Cadernos de Jornalismo n.° 01 2008

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gabriel garcía márquez e truman capote revisitados

teatro de tchékhov e kowalski

em rio de onor, na tourada e com os novos hippies

reconstituição do fim do timor português

aqui dentro


(Pรกgina deixada propositadamente em branco)


instituto de estudos

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c ader nosdejor nalismo

jornalísticos colégio de s. jerónimo

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e-mail: iejfl@ci.uc.pt www.uc.pt/iej imprensa da universidade de coimbra rua da ilha 3001-451 coimbra e-mail: imprensauc@ci.uc.pt www.imp.uc.pt

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Reportagens Na sombra da bandeira . 2 Nostálgica utopia . 10 Os novos "hippies" . 14 Com o cavalo entre as pernas

e os toiros no coração . 22

Jornalismo e Literatura Um misto de sensações . 29 Um sangue que asfixia . 30 Crónica de uma literatura

em jeito de jornalismo . 31

Elogio ao vulgar e ao absurdo . 32

Bloco de notas média e diálogo intercultural

o papel da educação . 34

tratar o inimigo com respeito . 36

Best of Géneros e Secções

Uma fusão . 40

Por falar em [ Teatro ] A arte maior de Tchékhov . 48 Simplesmente Tchékhov . 49 [Entrevista] Andrzej Kowalski . 50 ANA RITA FARIA

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Costa Nova, 2007

que força é essa a dos jornais no tal verão quente .

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Report agem Ti mor Les t e

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Na sombra da bandeira Mascam. Mascam. Mais uma vez. E outra. E outra. Enxotam a fome que lhes consome os corpos e lhes desenha na pele o esqueleto. Mascam. Mais uma vez. E outra. Ouve-se os dentes e a língua comprimindo a mistela de noz de areca, cola e cal que uma folha de bétele amortalha. Exorcizam o instinto que os mantém vivos. Os lábios estão rubros. O vermelho sangue devora-lhes os dentes amarelados. E a dança dos maxilares não cessa. Queixo acima, queixo abaixo. Os pés riscados por gretas, negros de pele e pretos de terra, não ousam violá-la. Vogam ao largo, ao compasso dos passos e à cadência da vida. Não se pisa a sombra da bandeira na meia-ilha do fim do mundo. Ela rasgar-se-á com o Império e sobrarão apenas cinzas de estórias. Estórias que as labaredas da memória já ceifaram. Estórias para a História do Timor Português.

Foto • Cortesia Luís Barata Carvalho, Batugadé, 1/9/1975

texto: Catarina Prelhaz

Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco balas. Quatro para a família, uma para o suicídio. São o escape, a porta dos fundos. A saída da terra para onde não queria voltar. Sem escalas. Adriano Gominho dá à costa da meia-ilha num dos derradeiros dias de Agosto de 1963. Pisa-lhe as águas transparentes antes de lhe sentir a terra. E sobre ela marcha antes de a administrar. Trouxe-o de Alcântara um navio Timor apinhado de militares. A guerra colonial rebentara-lhe pela rádio dois anos antes e, aos 22 anos, é agora mais um peão no tabuleiro imperial. Na terra onde pela primeira vez o ar roçara os seus pulmões, Cabo-Verde, Amílcar Cabral mina o jogo de Salazar. Que dia era? “Dia de S. Barco”, ironiza. “Quando chegava um barco era feriado”. Outros feriados chegam e par­ tem. 1963, 1964, 1965, 1966. Está na companhia de Taibesse, então nas redondezas da capital, com os seus pavilhões amarelos de alvenaria, coroados por chapas serpenteantes de zinco vermelho. Uma cerca de arame farpado resgata-a à mata e aos macacos. Não há guerra, mas não há paz. A meia-ilha da ponta do império consome-lhes o corpo. Os iso­lamentos na mata, provocados pelas cheias que as monções

acicatam, cariam-lhes a mente. O ralo caudal de correspondência faz uma espingarda roçar a cabeça de um dos soldados. Saída de emergência. Ouve-se o tiro. Perfura-lhe a pele. Esfarela-lhe o pescoço. Timor cheira à terra que a chuva grossa lambe. Dez, onze horas. Ouve-se ao longe, a chocalhar no tecal. Não tarda tinirá no telhado de zinco, limpando a poeira que neva sobre as casas e sobre os corpos. E Timor cheira à s formig a s voadoras das primeiras chuvas. Abrem buracos, evadem-se das suas sepulturas na terra alagada. Vivem ao entardecer. Perdem as asas à noite. Ao amanhecer jazem nas luzes e logo serão rala carne tapando os ossos do povo. Ouve-se o zumbido dos mosqui­ tos que serpenteiam pela varanda. Mal o sol fende o céu negro da madrugada, ecoa o canto do toquê, um lagarto que vive nos respiradouros das casas. “Toquê”, brame tantas vezes quantos os anos que a sua existência leva. 1968. L ospa los é a i nd a u m povoado de ruas sem nome e de casas sem timorenses a 248 qui­ lómetros a este da capital. Da casa cor de tijolo do capitão José Simões não se avista o quartel. O quilómetro que os entremeia é pontilhado por árvo-

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res de teca e por palhotas tom de terra empoleiradas nas suas pernas atrofiadas de dois ou três metros de altura. A habitação arregaçada foge às cobras que esquiam pela erva esverdea­da que atapeta o chão. Os pés nus dos timorenses sa ltita m por entre os degraus da escada de madeira. Mal desaparecem por entre as folhas de palmeira, esta some-se também pela abertura por onde entraram. Um veio de terra batida de um jipe de largura ondula por entre Lospala, a povoação dispersa dos locais. Desagua no quartel, com os seus pavilhões rectangulares brancos, encimados por um chapéu de zinco acinzentado. A companhia tem uma centena de homens. Os timorenses dão-se à bandeira. É que a carne é o pão e o pão é as armas. Sete anos volvidos e um capitão português conduzi-la-á a Díli. É que o poder é o pão e é as armas. E é o rastilho da guerra. É por esses dias que Adriano Gominho repisa o chão da meia-ilha. Os pulmões enchem-se n ov a m e nt e c om o o d or d a terra húmida temperado com o cheiro adocicado das árvores e das pétalas. Passa por Ermera e Viqueque, mas acaba por se fixar em Aileu como administrador concelhio.

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A casa apalaçada que o acolhe enrosca-se num jardim relvado recheado de árvores de fruto e roseiras, aqui e acolá polvilhado de gravilha. Para lá se debruçam varandas alcatifadas de tijoleira vermelha, onde é costume bebericar-se o chá. Um muro de 60 ou 70 centímetros de altura aparta a vivenda ocre da rua principal, o equador térreo da vila, com a sua bainha de caneleiras. A via segue para Díli, 47 quilómetros a sul. As cerca de dez mil pessoas que povoam Aileu distribuem-se pelas casas rasteiras de alvenaria que a estrada atrai e pelas palapas que borrifam a paisagem quando as primeiras escasseiam. Já os metropolitanos não excedem em número os dedos de duas mãos. A guerra colonial dá-se-lhe no éter. bbc . Rádio América. Voz da Austrália. Austrália, América, bbc . Os dedos não dão descanso às ondas. Desf ile de estações. O Phillips de campanha gritalhe o desmoronar do império. Brame o aluimento de vidas. Na Guiné, “o assunto” está “perdido”. Quanto tempo restará para que se desentrelace a ponta nascente da pátria? Abril desponta. Estoura a vontade de regressar à metrópole. Papelada tratada, malas feitas.


O pretexto: as primeiras férias ao fim de quatro anos. O medo é o motor. A esperança é não voltar. Portugal está prenhe de revolução. O 25 de Abril nasce-lhe no regresso. Do Minho a Timor, as colónias estrebucham. No verão, um aviso do Ministério do Ultramar: dois substantivos, um número. Exoneração ou regresso. Em 48 horas. Ao ultimato segue-se Díli. Corre o 15 de Setembro. “Timor para os Timorenses!”. “Fora!”. O refrão esguicha das goelas dos rapazes. Na varanda da pensão Mi Hapo, a atenção de Adriano detêm-se nos olhos lampejantes dos manifestantes, ilhas brancas nos rostos tingidos de vermelho, amarelo e preto. Os homens são a tela da bandeira da Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin). E as vozes o seu manifesto. Volta a Aileu com a mulher e o trio de f ilhos. É a terra que alberga o quartel-general das cores que viu na capital. O novo regime português convulsa-se. A 28 de Setembro, a Maioria Silenciosa spinolista vê os seus intentos conservadores malogrados. E a 11 de Março do ano seguinte, o leme da barcaça governativa guina uma vez mais para a esquerda. A animosidade medra adubada pelas acções partidárias. Por esses dias (a memória já levou a data do calendário), a tensão dispara. Um pano esbranquiçado pende a todo o comprimento do portão de ferro da casa do administrador. “Seu colonialista! Vai para a tua terra! E a tua esposa que vá ensinar em Portugal!”, desenham a negro as letras garrafais. Assina-o um fretilin: “m. a .”. “m. a.”. “Mari”. “Alkatiri”, soletra agora por sílabas. Resgata, à vez, os nomes do ruído da música gritada pelos altifalantes do centro comercial. A dois tempos compõe o nome do antigo primeiro-ministro timorense.

Junho. Os rumores do adensar da revolta repercutem-se nas bocas do povoado. Não vai esperar mais. Corre ao paiol da Administração e esventra, uma a uma, as 150 espingardas Mauser que estão sob a sua responsabilidade. Os percutores extirpados amontoam-se numa caixa de cartão. Sem eles, os projécteis jazerão inertes no cano, as armas serão inúteis e os tiros apenas um desejo. O sol de 6 de Agosto não brotou ainda da linha do horizonte e já Adriano Gominho, a mulher e os três filhos estremecem com o bambolear do Land Rover. O jipe calcorreia a estrada de terra que tem em Díli a sua foz. No banco da frente, agarrado ao volante, o condutor saltita ao ritmo dos solavancos do caminho. O motor ronca pela madrugada. O administrador vai no lugar do pendura. Partilha o espaço com a pistola-metralhadora e três cartuchos de 35 balas cada. Cinco delas são, a pedido da mulher, o ponto de fuga da ilha e do mundo. Subitamente, a via estaca diante de u ma pil ha de troncos de madre-del-cacau. O nevoeiro abafa a visão da barricada, plantada junto a um cafezal. Por entre a vegetação, escorrem indivíduos enfaixados em camuf lados do exército português, de g 3 na mão. Os pescoços escuros giram as cabeças para o jipe especado no caminho. Adriano vê os olhos brancos de um deles deambulando pelas letras da placa lateral do veículo: “Estado Administração do Concelho de Aileu”. Reconhece o dono dos olhos e ele o ocupante do jipe. São f ret i lins os obreiros do a ç u d e i m p r o v i s a d o . Pa r t i lharam com o administrador mesas de negociação. A mão que foi momenta nea mente à pistola-metralhadora afasta-se novamente. Os faróis encadeiam os vultos esguios. “Nós vamos

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abrir a estrada”, assentem. À catanada rompem a barragem de pau e dão passagem ao jipe. Ao rugir do motor, cerra-se o punho de um dos soldados em jeito de cumprimento. Deseja em surdina boa viagem. Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco balas. O fim adiado. Os dedos já lhes perderam o rasto, mas a memória não. E o silêncio germina agora nas juntas das palavras. O palácio do governador repousa sobre a encosta que se ergue em direcção a sul. À medida que se sobe pela vertente, a temperatura desce um par de graus e uma brisa afaga o corpo antes amarrado pelo ar húmido tropical. Da varanda colonial bordada em torno da casa, sobranceira à cidade e ao mar, contempla-se os 105 quilómetros quadrados da ilha de Ataúro. Não tardará que a vista se inverta como o espelho faz às coisas. Espectador de Abril e dos seus cravos, Mário Lemos Pires foi delegado da Junta de Salvação Naciona l e, depois, chefe de gabinete do ministro da Defesa Nacional até o 28 de Setembro desalojar António de Spínola da Presidência da República. Mas a proximidade ao general, com quem viveu a guerra na Guiné de 69 a 71, não o exila do poder. Novembro traz-lhe um convite e uma missão a 16 mil quilómetros de distância: governar um Timor que a revolução desassossegou. “Por que é que me vêm chamar a mim para um cargo de responsabilidade?”, questiona-se. A chama da guerra no Vietname está prestes a extinguir-se, mas não antes de esventrar entre 2 e 5,7 milhões de vidas. O temor de uma onda comunista sitia a diplomacia ocidental. A Indonésia, que se desamarrara de um regime vermelho, estreita relações com os eua , mas vê jorrar na metade da ilha de Timor que não

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domina uma ideologia radical de esquerda pelas mãos e bocas dos partidários da fretilin. E o dono daquele pedaço de terra do tamanho de um Alentejo além-mar baloiçara para a esquerda em Setembro. “Olhavam com muita descon­ fiança em relação a Portugal e estou convencido que a nomea­ ção de alguém conotado com a esquerda marxista era aquela que menos aceitação teria no mundo ocidental e, portanto, na Indonésia. Por isso convidaram um moderado”, justifica. Ninguém lhe diz para ir. Mas vai. Imbui-o o desejo de “fazer obra útil” e a dimensão do “desafio”. Inteira-se da empreitada e lança para a mesa a lista das exigências. 1. Quer g over n a r, m a s n ão subjugar-se ao poder militar. Tornam-no então comandante-chefe do Movimento das Forças Armadas (mfa) no território. 2. Aceita ser responsável pela seg u ra nç a interna , ma s não pela externa, opondo-se ao que lhe dita a carta de comando. “Não tenho hipóteses nenhumas. A inda por cima entre a Austrália e a Indonésia”. O Presidente da República e Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Costa Gomes, assume o encargo. 3. Quer helicópteros e navios de guerra, mas isso é “vamos ver”. 4. Quer 30 mil contos para saldar as contas em Timor. “O mfa disse sim senhor e eu fui”. A sombra da bandeira portuguesa estira-se do Minho a Timor. Trinta e três anos volvidos e um Francisco Lopes da Cruz embaixador da Indonésia falará ainda de Portugal com a primeira pessoa do plural. E o signo verde e vermelho pelo qual combateu em Moçambique enquanto as colónias se encapelavam é agora a pedra do anel de ouro que lhe torneia o dedo da aliança. Mas rebobine-se a fita.


Francisco Lopes da Cruz vem ao mundo em Maubara, Timor Português, a 2 de Dezembro de 1941. A política navega-lhe ao largo do pensamento até a revolução dos cravos serpentear na sua direcção por uma Emissora Nacional que cospe palavras entremeadas com ruído. Nos tempos de África, ouvira aqueles alferes, agora capitães de Abril, ventilarem ideias revolucionárias, porém não acreditara que o seu Timor rasgaria a sua bandeira. Mas Portugal grita descolonização. A consciência política escala atiçada pelos militares que agora aspiram voltar à metrópole e pelo gotejar de estudantes da Casa de Timor em Lisboa. É então que, às mãos de Francisco Lopes da Cruz, nasce um partido: a União Democrática Timorense (udt). A 11 de Maio, soa o manifesto: a udt almeja “uma autonomia progressiva, materializada através de uma participação cada vez maior dos timorenses… mas sempre à sombra da bandeira de Portugal”. “Mate bandera hum”. “À sombra da bandeira portuguesa”. O tempo, esse, encarregar-se-á de mudar as vontades, como Camões escrevera, e as novas vontades transformarão a História. E assim surgirá, na aurora de um novo século, Timor Lorosae. Mas essa é História de outras estórias. 23 horas, 10 de Agosto de 1975. No palácio da encosta, o governador Mário Lemos Pires aguarda. O comandante da psp, o tenente-coronel Maggiolo Gouveia, saiu faz meia hora com ordem para defender o quartel da polícia. Os militares, esses, estão a postos para defender a guarnição. Eram cerca de cinco da tarde quando Maggiolo Gouveia lhe deu a notícia do golpe iminente. Tinha acabado de chegar de Lospalos, onde empossara a primeira comissão administrativa democraticamente eleita e dera de caras com um grupo dos seus militares.

Entre eles, o seu cunhado e chefe do Estado-Maior do Exército, o general Martins Barrento. Queriam contar-lhe “aquilo que já me cheirava”. “Aquilo que já me cheirava” dá-se pela mão da udt. A Fretilin, ambicionando a independência total do território, recusa sistematicamente sentar-se às mesas de negociação com a Associação Popular Democrática Timorense (Apodeti), que aspira a integração na Indonésia. A Cimeira de Macau, destinada a confeccionar a descolonização, não é excepção. Em Maio cai a união de Janeiro udt /Fretilin, pela qual lutara o governador Lemos Pires com vista à formação de um governo de unidade nacional. Conta Lopes da Cruz que é por esses dias que a rede de informações da udt pesca a notícia de que o partido vermelho prepara um golpe para 15 de Agosto. Terão encontrado no avião que trouxera de Maputo o presidente da Fretilin, Francisco Xavier do Amaral (candidato às presidenciais de 2007), um documento radiografando a revolta. O plano previa que “todos os líderes da udt e da Apodeti iriam ser liquidados para formar uma frente única para a independência de Timor”, af irma o então presidente da udt. O auto do golpe chega também aos ouvidos do governador Lemos Pires, “e mais que uma vez”. Por isso, está de sobreaviso. Pronto para reagir. A História é uma, mas as estórias não. “Mentira!”, arremessa à versão de Lopes da Cruz o secretário coordenador da Fretilin em Portugal até à independência de Timor, Abílio Serreno. A voz cavernosa traga os silêncios que espaçam as primeiras palavras. “Por quê fazer um golpe? Não tinha lógica”, assegura. “Quem tinha razões para isso era a udt, porque sabia que tanto o povo

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como as forças armadas, dos sar­ gentos para baixo, apoiavam a Fretilin. Foi só um pretexto”, lança. Mas se a intenção não era a revolução, como se justifica a decisão de abandonar as conversações? “Foi um grande erro não termos aceitado as negociações”, admite Abílio Serreno. A voz grave continua f irme. “Considerávamos a Fretilin a única representante legítima do povo de Timor”, justifica. Zero horas de 11 Agosto de 1975. A udt está prestes a espoletar “um movimento revolucionário anticomunista”. Lopes da Cruz e o seu comité central estão reunidos numa casa em Palapasso, nas imediações do farol. Díli é o alvo, mas querem marcar pontos em todos os concelhos. A ideia é que “todos os elementos comunistas da Fretilin e da Apodeti” sejam escorraçados do território “para convencer a Indonésia de que não tínhamos nada de comunismo”. Visam ainda que o governo português expulse os professores “vermelhos” que trouxera da metrópole para fazer a reforma educativa. Os partidários da udt, com a cumplicidade de Maggiolo Gouveia, invadem a sede da psp e apoderam-se das armas. Cercam o palácio da administração. Seis dias depois, o capitão Lino da Silva chegará à capital com as companhias de Lospalos e de Baucau a fim de se juntar aos sublevados. Eis que se refoga a guerra civil. O governador Lemos Pires está ainda no palácio. As comunicações telefónicas foram cortadas. Espera alguém. É então que lhe aparece uma patrulha. Dera-se o golpe anunciado. Pergunta se há algum líder dos sublevados que queira conversar. Há o comandante do movimento, João Carrascalão, sobe à encosta com “mais dois ou três” elemen-

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tos. Esgrimem argumentos, mas o “não” é rotundo. Não vai ceder e ponto final. Mas logo perderá o controlo, conforme as suas próprias palavras, e partirá. “Se a Fretilin f izesse o golpe, eu reagia pela força. Havia uma lógica, que era infringir contra o governo. Toda a gente estaria de acordo: Portugal, os Estados Unidos viriam ajudar. Mas o que a udt faz é vir ter comigo e dizer-me ‘Nós não estamos contra o senhor, nós vimos apoiá-lo para prender a Fretilin’”, lança hoje o general Mário Lemos Pires. Não gesticula. Está sentado. As costas fazem um ângulo recto com o assento da cadeira. Há 33 anos não reagiu. A 19 de Agosto, um dia antes do contra-golpe, ultimam-se as posições no xadrez da guerra civil que então se desenha. Lopes da Cruz ruma a Ermera e daí a Aileu com armas e munições de duas companhias e um contingente de 145 pessoas “mal treinadas”. Entre elas há apenas dois militares. Vão para a fronteira para comprar armamento, “mas a Indonésia não quer vender”. Mandará apenas os primeiros voluntários quando alinhavado o acordo de integração. É dali que assiste ao estoirar da guerra. E é dali que a vê fugir ao seu controlo. Em Díli reina a sinfonia dos tiros de metralhadora e o compasso dos morteiros. Os músicos da contenda não são homens, mas rapazes. Interessa o “acertei”. O “não acertei” interessa menos. Tente-se outra vez. Os olhos vêm um bando de pessoas em fuga, a mira também. Não há partidos nem ideias, há lados. Nem inimigos, mas alvos. “Todos temos culpas no cartório”, reconhece hoje Francisco Lopes da Cruz. Enquanto desembaraça os fios da memória, saltita na poltrona da Embaixada da Indonésia em Lisboa.


