosso tamanho. E é assim a construção social, foi feita por eles e para eles. E portanto temos que nos moldar,

modificando um bocadinho. E dá para ficar muito mais cómoda. Eles sabem isso, por isso é que nos dificultam tanto a vida. E por isso é que há tantos anos fomos impedidas, algum motivo havia. Para se fazer isto a mais de metade da humanidade, algum motivo havia.

Foi uma brutalidade. Deram apalpões, pan­ca­da, tentaram violar mulhe­res… rasgaram-nos tudo! A única mulher que ficou completamente intacta foi a noiva. Abriram clarei­ras onde ela estava!

a pulso. Na luta das mulheres, para se dar um passo em frente, tem que se dar dez, porque depois tem que se recuar nove e então fica aque­le. Isto é, quando dizemos o que con­seguimos, ainda há tanto para dar.

Gosto muito de ser feminista hoje Porque é que é feminista? Porque acho que as mulheres têm direito aos sonhos, têm direito a serem felizes. Durante séculos e séculos houve mulheres que luta­ram pelos seus sonhos, muitas vezes tinham que se disfarçar de homens para poderem concretizar os seus sonhos.

apertão aos homens que espancavam mu­lheres. E eles ficavam com medo. O movimento teve também muita importância na questão do aborto, porque alertava e apoiava as mu­lheres que praticavam o aborto pelo método de aspiração. Houve muita consciencialização feminina.

O 25 de Abril assinalou o avanço ou o retrocesso do movimento femi­nista em Portugal? Foi o começo. Não havia nenhum movimento, porque era tudo proi­bido. Não podia haver. Nem nin­ guém pensava nisso!

Após o 25 de Abril seguiram-se diversas manifestações. A mais cé­lebre manifestação feminista foi a organizada pelo MLM em Janeiro de 1975. Sim, foi a manifestação proibida pelos próprios homens. Era um meeting que queríamos fazer no Parque Eduardo VII, para quei­mar vários símbolos relacionados com a mulher, mas nunca soutiens! Nenhuma de nós usava soutiens naquela altura! Iam mu­lheres vestidas de vamp, de noiva, de mulher-a-dias. E íamos quei­mar a flor de laranjeira, o esfregão. Não tinha nada a ver com soutiens, isso é pura invenção! A Helena Vaz da Silva pôs na pri­meira página do Expresso, e depois pediu desculpa por isso, que nós íamos fazer striptease e por isso apareceram magotes de homens! Ainda por cima, apareceram também lá umas parvas com cartazes que diziam “Pró-vida! Contra o Aborto!”. Mas pronto, apanharam também…

Formou o Movimento de Liber­tação das Mulheres (MLM). Sim, no dia em que foi lida a sentença do processo das Novas Cartas Portuguesas. Nesse dia, à noite, fizemos a primeira reunião em casa da Maria Isabel Barreno. Quais foram as vitórias do movimento? Trabalhámos e fizemos muitas lutas. Acompanhámos, por exem­plo, a mudança do Código Civil, nas leis que dizem respeito às mu­lheres. Foi também muito importante o nosso apoio às mulheres espancadas. Tivemos um relacio­na­mento muito divertido com o Otelo Saraiva, que mandava um grupo de homens dar um

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Foi um fracasso? Foi uma vergonha… Os partidos não nos apoiaram, desculparam-se com as multidões. A comunicação social também foi uma vergonha. Divertiram-se imenso com as fe­mi­nistas… É um país vergo­ nhoso. Em 1998, num seminário organizado pela UMAR [União das Mulheres Alternativa e Respos­ta], disse na sua intervenção que “temos que cobrar à história todo o nosso tempo perdido” e que “para as mulheres, tem que come­çar a nascer o sol”: Ainda vivemos na sombra? Vivemos, com laivos de sol para onde corremos muito satisfeitas. Se os homens tiverem um sol me­lhor ao lado, deixam-nos ficar com aquele bocadinho. Por isso é que eu não sou a favor das quotas, mas acho que tem que se conviver com elas. Não há outra possibilidade! Os homens não largam as regalias que têm. Só largam quando não querem. Depois há aquelas lutas que nós conseguimos

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É uma luta difícil. Bastante, porque é uma luta que implica a família, o homem que amamos. Porque muda a vida das pessoas. É preciso ter uma rela­ção muito forte com alguém que amamos. Por exemplo, nas Novas Cartas Portuguesas, fui a única que ficou com o mesmo homem. A Maria Isabel e a Maria Velho da Costa separaram-se. É muito complicado, e implica comportamentos. O comportamento que temos lá fora, não permite que a gente chegue a casa e que aguente tudo. É impossível! Eu penso que é importante que as pessoas tenham consciência que das lutas mais difíceis é a luta das mulheres, seja ela chamada feminista, ou sufragista. Porque é uma luta que vai tocar as pessoas que nós amamos: os filhos, os maridos, os netos. Porque estamos a ir para a cama com aqueles que têm regalias, que nos oprimem. No fundo, é isto! Há uma falta de consciencialização das mulheres?

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Ou seja, as mulheres são impeditivas do próprio feminismo. Sim. Muitas vezes são as primeiras a criar essa imagem. Porque se as mulheres estivessem todas unidas para dizer uma mesma coisa era tudo mais fácil. Mas não… Por vezes, dizem que lutam pelos seus direitos mas não são feministas. Outras vezes dizem que são feministas mas muito femininas. Como se as feministas não fossem femininas! O que dizem é que são lésbicas, doidas, histéricas, mal fodidas… Era isso que me diziam quando me telefonavam para casa para me ofender. Eu sou feminista, casada há mais de trinta anos, tenho netos e estou muito apaixonada pelo meu marido. É contra o feminismo radical? Não sou contra grande coisa, a não ser contra o fascismo, a falta de liberdade, contra o racismo. Mas as feministas radicais podem prejudicar o próprio feminismo. Não é aqui em Portugal, porque não existem. Nos EUA, há mesmo movimentos que são feministas radicais. A essas chamo-as “mu­lheres que podem prejudicar o movimento feminista”. Nos Esta­dos Unidos, quando os grupos feministas começavam a ter maior visibilidade, o governo metia sempre ou mulheres lésbicas, ou radicais, para dissolver o movimento. O que é ser feminista hoje? É uma pergunta que eu faço todos os dias… o que é ser feminista hoje?

mui­to de ser feminista hoje. Há muita gente que diz que já não faz sentido. Eu fico estupefacta. Fala-se de pós-feministas, que eu não sei o que é. Para mim, há feministas. O feminismo tem que se adequar. É difícil responder a essa pergunta, porque a resposta varia conforme o contexto. O que é ser feminista hoje na Índia? Em que a mulher é completamente dominada e infeliz? Ser feminista lá é um pavor, aqui em Portugal não há perigo nenhum. O feminismo hoje no ocidente é diferente do oriente. A ablação do clítoris é das coisas mais horríveis que se faz. A negação do prazer… Completamente. A ablação, à for­ça. Devia ser um pedaço do pénis do homem, e há muito tempo que tinha havido uma guerra para acabar com essa prática! Assim, dizem que é a cultura. Não pode ser argumento! Isso violenta os direitos humanos em qualquer canto do planeta. Neste momento, estamos a falar aqui as duas e há centenas de meninas que estão de pernas abertas à força, que lhe estão a cortar o clítoris a frio com uma garrafa partida ou com uma tampa de uma lata ou uma faca de cozinha. É uma monstruosidade e como tem a ver com as mulheres, fica pela conta da cultura. Por outro lado, quando se diz que “entre marido e a mulher não po­nhas a colher” eu meto sempre a colher. As mulheres têm que ter consciência feminina, para conviver consigo próprias com bastante dignidade. Não podemos permitir que nos façam tudo e que façam tudo a outras mulheres como se elas não fossem nossas semelhantes. Portugal carece de um verdadeiro movimento feminista? Carece. Não há um movimento feminista que marque posição.

Comemora o 8 de Março? Sim, é como as quotas. Enquanto houver 8 de Março é porque é necessário, e enquanto houver necessidade é porque as mulheres continuam a não ter os mesmos direitos que os homens. Por isso é um dia de debate. Sim, completamente. Às vezes é um bocado deprimente mas tem que se fazer. Esse dia é já a ideia de realmente arranjar um pretexto para se poder falar das mulheres. Numa manifestação que as mu­lheres americanas fizeram a pro­pó­sito deste dia, há uns anos, tinha um cartaz que dizia “Dese­jadas um dia, exploradas todo o ano”, e eu acho que é muito isso. A despenalização do aborto é uma luta já antiga… Já não aguento mais. E acredita no “sim” do próximo referendo? Tenho que acreditar! Mas só acre­ dito no “sim” se as mulheres todas forem votar. Esse é que é o meu medo. Mas há muitas mulheres que votam “não”… Sim, e no dia seguinte abortam. Além de hipocrisia, é estupidez. É contra elas próprias que estão a votar. É um acto de egoísmo. É uma questão de classe social, porque essas podem ir a Espanha abortar, podem abortar numa clínica aqui em Lis­boa e estão-se nas tintas para as des­gra­çadas que não têm dinhei­ro e fazem abortos nos vãos de esca­das. Essas já abortam porque não têm possibilidade de ter aqueles filhos que até gosta­riam de ter… E ainda por cima podem ser apanhadas! [Entrevista realizada antes do referendo sobre a despenalização da IVG]

E não tem resposta? Tenho várias. Primeiro, gosto

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Frames de A mulher que acreditava ser presidente dos Estados Unidos da América, de João Botelho.

Sim, muito grande. Isso é o mais difícil de suportar. É a raiva que certas mulheres têm ao feminismo, a maneira como olham de lado, aquilo que passam, de mu­lheres estereotipadas.


Deixámos passar propositadamente – de propósito, na escrita jornalística – algumas gralhas e uma ou outra incorrecção. No espaço em branco desta página cada leitor pode anotar as falhas que julgou encontrar. Àquele que tiver encontrado mais desgraças será oferecido o lugar de revisor oficial de provas dos a título vitalício. E assim, pela primeira vez na história dos povos, o fracasso torna-se fonte de emprego.

Esta página pode ser sua. Mas de outras maneiras. Pergunte-nos como.

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re as prefe ão e j o n ”. H les, “ essão ais simp país e r p e d no ue m a e nte ênci n, porq a viver c s teme e n l o e o i o d t c á i r a t f de ca e se es a já su SA. iras u m tos s t de a q n r o t o a iolen e. rto ue v ro a e q m i c s ­ s e u s i s a b o fo ­do m bar anto d s ma Iraqu a com mun . dize n” em toon rra do o r rUm a n o c ” a e c a o n l r­tav b c to ” De ro ­ áti leve, os re a gue se imp­ o “ Ba r ram “tipo cigar ou um inho. d o o a b é Um ais e nã od sátir ram so s boca de big De o mpé pis f m m as, soa. e á toda e s l S z e b e o e e p f d h z o l n e e m n t a i . ir r xa te em m qu mem e ce izar ue a Qu Mafalda introduz se quei l is sa o ­ r u q o i h q d m n o a Os Ad iro das 65 pe­ria riado n” só pá” dúvi sta de mesm á vida 3 a rtoo il da im o”. ções ter c i a Ó e o d “ B a do d g n “ d r o arr um raíd m que as cont lhes o em ple . pai d ando o b te dist úsica om a m to e que C o n e n a , a m n s u j r e e e o c te po as m eq ad dad a m . dias ie alen as fr má sort er “alta socie ingenuid es que e é ese­nhos a a c o d s a i í r õ v u a i t d n s ó s s d z t s i i e a s s s e g i s d u pla d o s u e ia h n b s se d a p o e de fin le­vanta q ma a e ho é o eis a ver o s b u s n a a c z m É a l e e a ia e ent há d ta já co e qu s pa r fazem t r a b a e o gu A l l e n ufici s a r o o u o a d N n s fim. rajos a qu ody apen e co . i d e i a o que ássic de Wo ca foi co e até ao onso l s e qu prémios à dic a m t s c f n e e cer s u as nu ames Joy uís A um osta o, m t e n h a d m iL vário uerda o G , d t i a , t l J U sen de z. q síve erud e é ca adso o À es tanto fa rtoons de N r Ulisses eta pos ­grafia a is pele de de t ro r pa­ra a d o e p a l e e m , c o v é a a , ã G t r i b a i s o 0 n t oi, u re pa 199 diab on­ estir is an ssor de a tam e Sol. F ” ue s se rar con a v o h q o m n d m e c e a e u o n de liz O do Des bad p ro f o n v i c t o m e ç o u pro­c e quer rtoo voga ssista ou gem. ários Sá de Ca foi c o a t C á r e para es ond nconj r o o l . n p a prog or. e sboa e Re tejan es. içõ sema Nacion fala as d trad las se diçõ alen r Li ran­d para os o a g e o o d i G v i r p r o n t r e a a e s in a tra qu Prém quat evist os e que – nas Serp eiro os com na r e Negóci om o “ hos em i-se m usa i e R r a p , a c l ia So o u o se­n ”, Bol ornal d d t re m f u t e b o e d e d o s u a a l d a c á e o i l n s o l d ab o, J pub alard hore “qua por C e C do da úblic utros, g eus mel lho os – nda P a s n a b a o b s r r o ba os nd “Ba ssete entre mpilou mea incoerên deza gi­nas de coisa s o o c á a m n ou e já tro p ada, um atétio co s ica h p a polít a rel­i­giã n ­ n e e ­ s de d ou ent rtucias ivelm ema po re oon” onomia r t r r e a t b n o “B d a e c à ci ndo, so s ca, u a f v o r r p cu guês


O

J O R N A L I S M O

É

C U L T U R A ?

Durante dois dias de Novembro de 2006, discutiram-se as relações, nem sempre pacíficas, entre Cultura e Comunicação Social. O Colóquio de Outono, organizado pela Reitoria da Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto de Estudos Jornalísticos, juntou um ministro e um ex-ministro, jornalistas com trabalho na área cultural e o provedor do telespectador da RTP. A discussão foi animada e as páginas que se seguem são uma memória das ideias fortes do Colóquio, que contou ainda com uma exposição de fotografias de eventos culturais.

JOÃO ARMANDO RIBEIRO, 2006 • Cultura e Comunicação Social.