Qual foi o seu erro ? “O erro do meu partido foi, talvez por falta de maturidade política, não medirmos bem as consequências do movimento revolucionário de 11 de Agosto”. Encolhe os ombros. Confessa que se deixou afastar intencionalmente do golpe. “Depois quando viram a coisa mal parada e sabiam que eu percebia da tropa já diziam ‘vai lá comandar alguma coisa’”. E foi. Mário Lemos Pires é o último a embarcar. Antes de subir a bordo, cruza-se com os olhos arregalados de um furriel timorense pró-Fretilin que estacou no cais. Faz-lhe continência e volta-lhe as costas. Foge ao “ridículo” de ser moeda de troca das facções que se digladiam. Com ele seguem cerca de cem pessoas, entre militares do Estado-Maior, duas dezenas de marinheiros e dois pelotões de pára-quedistas A retirada foi desenhada em segredo ao fim da manhã, com o aval de Lisboa. Um dos barcos que jazia no cais foi fretado a Macau pelo capitão dos Portos de Timor, José Leiria Pinto. Quando Lemos Pires lho pediu a fim de executar uma manobra de diversão, o responsável pela marinha timorense ainda lhe atirou um “O senhor é governador de toda a gente”. Mas o apelo foi vão. 21h30. A lancha de fiscalização Tibar corta agora o azul do mar que esculpe a costa. Leva Portugal para a ilha que dantes se via do palácio. No horizonte, Ataúro agiganta-se com o escorrer dos minutos desta tarde de 26 de Agosto. E Díli vai mirrando no quadro da paisagem. O fuzilamento é a factura. A descontar nos portugueses que a lancha não levou. Horas depois de a Tibar zarpar em direcção à ilha, 19 militares da metrópole, desarmados, deixam Bobonaro, na zona da

fronteira com a Indonésia. Embalados em três unimogs (jipes todo-o-terreno), juntamente com a mulher e a filha adoles­cente do primeiro-sargento, dirigem-se ao porto da aldeia costeira de Batugadé para embarcarem rumo a Díli. As senhoras vão à frente por causa da chuva de pó que os unimogs bafejam. Curva, contracurva. Os jipes oscilam. O alferes António Cabral vai no do meio. A cada sinuosidade do caminho, o unimog da frente foge ao seu campo de visão. Ao fim de mais uma curva, avista o primeiro veículo da comitiva. Está parado e cintado por timorenses armados. Os sitiantes tomam as rédeas da excursão e escoltam-nos até Batugadé, com paragem num restaurante chinês para o repasto. À chegada, vêem um caudal de udt ’s agitando-se ao longo da costa. Recuam perante o avanço da Fretilin que os vai encostando à fronteira. No primeiro dia, a espera não d á f r utos. Pa ssa m a noite a dormitar no chão, debaixo de palmeiras espetadas a 100 metros da praia. Na manhã seguinte, a rádio conta-lhes que a lancha que aguardavam andara a trasladar o governo para Ataúro. Outros dias passam, dois ou talvez três, e nada. É então que uma barcaça desliza até Oecusse, o enclave português no Timor Oriental, para resgatar a companhia local e, no regresso, aportar em Batugadé. A certa altura, os militares avistam a sua presença quase fantasmagórica ao largo, mas ela não se aproxima. É noite. O sargento que comanda a barcaça enviada pelo Capitão Leiria Pinto olha o tremelicar das luzes na praia de Batugadé. Não tem armas. Sabe que a gente da udt jamais consentirá a sua partida. “Ele teve a noção de que, se fosse lá, entravam dois ou três capangas e estava frito”, disparará 33 anos depois o responsável pelos portos de Timor.

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A 1 de Setembro os militares são levados para o forte da aldeia. A eles juntam-se mais tarde os cinco que haviam permanecido em Bobonaro e que dias antes tentaram negociar a libertação ameaçando bombardear a sede da udt na Maliana. Os líderes do partido, incluindo o Capitão Lino da Silva, vão até lá para os interrogar, contarão mais de três décadas depois António Cabral e Luís Carvalho, outro dos oficiais cativos. Mas escapar-se-lhes-á a verdade por entre os dedos e os laivos da memória? Lopes da Cruz contará uma estória diferente. Segundo o então dirigente da udt, os elementos “mais extremistas” do partido cla ma m por u m ju lga mento sumário dos oficiais rematado pelo seu fuzilamento. A morte como preço da retirada. O líder da udt decide intervir. “Vamos primeiro enfrentar o inimigo. Estes já estão sob o nosso controlo. Ou então vamos a Ataúro resolver o problema com o governo português”. A posição produz decepção, mas não volta atrás. Os cativos poderão ser útil moeda de troca. Os interrogatórios cessam quando a guerra roça neles pela primeira vez a 13 de Setembro. Dois ou três fretilins, enfiados numa lancha do tamanho de um barco a remos com a bandeira da Cruz Vermelha, soltam uma chuvada de morteiros que salpica as imediações do forte. Dentro dele, os militares mergulham para o solo. Os gritos agudos da filha do primeiro-sargento golpeiam o troar dos disparos. Encomenda entregue, barco apartado. Mas na fortaleza todos escapam ilesos. É preciso fugir à investida. Os udt ’s pegam neles e debandam até à linha que talha a ilha em dois. Acampam numa mata de coqueiros que entretanto desbastam. Passam os dias a comer arroz que cozinham na água do mar ou na água de coco. Os grãos saltam do saco para a panela e

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a espuma que o desinfectante produz tem de ser removida à colherada. Onze dias depois, a Fretilin apodera-se de Batugadé e marcha em direcção à fronteira. Os udt ’s e os seus cativos saltam para a Indonésia e refugiam-se numa vala aberta junto à estrada. Das 7h30 ao meio-dia ficam sob um tecto de projécteis que cruzam o ar. Quando o fogo cessa, retomam o caminho de terra batida e são entregues a um elemento da Cruz Vermelha Internacional que, por sua vez, os conf ia à polícia. Mas não antes de verem os militares indonésios pisarem o solo que não lhes pertence. Entranham-se em Timor, 74 dias antes da invasão que os livros de História irão contar. A polícia enjaula os militares no esqueleto corroído de um antigo presbitério holandês em Atapupo, com o exército indonésio por capataz. Dormem sobre uma espécie de esteiras que cobrem parte do chão de pedra, aqui e acolá riscado pela luz do sol ou pelo brilho baço da lua. Junto aos leitos improvisados, amontoam-se as malas castanhas que nunca abandonaram. Por ali repousam também pedras e traves de madeira que o edifício largou e três imagens de santos aninhadas no solo junto a um crucifixo. E, de quando em vez, avistam-se escorpiões por entre as folhas de mangueira que o vento para lá sopra. Jogam paciências, king, bridge e sueca. Tiram fotografias. Banham-se no riacho que por ali serpenteia. Cortam lenha. Confraternizam com os captores. Não são mais que uma dezena. Mais fotografias, com eles e com as suas pistolas também. Ouvem às escondidas no rádio a bbc e a Voz da Austrália, pouco para não gastarem as pilhas. O f luxo de comida vai estancando à medida que a verba que lhes é destinada se esgota na hierarquia militar


indonésia, mas não pensam em fugir. “Para onde?”, interrogar-se-á mais de três décadas depois António Cabral. A 7 de Dezembro, com o estourar da invasão, pingam feridos no hospital de campanha que entretanto ali se instalou. E um dia depois, a rádio sussurra-lhes a liberdade. O jornalista australiano pergunta ao Ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio pelos portugueses detidos. “Já foram libertados”, escutam. A notícia roda os olhos cativos para o caminho. Em vão. Em Junho, embalam-nos em carrinhas multicolores, daquelas que andam mergulhadas num frenesim de galos e galinhas que pulam e cacarejam ao sabor dos meandros do caminho, e despejam-nos num novo cativeiro, em Atambua. A cela é agora uma casa de alvenaria cintada por uma cerca de pau e arame. Já têm colchões e beliches de ferro e, dias mais tarde, piscina. A liberdade chegará a 27 de Julho de 1976, quando os rapazes da força anticomunista que os entesouram, enfiados nas suas fardas azuis-celeste recém-costuradas, os entregarem à Cruz Vermelha, choramingando por não irem também. “A Indonésia por força das circunstâncias serviu-se deles para salientar mais o abandono do governo português e ter uma plataforma para ‘negociar’ com Portugal”, admite hoje o embaixador indonésio em Lisboa. Mas nunca foi a prisão que lhes revolveu a alma. Foi o desleixo. “Eu nunca me senti prisioneiro. Senti-me foi abandonado!”, arremessa hoje António Cabral antes de o ruído da rua estrangular o silêncio que então nasce. Maggiolo deixa a obscuridade da cela. Fiadas de sangue entrelaçam-se no branco dos olhos. Aceita falar, mas é parco nas palavras. E não quer a mira da câmara apontada à conversa.

A rt p foi o primeiro e único órgão de comunicação português a aterrar num Timor encrespado. Fê-lo no dealbar de Outubro pela mão do repórter Adelino Gomes e de três elementos da sua equipa técnica, quase dois meses após o início das hostilidades. Agora, a 11 de Outubro, está ali, na prisão do quartel-general de uma Díli estriada por rastos de balas. Enquanto vagueiam pelo pátio, o jornalista tenta expugnar o silêncio. Fala-lhe nos sogros, que eram amigos. Dá-lhe nomes e datas e locais. “Se o senhor quiser escrever alguma carta para a família, eu levo-lha”, promete. Mas na face do tenente-coronel não se desenha um sorriso, nem nas palavras uma certeza. O ex-comandante da psp está em tronco nu. Acaba por contar que os fretilins o espancaram dias antes e confessa o crime que o encarcerou. Repete o que disse à rádio antes do cativeiro. Entregara-se ao golpe por amor a Timor. E pelo acto passional receberá, por alturas do Natal, o fuzilamento. Um mês depois da visita, Adelino Gomes regressa à prisão da Fretilin. Pergunta se há cartas de Maggiolo. Não há, ouve responder. Nem insiste. Já é jornalista há nove anos, desde os 22, porém, admitirá décadas depois que, naquele momento, esquece um “princípio jornalístico essencial”: a “dúvida metódica”, o “nunca acreditar”. Dias antes de se cruzar com Maggiolo, a rtp está na raia. A Fretilin vai arrancando Timor às armas da udt e apenas uma aldeia resiste ao seu controlo: Batugadé. Adelino Gomes quer filmar a reconquista, agendada para a meia-noite. Mas há um problema. A câmara não vê no escuro. A rtp negoceia com o sargento. Tenta convencê-lo a espera r pelo sol. Às três da manhã o militar cansa-se. “Não vamos

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esperar mais”, declara. “Espere mais um bocadinho”, pedincha o repórter. Vence. Aguardarão até à aurora. Qua ndo f ina lmente a luz se espelha nos corpos, já se avistam helicópteros para os lados da fronteira. É agora ou nunca. “Não pode ser!”, vocifera o jornalista. Uma gota de orvalho alojara-se no interior da lente. Não dá para filmar. E naquele momento, uma rajada de projécteis cai de chofre em torno deles.

Ao início, um minuto entremeia cada disparo. Com o f luir das horas, o ritmo escala e o ribombar aproxima-se. “Os australianos já têm os minutos deles”, pensa Adelino Gomes. E têm. Segundo Lopes da Cruz, as chamas que uma bazuca atiça devoram-nos enquanto espreitam o conf lito de dentro de uma casa. O pipocar dos canhões prossegue até ao nascer do sol. É então que, debaixo das primeiras farripas de luz, o repórter se torna, perante a câmara, no cicerone da guerra.

A rtp sai da fronteira de câmara a abanar. Adelino Gomes não tem os minutos de acção que o chefe de redacção exigira. Por isso, decide voltar. A 12 de Outubro está em Balibó, no forte construído pelos portugueses. Dali vê-se o mar que lapida a praia de Batugadé, o último reduto da udt. Os dias pa ssa m e a câ mara continua esfaimada de peleja. Nada. “Nós vamos embora”, comunica aos cinco jornalistas australianos que entreta nto chega m. “Mas, se houver invasão, é por aqui?”, pergunta o mais novo, Greg Shackleton. Adelino Gomes assente. Os australianos decidem ficar, porque precisam de captar dois ou três minutos de combate. Mas o repórter da rtp não quer esperar mais. Dá o resto das latas de conserva à equipa recém-chegada e ruma em direcção a Bobonaro, onde ouvira dizer que se forma uma companhia militar feminina. No caminho, pára numa colina sobranceira à Maliana onde está o Colégio Infante de Sagres, dirigido por um padre português. Toma banho no tanque, come uma refeição quente e vai dormir. Às 23h30, acorda com o operador de som. “Não está a ouvir? Já começou a invasão!”. Trovejam tiros de canhão. A tempestade de projécteis está a 3 ou 4 quilómetros de distância.

“Os jornalistas [australianos] estavam lá com as forças da Fretilin sem o conhecimento da udt, Apodeti, [e dos partidos minoritários] kota e Trabalhista e dos voluntários da Indonésia”, insiste Lopes da Cruz. O substantivo “voluntários” repete-se. Não sabe números. Mas, ao contrário da versão of icial de Jacarta, o embaixador indonésio e ex-dirigente da udt conta que os “cinco de Balibó” – Greg Shackleton, Tony Stewart, Gary Cunningham, Malcolm Rennie e Brian Peters – pereceram no fogo cruzado.

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Os ponteiros do relógio rasam o meio-dia de 16 de Outubro. O conf lito está a esgotar-se. Adelino Gomes e a equipa de f ilmagem da rt p continua m plantados na colina que espreita as redondezas. Querem caçar mais combate. É então que avista m um avião C130. Roça a pista de terra batida da Maliana. Apontam-lhe a câmara Arriflex. Zoom ao máximo. Os beligerantes não têm meios aéreos ou navais. Os helicópteros que a equipa vira nos dias anteriores pairavam junto à fronteira. E os navios estrangeiros que contemplaram apenas se esfregavam na costa. Mas aquele avião militar beija um Timor a 7 km de uma Indonésia que, pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros, Adam Malik, nega quaisquer pretensões sobre o território.


Eles vêem. A Arriflex filma, mas será que vê? “Quando chegámos a Portugal e fomos ver as imagens foi uma decepção, porque qualquer pessoa diria que o avião era uma mosca a passar à frente da câmara”, zomba o jornalista por entre um esgar. O discurso embriaga-se do verbo “ver”. “Eu vi”. “Vi”. “Eu tinha visto”. A voz eleva-se enquanto as mãos esfaqueiam o ar. Ele viu, a câmara não. Porém, para Adelino Gomes a invasão nasceu ali. Não a ferros, mas a fogo. A guerra civil pauta-se pelo ritmo das marés. Avanços, recuos. udt, kota e Trabalhista marcham atracados às forças de voluntários indonésios. Enfrentam-se. Morrem. Um a um pingam na lista de 3000 pessoas que, segundo o relatório de 2005 da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação, perecerão na guerra civil. Mas a 28 de Novembro, a Fre­ t i l i n, que c ont rol a a qu a s e totalidade da meia-ilha, proclama a independência da República Democrática de Timor-Leste. E, no dia seguinte, na recém-conquistada fortaleza de Balibó, a udt firma o acordo que enlaçará Timor à Indonésia. Portugal ressaca ainda do golpe militar que, dois dias antes desa-

lojara do poder a esquerda radical. O conflito em Timor explodira em pleno “verão quente” e passa ao largo de um país imerso em querelas internas. Ministro da Coordenação Inter­ territorial nos primeiros quatro governos provisórios após os cravos, António de Almeida Santos reconhece hoje que Timor foi um território “sempre muito esquecido e marginalizado” na sombra de uma bandeira iluminada por outra s colónia s. E , seg undo afirma, foi essa a amarra que o impediu de internacionalizar o processo de descolonização. “Os movimentos da Guiné, Angola e Moçambique não queriam e se o fizéssemos tínhamos problemas mais graves nesses locais”, garante. Reclina-se na cadeira. As mãos entrelaçadas estão pousadas um palmo abaixo do peito. “Dialogámos e dialogámos. Quando a Fretilin invadiu o quartel da polícia e roubou as armas, o governador devia ter chegado lá com os pára-quedistas e prendido meia dúzia de indivíduos”, reprova. Mas uma reacção não seria mal recebida pelas outras colónias então em descolonização? “Verdade seja que se tem reagido à força e morto meia dúzia de tipos, quantas críticas não teria recebido. Compreendo,

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mas desejaria que não tivesse sido assim”, confessa. Já depois do fim do mandato, em Agosto de 1975, A lmeida Santos ainda foi a Timor a fim de apaziguar o conflito que então se ateava. A Indonésia exigia intervenção imediata. “Nós dissemos que sim, mas com uma força internacional de Portugal, da Indonésia, da Austrália e Capacetes Azuis, que pedi ao secretário-geral da onu e que ele me deu”, mas Jacarta recusou. “Propuseram ‘só nós e Portugal e quem comanda somos nós’. Não podia aceitar isso. Estava-se mesmo a ver que eles queriam comandar para matar e nós pagávamos a conta ”, ironiza enquanto um sorriso lhe sulca o rosto. A 7 de Dezembro, mal o presidente dos e ua la rg a o seu solo, a Indonésia guilhotina a independência declarada por Xavier do Amaral. Rei morto, rei posto. Toma Timor. Toma Ataúro quando Portugal abala para Darwin. E eis que a bandeira verde e vermelha, com o seu mundo recém-perdido ao centro, desliza pelo poste que coroava. Tombou e foi sepultada. Jaz numa caixa em Alcanena, na casa do embaixador da Indonésia.

A reconstituição dos acontecimentos relatados baseia-se em entrevistas realizadas ao tenente-coronel José Simões, militar em Lospalos e à esposa, Leonilde Simões; a Maria de Lurdes Veríssimo, professora em Same, Viqueque, Baucau, Maliana e Díli; a Adriano Gominho, militar e administrador no Timor Português, e à esposa, Maria Teresa Gominho, professora no território; a António Cabral e a Luís Barata de Carvalho, militares cativos da guerra civil; ao Embaixador da Indonésia em Portugal, também fundador da udt, Francisco Lopes da Cruz; ao general Mário Lemos Pires, o último governador português; ao então capitão dos Portos de Timor, José Leiria Pinto; ao jornalista Adelino Gomes, na época enviado da rtp a Timor; ao ex-secretário coordenador da Fretilin em Portugal, Abílio Serreno e ao então Ministro da Coordenação Interterritorial, António Almeida Santos.


Em Díli reina a sinfonia dos tiros de metralhadora e o compasso dos morteiros. Os músicos da contenda não são homens, mas rapazes. Interessa o “acertei”. O “não acertei” interessa menos. Tente-se outra vez. Os olhos vêem um bando de pessoas em fuga, a mira também. Não há partidos nem ideias, há lados. Nem inimigos, mas alvos.

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Repor tagem em Rio de O nor 10

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Nostálgica utopia Para quem chega pela estrada que serpenteia por entre os montes, a aldeia surge repentinamente como uma ave em pleno pouso sorrateiro, no meio do vale montanhoso. A princípio, parece não haver ninguém. Apenas o rio Onor a correr livre e sonolento rumo à foz; as casas típicas da região, cobertas com telhados de lousa e emparedadas por ardósia, que parecem abandonadas; as ruas estreitas e desertas, cheirando a pasto para o gado; os gatos vadios a olharem curiosos e desconfiados para os desconhecidos; a igreja silenciosa e deserta; uma casa totalmente isolada, no alto de um monte; e o barulho dos pássaros, do vento e da água a compor a melodia sempre presente no lugar. texto e fotografia: Uliana Castro

Rio de Onor, dividida pelo rio e pela raia, o marco que secciona o lugar entre Espanha e Portugal, nestes primeiros dias de Primavera, emerge solitária por entre os montes. Sobre ela, f lutuam cirros errantes e dispersos que se destacam no céu azul anil.

tempo em que todas as querelas eram resolvidas com a Vara da Justiça, onde eram marcadas, com traços fortes, as infracções e, depois, pagavam-se as multas em vinho, posteriormente bebido por todos, nos dias de trabalho em conjunto.

Ne s t e lu g a r a p a r e nt e me nt e abandonado e ao mesmo tempo e n c a nt a d or, o s h a bit a nt e s , quando surgem, parecem personagens saídas dos contos de Miguel Torga para actuar, nas viela s deserta s, como espectros fulgurantes. Eles surgem e somem rapid a mente, qu a l vultos antecipados de um lugar condenado ao desaparecimento. São rostos idosos marcados pela labuta no campo, cujos olhos, expressivamente vagos e tristes, lançam, àqueles que os f itam, o desafio de conhecer o que os inquieta, o que os aflige.

Mas este povo de olhos tristes já não decide mais nada junto, já não se entende como antes. Do passado memorizado, f icaram apenas alguns resquícios de uma vida construída em comum.

E o que os dei x a a s si m t ão melancólicos, assim tão desencantados com a vida, é a saudade da vida comunitária. Do tempo em que a agricultura f lorescia, em que os jovens nutriam a força de trabalho e em que as pessoas conviviam e ajudavam-se mutuamente. Saudade daqueles momentos em que o sino da igreja tocava, anunciando a reunião do povo, na rua, para traçar os rumos do dia e a rotina dos homens. Nostalgia de um

Da agricultura, já só resta uma pequena “colcha de retalhos” estendida à beira do rio, cujos diminutos rectângulos verdes representam as terras de quem já não cultiva e onde as ervas puderam crescer até ao limite dos rectângulos castanhos, com cor de terra fértil e cultivados ainda por alguns. Chamam à colcha retalhada de Faceira, um lugar partilhado individualmente por alguns dos habitantes, mas cultivado em conjunto, já não por vontade e sim por conveniência, pois ela só tem uma entrada e convém não pisar no terreno dos outros. A força de trabalho nos campos já não é braçal, a máquina para lavrar a terra repousa solitária em cima da colcha, como um homem no seu leito de descanso. Ela veio substituir o trabalho

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colectivo e, consequentemente, as relações pessoais. Os frutos produzidos na Faceira, apesar de belos e robustos, já não chegam para o consumo diário. Agora há comida ambulante, vendida pelos homens das carrinhas, para quem antes plantou e colheu os produtos de um trabalho em comum. O toque a lto e insistente da sirene destes carros ambulantes quebra com frequência o silêncio da aldeia e, para os desconhecidos, chega mesmo a assustar. Os habitantes já o conhecem à distância, sabem o que ele signi­ f ica: a comida chegou. São os carros que trazem num dia pão, no outro fruta, no outro carne e até mesmo ração para as quatro vacas e cerca de 130 ovelhas que ainda restam. Neste momento, a aldeia parece ganhar alguma vida. Os aldeões saem com as sacolas nas mãos e o dinheiro nos bolsos, acompanhados por cães pachorrentos e cambaleantes, rumo ao carro do dia. Caminham lentamente, ao ritmo que as pernas velhas e cansadas lhes dá. Chegam ao carro, compram a comida e partem novamente cada um para o seu claustro. Vão satisfeitos porque levam alimento, mas tristes porque não são produzidos cá na terra, porque agora têm que

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pagar. “A gente agora tem que comprar tudo. Trazem tudo aqui para vender. Nós compramos, mas o dinheiro que recebemos das pensões é pouco”, lamenta o senhor Manuel Rodrigues, de 86 anos, gesticulando com os braços e lançando para o ar a insatisfação que o consome. As carrinhas fornecedoras de comida existem porque não se vê um único jovem na aldeia para lavrar a terra e cuidar do gado. A agricultura e o pastoreio já não são actividades que agradam à juventude. Foram todos embora, deixando para trás os pais e os avós cheios de saudades e preocupações. “Quem tem pernas foge, quem não tem f ica para trás” af irma a senhora Maria Luísa Rodrigues, de 82 anos. Os filhos voltam de quando em quando para uma visita passageira, trazendo notícias de um mundo distante e desconhecido que os mais velhos dizem apenas ver através da televisão. Grande parte foi embora, ficaram apenas os idosos receptivos e simpáticos e alguns jovens desconfiados e esquivos. De tão poucos habitantes que restaram, não mais que 73 pes­ soas, sobreviveram sobretudo dois clãs familiares: os Preto e os Rodrigues. Para quem chega e pergunta o nome das pessoas,

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parece que pertencem todos a uma só família. E, no fundo, per tencem, são todos rostos humanos com as mesmas expressões rudes, com o mesmo olhar vago, com o mesmo andar lento e desalinhado, com as mesmas recordações, são todos da família dos esquecidos, dos solitários, dos sobreviventes. Sem crianças e sem jovens suficientes também não há escola. A única existente encontra-se abandonada, lá no alto do monte. Está entregue ao tempo, isolada, parecendo um farol desactivado que outrora vertia luz sobre os habita ntes. Na s sua s ja nela s enferrujadas e partidas puseram plásticos enormes que, com o sopro forte do vento, oscilam de um lado para o outro, fazendo um barulho parecido com o das velas das caravelas portuguesas que conquistaram o império ultramarino tão majestosamente estampado no mapa, ainda pendurado ao lado do quadro negro. O mapa, representando o “Portugal não é pequeno” de Salazar, encontra-se comido pelas traças, está prestes a sucumbir e a deixar de existir, assim como o império, assim como os alunos que já não ocupam as velhas carteiras corroídas. Na aldeia, a escola não é a única construção desabitada, abundam as casas abandonadas, que

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aparecem como o prenúncio do que restará. As miniaturas destas casas estão à venda na Cervejaria Preto para os turistas levarem. Atrás delas, o papel escrito pelo artesão Luís Pires sentencia : “Estas são as casas de que todos gostamos e que todos estamos a deixar perder. Não vem longe o dia em que estas serão, apenas e só, as casas da nossa memória”. Mas enquanto as ruínas insistem em f icar de pé, ainda existem para além da memória. As casas ainda lá estão, cheirando ao feno e à carqueja. É que agora, já desabitadas, servem para guardar a comida do gado e armazenar os grandes feixes de carqueja, que são usados para acender o fogo que aquece os aldeões, durante o Inverno rigoroso das montanhas. Neste lugar em ruínas, onde há tantos gatos como habitantes, apenas um sítio parece dar vida e alegria aos aldeões: a Associação Cultural e Recreativa de Rio de Onor. Um edifício pequeno, com um café aconchegante, onde as pessoas passam para lembrar os velhos tempos. Contam-se as histórias do passado, cumprimentam-se os vizinhos e reclama-se também do isolamento e da falta de entreajuda. “O dinheiro e a televisão estragaram tudo isso”, lastima a senhora Vitória, de 72 anos. Ali, o ambiente comunitário do passado parece querer ressus-

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citar por um instante, abrindo um esboço de sorriso no rosto dos presentes. Mas, por mais que tentem reviver o pa ssado com efémeros momentos de convívio, do comu­ nitarismo já só resta o moinho, a forja, o lavadouro e o pastoreio das ovelhas. O moinho de água, pousado à beira-rio, está praticamente desactivado e parece apenas moer a dor e a solidão dos que ali vivem. A forja, instalada numa casinha de pedra com uma porta de madeira robusta, mas envelhecida, guarda lá dentro o cheiro das cinzas e o calor do fogo. Estão lá o fole, o martelo e a bigorna para quem quiser aventurar-se nas artes de ferreiro. No lavadouro, não há mãos lavando roupas, já foram substituídas pelas máquinas. Existe apenas uma colcha velha pendurada num cordão, balançando ao sabor do vento. O pastoreio das ovelhas é a marca mais significativa do que restou da vida comunitária. Cada aldeão pastoreia as ovelhas de todos, num número de dias correspondente às cabeças de gado que possui. A igualdade e a justiça parecem ainda resistir. São as pequenas ovelhas que conseguem ser o elo comunitário, durante o dia e no começo da noite, entre os habitantes da pequena Rio de Onor.

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Quando a luz do sol rareia e o manto negro da noite começa a estende-se sobre a aldeia, os habitantes ficam logo à espreita. Passado um tempo, já estão todos à porta de casa, esperando cada qual pelas suas ovelhas, cujas vidas marcam a rotina dos que trabalham. De longe, ouve-se o berro do rebanho. Lá vêm elas, como um aglomerado de lã desalinhado. Cada uma sabe o seu destino, já não precisam ser tangidas. Quando passam, os donos é que vão atrás delas. Neste lugar, os animais é que parecem guiar os homens. Depois de o povo e as ovelhas recolhidos, a a ldeia torna-se deserta, silenciosa e triste. Apenas lhe dá vida o barulho das águas a esvair-se por entre as pedras, o vento que sopra mais forte e alguns pássaros nocturnos, que voam assustados, quando passa algum carro rompendo o silêncio com barulhos da civilização. O ma nto da noite já cobriu completamente o lugar, como uma cortina negra que se fechou perante um palco sem espectadores, cujos actores principais vivem com a morte à espreita. Rio de Onor conhece então o seu futuro fantasmagórico, quando já nem os espectros deixam rastros de vida. No meio dos montes, ficam só os quase 50 quilómetros quadrados de nostálgica utopia e solidão.


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Report agem Fes tas Al ter nati vas 14

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Os novos "hippies" plur ,

é tudo o que pedem… Ou seja, “Peace, Love, Unity, Respect”. Foram aos anos 60 buscar uma filosofia de vida e desejaram fazer-se à sua imagem e semelhança. Pura ilusão. Vivem em função de pequenos momentos, as festas trance. Precisam de sentir os sentidos alterados, redimensionados por esse universo fantástico, psicadélico e esotérico. Novos “hippies”, talvez, mas de fim-de-semana. As ideias activistas de mudar o mundo também já lá vão. Agora é preciso fugir a ele. Fomos conhecer os protagonistas, os valores e os excessos desta realidade à parte e de uma subcultura que, a pouco e pouco, se começa a sentir dividida. texto e fotografia: Ana Rita Faria

Costa Nova , Aveiro. 9 horas da manhã . Na tenda de circo aberta balançam corpos frenéticos, agitam-se braços no ar, os olhos semicerram-se para “curtir” melhor o som (ou a “moca”). “Aquela personagem ‘tá em quase todas as festas, e sempre assim a rodar”. A saia colorida até aos pés não atrapalha os movimentos deste trancer, que passa horas a girar sobre si próprio sem parar. Tonturas não as sente, passa-as para quem o vê. Uma túnica azulão com motivos hindus, dois piercings amarelo fluorescente em forma de pico que exibe na cara e anéis em todos os dedos completam a “personagem”, mas o toque final é dado por um chapéu à Joker. Fora, na areia da praia, estendem-se os corpos cansados; mantém-se o charro na mão, ou o copo de bebida. Alguns preferem caminhar para lá das dunas, para perto do mar, e divagar sem rumo certo. Para longe do som caminham outros, concentram-se junto aos carros a fumar o seu charro, a dormir, a fazer malabarismo com swings. Aqui partilha-se. Partilham-se experiên­cias e histórias de outras festas, partilha-se a ganza, a comida, a bebida. “Queres experimentar fazer [malabarismos com swings]? Eu ensino-te”. Um miúdo, não mais de seis anos, rebola-se na terra com o cão. Os cabelos loiros-loiros e os olhos azuis-azuis não traem aquilo que as palavras do

pai, gritadas da auto-caravana, vêm confirmar: são estrangeiros. Carlos Alexandre, 19 anos, de Carregal do Sal, também já tentou ir para junto do carro descansar, mas não conseguiu. Sentado na areia, voltado para a tenda, o estudante de medicina veterinária em Coimbra pergunta aos conhecidos que vê passar se têm um comprimido para dormir. “’Tou a bater mal, quero ir dormir”. Range os dentes, tem o olhar perdido e receoso de quem embarcou numa bad trip por “mandar” ácidos. Da bolsa de pano que traz a tiracolo retira um saco de plástico cheio de bolotas [haxixe]. “30 euros cada uma”. Realizam-se em praias, mas também em f lorestas, herdades ou matos. Recantos naturais remotos, escondidos, resguardados dos olhares públicos. Algumas têm 500 pessoas ou menos, outras mais de três mil. Ninguém sabe quantas decorrem por ano, sendo certo que é comum haver duas ou mais num mesmo f im-de-semana, sobretudo nos meses de calor. É o mundo psicadélico das festas trance, o mundo do som hipnótico da música trance, da decoração fluorescente e das luzes negras, do ambiente estilo “hippie”. Um mundo que acolhe pessoas de idades diversas, vindas dos cantos mais distantes do país e até de fora. Na sua maioria, os trancers vivem uma vida dupla, e é nas festas que têm a

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oportunidade para viajar para fora das imposições do quotidiano. A ajudar a “viagem” surge o consumo vulgar de drogas. A cannabis e os seus derivados, o ecstasy, o lsd ou os cogumelos mágicos [ver caixa] vêm ao encontro dos frequentadores de festas. Basta perguntar por elas, ou nem isso. Simão Silva, mais conhecido por Simon, vai a festas trance há sete anos e tem por hábito misturar haxixe com lsd. Aos 23 anos, trabalha como vidrador numa fábrica no Rojão Grande, Santa Comba Dão. Tímido, evasivo nas palavras, lá acaba por confessar que tinha boas notas na escola, mas que não valia a pena ter continuado a estudar. A partir do momento em que o pai faleceu, Simon começou a “andar numa de apanhar mocas [estar sob efeito de drogas]”. “Sabia que se fosse para a universidade só me ia perder e estourar nota”. A preferência pelos ácidos já o levou a experiências ousadas, que recorda com um sorriso triunfante: “uma vez tomei lsd para ir a um jantar de empresa, tinha de saber como era fazê-lo e estar na sociedade”. Simon já ia a festas house e tecnho (dois outros tipos de musica electrónica de dança) antes de ir a festas trance, mas foi da incursão por estas últimas que herdou os 11 piercings que tem espalhados pelo corpo e rosto e as duas tatu-

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agens nos braços. Agora, pensa gastar três mil euros para tatuar no corpo quase todo a imagem de um dragão com garras, em homenagem ao clube de futebol do coração. Hoje em dia, Simon não vai tão frequentemente a festas trance por “uma questão psicológica”. “A certa altura, não me sinto bem, apetece-me estar em todos os sítios menos ali; a cabeça já não está a bater bem, e atrofio”, confessa. Quando isso acontece, foge para um sítio onde se sinta “fixe”, para “curtir a moca sozinho”. Questionado sobre a razão de continuar a ir a festas mesmo assim, Simon encolhe os ombros, esboça um sorriso inquieto. Responde que não quer estragar a noite ao resto do pessoal e que não gosta da música comercial dos bares e discotecas. Se antes ia às festas por causa do puro divertimento, hoje admite que é a música que o impulsiona. A paixão pelo trance fez com que Simon começasse também a produzir música própria, tendo já ido a festas passar o “seu som”. Um som que se identifica com o dark trance, que geralmente se ouve à noite e que “é mais activo para o cérebro e para as mocas”, por contraposição ao full on (mais comercial), que é tocado durante o dia. O dark trance é também o prefe­ rido de João Isidoro e Marina Ramos, ambos de 19 anos. Natu-

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ral do Caramulo, Marina foi estudar para a terra de João, e acabou por ficar por lá. É por Santa Comba Dão que os dois jovens levam a vida. Enquanto Marina trabalha com um autista, João ajuda o irmão nas estufas. Aos 15 anos, Marina foi à sua primeira festa trance. Não se lembra onde foi, só se lembra que “ bateu” muito ma l, mas João recorda-a: “Foi em Nelas, foste comigo”. Já a primeira festa trance de João recua até aos seus 12 anos, em Montemor-o-Velho. Desde então, não pararam. Nas festas trance, João prefere consumir l sd , “a droga para quem tem e spí rito” c omo a def ine, embora já tenha experimentado quase todos os tipos de substâncias. Já para Marina a escolha recai no mdma, “p’ra tar na boa”. À medida que a temperatura do corpo sobe e o coração dispara, Marina sabe que não sente calor, frio ou fome, pelo que pode dançar horas e horas seguidas. Para eles, o espírito das festas trance é único. “É ‘peace and love’; se dizes a a lguém que tens fome ou que queres qualquer coisa, essa pessoa dá-te”, afirma Marina. João corrobora: “se alguém te vir a bater mal no chão, não caga para ti como noutros sítios”. Vivendo num meio pequeno e enfrentando já o mundo do trabalho, João e Marina vêem nas festas uma oportunidade para fugir à realidade e à sociedade. “Como tenho piercings e calças ao fundo do cu, passo na rua e as pessoas pensam: olha aquela drogada”, lamenta Marina. Só nas festas não se sente discriminada, e sim “uma pessoa como as outras”. Uma filosofia de vida Veterana das festas trance é também Inês Doroteia. Dos seus 23 anos, os últimos nove foram pas-