T O D O


Cultura e Comunicação Social

A definição que nunca te direi E

ra uma vez um colóquio sobre cultura e comunicação social. Como qualquer conferência do género, no corre-corre de persona­lidades e respectivos discursos, uma palavra prevaleceu: cultura. De tão pronunciada até podia ter-se esvaziado de sentido, isto se tivesse realmente possuído algum. Confuso? Definitivamente. O problema é que (e espante-se o leitor), num colóquio sobre cultu­ra, quase ninguém ousou definir a dita. “Cultura é aquilo que vulgarmente se entende por cultura”, ou­viu-se quase até à exaustão. E assim se violou repetidamente a principal das regras de uma boa definição, a saber: o definido não deve constar nela. Preciosismo? Não, de todo. A fuga à definição grassou nas mesas-redondas e até no discurso do ex-ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho. A opção foi justificada por uma questão de complexidade e de irrelevância. No fundo, o que estava em causa era uma noção de pendor elitista. Os intervenientes reportavam-se à produção artística normalmente (e infelizmente) ausente dos meios de comunicação social. Até aqui, (quase) tudo bem. Todavia, o desprezo pelo conceito

de cultura tornou-se flagrante quando os dados do relatório da Comissão Europeia se tornaram argumento favorável à divulgação da produção cultural de “águas profundas”, segundo a expressão do jornalista Carlos Vaz Marques. Defendeu-se que a cultura contribuiu com 2,6% para o PIB europeu, mais do que os sectores imobiliário e automóvel, e que, portanto, era incompreensível o tratamento a que estava sujeita no panorama mediático. O raciocínio é, à primeira vista, bem formulado, não fossem os in­tervenientes (convenientemen­te) obliterar a que é que se reporta esse estudo. Urge colocar a ques­tão: esse contributo significativo não provirá essencialmente das denominadas indústrias de conteúdos, de cariz essencialmente mercantilista? Maria João Silveirinha, docente e investigadora da área de Jornalis­mo presente na plateia, bem tentou despertar as consciências para a importância destes aspectos, mas em vão. É que a cultura rentável é precisamente a que assegura o sucesso dos principais meios de comunicação social. Não se trata de descurar a impor­ tância da divulgação da cultura

de profundidade ou de fazer uma apo­logia dos conteúdos produzidos no seio de projectos que aspiram ao lucro. De facto, o que está em causa é a necessidade de uma reflexão séria, que não se apoie em argumentos que possam ser facilmente desmontados. Por outro lado, menosprezou-se um outro aspecto que me parece crucial. Nem sempre a produção cultural alternativa que figura nos media é acessível ao cidadão comum, muito por culpa do hermetismo da linguagem utilizada, como notaram pessoas da plateia. Mas, mais uma vez, os intervenientes fizeram os chamados “ou­vi­dos de mercador” a um assunto importante. Foi tudo, então, negativo? Não, embora me pareça que alguns dos presentes na assistência teriam ha­bi­tado com mais propriedade os lugares da mesa-redonda. Mérito ainda para os organiza­dores do colóquio, que puseram quem nele participou (e quem sa­be alguém mais) a falar ou a escre­ver sobre cultura e comunicação social, um tema sobre o qual urge reflectir.

Catarina Prelhaz

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23


Cultura e Comunicação Social

O estado de graça da cultura A

24

ideia é simples: o casamento

generalidade dos casos, não se

o que se faz em Portugal. E a

entre comunicação e cultura é

inauguram secções de cultura em

nossa cultura? Talvez haja uma

afinal um divórcio. Em Portugal,

jornais regionais. Quando inter-

definição muito restrita e paradig-

e em pleno século

não há

rogada, Lídia Pereira, jornalista

mática de cultura. E, se houver,

qualquer tipo de investigação

do jornal regional As Beiras, jus-

essa defini­ção refere-se a formas de

que incida sobre a comunicação

tifica, afirmando que o papel

cultura marcadamente elitistas.

da cultura, para não falar que

da imprensa regional é actuar

Num país em que o orçamento

a comu­nicação de cultura que se

como divulgadora. Mas não terão

para a Cultura se salda nos 0,4 por

faz, tende a propagar paradigmas

os leitores da imprensa regional,

cento – percentagem muito infe­

já existentes. O que, de certo

de proximidade, direito a algo

rior aos 1,1 da Tunísia, país dito

modo, não é de estranhar no nos­so

mais que pura divulgação?

não desenvolvido – num país on-

pequenino país, que gostamos

Afinal, o papel do jornalismo, in-

de faltam as verbas suficientes

de

desenvolvido,

dependentemente da dimensão

para manter determinados even-

mas ao qual falta ainda muito

do órgão de comunicação social,

tos culturais e numa cidade uni-

desenvolvimento... principalmente

é abrir e alargar horizontes...

versitária onde a cultura é des-

inte­lectual.

Mas as questões prevalecem: de

prezada pelas próprias chefias,

As conclusões a que se chegou

quem é a culpa? Quem são os res­-

que futuro para a cultura? Que

durante este colóquio e, nomea-

ponsáveis por este estado de

futuro para os portugueses? Qual

damente,

debate

graça? Os editores? A lógica mer-

o futuro da nossa identidade

sobre a cultura vista do lado dos

cantilista das notícias? A cultura

enquanto portugueses? Sem dú-

agentes de comunicação social,

não é lucra­tiva? A verdade é que,

vida que há um estado ‘demasiado’

foram um pouco inconclusivas,

ainda que a resposta a estas ques-

instalado. E com mui­to pouca

mas retemos que, se existe algu-

tões seja positiva, há que ter em

graça. A cultura não pode con-

ma forma de jor­nalismo cultural

conta que a cultura é vista, de

tinuar a ser desprezada como tem

no nosso país, expressa-se de um

um modo geral, como uma acti-

vindo a ser por governadores e por

modo muito apagado.

vidade que ‘dá prejuízo’ e um tema

governados.

Mesmo numa cidade como Coim-

não muito nobre a ser tratado

Portugal não se deveria reduzir ao

­bra, cidade universitária, com algu-

na imprensa.

fado e à nostalgia. E está na altura

ma actividade cultural, verifica-

Olhando para um diário de tira-

de os portugueses mudarem o seu

mos que a secção de cultura de

­gem nacional, percebemos que as

destino.

um dos diários regionais é com-

páginas de cultura são ocupadas

posta apenas por uma pessoa,

ou por crítica de espectáculos,

a acrescentar ao facto que, na

ou por notícias que pouco espelham

considerar

XXI,

durante

o

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Sara Peres


PAULA MONTEIRO, 2006 Um olhar sobre a exposição “Fotojornalismo & Cultura” de Sérgio Azenha.



Conversa com Carlos Vaz Marques

“A rádio talvez não tenha perdido ouvintes” A

meses de o programa “Pes­soal e Transmissível” comemorar seis anos, que balanço faz e que metas tem para o futuro? Em relação a metas para o futuro, continuar diariamente a descobrir uma pessoa interessante para uma conversa que possa interessar-me não só a mim como à audiência. Quanto ao balanço, são cerca de seiscentas entrevistas, para mim é muito enriquecedor. Conheci mui­­ta gente que não teria conhecido noutras circunstâncias e isso deu-me um capital de experiência pessoal que me satisfaz muito. A me­ta é continuar, e que as coisas se mantenham assim senão me­lhor.

O jornalista da TSF Carlos Vaz Marques, que mantém o programa “Pessoal e Transmis­sível” há quase seis anos, reflecte sobre o paradoxo entre aquilo que é notícia e o que é realmente novidade e a margi­nalização da vida cultural da periferia em detrimento dos centros de decisão.

Das entrevistas que fez, consegue eleger as que lhe deram mais go­zo fazer? Lembro-me duma entrevista com a Adriana Calcanhotto, que foi fan­­tástica, com a coreógrafa Vera Mantero, ou com o Dalai Lama. Estas entrevistas foram especiais porque se criou um clima de en­tendimento, parece que tudo corre bem do princípio ao fim. Sinto que o entrevistado se está a entregar generosamente à conversa. Há alguma pressão por parte da direcção em relação aos con-

vidados que leva ao programa? Não, nenhuma. Até hoje nunca me disseram que eu devia escolher este ou aquele convidado. Eu sou o editor daquele espaço, primeiro e último responsável. Se eu pudes­se ter um produtor e um pesqui­sador dava-me imenso jeito e poupava-me muitas canseiras, mas não é possível. Portanto, faço tudo sozinho, digamos que aquilo é um one man show. Na mesa-redonda falou-se do paradoxo de noticiabilidade e da novidade. Acha que há na comunicação social resistência à novidade? Eu acho que há um paradoxo na área da comunicação social em geral e não em particular na cultura, entre por um lado a comunicação social se alimentar do que é novo e não é ainda conhecido, e por outro lado se alimentar também do reconhecimento. As au­diências aderem mais facilmente a algo que já sabem, em detrimento daquilo que é absolutamente novo e nunca ninguém ouviu falar. Veio também à discussão o conceito de macrocefalia na cultura em Portugal. É impossível fugir aos grandes centros

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como Lisboa e Porto? Essa macrocefalia tem duas razões. Em primeiro lugar, os centros de decisão estão concentrados, de facto, em Lisboa. Por outro lado, a permanente contenção orçamental que tem sido imposta nos órgãos de comunicação social leva a que se restrinja tudo a um núcleo duro central. Normal­mente corta-se no que está na pe­ri­feria, neste caso na periferia geográfica. O podcast do “Pessoal e Trans­missível” é dos mais requisitados da TSF. Qual é a sua opinião re­la­tivamente ao contributo desta tecnologia para o futuro da rá­dio? Fico muito satisfeito que o “Pes­soal e Transmissível” esteja normalmente entre os cinco podcasts mais descarregados na loja do iTunes. É sintoma que o programa tem um público. Neste momento, acho que o podcasting está ainda muito longe do potencial que possui. Não sei como vai influenciar a rádio, o que sinto é que a rádio talvez não tenha perdido ouvintes, se calhar há tanta gente a ouvir rádio hoje como há dez anos, mas perdeu-se alguma notoriedade social. Tiago Pimentel

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Conversa com Ana Sousa Dias

“Não posso dizer se para o ano vou ter programa”

A apresentadora do “Por outro lado” revela não saber o seu futuro e lamenta que a

televisão

não

divulgue

mais temas culturais.

A

ssumiu que não inaugurou

a entrevista intimista. Considerase o maior exemplo actual deste tipo de entrevista? Não me considero exemplo de na­da. Em termos profissionais, se há alguma coisa que me parece inte­ressante e inovador é a introdução de pessoas que não fazem parte da ribalta. No meu programa tenho conseguido isso em várias áreas, em especial na científica. E o “Por outro lado” tem tido su­ces­so nesse aspecto? Não sei muito bem medir isso, a não ser na resposta que tenho re­ce­bido. O programa não tem um índice de audiência muito elevado, mas quem o vê, vê-o com

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muito interesse, daí haver um

já se come­çam a ver sinais de melho-

que os jornalistas não tentem

maior conhecimento da pessoa

ria, em especial ao nível do serviço

impor o que está na sua mente e

por parte de quem assiste.

público, com programas a ensinar

até possam indicar acontecimentos

Mas é normal que os entrevistados

me­lhor a língua portuguesa, e a

ou pessoas que lhes chamaram a

te­nham uma maior projecção,

Dois, que é o canal onde é trans-

atenção.

até porque a televisão lhes permite

mitido o “Por outro lado”, e que

uma exposição que não há

tem muita programação de cariz

A entrevista ao Alberto Manguel

nou­tros meios.

cultural. Tam­bém o noticiário do

não se realizou por não haver um

segundo canal tem muita infor-

estúdio disponível. É frequente

mação nesta área.

este tipo de situações?

A longevidade do programa é uma prova de que há interesse

São muitas as limitações em

por temas culturais?

Qual é o lugar do “Por outro

televisão. É um meio que exige

Não prova nada, até porque

lado” nesse espaço que os media

sempre uma série de problemas

traba­lho sempre sem saber o que

dedicam à cultura?

de logística, até porque nem

é o futuro. Funciono por contra-

Não

isso,

sempre é possível conciliar o tempo

tos de seis meses e não posso dizer

até porque não tenho uma teoria

com o espaço. Por exemplo, se

se para o ano vou ter programa.

a esse respeito. Gostava que fosse

vier alguém do estrangeiro por

Come­cei com um programa para

um espaço que fizesse pensar,

dois dias, e não houver estúdio ou

13 semanas e já dura há cinco

um espaço de respiração em que

outro tipo de meios disponíveis

anos, e isso é meritório. Mas

uma pessoa visse ali algo de novo.

nesse tempo, não se faz.

sei

responder

a

o grande mérito do “Por outro

Não é uma crítica, é um aspecto

lado” acaba por ser o mostrar

Acha que o problema da cultura

outros ângulos.

nos media começa de cima, nas chefias?

Parece muito crítica em relação

Tudo isso passa por decisões

à

prévias

cultura

na

televisão.

relativas

às

escolhas

É o meio que precisa de mudar

das pessoas para os lugares de

mais aspectos?

chefia. É óbvio que, quando

A televisão impõe-se pela sua

se escolhe uma determinada pes-

pene­­tração. É um meio extrema-

soa, tem-se em mente as capa-

mente importante, e é pena

cidades dela e o que ela vai fazer,

que não seja usado para divul-

e isso acaba por condicionar

gar temas cultu­rais. No entanto,

tudo o resto. O que não significa

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prático.


Sou uma jornalista sempre com o desejo de aprender Não se considera jornalista de

fim em si, é um intermediário.

cul­tura. É uma jornalista com

escolher, tomo as minhas decisões,

Gusmão, o Paul Auster ou

mas sinto mui­to a falta do

o Júlio Pomar. Mas também é

ambição de ser culta?

Trabalha melhor sendo free-lancer

trabalho em equipa, que é funda-

óptimo entrevistar pessoas menos

Completamente. Sou uma jorna­-

do que vinculada a um órgão?

mental para mim.

conhecidas, e mos­trar pessoas que

lista sempre com o desejo de apren-

É uma questão circunstancial,

der. Entendo o jornalismo como

sou freelancer por razões de

Houve algum entrevistado mais

um desejo de observação, co-

ordem prática. Há vantagens

marcante?

mo uma forma de questionar tudo

e desvantagens. Tenho muito

Foram todos. É claro que foi

o que existe. E o jornalista não é um

mais liberdade e possibilidade de

óptimo entrevistar o Xanana

o público não conhece.

João Campos


Manuel Maria Carrilho

“ 75% da cultura vive em situação de não comunicação” “Setenta e cinco por cento da cultura em Portugal vive em situação de não comunicação”, alertou o ex-ministro da Cultura Manuel Maria Carri­lho, para quem este défice é tanto mais grave quanto se constata que “vivemos na democracia do público, onde os órgãos de comunicação têm mais impor­tância que os partidos” na formação da opinião pública. O deputado socialista defendeu que a transmissão da cultura em Portugal se faz no “registo da informação mínima” e de “suposto espectáculo de comentário”, com prejuízo para o exercício da democracia representativa.

A

intervenção de Manuel Maria Carrilho intitulada “A Comunica­ção da Cultura e a Cultura da Comunicação” fechou o colóquio “Cultura e Comunicação Social”, promovido pela Reitoria da Uni­versidade de Coimbra nos dias 21 e 22 de Novembro. Perante um cenário de “tabloidização geral” dos meios de comunicação social, “um ponto fundamental é reforçar os limiares de sensibilidade e exigência demo-

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crática de modo a que haja mais verdade e diversidade no espaço público”, sustentou perante uma plateia de cerca de 250 pessoas. Para Carrilho, a marginalização da cultura reproduz-se também ao nível do dis­curso dominante. “Nos opinion makers mais falados há um dis­curso de anti-cultura portuguesa”, pro­testou. Fazendo uma crítica velada a Marcelo Rebelo de Sousa, o deputado alegou ainda que a televisão de serviço público deve evitar a “dominação de um comen­ tador que faz carreira política com o erário público” e de um “comentário dominical sem qualquer pluralismo”. O ex-minis­ tro defende ainda que a cultura não deve ser vista como uma “flor na lapela”, mas como um vector fundamental no desenvolvimento do país e um eixo das políticas de qualificação. “Não ver na cultura um trunfo é uma enorme ceguei­ra”, advertiu com base nos dados do relatório da Comissão Euro­peia acerca do estado do sector. O estudo da União Europeia diagnosticou que, em 2003 e 2004, o volume de negócios na área da cultura e da criação foi de 654 milhões de euros e constituiu 2,6 por cento do

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PIB europeu. A contribuição do sector superou inclusivamente as do imobiliário e do automóvel, conforme notou o deputado socialista. Segundo Manuel Maria Carrilho, a cultura, tal como a Educação, a Saúde ou Agricultura, deve ser financiada pelo Estado, à semelhança do que acontece na generalidade dos paí­ses europeus. Para o socialista, o tema recorrente da “subsidiodependência” é uma forma “bi­zar­ra” de “marginalizar” a actividade e revela “preconceitos quase oitocentistas”. Por outro lado, o poten­cial económico da cultura justifica, segundo o deputado socialista, uma maior intervenção do Estado na comunicação e a necessidade de escrutínio público e de um exercício de autocrítica por parte dos media. Para o ex-governante, na comunicação social “os erros têm dimensões monumentais e as rectificações são residuais”. “Há coisas graves a passar-se atrás do biombo”, alertou. Para tal, a Entidade Re­gula­dora da Comunicação deve tor­nar-se um “interveniente quotidiano e não episódico ou ocasional”, exigiu Carrilho. “Falar de cultura não é falar de coisas mes­quinhas, mas de desígnios de cidadania”, preveniu.