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sados em festas. A primeira foi na Marateca, na chamada “floresta mágica” que ainda hoje é considerada o santuário do trance em Portugal. De facto, entre 1995 e 2004, a então pioneira e principal produtora de eventos trance nacionais – Goodmood – organizou cerca de 70 festas na Herdade do Zambujal, perto da Marateca. I nê s le mbr a a t ípic a f i g u r a “hippie” do século x xi. Prefere roupas largas e coloridas sobre o corpo magro e costuma apanhar as suas rastas longas, o que realça o sorriso aberto na face e os olhos que brilham por detrás de uns aros redondos. Vive na república de estudantes Baco, em Coimbra, com o f ilho de 18 meses, que tenciona levar com ela à próxima festa. O quarto, que se torna pequeno para os dois, transborda de carrinhos, peluches, jogos… e cd ’s de música trance. Para distrair o filho, que insiste em ver um dvd de desenhos animados, Inês põe a tocar música… trance, claro. Actualmente, Inês não trabalha e está a estudar para entrar no ensino superior, em agricultura biológica. Quando vai a festas trance, Inês não tem por hábito consumir drogas, a não ser “fumar uns charros”, embora já tenha consumido vários tipos de substâncias. “A música por si só já transporta para uma frequência muito à frente, as drogas são apenas um caminho mais fácil para isso”, faz questão de sublinhar. Segundo ela, o próprio estímulo físico da dança, quando efectuado de um modo repetitivo e prolongado, pode contribuir para um estado de transe. Inês acredita que, quando vai a festas, toma consciência daquilo que é e do que os outros são. “À s vezes esqueço-me que tenho corpo”. Escondida nas motivações que a impelem a ir a festas trance está a crença, retomada do ideário hippie, de conseguir mudar a realidade. “Vou a festas porque

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estas fazem-me acreditar que uma realidade alternativa é possível e que, se toda a gente trabalhar em conjunto, pode mudar-se alguma coisa no mundo em que vivemos”, anseia. Júlio César, 22 anos, e Tiago Filipe, 23 anos (que preferiram não referir os apelidos), são companheiros das incursões pelo mundo trance. Ambos foram à sua primeira festa trance quanto tinham 15 anos, mas enquanto Tiago vai mais ocasionalmente, Júlio “costuma ir regularmente, fim-de-semana sim, fim-de-semana não, fim-de-semana também”. Segundo Júlio, o número de festas a que cada um foi traduz-se no modo como cada um vê as festas trance. Se para Tiago estão muito ligadas ao consumo de drogas e ao “curtir a vida”, Júlio insere-se na ideologia dos “veteranos” do trance, acreditando que este movimento de dança electrónica o levou a muito conhecimento interior e à expansão dos seus interesses. À semelhança de outros trancers, Júlio encara as festas como uma realidade alternativa, “um mundo à parte”. “Quando venho cá p’ra fora é o meu ‘matrix’: é só jogos no mundo real. Tenho de encarar um sistema que ‘tá todo mal e em que nos fodemos uns aos outros”. Júlio, que está a estudar em Penacova juntamente com Tiago, confessa que tem muito medo de ir trabalhar, porque sabe o que o espera. Enquanto isso não acontece, Júlio aproveita para ir a festas, arranja “uns trocos aqui e ali” ou entra “à mitra” pelo meio do mato para não pagar. “Queimar” a cabeça Júlio já experimentou muitas drogas ( l sd , mdm a , cogumelos mágicos…), já fez misturas de substâncias, já percorreu o “mundo de fantasia” que as drogas criam. Actualmente, fica-se pelos charros, em festas e fora

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delas, porque o fa zem sentir “relax”. De corpo franzino, “sempre cheio de speed, com a merda [haxixe] na algibeira”, Júlio faz lembrar o “Chico Fininho” cantado por Rui Veloso. Deixou de lado outras drogas, “porque o excesso de consumo deixa as pessoas a bater mal da cabeça”. Júlio recorda amigos que começaram a ir a festas na mesma altura que ele e que hoje estão “queimados”, isto é, afectados mental e cognitivamente devido ao consumo de drogas sintéticas, sobretudo alucinogéneos. “Há muita gente que pensa que mundo acaba amanhã e depois...”, la menta. O mesmo acontece com Inês, que tem alguns amigos internados, ou com Ma rina e João, que conhecem pessoas que ficaram “a bater mal”. “Ficam burros”, exclama Marina, que justif ica esses casos com um consumo maior e mais regular de substâncias psicactivas. Mas para João não é preciso consumir mais. Por vezes, depende do “f ilme com que se fique a bater mal na moca”, isto é, as bad trips (“más viagens”) derivadas do consumo de alucinogéneos. Frequentemente associado aos casos de “queimados”, está o consumo de drogas adulteradas, apelidadas de estrikina ou estriquenina. O inspector-chefe da Secção Regional de Investigação do Tráf ico de Estupefacientes ( srite ) da Polícia Judiciária (pj) de Coimbra, Ferreira Gonçalves, chama a atenção para a quantidade de lotes adulterados de ecstasy que chegam a Portugal, provenientes de centros de produção localizados sobretudo na Holanda e Bélgica e, mais recentemente, também na Europa de Leste. “Tal como a heroína, o mdma é cortado o máximo possível, porque quanto mais cortado for, mais lucro tem o traficante”, realça. No seu gabinete da pj de Coimbra, Ferreira Gonçalves tem pendurado na parede um bilhete do Festival Boom 2006


[ver caixa], o maior evento de trance em Portugal, onde foi a título pessoal. O coleccionador de trance Da janela do quarto que dá para a pequena povoação de Sarzedo, Arganil, vem um som hipnótico, provavelmente israelita, o seu preferido. Na porta do quarto colou cartazes, flyers (folhetos) de festas trance e imagens psicadélicas. Pelas paredes, espalhou cores intensas e formas distorcidas, onde figuras e divindades hindus, ameríndias ou pagãs convivem com alienígenas do mundo da ficção científica. Na base, um mesmo universo e constelação de valores: o trance. Aos 17 anos, Bruno Sousa (nome fictício) já aprendeu à sua custa que a vida não é um mar de rosas. Filho de pais divorciados, Bruno desleixou-se dos estudos, tendo apen a s c omple t a do o 5.º ano de escolaridade. Como consequência de alguns furtos, foi internado num centro educativo. “Más companhias”, censura a mãe. Está lá desde Janeiro de 2006 mas regressa a casa em Junho deste ano, tencionando continuar os seus estudos numa escola profissional. Quando vem a casa nos fins-de-semana, Bruno prefere passar o dia recluso no quarto, a ouvir trance ou metal (“não gosto de mais nada”) ou embrenhado em jogos de computador ( “no colégio há uma playstation mas está estragada”). Mas à noite, sempre que pode, vai ouvir trance para as festas, porque não gosta de discotecas. Desde os 15 anos é assim, mas agora que o seu grupo de amigos organiza algumas festas trance na região o estímulo é ainda maior. Confessa que já fumou uns charros, mas não quer fumar mais, “não vale a pena”. Sabe que os pais não gostam que ele vá a festas, “têm medo por causa das drogas”. Bruno já convidou

a mãe mais que uma vez para ir com ele. Ela hesita, mas diz que qualquer dia vai, para lhe fazer a vontade. “Ele acha que se eu for não lhe vou mais atazanar a cabeça”, diz brincando. Bruno não é de tantas palavras como a mãe, mas fala com o olhar. À medida que vai mostrando as fotografias e imagens que tem guardadas no computador, os seus olhos ainda de criança começam a brilhar, a face descontrai-se, os lábios desenham um sorriso ténue. Sucedem-se, intermináveis, momentos de festas trance eternizados num f lash ; atropela m-se os f lyers das festas a que Bruno já foi e que ainda planeia ir. “Esta é do Boom!”. Pastas para fotografias, para flyers, logótipos, desenhos psicadélicos ou cd ’s de trance “sacados” da Internet. A decoração das festas trance fascina-o. Timidamente, abre a pasta onde guarda alguns dos desenhos que costuma fazer no centro educativo. “Estou a tentar inventar decoração de trance, pa ra depois compra r t inta s, pintar e pendurar na parede”, explica. No pensamento, um desejo que repete sem cessar e que causa arrepios na mãe: “Para o ano hei-de ir ao Boom”. Ainda não sabe ela que Bruno quer fazer rastas… Sair do trance Catraia de Seixos Alves, perto de Tábua. 2 horas da manhã. Carlos Alexandre está eufórico, mas não mais do que o amigo Nelson de Almeida, que trabalha como vendedor em Carnaxide. Resolveram sair um bocado da festa trance que decorre na discoteca ali ao lado e dirigem-se para o carro. Dizem que querem ser entrevistados. Nelson, ou o “ flecha”, nome por que é conhecido, tem 25 anos e brinca declarando que hoje se vai “ desvirginar”, que é a primeira festa a que vai. Mas, na verdade, iniciou

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o seu percurso pelo trance há seis anos, “quando havia a boa onda, que hoje já não há, do ‘peace and love, just smoke and relax’”. De copo de whisky na mão, Carlos, o “puto”, nome por que já foi conhecido, afirma que não bebe álcool nas festas,” só água ou algo parecido com muita água” (refere-se a mdma em pó). Vai a festas porque duram até as 23 horas. “Do dia a seguir, claro, porque nunca chego antes da meia-noite”, brinca. Nelson interrompe-o: “quero um cartão em condições que dê para partir a merda do md”. À falta de cartões, pega no bloco de notas da entrevista, e pouco depois está pronto a “snifar”. Manda um risco e passa de seguida a Carlos para fazer o mesmo. “Fora a heroína, não há nenhuma droga que eu não tenha experimentado, mas sinto-me mal com isso. Sou completamente contra as drogas. Agora quase já não mando drogas, mandei este risco agora nem sei porquê”, confessa Carlos. Nelson retoma o assunto, afirmando: “toda a gente diz ‘ai eu não me agarro!’ mas, quando te vês com dinheiro na mão e ‘tás numa fase frágil da tua vida, é a desgraça”. Cláudia Dias não deixou as coisas chegarem a esse ponto de que Nelson fala. Sob o efeito de lsd, chegou a ver tropas a voarem e combaterem no ar, ou crocodilos na água. Hoje, aos 22 anos, a jovem natural de Massamá confessa que ia a festas trance “por causa da droga”. “Apesar de ter conhecido o mundo do trance da mesma forma que quem vive para ele conhece, eu vivia para o mundo da droga, por influência dos meus amigos”, reconhece. Ainda fica com a face corada ao enumerar as drogas que habitualmente consumia nas festas e fora delas. Actualmente a frequentar o quarto ano de Direito na Universidade de Coimbra, Cláudia já não vai a festas há quatro anos. Tomou a decisão de abandonar

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esse mundo quando chumbou no primeiro ano da faculdade. “Enveredei por outro caminho por ter objectivos a alcançar na minha vida”. A jovem admite que, se tivesse continuado a ir festas, não estaria neste momento a estudar. “As drogas comem-nos muito o cérebro”, refere Cláudia, confessando que só de há dois anos para cá começou a sentir-se melhor. “A minha memória estava muito fraca, não conseguia manter um raciocínio lógico durante muito tempo, começava a perder-me e só queria estar calada”, recorda. Hoje, ainda se cruza de vez em quando na rua com amigos dos tempos do trance, “que não fazem nada, não seguiram estudos nenhuns e continuam a ir a festas”. A caixa de Pandora Quando o trance psicadélico surgiu em Portugal há 13 anos (a primeira festa teve lugar em Estremoz, em 1994), apresentava-se como uma espécie de “segredo bem guardado”, praticamente exclusivo de um grupo de jovens provenientes da classe média e média alta de Lisboa e Porto. Ao mesmo tempo, afirmava-se como um movimento alternativo e de oposição à cena musical do techno e do house, considerados como fenómenos mais comerciais e onde se vivia um mau ambiente, pontuado por crescentes episódios de violência. Hoje, abriu-se a caixa de Pandora que guardava o “segredo”, e o mundo do trance parece estar a mudar. De fac to, a e xpre ssão “mau ambiente” passou agora a ser usada por muitos trancers para caracterizar a atmosfera que actual­mente se vive nas festas trance. Associado a isso, está o multiplicar do número de festas que se realizam, o crescente consumo de drogas nesses contextos e a indústria que se formou à volta de um movimento que nasceu

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livre, comunitário e anti-sistema comercial. Paralelamente, apareceram novos públicos para as festas trance que, segundo os “veteranos”, estão a desvirtuar a ideologia e valores associados a esta subcultura, criando divisões no seu seio. “Está a estragar-se o espírito das festas trance, porque começam a ser dominadas pelo dinheiro e pelo negócio da droga”, afirma Inês Doroteia. A jovem critica a banalização do ritual associado ao trance, censurando as pessoas que vão para festas com o objectivo de “engatar e meter drogas”. Apesar do “mau ambiente” com que às vezes se depara, Inês continua a ir, porque não quer “entregar aquilo aos bichos”. Para Cláudia Dias o “mau ambiente” teve início quando o grupo dos dreads começou a frequentar festas trance. “Inicialmente eram só os rastafari que iam, mas entretanto começaram a ir os dreads e então começaram os assaltos, os roubos, a violência nas festas”, afirma. Cláudia explica a afluência desse novo grupo ao trance dizendo que, “ao contrário dos rastas, os dreads vão sobretudo à procura das drogas (nomeadamente o ecstasy, enquanto os rastas, preferem os ácidos), porque nas festas podem consumir livremente”. “As festas começaram a ser um meio impulsionador do tráfico de droga”, considera Nelson de Almeida, criticando o ambiente de degradação que se vive nas festas. “Eu vou para uma festa p’ra me divertir, e não p’ra me comerem o miolo. Filmes já eu levo com os meus clientes, com o meu patrão, os meus pais…”, comenta. Também Júlio César sente essa mudança no ambiente das festas. “Antes, não se metia drogas para andar a lixar o pessoal”, refere. Júlio recorda uma bad trip em que começou a chorar por ver “um gajo chamar preto a um bacano”. “Numa festa trance isso não se via”, conclui.

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Malveira da Serra, Sintra. 4 horas da manhã. Quase duas horas para encontrar o sítio da festa, de tão escondida que estava dos olhares alheios. A batida acelerada e repetitiva do trance psicadélico invade o ar frio da noite. Junto às tendas de campismo, acenderam-se fogueiras onde se concentram muitos corpos em busca de calor. No dance f loor, o aquecimento faz-se de outra maneira: a dança. À luz proveniente da decoração psicadélica junta-se a da chama dos isqueiros que, de onde em onde, alumiam as actividades da venda ou da partilha de ganza e erva. A mesma chama que derrete a bolota e que depois acende o seu produto final, o charro. Algum tempo depois de chegar à festa, Tiago Filipe confessa que sente “mau ambiente”. “Parece que as pessoas estão a arranjar maneira de lixar os outros”. Mas o importante é curtir, pois a viagem foi longa e a entrada foi 10 euros. Não passou muito tempo até que Júlio César aparecesse a noticiar o acontecido: um miúdo tinha sido espancado e devia ser por causa dos “mitras”, nome pelo qual são conhecidos os vendedores de speed (anfetaminas), e também consumidores. É fácil identificá-los: regra geral, envergam um blazer branco, sapatilhas de marca, brincos e anéis e bonés com a pala virada para o lado. 7 horas da manhã. Quase duas horas depois do acidente, chega uma ambulância de Alcabideche. Fora-lhe difícil encontrar o caminho e agora era difícil passar pela estreita estrada de terra batida, onde os carros tinham estacionado ao acaso. Entretanto, passam pessoas a vasculhar debaixo das viaturas, por detrás dos arbustos, nos cantos mais improváveis. “Assaltaram um carro, roubaram 300 euros”. Não se conseguiu perceber se havia relação com o miúdo espancado. O sol despontava no céu e continuavam a chegar pessoas para a festa.

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Uma

cultur a de drogas

Embora não se possa falar de u m a a s so ci a ç ão obr i g atór i a entre festas trance e drogas, o consumo de substâncias ilícitas nesses contextos não parece ser o desvio à norma, mas a própria norma. Para perceber melhor este fenómeno, contactámos diversos profissionais, entre psiquiatras, psicólogos e investigadores, que identificaram as principais drogas consumidas no contexto das festas trance, as motivações por detrás desses consumos e os riscos associados. Que substâncias? Seg u ndo Va sco Gi l Ca lado, investigador do Instituto da Drog a e Tox icodependência (idt), é preciso entender os consumos de drogas nas festas com base no universo de valores da subcultura trancer. O autor do estudo Drogas Sintéticas: Mundos Culturais, Música Trance e Ciberespaço aponta para determinadas tendências do consumo de drogas nas festas. Por um lado, e tendo em linha de conta o contexto festivo e colectivo, Vasco Calado considera normal que o ecstasy seja consumido e valorizado. Por outro, o fascínio enorme que o lsd exerce é, segundo o autor, justificado pela procura de paraísos artificiais e fuga à realidade, do mesmo modo que a valorização do contacto com a natureza explica a preferência pelas substâncias “naturais”, como os cogumelos mágicos. Por último, o investigador destaca a rejeição da heroína neste universo em que o hedonismo é um valor determinante. Lurdes Lomba, professora da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, corrobora esta ideia, acrescentando que a heroí­na é a ssociada a uma ima gem de decadência, ao “arrumador de

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automóveis”. “Ora, não é essa a imagem que o jovem de hoje quer passar, e sim uma imagem de beleza, por isso as drogas consumidas são estimulantes, e não depressoras como a heroí­na”, conclui. Juntamente com o psicólogo Fernando Mendes e com o psiquiatra José Relvas, Lurdes Lomba assinou a investigação Novas drogas e ambientes recrea­ tivos, que pôs em evidência o policonsumo como tendência gera l do consumo de droga s e o facto de esse consumo de “novas drogas” (as drogas sintéticas, como o ecstasy e o lsd ) se processar sobretudo em contextos recreativos. Segundo a enfermeira, “o estereótipo do consumidor de ecstasy a dançar freneticamente com garrafinha de água já não se aplica hoje em dia”. O mito de que era perigosa a associação do álcool e ecstasy “já lá vai”, e “os jovens de hoje misturam pastilhas com álcool, e até com cocaína, porque sabem que isso aumenta a estimulação. No final da noite, quando querem acalmar, misturam com haxixe. Se querem dormir, misturam com sedativos para conseguir”, explica. Embora tenha chegado a conclusões idênticas, Victor Silva, psicólogo da Comunidade Terapêutica do Norte, levou a cabo um estudo diverso. Em Techno, House e Trance : uma incursão pelas culturas da dance music, o autor associou a cada uma dessas culturas musicais públicos diferentes, de origens distintas e com padrões de consumo diferenciados. “Enquanto os adeptos do techno preferem as pastilhas e os do house a cocaína, os adeptos do trance preferem os ácidos”, resume Victor Silva. Comum a todas as culturas da dance music, é o policonsumo, pelo que à droga “rainha” de cada subcultura se associam outras, como a cannabis ou o álcool.


Ainda assim, “comparando os três grupos, o que tinha um consumo mais adequado e planeado era o do trance”, sublinha o psicólogo. Associado a este facto pode estar o próprio perf il dos trancers : “pessoas mais de classe média, com um nível cultural que considero elevado, em que muitos são estudantes universitários ligados à área das humanísticas (filosofia, belas artes). E também muita gente mais contra-cultura, com ideologias de esquerda e libertárias”, conclui.

Que motivações? “Sou capaz de resistir a tudo, mas só por breves instantes”. Lurdes Lomba recorda esta frase, que viu num flyer de uma festa trance, para explicar a procura de estimulação nas drogas. Segundo a docente, a grande motivação para o consumo de substâncias no contexto das festas trance parece ser a fuga à realidade. Vasco Gil Calado partilha da mesma opinião ao pôr em destaque o “valor utilitário” das drogas numa festa trance. “Elas contribuem para a viagem sensorial, para a dispersão dos sentidos”, explica. Para a psicóloga clínica Clara Abrantes, “os jovens de hoje confrontam-se diariamente com a necessidade de ir à escola, de tirar boas notas, do corresponder às expectativas da família”. As festas trance acabam assim por funcionar como um “contraponto a todo um sentimento de fragilidade, de incongruência social e de insatisfação que a realidade lhes traz”, conclui.

Cla ra A bra nte s t raba l ha no Centro de Atendimento à Toxicodependência (cat) de Coimbra há cerca de 24 anos. Já acompanhou casos de consumidores regulares de “novas drogas”, inclusive no contexto das festas trance, e recorda que habitua lmente lhe descreviam este ambiente recreativo como “uma espécie de paraíso perdido”. “As pessoas falam da sensação de tranquilidade e de pacificação interna que a experiência das festas trance lhes proporciona, e que não passa obrigatoriamente pelo consumo das drogas”, explica Clara Abrantes. A psicóloga acrescenta que “só o facto de ir à festa, de estar com determinadas pessoas, de participar de uma determinada filosofia de existência, já produz um efeito tranquilizador”. Que riscos? Face à atitude de despreocupação que os consumidores das “novas drogas” assumem, os especialistas advogam que é preciso rejeitar a ideia de que só as “drogas duras” são perigosas. “As drogas leves têm riscos e perigos”, alerta José Relvas. O chefe do serviço de Psiquiatria dos huc avisa que há riscos de psicose associados, por exemplo, ao consumo de haxixe, que é considerado uma droga leve. “Os consumidores falam eles próprios dos riscos dessas drogas: as más viagens, as bad trips, alucinações, que podem causar medos e depressões”, sublinha Lurdes Lomba, que menciona ainda o risco de danos cerebrais, ao nível da memória e das capa-

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cidades cognitivas, associado a esses consumos. Segundo a docente, “daqui a duas décadas, vamos ter os consultórios de psiquiatria cheios de pessoas de 30 ou 40 anos com pseuso-alzheimers, problemas de memória, distúrbios de sono e atenção, causados por estas drogas”. Clara Abrantes põe também em destaque a espécie de “montanha-russa” que o estilo de vida e consumo de drogas ligado às festas trance desencadeia. “Se, por um lado, o consumo destas substâncias permite momentos de alta, quando se regressa à vida terrena, deixa de haver aquela pacif icação e poder de resistência”, realça a psicóloga. Em contrapartida, “há uma prostração física e psicológica muito significativa, um sentimento de fragilidade, um sono que parece que nunca mais se recupera”, explica. Clara Abrantes chama ainda a atenção para o perigo da idealização que se faz dos momentos passados em festas ou sob efeito de drogas. “A pessoa sabe que há um local, ou uma situação, em que se sente absolutamente plena, e comparar qualquer momento da vida real com isso é sempre uma comparação que fica a perder”, conclui. Finalmente, Lurdes Lomba destaca dois outros riscos associados ao consumo de drogas sintéticas. Por um lado, essas substâncias podem ser, para algumas pessoas, um motor de arranque para o consumo de outras drogas que causam dependência, como a cocaína ou a heroína. Por outro, a sensação de euforia e a diminuição dos receios provocadas por essas substâncias podem tor-

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nar as pessoas mais predispostas a adoptar comportamentos de risco (relações sexuais sem protecção adequada, actos violentos ou irresponsáveis, como conduzir sob efeito de substâncias). Que prevenção? A experiência clínica no cat de Coimbra diz a Clara Abrantes que o conhecimento dos efeitos da s droga s não f unciona geralmente como factor desmobilizador, mesmo nos indivíduos que estão informados. Segundo a psicóloga, “isto equivale a dizer que trabalhar preventivamente neste âmbito, através de campanhas informativas, têm um efeito reduzidíssimo, para não dizer nulo”. Fernando Mendes, presidente do irefrea Portugal (Instituto Europeu de Investigação dos Factores de Risco na Criança e no Adolescente), partilha da mesma opinião, preferindo substituir uma prevenção pouco funcional por uma lógica de “redução de riscos e diminuição de danos”. O ideal é, portanto, “estar nas festas trance com uma equipa atenta, que aconselha os consumidores: descanse, beba água, vá até ao chill out [geralmente uma tenda onde se descansa ao som de música mais relaxadora]”. O psicólogo Victor Silva vai mais longe, considerando que “já que as pessoas vão consumir, que consumam de uma forma o mais segura possível”. Nesse sentido, defende os testes às pastilhas, que permitem identificar substâncias adulteradas. “É uma questão de saúde pública”, justifica.

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Um Pouco As origens do trance psicadélico remontam a Goa, na Índia. Nos finais dos anos 60 do século x x, começaram a chegar à cidade india na sucessivos f lu xos de jovens ocidenta is, sobretudo hippies desiludidos com o f im da love generation e dos sonhos da sua contracultura. À medida que esta geração se estabelecia em Goa, foi criando uma cultura a lternativa própria, assente na harmonia com a natureza e ligada a um ambiente musical particular vivido em festas. É na década de 90 que este género musical feito nas praias de Goa se encontra com os ritmos que reinavam na Europa (tecnho, acid house, dub). Nasce, assim, o trance psicadélico (inicialmente chamado de “Goa Trance”), que, aos poucos, foi sendo introduzido na Europa. É do encontro entre a contra-cul­ tura ocidental e o misticismo do oriente que resulta a imagem de marca do trance : um mundo cultural exótico e psicadélico caracterizado pela alusão a religiões e filosofias orientais, pela defesa da ecologia e de valores alternativos e pela apologia de substâncias psicoactivas expansoras da consciência. O Festival Boom De dois em dois anos, sempre em época de lua cheia, a Herdade do Torrão, próximo de Idanha-a-Nova, Castelo Branco, recebe o maior festival de música electrónica nacional, sobretudo trance, o Festival Boom. Num recinto de cinquenta hectares decorados com cores f luorescentes e

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motivos psicadélicos, constrói-se uma mini-cidade : parques de estacionamento, sanitários, zonas de duche, tendas, lojas, zonas de convívio e restauração. Nas edições mais recentes, surgiram outras actividades, como cinema, conferências, workshops, galerias de arte, performances e teatro. Paralelamente, o festival entrou também na rota de sensibilização para a ecologia, implantando algumas práticas de sustentabilidade ecológica. Nesta espécie de planeta à parte, em que é preciso trocar euros por “dinheiro boom”, o trance toca toda a noite, e o silêncio só se faz sentir entre as 16h e 19h. A cannabis fumada ultrapassa em muito a quantidade do tabaco, ao mesmo tempo que se compra e vende todo o tipo de drogas ilícitas. Ao longo das seis edições realizadas, o Festival Boom constituiu-se como um marco fundamental na evolução do trance em Portugal. A partir de 1997, ano do primeiro Boom (só a partir da edição de 1998 é que se começou a realizar de dois em dois anos), o trance propagou-se rapidamente e, em pouco anos, afirmou-se como um dos géneros de música electrónica de dança com mais adeptos e eventos realizados a nível nacional. Se em 1997 o Boom contou apenas, segundo dados da organização, com cinco mil pessoas, em 2006 a estimativa sobe para as 25 mil, sendo frequente que o número de estrangeiros ultrapasse o de visitantes nacionais. Só na edição do ano passado, passaram pelo Boom pessoas de 63 nacionalidades diferentes.

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A s Drogas Cannabis Da planta da cannabis, derivam os seguintes produtos estupefacientes : a liamba (também conhecida por erva, maconha ou marijuana), o haxixe (que é o derivado da cannabis mais consumido em todo o mundo) e o óleo de haxixe. A liamba é constituí­da pelo aglomerado das partes componentes da planta (f lores, folhas, caules tenros, e por vezes sementes) secas e maceradas, que se fumam em mortalhas de papel, misturadas ou não com tabaco ou com haxixe (“charro”, “ganza”). Este, por sua vez, é obtido a partir da resina ou da seiva da planta do cânhamo, seca e misturada com palha, liamba e até com cera, cozida no forno e prensada. Daí se obtêm blocos ou tabletes com cerca de meio quilo de peso, destinados à exportação. Em relação ao óleo de haxixe, é produzido através da resina da planta, misturada com um solvente, resultando num óleo espesso de cor preta esverdeada. É consumido enrolado em mortalhas e depois fumado. Alucinogéneos Entre os alucinogéneos (também conhecidos por ácidos) de origem natural, mas que também podem ser produzidos de forma sintética, destacam-se a psilocibina e mescalina. Enquanto esta tem origem num cacto (existente na América Central e do Norte), a psilocibina (que é quimicamente semelhante ao lsd ) tem origem num cogumelo designado psilocibo, considerado sagrado pelos indígenas da América Central.

Reportagem

do

Tr ance

Os cogumelos mágicos, nome associado a este tipo de droga, são substâncias alucinogéneas ou psicadélicas, que geralmente se ingerem crus, secos, cozinhados ou em forma de chá. Dos alucinogénos sintéticos o mais conhecido é o lsd. Introduzido no circuito comercial ilícito na década de 60, tornou-se uma droga muito em voga nos países da Europa do Norte e Estados Unidos, sobretudo ligado à cultura dos hippies. O l sd produz-se, mediante um processo sintético, a partir dos fungos que surgem na espiga do centeio, sendo depois vendidos sob variadas formas: gelatinas, comprimidos com dimensões muito reduzidas e com diversos formatos e cores, ou autocolantes com desenhos variados, onde a droga vem embebida, e que se consomem lambendo as figuras expostas. É considerado o mais poderoso alucinogéneo conhecido. Ecstasy À semelhança das outras drogas de síntese, o ecstasy é um derivado anfetamínico com uma composição química semelhante à da mescalina (alucinogéneo). A ssim, o m dm a (inicia is do nome químico do ecstasy) tem acção alucinogénea, psicadélica e estimulante. É, geralmente, consumido por via oral, embora possa também ser injectado ou ina lado. Surge em forma de pastilhas, comprimidos, barras, cápsulas ou pó. Pode apresentar diversos aspectos, tamanhos e cores, de forma a tornar-se mais atractivo e comercial.


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Repor tagem Touradas 22

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Com o cavalo entre as per nas e os toiros no coração Do lado de fora da Monumental do Montijo cheira a febras assadas, coiratos, cerveja e bosta. Os cheiros que se misturam no ar são tão diferentes como as pessoas que se juntam, à espera do mesmo espectáculo. Dos altifalantes de uma motorizada velha, que circula à volta da praça, sai uma voz de homem a prometer touros “puros” que vão mostrar “raça, valentia e bravura”.

Il ustração • Renata Catambas, 2007

texto: Martha Mendes

À entrada da Praça A madeu Augusto dos Santos o cenário humano é variado. A fila para as bilheteiras mostra que a tourada não tem um público-alvo. Compram entradas homens e mulheres, idosos e jovens. Pais acompanham crianças de colo numa prova de que a tradição tauromáquica está assegurada. Luís Castanheira, que trabalha na praça há anos, vende bilhetes a pobres e ricos, urbanos e rurais, aos homens que vêm com a esposa e os filhos, e aos homens que vêm com os amigos das lides. Já com os bilhetes, da empresa Bravura e Tradição, Lda., comprados, os futuros espectadores dirigem-se às roulottes para os comes e bebes sem os quais a festa não vive. “O Bifanão” é o estabelecimento mais concorrido. Aqui o assador não pára enquanto houver touros. O Grupo de Forcados Amadores da Tertúlia Tauromática do Montijo chega ao local quando ainda faltam duas horas para o início da festa. “Há que chegar cedo, beber um copo de vinho, rezar a Nossa Senhora… Enfim, preparar a pega”, explica um dos muitos homens de calças pretas justas, sapatos de couro com berloques e casacas garridas, bordadas a vermelho, verde e amarelo-ouro. Enquanto os homens das pegas passam, um grupo de amigos com ar de quem anda de praça em praça a época inteira, expli-

cam uns aos outros porque é que preferem esta tourada “à outra”, que acontece à mesma hora, no Cartaxo. José André, de 64 anos, faz parte do grupo. É um homem encorpado que usa samarra alentejana e patilhas que lhe descem pelo rosto até à altura dos lábios, grossos como os dedos das mãos. João Ponte tem 54 anos e veio de propósito de Évora para inaugurar a época no Montijo. Quem o vê na rua, percebe logo que é um homem “das lides”. Veste casaco de couro castanho, calças de ganga e camisa aos quadrados coloridos. De boina na cabeça e camisa dentro das calças, presas por um cinto de pele, João hoje veio com os “amigos dos toiros”, mas também costuma trazer a família. Os filhos vêm com o pai à tourada. “Uns porque querem, outros porque são obrigados”. Quem tem o mesmo sangue de João Ponte está fadado para as lides porque a tourada é uma hera nç a cu ltura l e genétic a. C omo d i r i a Á l v a r o Gu e r r a quando falava em tauromaquia, a afición aos toiros é uma coisa de família, um caso de dinastia. Quem é filho de um aficionado vai ser pai de um aficionado. Quando são confrontados com a opinião dos que consideram que a tourada não é mais do que um acto de barbaridade, onde os direitos dos animais não têm lugar, os amadores de tauromaquia mudam de tom. O brilho de emoção que lhes vidra

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o olhar quando falam da festa brava transforma-se em brilho de raiva. João Ponte aconselha quem é contra a tourada “a vir ver com os próprios olhos o espectáculo lindo dos toiros, porque isto não é nada do que eles dizem”. José André é mais radical e garante: “eu renego essa gente como sendo portuguesa, isso é gente que não sabe nada!”. José e João são irmãos nesta luta, têm o mesmo discurso e as mesmas posições. Asseguram que o toiro é um animal bravo, uma besta. Garantem que o bicho se sente honrado em lutar contra o homem, com a convicção de quem já ouviu um toiro dizer isto. No interior da praça há uma capela. A guarda, Maria Jerónimo, a ssegura que tanto os toureiros como os forcados e os bandarilheiros vão sempre rezar antes da lide. Pedem principalmente “para ficar bem”. Quem anda nesta vida não pensa muito na morte. É o risco que os move. Na cultura marialva tem valor o mais corajoso, portanto o medo da morte e o perigo de enfrentar o touro são temas tabu para quem anda nas lides. Quando as portas se abrem para receber os aficionados começa o espectáculo da cor, do som, do povo. Na arena entram primeiro os forcados, seguidos pelos toureiros e pelos campinos, de vara na mão e barrete verde na cabeça. Por fim entram os cavaleiros já em cima dos cavalos. A tourada é

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uma festa feita de muitas regras, jogos de forças e hierarquias. Os cavaleiros tiram os chapéus e dão a volta à arena a saudar o público que os recebe, de pé, com uma ovação. Na plateia dois adolescentes avaliam qual o cavalo mais bonito da corrida. Os animais, como se percebessem a competição secreta, batem as patas num sapateado guiado pelo ritmo do passo doble, que se ouve desde a abertura dos curros. A arena é como a paleta de um pintor. As tábuas são vermelhas e brancas, a terra é ocre. Os forcados, assim como os cavaleiros, podem ter todas as cores, desde que sejam fortes e garridas como a festa: amarelo, vermelho, verde-escuro e azul-turquesa são as cores que predominam nos fatos. O rosa, que atrai o touro, e o amarelo, que o repele dos capotes dos toureiros, são as duas cores principais da pintura. Quando os curros se abrem o bicho demora a sair, como se soubesse o que o espera. O cavaleiro endireita-se, em cima da sela, para receber o rival. De queixo erguido, uma mão agarra na bandarilha e a outra é colocada na cintura, sobre as ancas, numa pose provocadora. O público agita-se com a espera. Dentro da praça um minuto parecem dez. Ouvem-se os coices que o toiro atira contra as tábuas, vindos de dentro do curro situado entre o sector 7 e o sector 5 da praça. E eis que do túnel de escuridão sai em ziguezague o toiro preto.

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Com ele, o animal traz sentimentos ambíguos e incoerentes a quem observa o espectáculo: medo, paixão, emoção, repulsa e admiração misturam-se neste instante. Ao fim de dez minutos de corrida a respiração agitada do animal sente-se através da dança do dorso, que sobe e desce num movimento provocado pela respiração ofegante. O touro ganha alguns pontos ao cavaleiro quando roça os cornos pela perna do cavalo, que ameaça cair. O animal que entrou branco às manchas cinzentas tem, agora, uma nova cor. Vermelho. O público teme o pior e atira comentários para a arena, como os “treinadores de bancada” fazem no futebol. Uns roem as unhas, outros emocionam-se. Alguns gritam palavrões e mandam sair o cavaleiro. A plateia pede nova bandarilha, incentivando quem está em cima do cavalo e, acreditam, incentivando o toiro. O passo doble ecoa mais uma vez e agora os espectadores acompanham a melodia com palmas. “O toiro não investe, o rapaz tem de insistir!”, grita um dos entendidos de bancada. Acaba o tempo do cava leiro. Entram os forcados. A pega é dedicada a Gonçalo da Câmara Pereira, presente entre a audiên­ cia. O fadista aceita o barrete

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como prova de que recebe a oferta e abraça o forcado, agradecido. A tourada e o fado foram sempre bons amantes. O toiro é bravo e segundo o comentário de um espectador “tem uma armação má p’á pega”. O animal vence, pelo menos, três forcados que saem da praça em maca e inconscientes, mas o grupo não desiste. As mazelas são para quem pega como as condecorações para os veteranos de guerra. Descrevem cada uma delas com orgulho e pormenor. Se tiverem cicatrizes levantam as camisas para mostrá-las em público. Vêem os ossos partidos como uma prova do seu amor “à arte”. No fim da lide o cavaleiro dá a volta de honra à arena acompanhado por um toureiro e pelo forcado que pegou de ca ra s, ou seja o primeiro da f ila de forcados numa pega. Senhoras morenas e femininas, de ar distinto, vestidas com casacos de pele e calçadas com botas de montar, aplaudem de pé a volta de honra. Nas mãos seguram ramos de f lores que atiram ao cavaleiro quando este passa em frente à bancada. Outras atiram peças de roupa que o cavaleiro beija e devolve. No f im da volta, o cavaleiro coloca-se no centro da arena,

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onde roda sobre si mesmo de braço erguido, com o chapéu na mão, a saudar a plateia uma última vez. O homem que gira na arena tem apenas 17 anos. “Os toiros estão-me no sangue, a minha família sempre teve tradições taurinas”, explica orgulhoso Tomás Pinto. O segundo cavaleiro do espectácu lo é uma mu lher. Joa na Andrade também é jovem. Tem 19 anos e estuda Engenharia Zootécnica. Em cima do cavalo atira gritos ao animal, para o atrair, com uma voz grossa e determinada. Sentada na sela, Joana evita ser mulher porque considera que “ainda é muito difícil entrar e vencer neste mudo de machos”. Ajeita-se, livre e solta, em cima do cavalo que tem entre as pernas, com o mesmo à-vontade dos colegas masculinos. Traz o longo cabelo loiro amarrado num apanhado rígido e o traje que enverga é igual ao dos homens. Os únicos indícios de feminilidade que se permite são uns brincos de oiro, com ar de herança de família, e um ligeiro toque de maquilhagem sobre os olhos grandes e brilhantes. Para além do sorriso rasgado, de mulher, com que saúda a audiência. Os homens que vão à praça há mais tempo, ainda desconfiam

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qua ndo vêem uma mu lher a tourear. “’tás aqui, ‘tás a arref i n f á-l a s ! Nã o t e a r r i s qu e s tanto!”, grita um aficionado da plateia num tom que Joana sabe que um colega homem jamais vai ouvir. De tanto arriscar, a cavaleira falha um ferro e desequilibra-se no cavalo. Depois do incidente, Joana sai para trocar de montada porque este é um mundo feito de fé, mas também de crenças e superstições. O espectácu lo da tourada é transversal ao tempo, às ideologias e às modas. É igual desde sempre. Talvez tenha conhecido uma única mudança: a entrada das mulheres na arena. À sa íd a d a Monu ment a l do Montijo está uma pintura na parede, do lado direito da porta. O painel é uma réplica do cartaz da primeira época realizada nesta praça, que comemorou em Agosto o seu cinquentenário. Em 1957, a primeira tourada da temporada abria com David Ribeiro Telles e os preços dos bilhetes variavam entre os 12 e os 75 escudos. Tirando a inflação, a tradição permanece inalterada. Agora que a festa acabou já não cheira a petiscos e a car vão. O odor a bosta intensificou-se. Respira-se suor e sangue.