Quanto ao papel hegemónico da televisão, o ex-ministro argumentou que ela é um “bem público limitado” onde “se decide o que vale a democracia” e cuja concessão deve ser vigiada. “O problema é a total erosão da dimensão da cultura em telejornais, verdadeiros realityshows, que são uma mistura de coisas proibidas pela lei”, apontou. O ex-responsável pela pasta da Cultura repro­vou a renovação das licenças dos operadores privados de televisão. “Foi como passar com uma esponja em crimes graves” decorrentes do incumprimento dos contratos iniciais, acusou. A televisão pública também não se furtou às críticas do ex-ministro. “Mesmo a RTP tem muito que andar”, alertou. Segundo Manuel Maria Carrilho, a par de promo­ver o pluralismo, a estação “deve reduzir o tempo do telejornal e aumentar o espaço de debate”. “A cultura é o que se faz no fim se houver tempo e dinheiro para isso”, lamentou.

Catarina Prelhaz


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vale a pena uma licenciatura em jornalismo? João Figueira, António Granado

Diz-se aos estudantes que o jornalismo é uma profissão exigente e de uma responsabilidade social como poucas. Chegados ao mercado de trabalho cons­ta­­tam que as empresas querem, realmente, mão de obra cada vez mais qualificada, mas de preferência baratinha. Muitos acabam atrás do balcão de um franchising, aumentando as qualificações académicas dos antigos caixeiros. É para isto que os universitários estudam? No Congresso Internacional Premium, organizado pelo Centro de Estudos das Tecnologias, Artes e Ciências da Comunicação da Universidade do Porto, debateu-se, nos dias 8 e 9 de Março de 2007, a "Integração profissional dos licenciados em Jornalismo/Ciências da Comunicação". Uma das comunicações apresentadas é o texto que segue. Portugal tem mais de três dezenas de cursos de comunicação e de jornalismo que, anualmente, atiram para o mercado de trabalho várias centenas de jovens. Não há, que se saiba, números fiáveis que nos indiquem com a necessária precisão o todo nacional dos licenciados nesta área que se encontram desempregados, em situação de sub-emprego e os que exercem profissões não diferenciadas e sem qualquer exigência de formação superior. Os mais atentos e, sobretudo, aqueles que seguem o percurso dos seus ex-alunos, sabem que esta hemorragia de jovens licenciados começa a ser um sintoma preocupante para a saúde destes cursos. Embora as causas e a responsabilidade da escassez e perda de qualidade de emprego, neste domínio, não sejam do foro das instituições formadoras, o certo é que estas não podem nem devem ficar indiferentes a um fenómeno que, apesar de lhes ser estranho no sentido em que lhes é exterior, acaba por afectar e ferir com gravidade a razão de ser de tais cursos. Escutemos, por uma vez, testemunhos concretos. Diz a Sofia: “Eu trabalhava oito horas por dia para um site de turismo. Ganhava 250 euros mensais”. Ao fim de um ano conseguiu trocar este emprego pelo balcão de um franchising num dos centros comerciais de Lisboa. A Marta teve mais sorte: “O meu primeiro emprego, após a licenciatura, foi numa rádio onde recebia 400 euros por mês”. Uma outra colega sua esteve à experiência quase um ano numa revista semanal, sempre a recibos verdes e sempre com promessas de no mês seguinte melhorar o salário de 500 euros que levava para casa. Quanto ao horário de traba­lho, era uma ilegalidade pegada: entrada às 10 horas e saída sempre depois da meia-noite. Situações de exploração terceiro-mundista como estas foram e são, infelizmente, vividas neste momento por centenas, talvez milhares de jovens licenciados que peregrinam silenciosamente de emprego em emprego mal remunerado, numa via sacra penosa e indigna

para quem obteve formação superior e de quem se exige um trabalho qualificado e de alto grau de responsabilidade. Os exemplos são tão variados quanto ofensivos da dignidade das pessoas. Como este, de uma revista de economia que ia ser lançada no mercado. A proposta feita à jovem candidata a um dos lugares da redacção foi esta: seis meses de estágio a 250 euros mensais, com a promessa de que se as coisas corressem bem ela seria, mais tarde, integrada nos quadros da empresa. O ordenado proposto dava para pagar o quarto alugado em Lisboa e mais nada, pelo que ou os pais a continuavam a sustentar, apesar de licenciada e empregada, ou ficaria mais em conta regressar a casa, continuar a responder a anúncios e a enviar o respectivo currículo. Eis, de forma muito sucinta, a experiência que antigos estudantes dos cursos de comunicação e jornalismo têm vivido nos últimos três anos. Fruto da crise crescente e notória no sector da comunicação social, cujas empresas, como se sabe, têm procurado emagrecer os custos com os recursos humanos, os jovens licenciados chegam ao mercado de traba­lho mais desprotegidos que nunca e com poucos horizontes de esperança. Colocados perante tal cenário, a maioria acaba por aceitar e, até, agradecer, a hipótese de um trabalho mal remunerado com a esperança de que com um pouco de sorte e paciência as coisas vão melhorar. Admitamos que sim, que as coisas vão alterar-se para melhor. Porém, aquilo que a nosso ver está em causa vai muito para além das discussões sobre sorte ou azar. Aquilo que se ensinou aos alunos e que eles ouvem os profissionais dizer é que o jornalismo é uma profissão exigente e de uma responsabilidade social como poucas. Por isso têm disciplinas como Ética e Deontologia, que reforçam a ideia de responsabilidade e transmitem aos seus destinatários um sinal inequívoco da influência que o desempenho do jornalismo tem nas sociedades actuais e, por consequência, na vida das pessoas. Por se entender, aliás, que a profissão de jornalista tem características


e exigências próprias é que a maioria das grandes empresas de comunicação social passou exclusivamente a aceitar licenciados. Não necessariamente licenciados em comunicação e jornalismo, mas pessoas com formação superior. Ora, o grande paradoxo está nesse inacreditável cenário que exige mão de obra mais qualificada, mas, por outro lado, quere-a de baixo custo. Longe de citarmos o ministro da Economia, Manuel Pinho, para quem é uma vantagem competitiva e identificadora do Portugal moderno, termos quadros superiores mal remunerados, aquilo que verdadeiramente está em causa é a perigosa perda de dignidade da formação universitária. Porque, sejamos claros, fica mais barato às famílias e ao País que os seus jovens, findo o Liceu, partam à procura de uma vaga num franchising qualquer, em vez de procurarem, isto é, serem obrigados a contentarem-se com esse mesmo emprego quatro ou cinco anos mais tarde, apesar de munidos de um diploma universitário que é, para muitos, nestas circunstâncias, a marca de um fracasso que não procuraram nem mere­ciam. Mas a questão da empregabilidade é, a nosso ver, muito mais complexa e toca ainda outros aspectos que importa referir. Em primeiro lugar é essencial que se tenha em conta que falamos de uma vasta área profissional e empresarial alheia à universidade. Depois, é preciso ter presente que todas as mudanças e reconversões operadas no campo da comunicação social são ditadas por razões de ordem económica, financeira e de audiências, factores estes que igualmente se encontram a jusante da formação académica dos futuros candidatos a jornalistas. Contudo, tais alterações e flutuações de mercado e de empregabilidade acabam por se reflectir na maior ou menor dose de oportunidades dos jovens licenciados, independentemente da qualidade da sua formação e preparação. Temos, portanto, de um lado, o mundo das empresas de comunicação social que ajustam os seus modelos de organização e de trabalho de acordo com os seus objectivos e necessidades e, do outro lado, a Univer­sidade que organiza e define os respectivos planos curriculares segundo opções próprias e tendo em conta um conjunto de princípios que expres­sam a sua ideia sobre o tipo de formação que deve ser dada a um candidato a jornalista. E porque é de jornalistas e da sua empregabilidade que falamos – e não de candidatos a investigadores dos media, que é uma coisa muito importante, mas algo diferente do tema aqui lançado – talvez seja altura de nos determos sobre dois tópicos fundamentais: tendência para o aligeiramento temático da informação; e os riscos das redacções deslocalizadas. Vamos por partes. Uma observação sumária sobre as opções editoriais e os enfoques

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noticiosos da generalidade dos meios informativos portugueses facilmente conclui que há uma tendência crescente para o aligeiramento e superficialidade no tratamento dos assuntos. Nada de especialmente novo, dir-se-á. Thomas Patterson, investigador da Universidade de Harvard, num estudo intitulado “Tendências do jornalismo contemporâneo – estarão as notícias leves e o jornalismo crítico a enfraquecer a democracia?”, sustenta que “as notícias mudaram muito nas duas últimas décadas” e que “em resposta a uma situação intensamente competitiva, as empresas jornalísticas aligeiraram a cobertura jornalística dos acontecimentos, ao mesmo tempo que as notícias assumiram um tom cada vez mais crítico”. Qual o leitor ou telespectador português que não se revê neste cenário descrito por Thomas Patterson? Mais: perante tal derrapagem de exigência, a Universidade é a primeira a apontar o dedo acusador. Razão pela qual ainda recentemente um aluno nosso dizia que os cursos de jorna­lismo, pelo seu pendor crítico, eram a maior fonte de desencorajamento dos jovens que querem ser jornalistas. Aparentemente acessória, esta questão suscita um dilema interessante: deverão os cursos de jornalismo adaptar-se aos ventos renovadores e ligeiros do exercício dominante do jornalismo ou, pelo contrário, devem manter e, se possível, apurar os graus de exigência? Isto é, devem tais licenciaturas moldar-se à realidade profissional e, nessa medida, adaptar os respectivos planos de formação aos requisitos do empregador ou, ao invés, manter os níveis de formação elevados, independentemente das flutuações do mercado e das suas tendências temáticas? Situando-nos num campo onde os enquadramentos profissionais e res­pectivas competências para o exercício da profissão de jornalista estão exclusivamente nas empresas e fora da alçada da Universidade, o que não sucede com outras licenciaturas, isso significa que o acesso ao emprego e as taxas de empregabilidade de cada curso não estarão, necessariamen­te, ligadas à qualidade da formação prestada e conseguida, mas a vários outros factores. Argumentar-se-á, contrariando esta ideia, que as empresas acabam por empregar os melhores estagiários ou, pelo menos, aqueles que mais rapidamente demonstram possuir as qualidades intrínsecas ao bom repórter. A ser assim, ou seja, se é a qualidade que está em causa, porque é que essas mesmas empresas prescindem do trabalho dos seus mais competentes e experientes profissionais? Ora, é neste contexto competitivo que as Universidades hoje se encontram, com exigências e necessidades de resposta e de sucesso ao nível da empregabilidade, nunca antes enfrentado. Esta nova realidade, acelerada agora pelo famoso processo de Bolonha e agravada pelo sub-financiamento do ensino superior, pode conduzir os diversos estabelecimentos a enveredarem por caminhos mais próximos do marketing e do comércio de licenciaturas, do que fazê-los assumir um protocolo geral de exigência. Sejamos claros: se se defender que as licenciaturas em jornalis­mo têm o dever de olhar e moldar-se à realidade que vai absorver os seus alunos, dando corpo a uma política educativa flexível e de grande

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plasticidade, secundarizando o pensamento crítico e reflexivo em prol de uma formação assumidamente profissional, então a licenciatura não faz qualquer sentido.

empregabilidade, embora podendo ser, à nascença, uma questão concreta do sector, acaba por ver tal situação agravada pelo excesso de recursos disponíveis e por uma pro­cura que não pára de subir.

Uma licenciatura implica um conceito acerca dos requisitos necessários ao bom exercício de uma determinada profissão e quais os saberes que lhe estão associados. Prescindir destes princípios é prescindir da principal função académica. Outra coisa bem diferente e à qual voltaremos mais adiante, é a desejável aproximação e estreito relacionamento entre as universidades e as empresas de comunicação social.

Dentro deste quadro geral de raciocínio entendemos que é crucial para todos – professores, empresas e, sobretudo, alunos – que os principais actores deste processo sejam capazes de estabelecer um conjunto de regras ou princípios que, embora salvaguardando o essencial de cada área específica, dignifique o emprego e privilegie a qualidade dos recursos humanos.

O outro tópico que há pouco referimos é o da deslocalização das redac­ções. Trata-se, ainda, de um fenómeno que Portugal desconhece, apesar da experiência que o seu sector industrial infelizmente já sente neste domínio.

Nesse sentido, propomos as seguintes medidas:

Olhando, no entanto, para o que actualmente se passa lá fora, em algumas das mais emblemáticas empresas de comunicação social, como a agência Reuters, o diário Chicago Tribune ou o Columbus Dispatch, aquilo que vemos é uma enorme transferência de postos de trabalho. A convergência dos meios que, ainda recentemente, fazia escola, prome­tendo que o futuro estaria do lado dos jornalistas multimédia, parece estar em causa, ainda antes de se ter afirmado. Índia, Filipinas e Singapura são, neste momento, os destinos principais de importantes frentes de trabalho daquelas empresas. A análise sobre Wall Street feita pela Reuters está hoje situada em Bangalore, na Índia, onde várias centenas de jornalistas com baixos salários trabalham e escrevem, se necessário, sete dias por semana. O mesmo sucede com a edição da sua gigantesca produção fotográfica. A Reuters transferiu-a para Singapura, onde agora são trabalhadas todas as imagens relativas à cobertura dos acontecimentos dos Estados Unidos e do Canadá.

1. Realização de um grande encontro nacional entre as licenciaturas em jornalismo e os principais responsáveis (administradores e directores) dos órgãos de comunicação social, com vista a debater e definir quais as grandes prioridades, tendências e carências do sector para os próximos cinco anos; 2. Introdução, nas licenciaturas em jornalismo, de matérias especialmente viradas para o empreendedorismo, de modo a dar instrumentos aos alunos para poderem, caso queiram, criar as suas próprias empresas de comunicação; 3. Criação de mecanismos que possibilitem aos alunos, durante os períodos de férias, realizar pequenos estágios com o objectivo de apreenderem as diversas etapas e momentos de produção noticiosa; 4. Criação do Observatório do Jovem Jornalista, com a finalidade de seguir e estudar as tendências de emprego dos recém-licenciados e de informar as licenciaturas dos dados que vai recolhendo, para que estas os incorporem nas diversas medidas e opções que tomarem; 5. Congelamento da abertura de novos cursos de comunicação social e jornalismo.

O Chicago Tribune, por seu lado, vai adjudicar a uma empresa das Filipinas toda a parte técnica da produção do jornal, o mesmo se passando com o histórico diário do Ohio, o Columbus Dispatch, que despediu cerca de uma centena de pessoas, em consequência de ter transferido para Pune, na Índia, toda a produção técnica, incluindo a maqueta do jornal.

Com tais medidas, que o debate deste Congresso pode, se assim desejar, enriquecer com outras tantas, acreditamos que estaremos a dar passos no sentido de contribuir para o desanuviamento do horizonte cinzento que hoje espera os jovens licenciados. Embora saibamos que não há medidas milagrosas, mas apenas tentativas esforçadas e esclarecidas, para melhorar uma situação que a todos preocupa e que, todavia, ninguém tem a chave do segredo.

Eis o mercado a funcionar, como dirão os economistas mais liberais. Mas estes exemplos de deslocalização, que em Portugal podem começar com experiências de redacções em sistema de out-sourcing, devem servir de importante alerta. Sobretudo, como é o nosso caso, quando o mercado interno português é limitado e, nesta área concreta, mais reduzido ainda se torna. O que, no limite, nos leva a perguntar se é razoável ou, até, necessária, a existência de mais de três dezenas de cursos de comunicação social e jornalismo, com o consequente desaguar de enormes caudais de jovens licenciados numa área que dá, presentemente, evidentes sinais de saturação. Isto é, o actual problema da

Porém, ignorar o que se passa ou nada fazer para alterar substancialmente uma situação que a todos preocupa e a muitos desagrada é uma desonestidade intelectual e um crime de lesa-educação. Mas quando dizemos que é preciso abanar as indiferenças e as rotinas estabelecidas e proceder a alterações visíveis, isso significa que está de pé um desafio que cabe a todos assumir e interpretar com o melhor das capacidades e empenho de cada um, para que daqui a um ano ou mais não estejamos no mesmo ponto em que hoje nos encontramos. A quem aproveitaria, afinal, a velha frase do Príncipe de Salinas, segundo o qual “é preciso mudar alguma coisa para que tudo permaneça na mesma”?

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EUGÈNE DISDÉRI, 1871 • Vítimas da Revolta da Comuna de Paris. Insurrectos aos olhos do poder. Camaradas aos olhos do contra-poder. E aos olhos do fotógrafo?


Best Of Um lugar marcado para o melhor da investigação académica de alunos. A partir de relatórios de estágio, de trabalhos de seminário ou de outros que venham a surgir. Com tempo e espaço.


CECIL BEATON, c. 1935 Fotografia da moda.


Concorda com a existência do

Vox Populi? Isabel Peixinhos Caia O presente texto tem como objectivo primordial apresentar uma análise ao trabalho realizado du­rante a janela temporal na qual decorreu o meu estágio curricular da Licenciatura em Jornalismo, ou seja, entre 18 de Julho e 21 de Outubro de 2005, no jornal Público, em Lisboa. A premissa inicial, sob a qual se erige este testemunho, gira em torno de uma dicotomia inerente às sociedades modernas, a saber: a forma como o campo social dos meios de comunicação surge imbri­cado no campo social1 da política, em particular no âmbito das democracias ocidentais. Em uma época histórica, caracte­rizada pela complexidade societal, na qual o homem não tem acesso directo a todo o acervo de informação de que necessita, uma vez que não pode estar presente nas sedes onde as decisões são toma­ das, os meios de comunicação ganham um relevo presencial não negligenciável nas vidas quo­tidia­nas, como elementos estru­turadores de mediação simbólica. Por outro lado, nos Estados onde vigora um sistema político como a Democracia, «a luta política é, em grande medida, uma luta de cariz simbólico, uma luta de palavras contra palavras, cujo objectivo é impor uma visão do mundo, uma representação da realidade social e uma certa concepção da ordem social, a fim de a conservar ou, ao contrário, de a subverter» (Correia, 2001:10).

Com este pano de fundo, é im­por­tante perspectivar qual é a fun­ção do campo dos media, e em particular, como os jornalistas podem ser entendidos e qual o seu papel. Retomando as palavras de Correia, naquela luta, «os jornalistas e os media desempenham um papel estratégico. Em face da acentuação desta dinâmica plura­lista, os media apesar da forte componente hedonista que ostentam, podem ser também os veículos de afirmação da diferença e de regresso das identidades, graças às quais se torna possível multiplicar espaços públicos de afirmação da cidadania» (Correia, 2001:10). Neste sentido, o cerne deste rela­tório expressar-se-á através do problematizar questões relativas à importância dos media enquanto instrumentos potenciadores da referida multiplicação de espaços públicos de afirmação e exercício da cidadania. Um outro aspecto, inerente às questões acabadas de referir, está intrinsecamente relacionado com o carácter de mediação simbólica, enquanto característica estruturante do campo dos media, tal como pode ser encontrado no enunciado que se segue: «a media­ção simbólica necessária para consagrar a experiência colectiva e o universo comunicativo entre os sujeitos no quotidiano deixa espa­ço à mediatização dispositiva, tecnológica, permitida por uma quase-interacção performativa, ins­tantânea, resultante dos simulacros quase perfeitos da

realidade construída» (Marques, 2005:5). Este último argumento, o da cons­trução de uma certa realidade por parte do campo dos media, é particularmente desenvolvido por Wilson Gomes, num texto sobre a política-espectáculo, quando refe­re que «o mundo remoto é-nos dado a partir dos instrumentos, processos e recursos de produção, selecção e edição dos mass media, portanto, e antes de tudo é um mundo-media. O mundo real, o horizonte total das coisas e das relações, autónomo e íntegro a pres­cindir do facto de que o conhe­çamos ou não, torna-se uma espécie de fundo, de base ou fundamento de onde emerge o mun­­do tangível, ficando o rema­nescente como uma espécie de matéria-prima não elaborada» (Gomes, 1995: 310). Por outras palavras, e ainda seguindo o pensamento do autor, é «no mundo-media que estão os temas, os quesitos, as imagens e as interacções sociais podem

RICHARD AVEDON, 1958 Somerset Maugham fotografado.

Relatório de Estágio realizado no Público de Julho a Outubro de 2005. Orientado por Carlos Camponez e Tiago Luz Pedro.


ser estabelecidas. Ao contrário do mundo tangível, o mundo-media cria a sociabilidade em termos relevantes e fornece o quadro neces­sário para a orientação do indivíduo moderno face à realidade» (Gomes, 1995: 311). Em súmula, o mesmo será dizer que a profissão jornalística se poderá definir como a «actividade social especializada na construção da realidade. Como uma segunda e ulterior construção da realidade que se agrega às restantes cons­truções da realidade, integrando-as em função de uma referenciali­dade pública e colectiva» (Correia, 2001:8) Paralelamente, na hodiernidade, a Democracia pressupõe a existência de um espaço público onde sejam debatidos, de forma plura­lista e contraditória, os grandes problemas da actualidade. A esse espaço simbólico está ligado o conceito de publicidade ou publi­citação, noção utilizada desde o Iluminismo. A ideia de espaço público mediatizado, em que são preponderantes os elos simbólicos entre as pessoas e onde é produzida e divulgada a informação e os dados coligidos a partir das sondagens sobre o estado da opinião pública, constitui-se como condição básica para a existência das democracias de massa. O ponto de partida acabado de apresentar – ou seja, a assunção de que os temas tratados pelos media marcam efecti-

vamente todo o conjunto das diversas interacções sociais, que estabelecemos no quo­tidiano – reforçou em mim um sentimento de necessidade de conhecer de facto como procedem os media, em termos de transformação do mundo tangível, dos acontecimentos, em mundo-media, num produto – as notícias –, ou seja, de que modo se procede à construção do mundo-media, que desemboca, e arrebata de forma tão enérgica, no mun­do da tangibilidade. Naturalmente, urge, por ora, apresentar uma outra definição. Assim, e seguindo a perspectiva de Adriano Duarte Rodrigues, entre outras categorias, «é acontecimento tudo aquilo que irrompe na superfície lisa da história de entre uma multiplicidade aleatória de factos virtuais» (Rodrigues, 1993: 27). Porém, esta definição incorrerá em ineficácia, se não for relacionada com a actual perspectiva sobre o modo como os acontecimentos ganham existência mediática. Neste âmbito, ganha relevância relem­brar que, para a teoria interaccionista, «as notícias são o resultado de um processo de produção, definido como a percepção, selec­ção e transformação de uma matéria-prima (os acontecimentos) num produto (as notícias). Os acontecimentos constituem um imenso universo de matéria-prima; a estratificação deste recurso consiste na selecção do que irá ser tratado, ou seja, na

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escolha do que se julga ser matéria-prima digna de adquirir a existência pública de notícia, numa palavra, ter noticiabilidade» (Traquina, 2002:106). Em concomitância, surge a outra face deste documento: a imbricação entre o sistema mediático e o sistema político. Se se aceita que a Democracia precisa dos meios de comunicação para poder existir, então, será forçoso reflectir na forma como os meios de comunicação servem a Democracia. De forma sucinta, foi este o conjunto de apreciações que condu­ziu à preferência por dar a primazia temática neste relatório à rubrica “Vox Populi” (doravante sob a designação “VP”). Para além do já enunciado, a minha opção foi em parte reforçada após uma troca de impressões com o meu orientador, Mestre Carlos Camponez. Este professor, não sem ironia, designa o “VP” como ‘género estagiário’. Este aspecto será também alvo de alguma reflexão, pois se é entendido como um espaço privilegiado para a expressão pública de elementos pertencentes à massa anó­nima, permitindo assim dar lugar e espaço à voz do cidadão comum, por que razões é uma tarefa que adquire contornos pouco dignificantes, pois é quase exclusivamente realizada por aprendizes e aspirantes a jornalistas. Contudo, se, por um lado, poderá parecer, à primeira vista, um tema não muito interessante, uma vez que não exige por parte de

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quem o realiza qualquer competência jornalística muito ela­ bo­rada – no limite o que se pede é que o jornalista tenha a capacidade de interpelar transeuntes e colocar-lhes uma pergunta –, por outro as questões que este tipo de inquérito coloca serão merecedoras de análise. Nesta conjuntura, a reflexão sobre o “VP” tem de ser equacionada e direccionada para várias perspectivas. Em primeira instância, o facto de ser uma tarefa quase exclusivamente realizada por esta­giários, pode espoletar várias considerações: i) qual o peso ou qual a importância que a redacção concede a este espaço?; ii) de acordo com o grau de importância atri­buído, justifica-se que seja realizado maioritariamente por jornalistas em início de formação? Em um outro patamar, iii) de que forma se procede a todo o traba­lho de concretização de um “VP”, quais são os critérios que orientam a decisão pela escolha de um determinado tema, sobre o qual se constrói uma questão a colocar a transeuntes? Decorrente da meto­dologia adoptada para a sua rea­lização, iv) qual a validade de um inquérito de rua executado a partir de uma amostra tão aleatória? Por fim, v) qual o impacto ou o tratamento dado às opiniões recolhidas? A este conjunto de indagações, outras se irão acrescentar.

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o jornal Público O jornal Público, fundado em 1990, de acordo com Faustino, «consolidou-se como jornal de referência no contexto da imprensa portuguesa» (Faustino, 2004: 164). Tendo como principal accionista um dos maiores grupos económicos portugueses – a SONAE, de Belmiro de Azevedo –, «o projecto contratual que lhe deu origem assentava numa forte participação dos jornalistas na condução das políticas editoriais. O Público introduz algumas inovações em termos de conteúdo, seguindo de perto o modelo do El País, procura efectuar uma abordagem mais aprofundada dos acontecimentos diários e é, ainda, o primeiro jornal a imprimir, em simultâneo, duas edições locais, em Lisboa e no Porto» (Mata, 2002:66-67). Neste ponto, de forma a realizar um enquadramento a respeito do Público no panorama da im­prensa diária nacional, segue-se a proposta de Ferin e Santos, em relação a uma definição de im­prensa de referência. Para as autoras, «considera-se imprensa de referência, a imprensa de âmbito nacional, vocacionada para o tratamento de temas nacio­nais e internacionais, possuidora de um corpo estável de profissio­nais especializados, não vinculados a uma orientação partidária ou religiosa, cujo público se en­contra predominantemente inte­ressado na discussão e reflexão sobre a res publica» (Ferin e Santos, 2004: 29). Enquanto produto físico, na actualidade, o jornal Público é

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constituído por um número variá­vel de páginas, sendo que, em termos globais, rondará as 60 por edição. O jornal encontra-se dividido em vários cadernos, sob a deno­minação de editorias. Depois de fo­lheada a “Primeira Página”, o leitor depara-se com o espaço editorial dedicado ao “Destaque” – um lugar onde, por excelência, se evidenciam os critérios jorna­ lísticos de selecção e proeminên­cia de acontecimentos particulares da actualidade –, ao que se seguem as páginas do “Espaço Público”, as quais, para além de incluírem o editorial, cedem espaço a vários colunistas, opinion makers e também ao cartoon de Luís Afonso. Outras editorias cons­tantes são:“Nacional”; “Mun­ do”; “Socie­dade”; “Eco­nomia”; “Desporto”; “Cultura” e “Media”. Existe, também, o caderno da editoria Local, que se subdivide em Local Lisboa, Local Centro e Local Norte. Para além destas secções, o Público apresentava, à época em que o estágio foi realizado, ainda outras publicações temáticas, distribuídas ao longo da semana: Dia D à segunda-feira (revis­ta de economia); Xis e Pública (em formato revista), ao sábado e ao domingo, respectivamente; Y e Mil Folhas, dois suplementos da editoria de cultura, à sexta-feira e sábado, respectivamente; Fugas, suplemento de viagens, ao sábado e, ainda, O Inimigo Público, suple­mento de índole satírica, com saída às sextas-feiras. No mês de Setembro de 2006, o Público distribuiu de forma diferente as publicações acabadas de referir.

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a entrada nas rotinas Nas sociedades ocidentais, funcionalmente diferenciadas, a im­prensa é concebida como uma montra: é ela o subsistema social encarregado de alimentar a esfera pública. É neste sentido que se poderá afirmar que a liberdade de imprensa só poderá ser concebida em estreita relação com a esfera pública. Nesta perspectiva, é consensualmente aceite que a liberdade de imprensa surgiu como uma forma de combater os sistemas hegemónicos, que durante muito tempo determinaram o que era ou não passível de publicação e qual era o sistema de valores e de saberes considerado aceitável para reger uma determinada sociedade. Segundo esta dedução, «o jorna­lista desempenha o papel social que consiste em transmitir uma forma de conhecimento relevante para todos. Nesse sentido, os jornalistas são detentores do papel de representação simbólica da ordem institucional» (Correia, 2001:8). Em um outro sentido, o que carac­terizará, também, o profissional de jornalismo, poderá ser, inclusive, uma determinada maneira muito própria de viver o tempo, de ver e entender o mundo. Em termos de grupo social, existe, efec­tivamente, uma partilha de hábitos mentais estruturadores e patentes da face física do seu trabalho: os textos publicados. Estes enunciados servem para reforçar a ideia de que não será possível compreender as notícias e todos os outros géneros jornalísticos, sem um entendimento da identidade e da cultura dos profissionais do campo jornalístico.