Ilustração • Maria Inês Murta, 2007

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Ilustração • Maria Inês Murta, 2007

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Ilustração • Maria Inês Murta, 2007

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FRANÇOIS AUBERT (1829-1906) • [A camisa do imperador Maximiliano após a sua execução • México, 1867]

J O R N A L I S M O

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L I T E R A T U R A

Santiago Nasar e Holcomb. Um homem e um espaço separados por milhares de quilómetros, mas vizinhos no destino trágico da morte por assassínio. García Marquez e Truman Capote desenham através da sua escrita virtuosa rostos, comportamentos, pequenas comunidades, atitudes definitivas. A "Crónica de uma morte anunciada" e "A sangue frio", revisitadas nas páginas que se seguem, alimentam a dúvida, controversa e muito antiga, se o jornalismo pode ser literatura um século e meio depois de Victor Hugo ter dito que "não existe qualquer incompatibilidade entre o exacto e o poético".

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Um misto de sensações A

sangue frio. Que interpretação sugere o título? Ao ler esta obra de Truman Capote, que o próprio designa por “romance não-ficção”, percebi que o título poderia ter três interpretações. Uma delas é o sangue frio que o leitor precisa de ter. A descrição do espaço e dos factos é bastante pormenorizada e transporta-nos para a cena do crime como se, nós próprios, estivéssemos a viver toda aquela tragédia. Quando Capote descreve com real minúcia a disposição e estado dos corpos das vítimas ao serem encontradas, o sangue do leitor gela. Perante isto, ele torna-se parte integrante da história e reconhece-se numa ou noutra personagem, o que faz com que se envolva cada vez mais na trama. Assim, também o leitor tem desejo de vingança. A f rie z a d a s e xpre s sõe s dos assassinos deixa qualquer pessoa petrificada e, inclusive, amedrontada com o que poderá vir a ler, por se tratar de uma história verídica, de contornos tão horripilantes: “até nas paredes havemos de deixar cabelos agarrados”. É impossível f icar indiferente à descrição impressionante que o autor faz na hora da execução dos condenados: “(…) até se ouvir o estalido que faz uma corda a quebrar os ossos do pescoço”.

Uma segunda interpretação diz respeito à monstruosidade do assassínio da família Clutter, n a qu e l a m a d r u g a d a d o d i a 15 de Novembro de 1959, em Holcomb, Kansas. A forma como Perry matou as quatro pessoas, enquanto Dick assistia a tudo sem contestar, mostra uma frieza interior que não lhes permitia ref lectir e, muito menos, parar com aquela atrocidade. No entanto, ao descobrirmos a história de vida de Perry, há um sentimento de tristeza que nos atravessa e nos faz sentir pena daquele assassino desprovido de sentimentos. A família Clutter foi o alvo da raiva que Perry tinha de tudo e de todos, pois como ele próprio referiu: “Talvez os Clutters estivessem destinados a pagar pelos outros”. A atitude que mais me surpreendeu em Perry, com a qual eu concordo, foi o facto de ele assumir que sentia repulsa de pessoas como Dick, que não se sabiam controlar sexualmente. Como mulher, impressionou-me a sua prontidão em enfrentar Dick quando este tencionava violar Nancy: “Está bem, mas antes terás de me matar.”. Todavia, é difícil compreender como é que Perry impediu a violação de Nancy e a matou em seguida.

A terceira acepção refere-se ao grande envolvimento que o autor manteve com as fontes de informação, o sangue frio necessário para ouvir os pormenores sórdidos dos assassinos presentes na obra e para reconstruir toda a história. É notável como Capote descreve, exaustivamente, todos os detalhes, mesmo os mais sangrentos e cruéis, fazendo-nos “ver” todo aquele cenário aterrorizador. O autor aproximou-se, interessadamente, dos assassinos para conseguir obter as informações necessárias à produção do livro. Por outro lado, o modo como conta a vida de Perry, a linguagem utilizada, a revelação dos pensamentos das pessoas que contactaram com Perry, tudo isto é uma tentativa para o tentarmos desculpabilizar por um crime que não tem desculpa possível. A construção do texto revela-se bastante interessante, na medida em que nos vamos apercebendo do que se vai passando com as vítimas e com os assassinos, talvez uma maneira de contrapor a boa vida que os primeiros levavam e a vida miserável que os segundos desprezavam, aumentando, assim, o clímax da história e mantendo-o até ao fim. Catarina Ferreira

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Um sangue que asfixia A

morte é o f io condutor de todas as histórias, seja a que foi contada por Truman Capote ou a história que nós próprios vivemos. Todos sabemos qual vai ser o nosso final, só não conseguimos descortinar é como vamos chegar a esse final. Pois é isso mesmo que Truman Capote faz na sua obra, A Sangue Frio. O jornalista norte-americano leva-nos pela mão até ao assassinato da família Clutter e, mais tarde, até ao momento da morte dos assassinos. Na realidade, o que interessa não é só o que acontece mas, sobretudo, como acontece. Para isso, Truman Capote usa um instrumento essencial a qualquer narrativa, a descrição. O livro vive de grandes momentos descritivos, que têm um poder visualizador, permitindo criar o efeito de real e, também, uma função dilatória, mantendo o suspense da acção. Assim, Capote cria um certo sufoco, deixa que o leitor perceba o que vai acontecer e depois quase que o tortura até revelar a descrição completa de todos os factos. Os pormenores de cada situação são fornecidos a pouco e pouco, o que faz com que a leitura do livro seja feita em permanente agonia. Ora, para esta manutenção do suspense contribui também a estratégia narrativa usada em grande parte da obra. Sem seguir a ordem cronológica dos aconte-

cimentos, Truman Capote cria duas realidades paralelas, que se alternam ao longo da narrativa e que acabam por se cruzar. Por um lado, a vida dos assassinos, Perry Smith e Dick Hickock, por outro lado, o quotidiano de Holcomb no geral e da família Clutter em particular, que depois do crime dão lugar à descrição do processo de investigação. Apenas o último capítulo do livro, “O ‘Canto’”, difere ligeiramente, uma vez que é centrado na longa caminhada de Perry e Dick até à forca. A narração que encontramos ao longo da obra é o resultado de um profundo traba lho de investigação. Durante 4/5 anos, Truman Capote mergulhou na pequena a ldeia de Holcomb, perdida no estado do Kansas, com o objectivo de deslindar os contornos daquele misterioso assassinato, que nos primeiros tempos dava sinais de ser um crime perfeito. Para construir a história e seguindo uma das regras do jornalismo, Capote procurou falar com todas as fontes, que pudessem acrescentar algo de novo ao caso. Tal como o próprio autor diz numa declaração que antecede o início da narrativa, o material do livro “foi colhido em relatos oficiais ou é fruto de entrevistas com pessoas envolvidas no caso, entrevistas essas na sua maioria bastante demoradas”.

Truman Capote refere-se, então, a esta obra como um “romance não-ficção”, colocando no título que se trata de uma “narração verídica de um quádruplo assassínio e suas consequências”. É tendo em conta uma nova forma de reportar o real que A Sangue Frio pode ser a expressão de um New Journalism, surgido na década de 60. No fundo, trata-se de uma obra jornalístico-literária, na qual Truman Capote tentou manter-se fiel à realidade, usando durante a sua escrita um conjunto de técnicas literárias. Ora, a partir desta ideia surgem naturalmente um conjunto de dúvidas. As descrições, que em muitas cenas envolvem ínfimos detalhes, até que ponto são leais à realidade? Não existem quaisquer falhas na reconstrução dos diálogos? Qual a proximidade criada com a fontes? Verificamos, assim, que não é difícil colocar em causa a veracidade de que fala Truman Capote. No entanto, A Sangue Frio vale, sobretudo, por transcender os factos que descreve, leva-nos não só a uma ref lexão sobre o cruzamento de géneros (jornalístico e literário), mas também a ref lexões de outra natureza, nomeadamente sobre a violência americana e sobre a polémica questão da pena de morte. Pelas certezas reveladas e pelas dúvidas suscitadas, é difícil não terminar este livro com um nó na garganta. Raquel Carvalho

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Crónica de uma literatura em jeito de jornalismo É

possível unir jornalismo e literatura? Gabriel García Márquez mostra que sim, ainda que faça apenas literatura. Crónica de uma morte anunciada é uma obra de ficção. Disso parece não haver dúvidas. No entanto, a estória de García Márquez transpira jornalismo. Sem deixar de ser (boa) literatura. Vejamos: em Crónica de uma morte anunciada temos um narrador não identificado e, aparentemente, imparcial, a reconstituir um episódio que se passou há mais de vinte anos. Até aqui tudo normal. A novidade é que o nosso narrador quebra o suspense logo na primeira linha do livro, ao anunciar o desfecho da estória: Santiago Nasar vai morrer. A novidade número dois, é que tudo o que sabemos sobre o trágico incidente é o que nos é relatado pelas personagens. Lembram-se do narrador que adivinha o que as personagens pensam ou fazem? Esqueçam. Em Crónica de uma morte anunciada não há lugar para videntes.

Mas passemos a um breve resumo do enredo: Santiago Nasar era um jovem rico e solteiro, a quem, aparentemente, a vida ia correndo bem. Até que um dia, depois de uma infeliz noite de núpcias, a recém-casada Ângela Vicario é devolvida aos pais. Motivo: há muito que a menina Vicario tinha prescindido da sua castidade. Como seria de esperar, os pais de Ângela exigem um rosto para a desgraça da filha. E é aí que entra o nome de Santiago Nasar. Ora, Nasar não sonhava ver-se envolvido neste drama familiar, até porque, tudo indica, não foi ele o culpado pela tempestade que se abateu sobre a família Vicario. Por isso, o jovem ia fazendo a sua vida normal, enquanto os irmãos de Ângela planeavam matá-lo. A ironia da estória, é que, de facto, não poderia haver morte mais anunciada do que esta. De repente, toda a gente sabia que Santigo Nasar ia morrer. Todos, excepto o próprio Nasar.

E é aí que reside, afinal, o suspense da obra de Márquez. Com tanta gente a par do destino de Nasar, começa a ser difícil acreditar que ninguém faça nada para impedir a tragédia. Além disso, página após página, o verdadeiro culpado pela desonra de Vicario teima em não aparecer. A narrativa vai-se desenvolvendo a um ritmo alucinante. Surgem personagens e mais personagens (ou devería mos cha ma r-l hes “fontes”?), que, aos poucos nos vão permitindo reconstituir os acontecimentos das últimas horas de vida de Nasar. E o narrador limita-se a inserir as palavras das (muitas) personagens, sem guardar espaço para divagações ou juízos de valor. Como se de um verdadeiro jornalista se tratasse. Depois, há o García Márquez do costume: textos envolventes, pormenorzinhos sociais deliciosos, personagens bem caracterizadas, cenas caricatas. Mas a isso os leitores de Márquez já estão habituados. Sandra Ferreira

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Elogio ao vulgar e ao absurdo H

á livros que cheiram assim, a livro. Cheiram a papel branco que ninguém desfolhou, à tinta das letras salpicadas pelas páginas que aqui e ali surgem ainda coladas. Há outros livros que também cheiram a livro, mas a livro velho. Cheiram às folhas amarelas, algumas carcomidas nas bordas, e ao fedor bolorento das estantes onde há muito foram sepultados, esperando o comprador que não vinha. E há livros, poucos, como Crónica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez, que cheiram a tudo. E sabem a tudo. E mostram tudo. Há livros que são só isso, livros. Há outros que pretendem ser telas, em vão. E outros não são mais que papel e letras empilhados ao sabor de mãos e de desejos. Mas o livro de Márquez é pauta de uma sinfonia que canta a essência das gentes e das coisas. O refrão é um crime, tamborilado ininterruptamente até a tinta estacar. E as notas são as vozes que o ecoam e desenham, amalgamadas num hino ao vulgar e ao absurdo. A matéria-prima que fabrica a história é a mesma que insuf la

cantos de jornais que nada preencheu. É comum e grosseira, mas tem o odor da humanidade. Cheira a nós, aos corpos e às consciências que se espreguiçam perante a evidência que não se quer olhar. O crime que o livro esfarela é ridículo. A s letra s meta morfoseiam-se nas entranhas que pendem sobre o cadáver adiado. E transformam-se em pele retalhada pela métrica das facadas e do dever. E as palavras são o incessante esbracejar dos autores do quadro macabro, debatendo-se contra a inevitabilidade do derradeiro acto. E as frases somos nós, perpetuamente mergulhados no jogo do que fazemos, do que deve ser feito e daquilo que não é uma coisa, nem é outra, mas que cinge o nosso querer. Nesta Crónica, grita-se a esquizofrenia surda da sociedade e da sua miríade de regras omnipresentes e antagónicas, parasitas da vontade. Apregoa-se a fatalidade, que se desembaraça de um emaranhado de intenções e de potencialidades. Se há histórias que têm início e fim, esta é então uma semi-recta

ao contrário. Tem desfecho, mas não principia: o culminar é o seu começo e a sua existência. E enquanto o leitor se banqueteia com a f luidez da composição, sobre ele se debruça continua­ m e nt e o e s p e c t r o d o f i n a l anunciado. Com o perigo (ou a aventura?) de, subitamente, ser acometido por uma epifania: a de se tornar num daqueles que soube do crime, mas que não quis acreditar, folheando as páginas em busca de uma alternativa. Há livros que se dão, outros que sugam. Este é dos segundos. Nele a trivialidade torna-se música. O homicídio quer lavar a honra de uma noiva maculada, mas os assassinos não. Todos sabem, porém, todos enjeitam a notícia. Só o visado permanece sob um asfixiante halo de ignorância. A povoação choca-se com a morte anunciada, todavia, os preceitos da tradição reclamam-na. Há livros que são monólogos. Outros não. E esta Crónica de uma Morte Anunciada não é senão um diálogo cantado da sociedade consigo mesma, numa peleja para exorcizar as suas incoe­ rências e as suas frustrações. Sem moral. Catarina Prelhaz

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media e diálogo intercultural: o papel da educação Clara Almeida Santos

Qual o papel dos media na promoção do diálogo intercultural? Esta foi a pergunta fundamental a que, durante dois dias, jornalistas e investigadores, membros de ong e responsáveis políticos procuraram responder no âmbito do encontro Media e diálogo intercultural, que teve lugar na sede do Conselho da Europa em Paris, em Junho passado. O objectivo do encontro foi reunir contributos para a discussão pública, na altura na sua recta final, anterior à redacção final do Livro Branco sobre Diálogo Intercultural.

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O tema é quente: 2007 foi o ano europeu da igualdade de oportunidades para todos, 2008 é o do diálogo intercultural, um dos temas fortes da agenda da presidência portuguesa da ue , que terminou no final de 2007 e foi precisamente a interculturalidade, nomeadamente na sua relação com as migrações internacionais. O diálogo intercultural, conforme apresentado no Livro Branco, é configurado em cinco dimensões essenciais: a gestão democrática da diversidade, a educação – formal e informal – para as competências interculturais, o reforço da cidadania europeia e da interacção entre minorias e maiorias, a criação de espaços de diálogo intercultural e o seu desenvolvimento nas relações internacionais.

Fotografia • R u ben Timman, 2007

Poder-se-á dizer que a actuação dos media poderá ter repercussões em todas as áreas descritas, se partirmos do pressuposto de que estes se constituem como intermediários entre todos os actores em cena no palco da interculturalidade. Existem, na realidade, já várias recomendações, dispersas por uma série de documentos, que pretendem orientar os media para a facilitação do diálogo intercultural. Algumas das que foram tidas em consideração para a elaboração de documentos prévios ao Livro Branco afirmam princípios fundamentais como: • promoção pelos media de uma cultura de tolerância; • condenação de todas as formas de “discurso de ódio” (racismo, xenofobia, anti-semitismo, etc.); • circulação transfronteiriça de produções audiovisuais; • promoção do pluralismo nos media, sobretudo através dos serviços públicos de radiodifusão; • promoção da diversidade de expressões culturais; • utilização universal de novos serviços de comunicação e informação; • protecção dos utilizadores contra ciberconteúdos ilegais ou danosos; • missão do serviço público de promover a coesão nacional integrando comunidades, grupos sociais e gerações; • desenvolvimento de um terreno onde possam grassar media novos, do tipo local, comunitário, social; • fomento, por parte do serviço público, da acessibilidade de conteúdos em novas plataformas; • promoção do contributo democrático e social da difusão digital. Dos princípios às práticas Enunciadas estas boas intenções, cumpriu ao grupo de trabalho reunido tentar encontrar fórmulas práticas de as materializar. Ao fim dos dois dias de trabalho foi elaborado um documento em que se apresentaram algumas propostas concretas. No âmbito da educação, considerada pelos presentes como prioritária, entendeu-se que a formação de futuros jornalistas para a diversidade seria essencial. Mas não só. Os jornalistas no activo deveriam também ser contemplados na educação para a diversidade. Assim, dever-se-iam promover acções de formação, nas universidades e nos institutos, mas também nas empresas de media. Para potenciar esta aprendizagem, uma das sugestões apresentadas foi a organização de

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intercâmbios entre trabalhadores de media ditos mainstream (generalistas nos conteúdos e dirigidos à população em geral) e de media da diversidade. Este contacto estimularia o conhecimento recíproco, não só ao nível das identidades individuais mas também ao nível das práticas profissionais. A educação para os media foi também contemplada, tendo os presentes identificado como alvo os estudantes e as ong que lidam com potenciais actores de novos media. Ao nível da regulamentação, foram sugeridas algumas medidas a tomar, tais como a criação de um organismo independente encarregue de analisar a forma como os media lidam com temas ligados ao intercultural. Essa entidade teria também como missão estudar a composição das redacções dos órgãos de comunicação social e avaliar o impacto das acções levadas a cabo. A realização de estudos de recepção e de práticas de consumo seria também importante, na medida em que poderia mostrar aos produtores da indústria mediática em que medida as várias comunidades se constituem também como consumidores com necessidades específicas. Os conteúdos foram também objecto da atenção do grupo de trabalho. A este respeito, uma das prioridades seria criar uma plataforma na Internet para que pudessem ocorrer trocas de competências, produtos e marketing entre media da diversidade. Esta acção poderia conduzir à realização de um dos princípios muito ouvidos na reunião: mostrar a diversidade da diversidade. Um outro tipo de plataforma seria importante para reunir outro tipo de dados, como queixas, discussão acerca de boas e más práticas jornalísticas, questões éticas, e também informação relativa à área comercial que, como já se pode inferir, foi considerada como essencial. A profissionalização dos media da diversidade seria uma das principais metas das várias propostas. Para que tal seja possível, uma medida necessária seria criar um fundo de apoio aos media, nomeadamente para financiar o arranque de projectos que deveriam tornar-se economicamente viáveis. Em resumo, para tornar a diversidade numa realidade nos media, dando materialidade ao projecto intercultural, a educação dos futuros jornalistas constitui-se como essencial. Essa educação deve incidir não só nos conteúdos e boas práticas da informação a produzir, mas também na consideração de novos públicos, novas audiências, novos suportes. Educação também para conseguir organizar projectos sustentáveis a todos os níveis e para conseguir alavancá-los economicamente. A educação formal e não formal são essenciais para o diálogo intercultural efectivo, nas salas de aula, mas também em acções de formação fora dela e através da promoção do contacto entre as pessoas a fim de promover o encontro entre todas as facetas da diversidade. A universidade é local privilegiado para trilhar caminhos que levem a uma sociedade mais plural e mais diversa, reflectida e ampliada pelos profissionais dos media. Mais informações em: http://www.coe.int/t/dg4/intercultural/whitepaper_EN.asp

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tratar o inimigo com respeito (como um jornalista pode ser militar sem deixar de ser repórter e muito menos cidadão) Ricardo Alexandre

Com a secretária cheia de papelada, «estava mesmo aqui a arrumar uns papéis», mas entusiasmado com a tentativa – algo muito característico e não menos utópico na profissão – de organizar a sua mesa de trabalho, fala com a tranquilidade dos que sabem que a razão, o mérito, o reconhecimento entre os pares, não estão submetidos à lógica do alto volume e das frases chocantes. Carl Prine é repórter de investigação do Pittsburgh Tribune Review e recebe-me na minha temporária qualidade de bolseiro do German Marshall Fund of the United States, uma organização não-governamental americana que promove a cooperação transatlântica.

Prine foi marine no final dos anos oitenta, esteve na primeira guerra do Golfo, depois tornou-se repórter de guerra e cobriu uma série de conflitos, principalmente em África. No ano passado, e apesar de ser contra a guerra, sentiu o dever patriótico e aceitou voltar a ser incorporado. Regressou ao Iraque como militar: «fiquei surpreendido quando me chamaram porque sempre tive uma relação bastante problemática com o Pentágono, sempre divergimos numa série de assuntos». Pudera. Prine ficou conhecido a nível nacional, e não só, por ter investigado a falta de segurança das instalações nucleares norte-americanas. Pôs a nu como seria mais do que possível e até fácil um atentado terrorista de consequências catastróficas. Em pontos-chave, pretensas fortificações de suposta segurança máxima, em época de luta contra o terrorismo global, o repórter conseguiu entrar oculto e deixou recados do género: «estive aqui, contactem-me para o número tal». Incorporado de novo no exército norte-americano, acabou por ir parar ao Iraque: «estive lá oito meses, perto de Fallujah, na verdade era a região mais violenta do país, a trabalhar com o exército iraquiano. Houve dias de combate muito intenso», mas reconhece que sem a violência de conf litos que cobriu como jornalista em África. As guerras esquecidas das luzes do mundo e da espuma dos dias. Carl Prine tem sobre a guerra no Iraque uma visão que considera ser aquela que muitos americanos partilham: «tenho sentimentos contraditórios sobre a guerra; por um lado, livrámo-nos de Saddam Hussein que era um déspota horrível, por outro lado, questionas a legitimidade de estares ali». Para semear a democracia? «Mas como, se não estamos a ajudar os iraquianos, antes a tentar impor um modelo? E a maioria dos países do mundo não são democráticos, parece-me um bocado hipócrita». E, perante o que foi divulgado depois da ocupação do Iraque, Carl Prine põe o dedo na ferida consciência nacional: «como é que pensam que nos sentimos quando ouvimos, vemos e lemos o que aconteceu em Abu Grahib, na base aérea de Bagram ou em Guantanamo? Os americanos gostam de ser lembrados por fazerem bem às pessoas e não por praticar a tortura», não por estes acontecimentos que «põem em causa os valores que defendemos».

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O repórter de um dos maiores diários do estado da Pensilvânia não acredita «numa vitória militar no Iraque, uma vitória política seria possível, não uma vitória militar», admitindo que a retirada gradual das tropas seria o melhor a fazer. Há um dia que o jornalista não esquecerá tão cedo: «23 de Março. Saímos numa patrulha de seis e fiquei sem três dos homens, entre mortos e feridos com gravidade. Fomos atingidos por bombas artesanais e atacados com metralhadoras pelos insurgents, tivemos que tomar de assalto a posição inimiga. Perdi um bom amigo nesse dia, outro ficou ferido e sofre de stresse pós-traumático de guerra e nunca mais será o mesmo. Nunca mais». Para além das marcas na memória que vão certamente perdurar, o jornalista americano tem marcas no corpo: «fui atingido cinco vezes. Ainda estou a recuperar de alguns ferimentos. E tenho trauma». Surpreendido e chocado com a falta de conhecimento da cultura local que os seus camaradas de armas denotavam no teatro das operações, para utilizar a linguagem militar (sempre tão codificada e carregada de siglas que obrigam o jornalista, especialmente o de rádio, a trocar por miúdos com elevada frequência), Carl Prine dá um exemplo de como, apesar do patriotismo ou sobretudo por causa dele, os americanos não deveriam esquecer os valores morais… mesmo na guerra: «estava a guardar um preso, um sniper que tinha morto vários americanos e falava com ele em árabe. E os meus colegas não compreendiam como é que eu o podia fazer. Apesar de não fumar, conseguia arranjar-lhe cigarros, deixava-o ouvir a bbc que ele gostava bastante. Não éramos amigos, mas conseguia falar com ele, como homem de guerra. E isso perturbava bastante os meus camaradas americanos, especialmente porque eu até sou judeu. Mas não podemos esquecer os nossos valores. Mesmo que seja alguém que tenha matado os teus amigos, podes sempre falar com ele e tratá-lo bem». Exemplo de integridade enquanto cidadão do mundo, defensor da paz apesar de patriota, jornalista que questiona, reflecte, duvida, investiga, Prine termina a conversa com um profundo lamento: «perdi amigos no Iraque, tanto americanos como iraquianos».

Jornalismo e Literatura


Irving P enn Duas Guedras, Goulimine, Marrocos, 1971

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Best Of Um lugar marcado para o melhor da investigação académica de alunos. A partir de relatórios de estágio, de trabalhos de seminário ou de outros que venham a surgir. Com tempo e espaço.

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jerry uelsmann sem tĂ­tulo, 1964

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Géneros e Secções

Uma fusão Maria João Lopes

“Não deixes de te interrogar, de perguntar aos outros. Não tenhas vergonha de reconhecer a tua ignorância se tratas de acumular conhecimentos” Juan Luís Cébrian Cartas a um jovem Jornalista

Ainda bem que este relatório não é uma notícia, porque, se fosse, não saberia como começar. Também sei que não é um diário. Não posso, porém, de deixar de abrir com algumas considerações puramente pessoais que nem sei bem se interessarão a mais alguém. Fiz estágio no Público, um diário de referência fundado há 16 anos. O Público tem duas redacções: uma em Lisboa e outra no Porto, mas eu acabei por fazer estágio numa delegação. Fi-lo na delegação de Coimbra e o balanço desse período é claramente positivo: esforcei-me, mostrei-me sempre disponível, fartei-me de escrever, errei, fui corrigida, aprendi. Trabalhei e publiquei artigos quase todos os dias. Devo dizer que tive muitas dúvidas quando se tratou de escolher o local para fazer estágio. A minha média de curso permitia-me ter essas dúvidas, tinha boas notas, por isso, podia escolher. Confesso que, no princípio, me sentia atraída por Lisboa. A ideia de ir para a cidade onde quase todas as coisas

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acontecem e de fazer jornalismo na cidade onde quase todas as coisas se decidem era muito aliciante. Porém, à medida que fui con­ versando com pessoas do meio – jornalistas e professores – comecei a ver a mesma realidade sob mais do que uma perspectiva, como, de resto, ela deve sempre ser encarada. Certamente que um estágio em Lisboa, numa grande redacção, também tem as suas vantagens, mas um estágio numa delegação, como a de Coimbra, tem outras. Tendo em conta que estamos a falar de estágio – de um período de aprendizagem – uma delegação tem desde logo uma enorme vantagem: escreve-se de tudo, sobre tudo, para todas as secções. Na altura em que estamos a aprender, é uma oportunidade fantástica. Por isso, acho que a minha experiência foi bastante enrique­cedora. Porque fiz de tudo um pouco, de reportagens a reu­niões de Câmara… A primeira vez que fui fazer uma reunião de Câmara, fui acompanhada pela Graça Barbosa Ribeiro (jornalista do Público que trabalha na delegação de Coimbra) a quem só tenho que agradecer, por muitas coisas. Porque foi incansável. Corrigia-me textos, dava-me conselhos, preocupava-se em dar-me trabalho para as mãos, entre muitas outras coisas. O ambiente na delegação de Coimbra é, de resto, óptimo: trabalha-se, mas também se convive.

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Por ter sido tão rico o meu estágio, profissional e humanamente falando, é que me foi tão difícil escrever este relatório. Por ter aprendido com jornalistas mais experientes, por ter escrito tanto, foi-me complicado escolher os momentos mais marcantes desta etapa profissional da minha vida, apenas o início. Decidi, então, realizar um trabalho mais amplo no seu modelo, que me permitisse simultaneamente debruçar-me sobre um ou outro caso específico que marcou o meu estágio e sobre o jornalismo em geral. Devo confessar, ainda, que há outra razão que esteve na base da escolha pelo modelo seguido neste relatório – mais um modelo de reflexão sobre o jornalismo, em jeito de crónica e partindo da minha experiência pessoal – e que se prende com a distância que separou o dia do fim do meu estágio com o da escrita deste trabalho. Comecei a estagiar no Público em Outubro de 2004. Em Janeiro de 2005, deveria ter acabado o estágio curricular. Prolonguei-o mais um mês. Em Fevereiro de 2005, mais concretamente no dia 3 de Fevereiro de 2005, acabou, então, o meu estágio. Nesse mesmo dia, abri ficha de colaboração com o jornal e continuei a trabalhar normalmente. Não notei diferença, não parei em nenhum momento. A única diferença traduzia-se no pagamento pelos meus trabalhos. O tempo, o trabalho, a dedicação,

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Relatório de Estágio realizado na delegação de Coimbra do Público. Orientado por João Figueira e Graça Barbosa Ribeiro.


tudo isso se manteve. No dia 4 de Fevereiro de 2005, estava a trabalhar normalmente. E até hoje não parei. Sendo o mais sincera possível neste relatório, tenho que admitir que este trabalho para concluir a licenciatura foi sendo, por isso, adiado. Chegava a casa à noite, anotava algumas ideias no computador, recortava alguns artigos do jornal, mas faltava-me sempre o fôlego para levar este relatório até ao fim, de forma organizada e sistematizada. Só o consegui fazer nas primeiras que férias que tive. Apenas quando pude sentar-me alguns dias seguidos em frente ao computador é que consegui escrever um capítulo atrás do outro. Nesta altura, porém, muitas das pequenas memórias que tinha guardado do meu estágio já não faziam tanto sentido, tinha decorrido muito tempo desde então – no fundo, já estou a trabalhar há quase três anos, no fundo, já não é a mesma mão com quatro meses de experiência que, em Fevereiro de 2005, deveria ter escrito este trabalho. Assim, dividi o relatório em cinco capítulos: Jornalismo: uma nova e diferente rotina; Jornalista a tempo inteiro; “Um jornalista deveria, pois, chamar-se um ‘instanteísta’ ou um ‘imediatista’”; A responsabilidade de se ser jornalista; Informar em consciência. Em cada um deles tentei utilizar a minha experiência para reflectir sobre questões teóricas relacionadas com a actividade jornalística.

Jornalismo: uma nova e diferente rotina Só quando iniciei o estágio é que me apercebi do espaço que os blogues conquistaram, no espaço público, nos últimos tempos. Não tinha real consciência do peso que os blogues ocupam na actual sociedade da informação e da comunicação até ter começado a trabalhar. Os blogues transformaram o jornalismo, transformaram os hábitos e as rotinas do próprio meio. Podem não ser jornalismo, eu acho que não são, mas a discussão acerca deste ponto específico já se levantou. Seja como for, mexem com o jornalismo e com os leitores de uma forma geral. Pessoalmente, gosto de blogues. Mas não gosto de blogues anónimos nem de comentários anónimos. Considero que, muitas vezes – ou algumas vezes – em vez de fomentarem a cidadania, a intervenção, a crítica e o conhecimento, fomentam a intriga e o boato. Refiro-me sobretudo a comentários/blogues anónimos que dizem respeito a questões políticas e não tanto a blogues pessoais. Digo em cima que considero que não é jornalismo o que fazem – embora a discussão já esteja hoje em dia lançada – porque desde logo, muitas vezes, não há qualquer verificação dos factos e há muita especulação. Só que, apesar de tudo isso, mexem com a esfera da opinião pública e es-

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crutinam o que se faz nos jornais, o que já é uma grande mudança nos tempos que correm. Hoje a informação circula a uma tal velocidade que a velha fórmula segundo a qual “a rádio anuncia, a televisão mostra e o jornal explica” parece não fazer o mesmo sentido. Hoje os comentadores que escrevem nos jornais têm blogues, hoje o online pode anunciar e mostrar e pôr os leitores a discutir os assuntos, tudo no mesmo dia. Hoje, os leitores podem aliás abordar os próprios comentadores nos blogues. A propósito de blogues, transcrevo aqui um excerto de uma entrevista a Carlos Leone, que foi publicada na revista 6ª, no Diário de Notícias, no dia 18 de Agosto de 2006. Carlos Leone é licenciado em Filosofia e doutorado em História das Ideias pela Universidade Nova de Lisboa. Manteve colaborações na imprensa, em jornais como o Expresso e o Diário de Notícias, em revistas como a Ler e no site Ciberkiosk. É director da revista Prelo. Tradutor, professor, crítico literário, publicou vários livros. A entrevista teve como motivo a sua dissertação de doutoramento, Portugal Extemporâneo. “A crítica não morreu. O que perdeu foi a relevância que tem numa sociedade moderna. Isto é, a crítica tornou-se um discurso marginal. No sentido de marginália: uma coisa escrita à margem. E faz-se hoje mais nos blogues do que propriamente na imprensa. (…)

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Não mudei de opinião relativamente aos blogues. Acho que a moda dos blogues, que estava no seu auge quando eu escrevi isto (em 2003), reproduziu sob um novo formato muitos dos piores vícios anti-críticos. O comentário anónimo, a canalhice, a mentira. O Esplanar veda à partida isso. Ali ninguém mete um comentário anónimo porque não é possível. Ali escreve com o nome por baixo. É a negação daquilo que eu descrevo no livro relativamente aos blogues. Quando disse há bocado que a crítica hoje se faz mais nos blogues, é porque há uma liberdade que é uma liberdade muito importante na crítica, que é a liberdade de edição. Eu não mudo de opinião no essencial, não digo que tenha de ser assim. Há blogues que não são assim e eu espero que haja cada vez mais.” Como já disse atrás, gosto de blogues. Acho que contribuem para o debate público em muitos aspectos, mas comportam riscos, claro. Há o risco do boato, da difamação, da “canalhice”. Mas não os encaro com desconfiança. Nem acredito, ou defendo, que se deva voltar as costas ao desafio, ainda que ele tenha tanto de incómodo como de fascinante. As novas tecnologias – e tudo o que elas permitem – revolucionaram a forma como lemos, como estudamos, como escrevemos, como fazemos jornalismo, como aprendemos, como pesquisamos. Revolucionaram toda a esfera

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pública e, mesmo, privada. Ainda a este propósito, e na mesma revista, encontrei uma entrevista ao historiador Rui Tavares que também transcrevo. “Não há nada de intrinsecamente dissonante entre o intelectual e os media, bem pelo contrário. Entre as sucessivas declinações históricas que foi tendo a figura do intelectual (como erudito, filósofo, pensador, professor, pesquisador, etc.) conta-se a de ser um intermediário de opinião e conhecimento. Ser um intermediário de opinião, ou seja, estar no meio, – entre as disciplinas, entre os seus contemporâneos ou concidadãos, entre instituições e indivíduos – exige familiaridade e compreensão dos media. Sempre foi assim: a altivez com que alguns intelectuais tratam hoje os mass media ou os novos media não seriam entendidas por Montesquieu e Voltaire, que tratavam o romance e o teatro por tu, e muito menos pelos intelectuais do século xix no seu fulgurante caso de amor pela imprensa (que faz lembrar, em certa medida, o sucesso dos blogues no panorama actual). Deve antes dizer-se que a dimensão mediática completa ou cumpre plenamente o intelectual, convertendo-o em intelectual público.” Os blogues permitiram, é certo, que os especialistas, ou opinion makers, se aproximassem do público em geral. Tornaram tudo mais íntimo, mais rápido, mais fácil, mais acessível. Mas o que realmente impressiona é o facto de os blogues terem permitido que muita gente tivesse opinião sobre muita coisa. Em tudo, há aspectos bons e maus. Será talvez demasiado cedo para julgar esta era, mas já não a imagino de outra forma e intriga-me, espanta-me e fascina-me ouvir jornalistas mais velhos falarem dos tempos em que o ofício se fazia sem este “admirável mundo novo”. O email é apenas mais um exemplo. O editor do Local Centro está no Porto. Todos os dias lhe