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Por outras palavras, seguindo o pensamento de Traquina, estamos perante questões relativas à defini­ção de uma identidade jornalística, de um ethos jornalístico. Trata-se, segundo Traquina, citando E. C. Hughes, de uma identidade que «os membros de uma profissão (...) desenvolvem como um grupo separado, com um “ethos próprio”» (Hughes, apud Traqui­na, 2002:131). O relato que se segue dará conta do modo como me pude aproximar do referido ethos jornalístico. O primeiro contacto directo verificou-se através da mão do jornalista e, na altura, professor nesta Uni­ver­sidade, António Granado, que me recebeu na manhã de 18 de Julho. Com ele, foi-me permitido assistir à primeira reunião do dia com todas as editorias e com a presença do director do Público. No final da reunião, decidiu-se que iria realizar o estágio curricular na editoria “Local Lisboa”. A edi­toria em causa existe no diário desde a publicação do pri­meiro número do jornal. De acordo com Tiago Luz Pedro, editor principal, em termos genéricos, esta parte do periódico visa rea­lizar um «tipo de jornalismo o mais próximo possível do leitor». Apesar de se tratar de um diário de distribuição e implementação à escala nacional, o Público apre­ senta três edições do caderno “Local”: Lisboa, Porto e Centro. Logo, considero que será pertinente abordar algumas questões teóricas, relacionadas com o jornalismo regional, e fá-lo-ei seguindo a designação de Camponez: ‘jornalismo de proximidade’.


A expressão ‘jornalismo de proxi­midade’ está intimamente relacionada com o jornalismo a uma escala local. Assim, “a imprensa regional articula[-se] em torno de conceitos como território, comunicação e comunidade. Neste sentido, defendemos uma definição de imprensa regional a partir de critérios como o espaço geográfico de implantação do projecto editorial; o lugar de apreensão, recolha e produção dos acontecimentos noticiados; o espaço de difusão privilegiada da informação; o tipo de conteúdos partilhados e de in­formação disponibilizada; enfim, a definição dos públicos” (Cam­po­ nez, 2005:3). Ora, de acordo com acabado de expor, de uma forma global, os textos que constituem aquele caderno, apesar de o primeiro dos critérios apontados por Campo­nez, i.e, o espaço geográfico de implantação do projecto editorial, não poder ser aqui aplicado, todos os outros critérios podem ser verificados Assim, tanto a apre­ensão, como a reco­ lha e também a produção dos acon­tecimentos noticiados se diri­ gem a uma área geográfica bem delimitada. O mes­mo se poderá avançar quanto ao tipo de conteúdos. Contudo, é de referir que, quan-­ to ao espaço de difusão, o “Local Lisboa” não se poderá classificar como um suplemento regional, uma vez que este caderno é distribuído em toda a zona sul de Portugal Continental mas dedica-se, essencialmente, a assuntos da Grande Área Metropolitana de Lisboa. Esta contingência nega, de forma evidente, o entendimento da imprensa regional «enquanto pacto comunicacional realizado em comunidades de lugar, isto é, comunidades que se reconhecem

na base de valores e interesses cons­truídos e recriados localmente, a partir de uma proximidade geográfica2» (Camponez, 2005:3). Alicerçando este último raciocí­nio, através do contacto directo e diário com a realidade do “Local Lisboa”, aprecio que o jornalismo que naquela instância se pratica em tudo se assemelha ao jorna­lismo feito para uma escala na­cio­nal. A corroborar esta afirmação, pode ser indicado o facto de, não poucas vezes, os tex­tos dos redactores do “Local” ganharem espaço em ou­tras editorias3. Em síntese, apesar da designação, que agora me ocupa, poder remeter para um certo tipo de jorna­lismo onde o critério fosse o da pro­xi­midade geográfica, o “Local Lisboa” deve ser enquadrado como um projecto “semilocal”, caracterizado por projectos editoriais de âmbito nacional, mas com conteúdos regionalizados, mais centrados na captação de públicos locais do que no tratamento exaus­tivo das regiões» (Ringlet, apud Camponez, 2005:6). Feitas estas elucidações, é altura para regressar à descrição do estágio. O trabalho foi supervisionado e orientado por, essencialmente, três editores. Como o aprendizado decorreu, maioritariamente, du­ran­te os meses de Verão, os textos foram editados, em primeiro lu­gar, por Francisco Neves e por José António Cerejo. Só durante Agosto, o editor principal, Tiago Luz Pedro, supervisionou o meu desempenho, uma vez que du­rante parte do mês de Setembro esteve ausente, em licença de pater­nidade. O facto de ter trabalhado com vários editores revelou-se bastante positivo, ainda que, por vezes, um pouco desconcertante.

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Positivo, porque me permitiu estar em contacto com diferentes maneiras de fazer jornalismo, com distintas formas de abordar os acontecimentos e de os transpor para a materialidade de uma notícia, de uma breve, fotolegenda4 ou reportagem. Contudo, julgo que para um trabalho mais consistente não deveria ter sido menos proveitoso que tivesse realizado o trabalho sempre com o mesmo editor. Para reforçar o acabado de referir, será paradigmática a peça, que foi capa do “Local” em 5 de Agosto, com o tí­tulo “Algarve aposta forte nas festas de Verão”. Esta peça, começada sob a orientação de um editor, acabou por ser editada por um outro e, no dia seguinte, pude veri­ficar que o texto voltou a tomar o rumo que eu e o editor inicial tínhamos previamente definido. Para quem começa a entrar no mundo do jornalismo, julgo que nem sempre é positivo que as directrizes apontadas variem com tão grande constância. Mas isso não deixa de ser também sintomático da discre­pância existente na definição dos conteúdos jornalísticos, não obstan­ te os processos de homogeneização resultantes do jornalismo enquanto profissão. A primeira tarefa que me foi dada a realizar foi uma breve sobre um rastreio de hipertensão, logo na manhã de 18 de Julho. Na parte da tarde, e durante o resto da se­mana, foi-me confiada a elaboração do "Pessoas", uma rubrica de fait-divers que ocupa as últimas páginas do diário e que, semanalmente e de forma rotativa, é da responsabilidade das diversas editorias, sendo que, nesta semana, estava destinada ao “Local”. No que concerne às tarefas de preparação, a maioria dos traba­

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lhos realizados foi-me atribuída no próprio dia. Ou seja, o editor de serviço distribuía a agenda pelos diferentes jornalistas que se encontravam na redacção. Quase sempre tive tempo suficiente para me preparar para o que iria executar. Por outras palavras, após a atribuição, eram-me dadas orientações sobre o tema e as persona­lidades envolventes, bem como sobre o contexto da notícia. Era-me também, logo de início, indicado não só o número de caracteres que teria disponível, assim como me era referenciado qual o género jornalístico em que deveria redigir o texto. No caso das breves, o trabalho realizado foi essencialmente de resumo e contracção de texto e, grande parte das vezes, o take da agência noticiosa ou o fax foram suficientes para elaborar o texto final. Mais moroso e complexo foi o processo de preparação e execução de notícias e reportagens. Assim, aquele primeiro contacto com o acontecimento a cobrir era, depois complementado, de várias formas: através de pesquisas na Internet, através de troca de impressões com outros jornalistas que já ti­nham coberto o assunto ou que melhor conheciam a matéria e, ainda, através de uma pesquisa na base de dados do arquivo do Público. Todos estes procedimentos revestiram-se de grande utilidade, porque me permitiram conhecer melhor o assunto e preparar adequadamente o meu trabalho. Possibilitaram, portanto, a obtenção de informação complementar e diferente e a aquisição da textura do acontecimento, de molde a melhor analisá-lo e a in­ter­pretá-lo. Estes são processos que julgo indispensáveis para a cabal compreensão dos factos e

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para a sua posterior transformação em matéria jornalística. Após esta fase inicial de prepa­ra­ção, seguia-se a deslocação ao local do acontecimento. Sempre que o caso o solicitasse, a deslocação era realizada em companhia de um repórter fotográfico. In loco, procedia à recolha de dados relativos ao ambiente físico e humano e formulava e anotava as perguntas que julgava pertinentes. De regresso à redacção, esperava-me a produção de texto, de acordo com o género que me tinha sido indicado. Para tal, era-me soli­citado que, de acordo com o caso, elaborasse, para além do texto principal, sugestões de títulos, entradas e legendas. O processo e as metodologias de escrita, respeitando as normas sugeridas pelo Livro de Estilo do Público, foram os aspectos onde experimentei maiores dificuldades. Ou seja, a interiorização da necessidade de assumir um diferente registo escrito e perspectivar a minha linguagem como um dispositivo estratégico reve­lou-se um processo heurístico bastante complexo. Nas palavras de Esteves, tive de usar a «linguagem não considerada em termos discursivos, isto é, como medium da intersubjectividade, mas como meio de influência, a linguagem utilizada como instrumento com vista a um fim, dispositivo estra­tégico que as sociedades modernas cultivaram no seu processo de desenvolvimento» (Esteves, 2003: 120). Logo, deverá depreender-se que durante o estágio realizei um exercício de reaprendizagem da escrita, de molde a que o meu discurso se aproximasse ao que o jornal de acolhimento exige e espera dos seus jornalistas. Aliás, sabia de antemão, e no caso particular do género ‘notícia’, tal como o meu professor de Jornalismo Escrito, Mestre João Figueira, várias vezes me alertara, que a minha prática

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discursiva em grande medida se distanciava da tipologia adoptada na imprensa. A maneira como sempre me apropriei do mundo através da escrita estaria nos antípodas de um discurso curto e conciso, exigido pela praxis jornalística. Neste sentido, se compreenderá aquilo que, na altura, intuitivamente designei como ‘teoria do estranhamento’. Ou seja, sempre que um texto era publicado, instalava-se uma estra­nha sensação de não reconhecimento do que acabara de ler e do qual sabia ter sido eu a autora, algo como ‘este texto não me pertence’. Este exercitar e diversificar as mi­nhas valências de registo escrito conduziu-me, quase de imediato, às palavras de Barthes, que, num texto célebre, a lição inaugural pro­ferida no prestigiado College de France, prova que a língua é fascista: «um idioma define-se menos por aquilo que permite dizer, do que por aquilo que obriga a dizer. (…) A linguagem é uma legislação, e a língua é o seu código. Não nos apercebemos do poder que existe na língua porque nos esquecemos que qualquer língua é uma classificação, e que qualquer classificação é opressora» (Barthes, 1997:15). Porém, para a prática jornalística, ainda mais acutilantes se revelam as palavras de Correia, ao referir que «tenta-se descobrir as formas de tornar a mensagem mais aces­sível, mais conforme às próprias competências linguísticas e cultu­rais dos membros da audiência, que funcionaria como um menor denominador comum. O problema deste tipo de relação com a realidade é que o conhecimento do senso comum disponível pelas notícias não fornece instrumentos acerca de “como as coisas são” mas sim acerca de como elas se “encaixam” na ordem das coisas» (Correia, 2001:9). No que à edição dos artigos diz respeito, é de reforçar que

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todos os trabalhos foram alvo de revisão por parte dos diferentes editores que os supervisionaram. Termina­da a parte de materialização, colocava os textos no lay-out que me tinha sido destinado. Assim que o editor estava disponível, o traba­lho de revisão era feito em conjunto. Com esta estratégia de actuação, ou seja, através da leitura a dois dos textos, foi-me dada a possibi­ lidade de não só aprender, mas sobretudo de questionar, de colocar dúvidas acerca dos critérios de noticiabilidade, de problematizar o uso de formas discursivas por vezes demasiado rotinadas, de trocar pontos de vistas sobre a me­lhor forma de redigir um lead ou uma entrada. Em síntese, estes momentos permitiram-me a aquisição de rudimentos jornalísticos, mas, essencialmente, foram relevantes pois eram a ocasião por excelência votada à reflexão crítica e pragmática do que acabara de produzir enquanto jornalista. Por outras palavras, eram reveladores da estrutura agónica entre um ‘eu leitora’ e um outro ‘eu jornalista’, onde um ethos se ia construindo e problematizando. “VP” e opinião pública Dentro da editoria “Local”, optei neste relatório, por dar especial relevância à “Página do Cidadão”5, não só por ter sido o sítio para onde mais escrevi, mas, sobretudo por nesta página se encontrar o “VP”. Assim, de forma a circunscre­ver a unidade de análise escolhida, será pertinente começar por uma possível definição de “VP”. De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a expressão latina Vox populi, vox Dei, que poderá ser traduzida como “voz do povo, voz de Deus”, indica que a opinião de um gran­de número de pessoas é argumento para estabelecer a justeza ou a verdade de um facto. Com a

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progressiva secularização das socieda­des ocidentais, e também da língua, a expressão é utilizada ora como sinónimo de opinião pública, ora como da opinião das pessoas. No Público, o espaço ocupado sob a designação “VP” é constituído por inquéritos de rua, feitos dia­ria­mente a quatro pessoas escolhidas ao acaso. A rubrica pode ser encontrada, nas páginas do jornal, de segunda a sexta-feira, e a ela preside a finalidade de ouvir a opinião do cidadão comum sobre temas da actualidade, criando um sítio fixo de interpelação directa ao leitor no espaço do “Local”. For­malmente, nesse pequeno in­qué­rito devem constar sempre a imagem, a idade, o nome e profissão dos inquiridos. Pretende-se, ainda, que perguntas e respostas sejam o mais simples e objectivas possível. Segundo Tiago Luz Pedro, os cri­térios que presidem a esta secção são os mesmos que subjazem à prática jornalística em geral, ou seja: isenção, rigor, objectividade e neutralidade nas perguntas, que são enunciadas de forma mais aberta possível, com o propósito de não condicionar nem influenciar a opinião de quem responde. A estratégia para a selecção da pergunta a colocar aos transeuntes deverá estar, por princípio, em sintonia com os grandes temas que dominam a actualidade e deve, sempre que possível, ser formulada na perspectiva de como esses temas afectam a vida das pessoas. No entanto, dentro da redacção, não se colhe um parecer consens­ual quanto ao tópico acabado de enunciar. Assim, se existem jorna­listas que expressam este ponto de vista, outros salientam que o “VP” deveria incidir sobre questões mais directamente relacionadas com a área geográfica do caderno “Local Lisboa”. Logo, em termos de praxis, constata-se que as duas opiniões exibem


expressiva representatividade, uma vez que o âmbito da questão pode variar do estritamente local até ao nacional. Para o editor do “Local”, o “VP” permite, ainda que de forma particular, «perceber qual o impacto de uma notícia na opinião pública, entender o sentimento da população relativamente a certos temas e perceber até que ponto a informação poderá ser abordada e tratada sob outras perspectivas, capazes de elucidar melhor o lei­tor». Todavia, também sobre este aspecto se pôde constatar que as posi­ções, dentro da redacção, são diver­gentes. Destarte, há quem considere a rubrica acessória e sem grande interesse, existindo, simultaneamente, quem a considere importante, como forma de dar a palavra ao cidadão comum e conhecer a sua opinião sobre os temas da actualidade, nunca perdendo, deste modo, o contacto com a realidade e as necessidades dos leitores. Outras vozes adiantam, ainda, que o critério principal que justifica esta rubrica é o comercial/concorrencial, ou seja, na edição do dia seguinte, o jornal assegura, pelo menos, a venda de mais quatro exemplares, sendo esta a pers­pectiva da qual mais me aproximo, pelas razões que exporei adiante. A concretização do “VP” é uma tarefa quase exclusivamente

Temática

executada por jornalistas estagiários. De acordo com o editor principal do caderno “Local”, assim ocorre porque a sua consecução permite ao principiante desinibir-se ao contactar com o cidadão comum, criando o hábito de sair para a rua e falar com as pessoas e perceber o tipo de obstáculos que pode encontrar no contacto com os seus interlocutores. Desta forma, o aprendiz de jornalista tem oportunidade de ser confrontado com situações imprevistas e de a elas reagir, contornando-as com alguma diplomacia. Por outro lado, o facto de a rubrica apenas exigir uma resposta curta não demanda grande tratamento jornalístico. Assim, enviando-se preferencialmente os esta­giá­­rios para esta tarefa, libertam-se os pro­­fis­sionais da secção para outras funções, que impli­quem maior prática e conhecimento, dentro da rapidez neces­sária à agen­da apertada de um diário. Neste momento, não será despi­ciendo reforçar que o inquérito não obedece aos critérios de validade científica das sondagens e não pretende representar com rigor opções/opiniões do público. Por outras palavras, as opiniões colhidas no “VP” têm um valor meramente indicativo das prefe­rências dos inquiridos. De facto, nada existe de cientí­fico na preparação desta rubrica. A ques­­tão a colocar em cada

dia está dependente da agenda. Mui­tas vezes ocorre que a pergunta seja espoletada a partir da leitura da edição desse dia do Público ou de outro diário. Se bem que, a maior parte das vezes, seja o editor de serviço quem determina qual a questão a colocar, outras ocorre o solicitá-la a um outro jornalista e, não menos vezes, ao próprio estagiário que a irá realizar. Não obstante, considero que o “VP”, ainda que com as ressalvas já avançadas, patenteia alguns pro­ blemas que também podem ser apontados a uma sondagem de opi­ nião6, com as consequências que advêm deste facto. Assim, com o intuito de defender esta posição, será útil recorrer à voz de Bourdieu, em particular ao seu texto «L´opinion publique n´existe pas». Neste pequeno artigo, com mais de três décadas de existência e que permanece imbuído de extrema actualidade, Bourdieu traça uma visão muito crítica em relação ao modo como são entendidas as son­dagens de opinião, nas quais, se podem filiar os princípios onto­lógicos do “VP”. Bourdieu começa o seu texto com uma salvaguarda inicial, afirmando que o seu objectivo não é o de elaborar uma denúncia mecânica e fácil às sondagens de opinião – intenção que subscrevo integralmente –, mas antes proceder a uma análise rigorosa do seu funcionamento e das suas

E specificaç ã o

Totais

“Vox Populi” Julho/ Outubro 2005

Política

Eleições Autárquicas/Presidenciais

Lazer

Férias/Entretenimento/Desporto

14 5

Segurança

Rodoviária/Incêndios

4

Cidadania

Manifestações/Água

4

Saúde

Gripe das Aves/Baixas Médicas

3

Economia

Orçamento de Estado/Rendimentos

2

Justiça

Greve de Juízes

1

Totais

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funções. Este raciocínio pressupõe que se ponham em evidência três postulados intrínsecos a este método de recolha de opinião(ões). A primeira hipótese declara que as sondagens de opinião supõem que todas as pessoas possam ter uma opinião, dito de outra forma, que a produção de uma opinião está ao alcance de todos. Como segundo argumento, supõe­-se também que todas as opiniões são equivalentes. Ora, é facilmen­te aceitável que nem todas as pessoas estão em pé de igualdade para responder de forma esclarecida sobre determinadas questões. A tí­tu­lo de exemplo, quanto mais próximos os entrevistados estive­rem da problemática colocada (v.g. a educação), maior probabi­lidade existe de terem uma opi­nião formada sobre o assunto. Em terceiro lugar, Bourdieu refere que o simples facto de se colocar a mesma pergunta a todos os indivíduos implica a aceitação da exis­tência de um consenso sobre os problemas colocados ou que, de facto, esses assuntos podem confi­gurar-se como um problema efectivo para as pessoas. A este aspecto Bourdieu chama «efeito de imposição de uma problemática» (Bourdieu, 1984: 226). Fazendo um juízo em paralelo, fácil será a constatação de que o “VP” enferma de todas as críticas apontadas pelo autor, que agora nos acompanha.


Quanto ao primeiro argumento, como não me eram dadas indicações em relação à amostra a recolher, isto é, não era referido qual o género a inquirir ou sobre que faixa etária incidir, ou profissão ou classe social, logo, a tarefa pressupunha que qualquer pessoa a abordar estivesse em condições de responder à interpelação. O que de facto não pude verificar no terreno, pois, ainda que me fosse solicitado o regressar à redacção com quatro respostas, em média, inquiria mais de vinte pessoas por cada “VP”. Naturalmente, das dezasseis de quem não obtive um resultado, em alguns casos, isso deveu-se à não disponibilidade para me ouvir, outros negavam-se a ser foto­ grafados, mas um número significativo optava por não res­ponder alegando desinteresse em relação ao assunto ou que não sabia responder. Após a obtenção das quatro almejadas respostas, a realização da tarefa findava-se com sua transposição, com as necessárias correcções linguísticas, para o layout previamente preparado, sob a suposição de que todas as respos­ tas obtidas eram enformadas pela mesma validade. Assim, também a segunda crítica de Bourdieu se revela aplicável ao “VP”. No que ao «efeito de imposição de uma problemática» concerne, terei de apresentar, neste momento uma panorâmica global dos assun­tos dos “VP” que realizei. Para tal, solicita-se a atenção para o quadro apresentado. Através de uma leitura imediata, é fácil a constatação do relevo atri­buído ao acompanhamento das campanhas partidárias para as elei­ções autárquicas, realizadas a 9 de Outubro de 2005, e ainda a inquirição sobre o futuro Presi­dente da República. Este facto resultará apenas de uma coincidência conjuntural e de sobreposição com o período temporal de realização do estágio. Contudo, este raciocínio não obvia a efectiva imposição de uma problemática. Por outro lado, se se poderá acei­tar com alguma tranquilidade

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que as campanhas (e pré-campanhas) eleitorais ganhem tão grande rele­vo no cômputo global das temá­­ticas, visto surgirem como a materialização mais evidente da demo­cracia representativa, não deixa de ser interessante verificar que, excluindo as temáticas sob a epígrafe sazonalidade7, ou seja, início da SuperLiga, Férias, Incên­dios e Orçamento de Estado, as restantes três categorias – Gripe das Aves, Manifestações e Greve de Juízes – apenas perfazem um total de seis incidências. A partir desta breve exposição, será frutífero concordar com Bourdieu, para quem as problemáticas abordadas pelas sondagens de opinião estão subordi­ na­das a interesses políticos. Por ou­tras palavras, «a função de agen­­damento está largamente confiscada pelos políticos e pelos jornalistas dos grandes meios de comunicação» (Correia, 2006:5). Como refere Ferry, citado por Correia, «a opinião pública for­ ma-se em larga medida no inte­rior dos limites de uma selecção prévia dos temas de atenção pública» (Ferry, apud Correia, 2006:5). Ora, aceitando as sondagens como estudos por amostragem, e que a opinião pública daí resultante corresponde à agregação das respostas individuais, é de referir que elas incidem hoje sobre um leque muito variado de questões, podendo, assim, activar a discussão pública sobre assuntos relevantes para os cidadãos, con­tri­­buindo para a formação de opiniões públicas interventivas. Contudo, julgo que a forma como são divulgadas e estudadas pode contribuir para um empobrecimento da vida social, representando, simultaneamente, um obstá­culo à inovação e à mudança, pois, mais do que o entendimento de ‘opinião pública’ como um complexo pro­cesso de formação e apresentação críticas de um juízo estruturado pela razão, as sondagens privilegiam um produto, um resultado. Se assim o é para as sondagens, para o “VP” este tópico ainda se torna mais problemático, pois

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a colheita de opiniões realizada nesta rubrica não poderá ser caracterizada de forma lisonjeira, pelo contrário, as respostas aí recolhidas não são mais que uma caricatura mal esboçada e grosseira de ‘opinião pública’. Assim, é chegado o momento para apresentar algumas considerações sobre a segunda parte do título desta secção, de forma a alicer­çar com maior evidência o tom derrisório que atribuo ao “VP”8. Falar em ‘opinião pública’9 não poderá ser uma tarefa desligada de um outro conceito. Refiro-me à noção de ‘esfera pública’. A ‘esfera pública’ é vista como um espaço de debate, entre a socie­dade civil e a sociedade política10, no qual participam as diferentes instâncias da comunidade. É aqui que surge a noção de ‘opinião pública’, onde as posições a res­peito das questões políticas são expressas. Este é, comummente, aceite como um dos pilares fundadores e constitutivos da Demo­cra­cia. Todavia, «a esfera pública constitui não um espaço propriamente dito, mas sim um conjunto de actividades que constituem a auto-reflexão e o autogoverno nu­ma socidade democrática. Numa esfera pública, as pessoas indivi­dualmente consideradas juntam-se para discutir, deliberar e decidir questões políticas» (Schudson, 1995:150-151). Assim, cabe à esfera pública forne­cer o suporte para a consolidação da opinião pública, percebida como uma força social reguladora não só das práticas institucionais, mas, sobretudo, das relações so­ciais. Neste sentido, é através da imprensa que essa mesma opinião pública (também) é concretizada, como uma prática de comunicação regular, a partir da publicidade e da crítica. Neste âmbito, a imprensa configurar-se-á como um «locus privilegiado do confronto de ideias e da controvérsia política contra o controle do Esta­do, [e] adquire com a moder­nidade uma dimensão de liberdade própria, dada a função da sua

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natureza mediadora e da sua capacidade de mobilização social» (Marques, 2005:2). Logo, sigo a proposta de definição de Alves: «pode dizer-se que a ins­titucionalização da opinião pública, fazendo uso público da razão, sem coerção, reivindicando-se como instância crítica face à pu­blicidade, passa por uma estratégia que insere a sociedade na polí­tica, o homem na economia e a ideo­logia na cultura» (Alves, 2005:108). Em Historia y Crítica de la Opinión Pública – La Transfor­mación Estructural de la Vida Pública, Habermas11 demonstra que o conceito ‘opinião pública’, tal como hoje se conhece, surge no século XVIII, o Século das Luzes ou Iluminismo. O autor sustenta que a palavra publicité, inicialmente usada como contraponto ao segredo da autoridade do Estado e da Igreja, a partir daquela época passa a dirigir-se ao âmbito da vida social e privada da burguesia emergente, graças não só à expansão comercial e industrial, como também à crescente mercantilização das coi­sas e ideias. Por outro lado, o conceito vai fundar os seus alicerces no crescimento das cidades, como centros de permutas simbólicas ao nível dos relacionamentos interpessoais, adju­vado pelo aumento do núme­ ro de leitores de uma imprensa em (r)evolução (com o aparecimento de publicações regulares e impres­são de panfletos), e pelo impacto causado pela revolução da socie­dade civil do século XVIII. Assim, a noção ‘opinião pública’ é, em primeiro lugar, uma invenção do século XVIII, pois emerge de um específico momento histórico envolto num delicado equilíbrio entre condições sociais e insti­tucionais, ou seja, a partir do momento em que o burguês se transforma em homem privado e independente e enquanto cresce a autonomia do Estado em relação à esfera pessoal do monarca. Perante esta dicotomia, e assumindo como tarefa política principal a regulação social do


terri­tório e dos negócios, o Estado come­ç a também a delimitar os domí­nios da esfera pública e da esfera privada. Neste sentido, «a correspondente polarização do poder soberano começa a ser visí­vel com a separação do que é pressuposto público e do que são os bens domésticos privados do se­nhor feudal», sublinha Habermas. E acrescenta: «com a burocracia e o corpo militar objectivam-se as instituições do poder público frente à cada vez mais privatizada esfera da corte» (Habermas, 1994: 51). Em paralelo, assiste-se, no século XVIII, a uma proliferação dos salões e clubes, dos cafés, das livrarias e das lojas maçónicas. Em conjunto, estas actividades potenciam a troca simbólica de conhe­cimentos, sendo que, simulta­neamente, vão contribuir para a criação de um espaço de emancipação para os burgueses. Para o surgir e consolidar deste espaço público, enquanto local simbólico de troca de valências e de conhecimentos, não foi des­pi­ciendo o contributo dado pela imprensa, que espaldou o desenvolvimento e a autonomização desta esfera pública burguesa. Assim, desenvolvem-se novas formas de sociabilidade fundadas sobre a prática do discurso e do uso da razão – discussões nos salões onde são comentadas as informações fornecidas pelos jornais e onde cada um faz passar a sua opinião e o seu julgamento. Retomando Alves, estava alicerçado «um sistema de intercomunicação e intercompreensão (acção comunicacional – trabalho de polí­tica do uso da palavra), que faz não exorbitar, para além do razoável (em nome da razão), o exercício do Estado, que exerce a sua actividade por delegação da Sociedade Civil» (Alves, 2005: 108). No entanto, com o suceder da História, surge a figura política do Estado-Providência, com funções muito mais amplas de interferência na esfera privada,

para assegurar a ordem, proteger os mais fracos, redistribuir rendimentos ou intervir economicamente. Paulati­na­mente, assiste-se a uma atenua­ção das raias entre o que é público e o que é privado. Por seu turno, os sistemas sociais da economia, da organização e do trabalho, devido à internacionalização, ao progresso tecnológico e, sobretudo, ao efeito de globalização, pro­vocado pela explosão dos media, tornaram-se mais públicos. Paralelamente, aquele modelo li­beral de espaço público vai entrar em «contradição com os imperativos da economia capitalista. O princípio da publicidade que o fundava foi subvertido em favor do Estado e dos poderes económicos» (Alves, 2005:141). Por esta ordem de razões, o espaço público iluminista deixou de ser um local privilegiado de uma discussão crítica edificadora. Actualmente, pode afirmar-se que a opinião pública não é já aquela noção herdada do Iluminismo, visto não poder mais ser entendida como um conceito normativo de uma opinião enformada pela racionalidade crítica. Nos dias de hoje, designa, essencialmente, a massa segmentada de opiniões par­ticulares, que expressam inte­resses divididos e até conflituosos. Dito de outra forma, o iluminista «conceito de opinião pública, no qual se entrecruzam o uso público da razão e a publicidade crítica, a necessidade de encarar o problema da relação da verdade com o saber, o diferendo, o controverso e a diferença, que é a recusa liminar do dogmatismo e da justificação transcendente ou revelada do exercício do poder» (Alves, 2005: 108), em muito se encontra alheado do entendimento e vivências do homem contemporâneo. É, pois, em contraposição à visão crítica, racional do entendimento de ‘opinião pública’, que impele equacionar o “VP”, enquanto um exercício desprovido de racionalidade, um agregado,

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um número, sobre uma dada questão complexa e/ou sobre questões muitíssimo genéricas e assuntos muito variados, para afirmar que é apenas uma tarefa, um meio de quantifi­car uma certa tipologia de opi­nião. Pelo relato executado, parece-me claro que com a rubrica “VP” não existe, de facto, um apelo à apresentação de uma ‘opinião pública’. O que é descerrado é apenas uma pequeníssima e aleatória amálgama de opiniões isoladas e parcelares. Por outras palavras, não se exige um argumento esclarecido, uma opinião racional sobre assuntos fundamentais para a vida pública. A única justificação que poderei encontrar para tal arremedo do conceito ‘opinião pública’, apesar das intenções benevolentes que alguns elementos da redacção ostentam em relação ao “VP”, pode­rá ser indexada às lógicas comercial e de entretenimento, no limi­te, o jornal garante a venda de mais uns quantos exemplares por semana. conclusão A minha predisposição inicial, e que tentei que fosse evidente ao longo do discurso, foi a de estruturar este trabalho a partir das relações que se estabelecem entre o campo dos media e o campo da política. Assim, de forma a traba­lhá-los em conjunto, a análise do “VP”, enquanto a actividade eleita como corpus prático, revelou-se, parece-me, pertinente e opera­tória. Por outro lado, toda a reflexão elaborada ancora no pressuposto da efectiva possibilidade de uma democracia participativa e não apenas representativa, que só poderá ser construída tendo por base um espaço público, também ele enformado pela participação e pluralidade de todos os cidadãos. Neste contexto se compreende a importância que atribuo ao campo da comunicação social,

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enquan­to locus onde se pode desenvolver o exercício da palavra, o debate público, o confronto de opiniões entre os diversos actores da sociedade civil, através do intercâmbio discursivo de argumentos publicamente sustentáveis. Neste sentido, o privilégio dado à voz de Habermas alicerça-se na certeza de que este autor defende, nos seus escritos, a possibilidade de existência de uma comunidade de indivíduos parti­cipativa, consciente e solidária, onde há uma arena de discurso autónomo e influente denominada ‘espaço público’. Todavia, se com o “VP” se pretende dar voz à opinião pública sobre um determinado tema da actualidade, não só pela forma como está estruturado, mas também como é efectivamente realizado, julgo que se encontra muito longe do enten­dimento de opinião pública que aqui defendo. Não podendo ser, por outro lado, classificado como uma sondagem de opinião, quer em termos de amostragem, de colheita e de tratamento, o “VP” será apenas uma estratégia de diversão, de entretenimento, que visará apenas o lucro. Sinteticamente, não querendo, no entanto, afirmar que o Público não contribui para o incentivar da discussão crítica sobre os dife­rentes assuntos relacionados com a vida pública, no caso concreto do “VP”, uma vez que não poderá ser tomado como um espaço pri­vilegiado de incentivo para uma efectiva opinião pública, será de concluir que não é este o sítio no qual o diário mais adequadamente poderá contribuir para tal deside­rato. Assim sendo, julgo que, visto o Público destinar espaço nas suas páginas a uma rubrica destas características, que enferma de vários problemas apontados, insta repensá-la, de forma a ir ao encontro da necessidade de fomentar fóruns de discussão pública escla­recida, na sociedade portuguesa contemporânea.

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1 Embora este seja um problema epistemológico importante, dado o teor deste trabalho, não se enveredará por analisar exaustivamente os estudos relacionados com a teoria dos campos sociais. Assim, nestas páginas, para o entendimento da noção ‘campo social’, sigo a proposta de Esteves: «a tese central da teoria dos campos é a seguinte: a organização das nossas sociedades desenvolvidas tem por base uma progressiva individualização e auto­nomia dos campos sociais» (Esteves, 2003:125). 2 De facto, julgo que comunidades do interior do Alentejo, a título de exemplo, não sentem como próximos muitos dos assuntos relatados no caderno “Local Lisboa”. 3 A título de exemplo, veja-se o caso do incên­dio no Bairro do Fim do Mundo (30/09/05). Este acontecimento foi noti­cia­do por jornalistas do “Local”, mas os textos foram publicados em “Sociedade”. 4 No que aos géneros jornalísticos respeita, sigo o pensamento de Gradim: «é discutí­vel se a fotolegenda constitui

propriamente um género, ou se é simplesmente o resultado do amalgamar de todas as técnicas. (…) Por fotolegenda entende-se aqui uma fotografia, sem título, comentada por um pequeno texto que se lhe segue imediatamente, e que não constitui uma notícia no sentido estrito do termo» (Gradim, 2000:99). 5 De agora em diante, passarei a tratar a ‘página do cidadão’ como se se tratasse de um nome próprio, fazendo jus àquela que me pareceu ser uma feliz expressão dos jornalistas da editoria “Local”. Para além do “VP”, podem ainda encontrar-se nesta página as rubricas “Tribuna do Leitor”, “Hoje e Histórias na Cidade/FelizCIDADES – InfelizCIDA­­DES”. Por razões de ordem pragmática, a análise a estas rubricas não será elaborada no texto que agora se apresenta. 6 Em termos teóricos, as sondagens de opi­nião pública podem ser vistas como um produto da indústria da opinião pública, constituída por um conjunto de instâncias que convém indexar. Assim, por um lado, encontram-se as

organizações que produzem informação, sobre os sentimentos, as atitudes e os comportamentos das pessoas, com base em sondagens; na outra vertente, encontram-se os meios de comunicação social, que funcionam como os canais de distribuição dessa informação. 7 Emprego e designação ‘sazonalidade’ no sentido de serem temas já consagrados nas agendas e rotinas dos meios de comunicação social. 8 Um raciocínio similar se poderá encontrar nas páginas do próprio Público. Falo do suplemento de índole satírica e burlesca “Inimigo Público”. Aqui sur­ge uma outra versão do “VP” – formalmente igual ao das páginas do “Local” –, impregnado de um carácter jocoso, não apenas nas questões/respostas, como também na pró­pria imagem. 9 Este trabalho deixa deliberadamente fora de análise o ponto de vista psicológico da ‘opinião’, correspondente a uma atitude, que conduz a um determinado comportamento ou perspectiva. Interessa sim a opinião enquanto conceito político.

Na esteira de Luhmann, «o conceito de opi­nião pública refere-se ao sistema social da sociedade. Não se refere ao que realmente acontece na(s) consciência(s) das pessoas individuais, ou de muitas pessoas, ou de todas, num momento particular do tempo. Portanto, não remete para o que as pessoas reais realmente pensam, o que elas compreendem, o que atrai a sua atenção ou o que conseguem lembrar» (Luhmann, 1992:69). 10 De acordo com Luhmann, «muito mais que outros sistemas de funções, o sistema político depende da opinião pública. Para a política, a opinião pública é um dos mais importantes sensores cuja observação subs­titui a observação directa do ambiente» (Luhmann, 1992:85). 11 Nesta reflexão, não tenho a veleidade de realizar um estudo completo e minucioso acerca da obra de Habermas, considerando que, para tal, seria necessário uma apresentação bem mais ampla que o exposto nas linhas que se seguirão.

referências bibliográficas

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Frame retirado do making of de Volver de Pedro Almod贸var


Vivir, con el alma aferrada A un dulce recuerdo Que llora otra vez

O meu leitor de Cês e Dês, António Barros

Excerto de “Volver” de Alberto Iglesias, cantado por Estrella Morente.


(Re)volver o baú das recordações Volver é um filme feito de regressos. Almodóvar regressa ao princípio dele próprio. O realizador castelhano camufla o espírito rebelde e faz as pazes com a infância, revisitando as raízes e aninhando-se no colo da figura maternal, encostando-se à memória de quem o criou. Pela voz sofrida do tango, passeia-nos por La Mancha, observa o corre-corre aldeão, a vida regrada por hábitos e rotinas populares. Desde os beijos repenicados à ausência do conflito ruidoso, passando pelo pacífico luto e culto negro da morte, ou pelos espiritualismos assertivos. Em sotaque manchego, somos presos a um pretérito imperfeito, onde assuntos ficam por resolver e estórias são arrastadas para o silêncio. Pela mão do vento sueste, chegam as recordações, que se diluem no presente e apagam as fronteiras temporais. Não fosse o guião escrever-se sobre a ambigui­dade fantasmagórica de Irene (Carmen Maura), que se constrói em linhas trémulas entre vida e morte, e consolida a ideia de purgatório na terra. Volver é ilustrado pelas cores garridas de Irene, Raimunda (Penélope Cruz) e Soledad (Lola Dueñas), e Paula (Yohana Cobo), quatro mulheres à beira de um ataque de nervos, três gerações de segredos, luta interior, desespero e coragem desmedida. Almodóvar não escreve um melodrama de uma Espanha recôndita. Conta-nos, sim, uma outra Espanha, feita de outras protagonistas. Uma região por moldar, em estado bruto. De simplicidade em punho, entrecruza e confunde os risos e as lágrimas, fazendo brotar o humor cáustico sob a forma de comédia triste. Volver é, de facto, voltar ao elogio da mulher, à ausência masculina. Voltar à essência dos traços femininos, nus e crus, espelhados na tela falada de Pedro Almodóvar.

Marta Poiares

O primado do detalhe O assobiar do vento de Leste. Um vento que se torna paisagem, insuflando de vida os aerogeradores do parque eólico, empoeirando as campas do cemitério da aldeia ou revolvendo as roupas e o cabelo daqueles que com ele se cruzam. Mais vento. E um vento que é algo mais. Um uivar que enlouquece, que mina a percepção e a deixa volúvel à superstição e ao medo. Um beijo. Mais um. E outro. A sonoridade que produzem assemelha-se à de um instrumento de percussão. Escondem os matizes das relações humanas. Encobrem mentiras e crimes. Espelham aparências de um mundo corroído pela solidão, pelos segredos religiosamente guardados, pela tortuosidade de um passado que se quer forçosamente esquecer mas que acaba sempre por voltar. Um mundo minado pelo peso das convenções sociais que sufocam os actos e as vontades. A morte que, a par do amor, dedilha as vivências de cinco mulheres oriundas de uma comunidade rural presa aos ritos do passado. Ora se consubs­tancia num crime, ora numa estranhamente festiva ocasião. Ou é um acto premeditado de vingança ou apenas forma de defesa, ou um fim que se espera como qualquer outra coisa. A campa no cemitério é tratada, então, como um local de descanso, a casa de férias que um dia se espera habitar. Os homens. Desprovidos de densidade. Personagens planas, estereotipadas, concebidas apenas por referência às protagonistas. Encarnam a traição e o incesto. E são somente isso. O padrasto alcoólico e desempregado que vê a enteada adolescente como objecto sexual e o pai mulherengo que engravida a própria filha. Eis o universo feminino de Volver, um filme despretensioso, porque descontraído, sobre a natureza humana, onde o detalhe e o acessório são elementos centrais ao serviço da significação.

Catarina Prelhaz

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Quando faço um filme, faço para mim

Baixo, de costas ligeiramente curvadas, com um maço de jornais debaixo do braço, João Botelho entra. Movendo-se de modo ligeiro, mas um pouco atarantado, atravessa a sala na nossa direcção. Após um cumprimento rápido, atira os jornais para cima da mesa, senta-se à nossa frente e, com um gesto quase automático, acende um cigarro. Mais que realizador de cinema, artista, criador. Assim se apresenta. Com 57 anos, a filmar há 30, é uma presença regular nos principais festivais de cinema europeus: Cannes e Veneza. Quando fala, fá-lo de modo frenético, gesticulando. Os olhos miu­dinhos, pequenos, mas vivos, vão-nos perscrutando atrás dos óculos, de aros arredondados. A sua mente não pára e as palavras parecem avançar ao ritmo do pensamento. Vai falando do tempo passado em Coimbra durante a crise estudantil de 1969, do nascimento do vício pela Sétima Arte, da sua visão do cinema, de Portugal, entre tantos outros temas. Por momentos, o seu pensamento voa e a nossa presença parece tornar-se invisível, mas, subitamente, a sua mente volta à questão da qual partiu, conclui a resposta e abre espaço a uma nova pergunta. por Sara Peres Estudou Engenharia Mecânica, mas acabou por se dedicar exclusivamente ao cinema. Porquê? Muitos factores levaram-me a isso. Devia ter ido para Arquitectura, mas depois fui para Engenharia Mecânica. Devia ter ido para o Porto, mas como tinha família no Porto e sentia uma certa necessidade de estar sozinho, sair de casa, fui para Coimbra. Tive dois anos de grandes adaptações à nova rea­lidade universitária, mas tenho de dizer que odeio a praxe. Acho a coi­sa mais ridícula e obscena que há no ensino universitário. Con­tu­do, devo-lhe muito o meu vício do cinema. Quando cheguei a Coimbra, a maneira de sair à noi­te, sem ser praxado, era ir ao cinema e correr

para casa. E assim, pas­sava a vida nos filmes. O período que passou em Coim­bra foi muito marcante para si? Foi, porque cheguei a Coimbra católico, reaccionário e era capaz de ir à missa uma vez por semana. Depois fui católico progressista durante seis meses. A partir de certa altura, estava na esquerda absoluta. Entrei na primeira comis­são de revolta, a comissão da cantina, e depois foi o politizar dos movimentos. E foi um mo­mento extraordinário, porque aconteceram muitas coisas. O 25 de Abril foi um período de ruptura. O que significou para si?

Posso dizer que, provavelmente, foi o dia mais importante da minha vida. Mudei toda a minha vida. Gosto de catástrofes, porque fazem as pessoas mudar. E, para mim, o 25 de Abril foi uma catás­trofe. Estava no Porto, pois tinha estado em Coimbra dois anos sem fazer nada e perdi a bolsa da Gulbenkian. Assim, tinha mudado para o Porto, para a Faculdade de Engenharia e faltavam-me apenas algumas cadeiras para acabar o curso de Engenharia Mecânica. Estava a dar aulas numa escola técnica, em Matosinhos, quando aconteceu o 25 de Abril. E decidi vir para Lisboa, para a Escola de Cinema, pois era o que me apetecia. Vim para Lisboa sem nada, a comer

uma refeição por dia a meias, mas com o prazer de saber que vinha fazer algo que ambicio­nava: trabalhar em cinema. E, ao fim de ano e meio na escola, fiz dois pequenos filmes sobre educação popular, para a televisão. Aceitaram os dois primeiros, mas não gostaram, porque eram muito radicais, e puseram-me na rua. Depois, logo a seguir, meti projectos ao ICAM (Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimé­ dia) e fiz uma curta metragem chamada “Alexandre e Rosa”. Mais tarde meti uma ‘curta’ à Gulben­kian, a “Conversa Acaba­da”, e come­cei assim no cinema. E é a minha vida. [risos]

dá nada. Para mim, o cinema é uma actividade de luxo, porque tenho uma enorme liberdade. Não é um negócio, é uma arte. E enquanto for uma arte, eu faço. Quando for um negócio, deixo de fazer.

No tempo da Zita Seabra estive quatro anos sem filmar, pois perdia os concursos todos. Não cedia em relação ao tipo de cinema que queria fazer. Evidente que é um cinema muito mais ligado à poesia que à prosa, à atitude poética, à poesis. O que me interessa é a matéria do texto, a composição e não a narrativa. A luz e as sombras, o olhar.

Cinema Começou a dedicar-se ao cinema quando ainda estava em Coim­ bra. O que significava na altura, para si, o cinema? Era um cinéfilo. Se agora sou vi­ciado em cigarros, na altura era viciado em cinema. Quando estava a estudar em Coimbra, como os meus pais não tinham dinheiro, ia à boleia para a Europa traba­lhar. Trabalhava durante três se­manas e depois ia gastar o

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dinhei­ro, a Paris, numa semana, a ver fil­mes na cinemateca. Via seis filmes por dia, por vício. Por isso, a mi­nha aprendizagem no cinema é um pouco autodidacta. É ver mui­tos filmes. E a cinemateca ajudou-me bastante, porque tinha filmes que não havia cá. Mas nun­ca tinha pensado em fazer cinema. E, se não tivesse feito artes gráficas não tinha sobrevivido, porque o cinema não

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A sua visão é do cinema enquanto arte? Só faço isso. Sempre defendi a minha posição enquanto criador.

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Imagem de Quem és tu? (2001), de João Botelho


Interessa-me mais isto, que contar uma história. A minha atitude perante o cinema é fixar a matéria do vento, da alma, da chuva… sabendo que aquilo é falso. Mostrar que não é a vida, mas a representação da vida. O que é real é a relação que se estabelece entre o que está no ecrã e o espectador que vê. Se ri ou se chora. Isso é que é verdade.

O objectivo é fazer os espectadores pensar? Pensar e ter emoções. Mostrar a emoção e dizer de onde ela vem. Manter as distâncias, proteger o espectador. Tem que ver com o peso teatral do nosso cinema. Damos mais importância ao tex­to, mesmo quando há silêncio, que é mais revolucionário que a imagem. Por isso, andamos mui-

to em cima do texto, da palavra. O meu filme “Um Adeus Portu­ guês” tem meia dúzia de diálogos, pois o que me interessava era a matéria do luto, do sofrimento. As ideias disso. Filmo ideias, não fil­mo coisas. Para mim, é mais forte a ideia da morte que a morte em si.

O problema é do nosso país? É do nosso país e de todos os paí­ses iguais a nós, mas não há um único país no mundo que tenha lucro com os filmes, só a América. Existe Bollywood, na Índia, que é parecido… Fazem cerca de 400 ou 500 filmes, por ano, com gran­ de êxito popular entre eles. É a úni­ca indústria que faz frente aos americanos, não há outra no mun­ do. O resto são casos isolados…

não em sé­ries. Não me oponho a que façam “Floribella: o filme”. Mas não vão ao Ministério da Cultura buscar dinheiro. Vão buscá-lo a empresas e façam negócio. E depois provem que é rentável. Mas isso não é ci­nema. É entretenimento.

Pensa no público quando faz os

seus filmes? Não. Quando faço um filme, faço para mim. Depois quero que o maior número de pessoas o veja. Mas, quando alguém faz, faz para si. Na arte, o fundamental não é a comunicação. É a fabricação. É criar. Depois mostrar. Tentar fazer coisas que nunca ninguém fez e não fazer coisas que as pessoas estão à espera.

O cinema português Um inquérito realizado pela Uni­versidade Lusófona, no ano passado, revelou que 58,2 por cento dos portugueses, além de sentirem uma completa indiferença em relação ao cinema nacional, acham os filmes portugueses mui­to iguais, muito lentos, muito monóto­nos… Isso é a mesma coisa que achar a poesia monótona, mas os traba­ lhadores da língua portuguesa ainda são os poetas portugueses. Somos melhores que todos os ou­tros, é fantástico. E, no entanto, se calhar, as pessoas não lêem poesia. Contudo, o cinema português não assenta sobre um padrão pré-definido de filmes? Você não confunda um filme meu com um do Manuel de Oliveira, ou do João César Monteiro, ou do Pedro Costa! Não. São almas li­vres que fazem filmes e estão-se a borrifar para as consequências. Não é a mesma coisa. E não faço coisas de hermetismo, faço coisas simples. As pessoas entendem as palavras todas. Não têm é capacidade de concentração para ver, ao mesmo tempo que estão a ouvir sons... Mas é possível conciliar sucessos de bilheteira com bons trabalhos? Não. Neste país não. Não há di­nheiro para isso.

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Mas é possível fazer coabitar os dois géneros? Não sei. O grande problema das experiências com tentativas comer­ciais é que, se for para o mercado, tem de ser rentável, os filmes têm de se pagar. E não houve nenhum filme, quer comercial, quer de au­tor, de há 48 anos a esta parte, que se tenha pago em Portugal. Se não houver o apoio do Estado não há cinema, porque não temos capacidade de intervenção no mercado. Somos um país pequenino e os filmes para terem mercado têm de ser em inglês. É necessário fazer um milhão e meio ou dois de espec­tadores, para se pagar um filme português barato. É evidente que, para sobrevivermos, temos de ter dinheiro a fundo perdido, como apoio à arte cinema­tográfica. E o Ministério da Cul­tura deve investir em protótipos, em coisas diferentes,

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O dinheiro não deveria ser uma limitação? Não. Prefiro muitos filmes e bara­tos a dois ou três muito caros, porque há muita gente a querer fazer. E isso depende do Minis­tério da Cultura. É o ICAM. Mas o cinema é das coisas em que o Estado investe menos, porque, quem paga o cinema em Portugal – e as pessoas não dão conta disto – são as multinacionais, através da publicidade. O sistema é a publicidade. Quando passam anúncios na televisão, paga-se uma taxa de 4 por cento, que financia o cinema. É co­mo um imposto. É ridí­culo. Em 100 mil contos, pagam-se 4 mil ao ICAM. E é com esse dinhei­ro que o ICAM paga à Cinema­teca, aos funcionários, os festivais, a produção, tudo isso. Não há investimento directo do Estado. O problema é do Estado, então? Não, acho que há pouco dinheiro investido no cinema em Portugal. Agora com esta história do fundo, pode ser que melhore.

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Mas o dinheiro desse fundo de investimento para o cinema e o audiovisual resulta de uma parceria entre Estado e empresas privadas... Sim, mas uns privados da treta. Vai ser o Estado que vai entrar mais que o resto. Espero que gas­tem o dinheiro em 40 filmes por ano e não em dois, de dois mi­lhões cada um, que não são rentáveis. Ou seja, espero que gastem dinheiro em filmes com capacidade de público interno e externo. Nós, por exemplo, temos pouco público interno, mas temos muito público externo. É a minha zona [risos]. Os filmes estreiam em Fran­ça, às vezes em Itália, outras vezes na Alemanha… São mino­ri­tários, mas passam. E há outros filmes que não passam da frontei­ra. Grandes êxitos aqui, que não passam em mais lado ne­nhum. Não sou contra a sua exis­tência. Mas não sejam modelos, porque não são modelos para nada. O problema da falta de espectadores passa pela deficiente divulgação dos filmes? Tem a ver com a distribuição. O ci­nema português precisa de um circuito paralelo. Não pode­mos competir nos centros comerciais. Temos dificuldade em en­con­trar público.


A televisão portuguesa, o serviço público, deveria promover a fic­ção nacional, portuguesa? Os outros canais, a SIC e a TVI também deviam fazer serviço público. Deviam fazer séries de ficção, para libertar o cinema de outras coisas. Se houvesse ficção nas televisões, as pessoas poderiam

sair das escolas de audiovisual e experimentar. E queria que os filmes dos miúdos, quando aparecessem no cinema, fossem os mais radicais, os mais diferentes. Que nos pusessem em causa com coisas novas, não com coisas velhas. Filmes que tenham que ver com as coisas que eles sabem,

conhecem. E não tentar fazer um filme à americana, ou à francesa, ou à espa­nhola. Façam à portuguesa. Ainda há tanto para se filmar. Cada país tem a sua particularidade, o seu modo de vida. Não defendo que se filmem as mulhe­res todas de preto, com bigode. As pessoas devem

é falar do que conhecem. E, se conhecem a sua rua e os amigos, devem falar disso. Filmar o equivalente a isso. Por­que essa verdade acaba por pagar… esse ‘crime’ compensa. Mais tarde, os filmes resistem ao tempo.

americanos, mas não há dinheiro para isso. De vez em quando há uns êxitos, mas ninguém sabe porquê. Não gosto muito da Amélie de Montmartre, mas, de repente, fez milhões, no mundo inteiro, como o Goodbye Lenin também fez. Há uns fenómenos assim, ocasionalmente, mas não há fórmulas para isso. Em termos numéricos, a Europa, no seu conjunto, produz mais filmes que a indústria americana… É verdade, mas há um problema: tem muitas línguas diferentes. Neste momento, o que domina o mundo, não é a cultura de cada país, mas a cultura de um império. Em certos sítios, as pessoas falam melhor inglês que português. Por alguma razão é.

Claro que há! O Tim Burton é mui­to engraçado, o Wes Anderson também. E de certeza que há uns mais radicais que ninguém vê. Não tenho nada contra o cinema americano. O problema é a massificação. O que eles mandam para aqui é a rentabilidade das coisas. Põem o Homem-Aranha em 150 salas e não há mais filmes. É a uniformização em bloco. Gastam tanto dinheiro a fabricá-lo, que que­rem ocupar o mundo todo com isso. E depois o Wes Anderson passa numa salinha.

O seu papel é actuar como meio de divulgação? Cada vez mais. Há dois principais, Cannes e Veneza. Depois há San Sebastian, que também é reconhe­ cido, e Berlim e outros mais pequenos. Mas a partir do mo­men­to em que se vai a um dos principais, fazem-se 40 ou 50. Isto pode ser uma maneira de angariar espectadores, pois um filme que passa em Veneza é visto por, pelo menos, 10 mil espectadores. Na­que­la zona. Porque é visto na estreia, na sala oficial, por mil pessoas, depois é visto por três mil jornalistas e, no circuito popular, em mais três ou quatro salas e, posteriormente, em Milão e em Roma. Depois, vai para outros fes­ tivais e é visto por mais pessoas. Ora, do ponto de vista económico não é nada. Não rende. Mas é um excelente meio de divulgação.

Outros fílmes, outros lugares O que pensa do processo de selecção que o ICAM faz para decidir que filmes apoiar financeiramente? É uma idioteira. No entanto, o sistema de júris é um sistema menos mau. Nós lutámos sempre para que o júri seja mudado todos os anos. Assim, se há um júri que embirra com umas pessoas, o júri seguinte pode embirrar com ou­tras. E, desde que haja uma mudança de júri, todos os anos, esse tipo de selecção torna-se mais demo­crática. Mas há sempre erro e acho que as regras de selecção são más. O cinema europeu é bom? Não, porque houve uma tentativa de imitação, em vez de se marcar a originalidade e a diferença. E na imitação perde-se. Tenta-se fazer ci­­ne­ma parecido com os

E nos Estados Unidos? Há bom cinema?

Em relação aos festivais de cinema europeus, qual a sua impor­ tância? Há cada vez mais. Qualquer dia, o que vai acontecer, é que vai haver fil­mes que serão só divulgados em festivais.

A cultura e Portugal São importantes para os cineastas portugueses? Claro. É uma forma de continuar a trabalhar. Lembro-me do primei­ro-ministro António Guterres – um idiota – dizer que, enquanto continuassemos a ter boas

críticas nos festivais, podiamos continuar a fazer filmes. Mas quando isso aca­basse, acabavam os filmes. Os festivais são uma das nossa pequenas armas, porque é prestigiante para o país levar sete filmes a Veneza.

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E é preciso obter reconhecimento internacional para se obter reco­nhecimento nacional? É, então não é? [risos] E, mesmo assim, há dificuldades: ou se obtém um reconhecimento muito forte, ou então é-se esquecido.

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O que pensa da crítica portuguesa? Não quero saber. Não respondo. Nem sei se existe. Penso que são divulgadores do cinema. Não há polémica sequer.

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A cultura em Portugal é só aces­sível a elites? Não acho isso. A cultura já é uma banalização da arte. Há muita cultura e poucos artistas. Há um fe­nó­meno de intermediários cultu­rais, divulgadores culturais, comenta­ dores culturais. E há poucos artistas. Devia fomentar-se a arte e não a cultura. Criadores, pintores, escri­tores, músicos... isso é que de­via ser. Os intermediários da cultura já me chateiam um bocado. São intermediários que não fazem nada.

João Botelho e Isabel Pinto, Coimbra 1969

Deve haver um acesso democrático à cultura? Quanto mais acesso houver à informação e à cultura melhor. Mas acho que há um problema: devia haver umas elites mais pensadoras e menos conformistas e não há. Pessoas que arrastassem outras. Agitadores. Faltam agitadores neste país. Como Pessoa dizia, “Portugal precisa de indis­ciplinadores”. Nós somos con­for­mistas. São muitos anos de empre­gados, funcionários subservientes, pessoas que respeitam demasiado a hierarquia, que não põem nada em causa. Esse conformismo é ultrapassá­vel? Claro que é. Não é uma coisa cró­nica. Qual o papel da cultura na modi­ficação de comportamentos? Sou pela educação, mais que pela cultura. Ou seja, devia haver pessoas de artes nas escolas, os miúdos deviam ser levados aos museus para ver pintura, deviam ver fil­mes, teatro… As pessoas quando nascem são abertas a tudo, por isso, mostrem-lhes muitas coisas diferentes. Considera-se pessimista? Não sou pessimista. Sou optimista. O conselho que dou às pessoas que começam no cinema é: façam coisas em que acreditam. Não façam aquilo em que os ou­tros acreditam. Sejam autores. Não sejam funcionários, nem empregados de empresas de conteúdos. Sou optimista, porque acho que se fizermos aquilo em que acreditamos, isso vai acabar por resistir ao tempo. Fernando Pessoa escreveu dois livros em vida, em inglês. Hoje alimenta 200 mil pessoas no mundo inteiro e é um autor consagrado em todo o mundo. É assim a vida.

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wwwww Comunicação e Cidadania 5.° Congresso da SOPCOM Braga, 6 a 8 de Setembro de 2007 A Universidade do Minho, através do seu Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) será a anfitriã da quinta edição do Congresso da Associação Portu­gue­sa de Ciências da Comunica­ção. Depois de Lisboa, Covilhã e Aveiro, é agora a vez de Braga acolher a maior iniciativa da jovem comunidade portuguesa das Ciências da Comunicação, uma proposta em devido tempo apresentada pela Universidade do Minho, bem acolhida pela Direc­ção da SOPCOM. E o repto que os organizadores locais dirigem a todos é que coloquemos no centro dos nossos debates o contributo da nossa área científica para o alargamento e aprofundamento da cidadania. Apresentação de proposta de co­mu­­nicações: 1 de Março a 30 de Abril Prazo para a entrega do texto com­pleto das comunicações acei­tes: 15 de Junho Período normal de inscrições no Congresso: 1 de Março a 30 de Junho [info retirada de http://www.sopcom.pt]

Challenges 2007 V Conferência Internacional de Tecnologias de Informação e Co­municação na Educação Universidade do Minho, 17 e 18 de Maio de 2007 A conferência permitirá a reunião de especialistas e investigadores de diferentes áreas da Educação e das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e a dinami­zação dos processos de divulgação, debate e reflexão sobre as proble­máticas envolvidas na concepção e desenvolvimento da inovação edu­cacional com as novas tecnologias digitais. [info retirada de http://www.nonio. uminho.pt /challenges2007]

Congresso da Federação Interna­cio­nal de Jornalistas Moscovo, 28 de Maio a 2 de Junho Este congresso tem lugar de três em três anos e é a reunião mun­dial de jornalistas mais representativa. O tema deste ano é: Fazer notícias para a Democracia: a construção da confiança no jornalismo de qua­lidade. As sessões articulam-se em três eixos fundamentais:

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• Jornalismo e Diálogo Intercultu­ral face ao Terrorismo e Intolerân­cia • Os Media Globais e a luta por um trabalho • Que futuro para o jornalismo? [info traduzida a partir de http://www. ifj.org/ default.asp?Index=4675&Langu age=EN]

Intercom 2007 Mercado e Comunicação na Socie­dade Digital XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação 29 de Agosto a 2 de Setembro de 2007 A presente conjuntura, marcada pela adopção de novas tecnologias no sistema comunicacional, desa­fia a comunidade académica a reflectir e a pesquisar sobre o im­pacto das indústrias digitais nos processos de mediação simbólica. [info retirada de http://www.intercom. org.br/ congresso/2007/tema.shtml]

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C r é d i t o s

f o t o g r á f i c o s

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Outras pessoas contribuiram

para a materialização destes "Cadernos" com

Bastante empenho e amizade: Raphäel Jerónimo, com a

recolha dos momentos de trabalho,

Imagens e edição da

apresentação feitas pela TV_AAC,

Gabinete de Comunicação

e Identidade da UC pelo apoio e disponibilidade,

António José Silva pelo site

cadernosdejornalismo.uc.pt

Dito de outra maneira, tudo junto

Obrigado.


(Pรกgina deixada propositadamente em branco)


j o r n a l i s m o

é

o

p r i m e i r o

PAUL OUTERBRIDGE (1896-1958) • faux-col, 1922

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e s b o ç o

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h i s t ó r i a


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