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mandamos inúmeros textos, sempre por email. Uma vez, lembro-me de que faltou a Internet durante aproximadamente meiahora na delegação. Foi o caos. Para ser mais correcta, não foi o caos, porque ainda eram 16h00 ou 17h00, mas entrámos todos em pânico. A propósito do email, transcrevo um excerto do livro “Cartas a um Jovem Jornalista”, de Juan Luís Cébrian, acerca do aparecimento desta nova tecnologia que, no fundo, parece também ter recuperado um certo passado perdido. “O aparecimento do telefone e a sua extensão quase universal ameaçaram, durante um certo tempo, a sobrevivência do género epistolar, que recupera agora espectacularmente graças ao correio electrónico. Este é, não há dúvida, um dos contributos da cibercultura para o melhoramento da nossa qualidade de vida.” A Internet veio revolucionar tudo, até as relações de trabalho. Hoje falo com colegas de trabalho por Messenger, todos os dias. São colegas de trabalho que nunca vi e, no entanto, falo com eles e sobre eles como se de facto os conhecesse. Até acabamos por falar de coisas que ultrapassam a mera esfera profissional, mas nunca os vi. Vivemos num mundo diferente: mais veloz e eventualmente mais eficaz, mas virtual em muitos aspectos. E foi um salto, um salto revolucionário, dado em pouco tempo. Vejamos o que Juan Luís Cébrian escreveu, há menos de 10 anos, e o que já mudou entretanto: “Outros anunciam que, também dentro de não muito tempo, à medida que avancem as investigações sobre o melhoramento dos ecrãs de cristal líquido, os computadores poderão ser fabricados com material flexível e relativamente pouco pesado. Não excluem a possibilidade de que nos possamos meter na cama com um computador, como o fazemos agora com um livro ou um jornal, e realizar no mesmo todo o tipo de operações – desde

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ler a escrever, passando por ver um filme. A minha ignorância é absoluta a este respeito, e aceito sem discussão todas as grandes antevisões que nos propõe a técnica. Mas continuo a pensar que existirão barreiras fundamentais que impeçam a substituição das funções muito diversas que o jornal ainda cumpre. Negroponte insiste na necessidade de que os computadores do futuro sejam sensíveis e interactivos com todos os sentidos humanos. Isto é algo que os diários vêm a fazer já desde a sua fundação. O jornal não só se lê, senão que é um objecto singular, que se toca e se cheira – de momento não se ouve excepto se alguém o lê por e para nós. A importância do táctil na comunicação dos diários passa com frequência despercebida. Contudo, o formato, a qualidade do papel, e as marcas que a sua tinta deixe estarão sempre entre as motivações de compra do leitor.” Quantas vezes não levámos já o computador para a cama, para ver filmes, por exemplo? E andamos sempre com o portátil às costas, para onde quer que vamos e até ficamos nervosos se nos deslocamos durante muitos dias para um sítio onde não há Internet. Pessoalmente, sinto-me alheada, sinto que pode acontecer alguma coisa e preciso de ter Internet ali, à mão de semear. Não posso, porém, deixar de concordar com Juan Luís Cébrian no que se refere ao prazer de folhear um jornal. Vejo filmes no computador na cama, levo o computador para todo o lado, escrevo nele, e consulto blogues e sites todos os dias. Mas isso não substitui o prazer de ler o jornal. O próprio Cébrian o anteviu, e pressentiu, quando escreveu o livro: “(…) Passará muito tempo antes de que esta possa substituir a facilidade de leitura de um jornal – desde o simples folhear do mesmo até à imersão nos artigos de fundo – a capacidade de ir e vir sobre as suas páginas, de ama-

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chucá-las ou de proteger-se com elas do sol. E estas vantagens, ainda que aparentemente mínimas, continuarão a ser importantes. (…) Mas quando as novas gerações se tiverem acostumado a trabalhar adequadamente com os novos sistemas electrónicos de informação, talvez seja irremediável o caos produzido previamente pelos milhões de utilizadores que penetrem neles sem a preparação nem o critério suficientes. Mas a existência destes riscos não evita a aceitação dos desafios. A única coisa certa é que, em relativamente pouco tempo, os leitores e assinantes vão ter acesso às mesmas bases de dados que utilizam os redactores nos jornais. Em certa medida, vão ser eles também jornalistas ao mesmo tempo que leitores, vão poder participar activamente na busca e ordenação das informações que lhes interessem. E o nosso papel será facilitar-lhes a tarefa de que apliquem o seu próprio critério, e não tratar de o suplantar.” Conheço pessoas que lêem a versão em pdf do jornal impresso, por exemplo. Não é de todo o meu caso. Não leio o jornal no computador, a não ser em casos extremos, o que leio é o Público online. Não é a mesma coisa. Há um tempo, uma velocidade, mesmo na escrita das próprias notícias, que é diferente e que passa, obviamente, para o tempo da leitura. Apenas mais uma nota, neste capítulo, e que ainda se refere ao excerto de Juan Luís Cébrian, atrás citado. Cébrian também prevê já a (con)fusão que, na nova era, haverá, ou não, entre os papéis de leitor e de jornalista. “Em certa medida, vão ser eles também jornalistas ao mesmo tempo que leitores, vão poder participar activamente na busca e ordenação das informações que lhes interessem. E o nosso papel será facilitar-lhes a tarefa de que apliquem o seu próprio critério, e não tratar de o suplantar.”


Jornalista a tempo inteiro Uma das ideias que retenho do início da minha vida profissional é a de que a profissão é extremamente absorvente. Raras são as vezes em que se desliga totalmente da profissão, porque ser-se jornalista é estar-se no mundo e olhar em redor e reparar e anotar aquilo que nos chamou a atenção, nem que seja mentalmente. Um jornalista tem que estar actua­lizado e estar actualizado não passa só por ler jornais e revistas. Passa por ir ao cinema, por estar a par das estreias, por ir ao teatro, por ouvir a música que se vai fazendo hoje em dia. É um frenesim que deve ser ainda complementado com alguma cultura geral: é preciso ler livros, ouvir a música mais antiga, ter-se referências a muitos níveis, históricas e artísticas, mesmo de outros tempos. Não estou, de forma alguma, a dizer que é o meu caso. Bem me esforço, mas todos os dias são dias em que saio vencida. Nunca tive tempo para fazer tudo o que queria. Também é preciso ouvir as conversas nas mesas dos cafés, perceber o que está a interessar às pes­soas, perceber o que é que andam a discutir, que assuntos os motivam e intrigam, que respostas procuram, o que andam a ver, a ler… Quantas vezes, não me surgiram, assim, ideias para trabalhos. Interessa-me, por exemplo, perceber onde é que as pessoas da cidade e das cidades vizinhas gostam mais de ir à sexta ou ao sábado à noite, se preferem ir ao teatro ver uma estreia, ao concerto rock ou à discoteca ver um qualquer dj internacional que pisa pela primeira vez solo luso. Estas coisas interessam-me, até porque comecei logo no estágio a escolher os destaques culturais da Região Centro que saem na página Hoje – a última página do local Centro.

É algo que me dá muito gozo fazer, mas fico sempre a pensar se, na rua, no café ou em qualquer outro local, ouço alguém dizer que aquele espectáculo que está anunciado no jornal é desinteressante e que nesse dia vai toda a gente ver outra coisa qualquer à qual, na altura em que escolhi o que saía ou não, não dei muita importância. Neste campo, entramos obviamente na subjectividade. Claro que a objectividade é um valor sagrado da prática jornalista, mas quando se está a falar de escolher dar destaque a este ou àquele espectáculo estamos, claro, a entrar no campo da subjectividade. Rejo-me por critérios de qualidade, no que respeita à escolha dos espectáculos a destacar, que são sempre discutíveis. Tenho, às vezes, dúvidas e não acho o acto de duvidar, enquanto processo, mau em si mesmo. É bom questionar. Comecei por dizer, no início deste relatório, que tive muita sorte no meu estágio porque me deram trabalho para as mãos e porque pude aprender, fazendo todos os dias. Basicamente continuo a considerar que são factores essenciais para se fazer um bom estágio, porque não há melhor para aprender do que fazer, do que ir-se fazendo. Não há melhor forma de aprender do que poder fazer-se assim num dia e melhor no dia seguinte. Ter que começar logo no estágio a gerir tempo, a elaborar uma agenda de contactos é uma óptima aprendizagem. Devo, porém, dizer que, na minha modesta opinião, um estágio de três meses é insuficiente. Devíamos começar logo a fazer estágios ao longo dos vários anos da faculdade. Em Itália, onde fiz o terceiro ano ao abrigo do programa Erasmus, era frequente os alunos inscreverem-se em estágios de Verão em jornais ao abrigo de protocolos com as faculdades. Penso que só teríamos a ganhar tentando fazer algo semelhante.

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Ao longo do meu percurso estudantil, escrevi no Jornal Universitário de Coimbra A Cabra, participei mais tarde no projecto online e ainda fiz programas na Rádio Universidade de Coimbra. É verdade que estas actividades me “roubaram” tempo aos estudos, mas não estou nada arrependida. Não quero com isto dizer que penso que a componente teórica é secundária. Longe disso. Acho que a componente teórica é importantíssima (talvez até se devesse incentivar os alunos de jornalismo a fazer, em regime livre ou opcional, mais cadeiras de outras licenciaturas da faculdade de Letras, de Direito, de Economia ou mesmo de Sociologia). “Um jornalista deveria, pois, chamar-se um ‘instanteísta’ ou um ‘imediatista’” Quando chegamos às redacções levamos na ponta da língua os valores notícia, mas, depois, quando todos os dias nos chegam centenas de emails às caixas do correio, é que a tarefa se adensa. De repente, parece que aquele email pode dar uma notícia e o outro outra, mas depois lê-se melhor e afinal não é tão novo como isso e depois só há espaço para algumas coisas e, enfim, o dia-a-dia marca um ritmo que dita escolhas nem sempre fáceis. As novas tecnologias somadas aos media tradicionais permitiram a circulação de uma quantidade diária de informação verdadeiramente impressionante. A minha experiência profissional é ainda escassa, mas por mais que caminhe, ao longo dos anos, dificilmente perceberei o que era trabalhar noutras condições. Para mim estar permanentemente contactável e em contacto com o mundo é essencial. Mas há aspectos perversos nesta sobre-informaçao. Ignacio Ramonet aborda-os no livro A Tirania da Comunicação: “(…) o sistema de

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informação encontra-se actualmente sujeito a uma revolução radical com o advento do digital e do multimédia, de que alguns comparam a importância à da invenção da imprensa por Gutenberg, em 1440. (…) Desde sempre, o conceito de censura foi associado ao poder autoritário, do qual ela é, efectivamente, um elemento fundamental. Significa supressão, interdição, proibição, corte e retenção da informação, considerando precisamente a autoridade que um atributo forte do seu poder consiste em controlar a expressão e a comunicação de todos aqueles que estão sob a sua tutela. É assim que procedem os ditadores, os déspotas ou os juízes da Inquisição. Viver num país livre é viver sob um regime político que não pratica esta forma de censura e que, pelo contrário, respeita o direito de expressão, de impressão, de opinião, de associação, de debate, de discussão. Esta tolerância, vivemo-la como um milagre, de tal forma que nem reparamos que uma nova forma de censura surgiu subrepticiamente, aquilo que podemos designar por ‘censura democrática’. Esta, por oposição à censura autocrática, já não assenta na supressão ou no corte, na amputação ou na proibição de dados, mas na acumulação, na saturação, no excesso e na super-abundância de informações. O jornalista é literalmente asfixiado, sente-se soterrado por uma avalanche de dados, de relatos, de processos – mais ou menos interessantes – que o mobilizam, o ocupam, preenchem todo o seu tempo e, tal como os engodos, o distraem do essencial. Além do mais, isso encoraja a sua própria preguiça, pois já não tem que procurar a informação, esta vem ter com ele sem esforço. (…) Isso foi também compreendido pelo poder, que aproveita a distracção da aldeia global, entretida a seguir apaixonadamente um grande

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‘drama’ da informação, para levar a cabo qualquer acção criticável. Chama-se a isso o ‘efeito biombo’: um acontecimento serve para ocultar outro; a informação esconde a informação. (…)” Por fim, Ignacio Ramonet levanta uma das questões que mais tem assolado o debate em torno do papel dos media e dos jornalistas, nos últimos tempos: “Então, se cada cidadão se torna um jornalista, que restará especificamente aos jornalistas profissionais? Esta interrogação, esta dúvida, estão no centro da actual crise dos media. (…) etimologicamente, a palavra ‘jornalista’ significa efectivamente ‘analista de um dia’. Presume-se, pois, que ele analisa o que se passou nesse próprio dia, ainda que seja já necessário ser muito rápido para conseguir fazê-lo. Mas, nos nossos dias, com o directo e a difusão em tempo real, o que é preciso analisar é o momento. O instanteísmo tornou-se o ritmo normal da informação. Um jornalista deveria, pois, chamar-se um ‘instanteísta’ ou um ‘imediatista’.” A responsabilidade de se ser jornalista

“Os jornalistas, e aí reside a sua responsabilidade, participam na circulação de mensagens subliminares.” Pierre Bourdieu, Question de mots, in Les Mensonges de la Guerra du Golfe, Arléa-Reporters sans frontières Cartas a um jovem Jornalista

Mais do nunca, na sociedade da imagem, da informação veloz, da sobre-informação, é preciso que haja jornalismo e jornalistas. Jornalistas que saibam distinguir o que é notícia do que não é, jornalistas que façam mais perguntas do que nunca, jornalistas conscientes e atentos a qualquer tentativa de manipula-

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ção, de omissão, de exagero. Os jornalistas são responsáveis pela informação que veiculam. Quando, atrás, insisti na importância de publicar não quis, de todo, defender a importância do nome em si na página do jornal, por uma questão de vaidade. Não é nada disso, bem pelo contrário. Acontece que, na minha opinião, a responsabilidade que sentimos quando fazemos uma notícia que vai ser publicada num jornal é diferente da responsabilidade que sentimos quando se entrega uma notícia a um professor. Quando entreguei as minhas notícias ao meu professor de jornalismo escrito, fui sempre honesta. Simplesmente, se alguma coisa estivesse mal feita ou se algum procedimento jornalístico não estivesse bem cumprido, o máximo que me podia acontecer era reprovar. Quando se publica a mesma notícia num jornal, o caso muda de figura. E podem acontecer mil coisas: pode alguém sentir-se lesado, porque as declarações não foram bem aquelas, porque o jornalista interpretou mal os factos, porque as datas não eram essas, porque não ouviu todas as partes, entre muitas outras possibilidades. Aqui o que está em causa é a informação que vai ser lida por muitas pessoas. E essa consciência é fundamental para o exercício da profissão. Saber pesar-se cada palavra, saber ouvir toda a gente, saber distanciar-se quando é preciso e envolver-se quando também o é preciso, saber defender-se, saber não deixar que nos tentem manipular e tentar nunca manipular, claro. Acho que nunca deixei de dormir depois de entregar um trabalho na faculdade, mas, quando comecei a publicar notícias no Público, houve noites que passei em branco, só de pensar que determinada notícia mais ou menos polémica sairia no dia seguinte. Porque, no dia seguinte, não é um chumbo na pauta, não é a negativa de uma só pessoa, é a repercussão de toda

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uma informação que se veiculou. Saber gerir isso é uma aprendizagem longa e muito poucas vezes fácil. Depois de se publicar uma notícia, tudo pode acontecer: leitores que querem acrescentar algo ao que já foi dito, que querem corrigir alguma informação, que têm mais histórias para contar ou, simplesmente, que querem agradecer e elogiar a noticia. Lembro-me de ter ficado contente quando recebi um fax do sos Estudante (linha telefónica de apoio da Associação Académica de Coimbra, sustentada por voluntários, dirigida a estudantes em risco de suicídio), a agradecer um artigo que eu tinha feito só a dizer que estavam abertas as inscrições para os interessados no voluntariado. O artigo era tão pequenino e eu fiquei admirada quando li o fax que chegou à redacção. A responsável pela linha dizia que, depois de a notícia ter sido publicada, tinham aparecido muitos jovens a candidatar-se às vagas. Dar aos estagiários a hipótese de trabalhar e de publicar é a melhor forma de nos deixarem aprender. Aprender a sério, assumindo a responsabilidade por tudo o que corre bem e por tudo o que corre mal. Lembro-me da insegurança quando comecei a trabalhar, lembro-me de uma certa ingenuidade diante de tudo, lembro-me de uma inquietação constante. Hoje já não é bem assim, hoje aprendi que para tudo é necessário uma certa dose de confiança e de desconfiança. Ainda me sinto inquieta diante da novidade, ainda olho para ela, é preciso sempre fazerlhe perguntas. Escrevo e reescrevo antes de mandar o texto ao editor – quando tenho tempo para isso –, mas cresci em algumas coisas. Já lá vão cerca de dois anos – quatro meses de estágio e o restante tempo de colaboração diária com o jornal –, mas ainda sinto que estou a aprender. Uma vez, num qualquer trabalho, um jornalista mais velho

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de outro órgão de comunicação social estava a falar comigo sobre os estágios, sobre a faculdade e sobre o que era mais importante para a profissão. A certa altura disse-me que um estágio de três meses era mais do que suficiente para se aprender tudo o que se deve para aprender. Disse-me que se, ao fim de três meses, o jovem estagiário ainda não sabe fazer um lead então o melhor era pensar bem na vida. Na altura, eu estava no início do estágio e nem sabia bem o que pensar acerca daquilo. Hoje discordo. Claro que saber fazer um lead é fundamental, mas jornalismo não é só fazer leads. Há muitas outras coisas para aprender. E muitas delas não se aprendem em três meses. Nem sei se alguma vez algum jornalista poderá dizer, a determinada altura, que já aprendeu tudo o que tinha a aprender, que já sabe tudo o precisa para desempenhar bem a profissão. E, depois, uma coisa é eficácia, outra é a criatividade. Por isso é que considero esta profissão simultaneamente tão desgastante e tão estimulante, porque nunca nos dá descanso. Informar em consciência Uma das ideias que retive de uma entrevista que fiz, no último ano do curso, para a cadeira de jornalismo escrito, ao escritor e jornalista Mário Zambujal foi a de que, por detrás de um jornalista, está uma pessoa e que este princípio é fundamental para questões de ética profissional. Mário Zambujal é um homem de palavras francas e directas. É despretensioso, como a sua escrita bem o espelha. Falávamos de ética e ele disse-me que não havia jornalistas com princípios e jornalistas sem princípios, mas pessoas. O jornalista é sempre a pessoa que o é, disse-me na altura. Nunca mais me esqueci. E, ainda hoje, sempre que tenho


dúvidas em relação a determinado procedimento, penso sempre com a minha consciência. Até porque uma das piores coisas que me podia acontecer, no decurso da minha vida profissional, era acusarem-me de desonestidade. Lembro-me de ter tido dúvidas uma vez e de ainda hoje não ter a certeza se procedi bem ou não. Uma manhã, fui fazer uma reportagem à Lousã sobre estilos de vida alternativos. Fui às aldeias de Xisto, à Vaqueirinho e ao Caterredor e devo dizer que, de facto, aquilo é um mundo à parte. Tentei descrever o melhor que sabia tudo o que se passa lá em cima, na serra, mas tive muitas dificuldades. A reportagem não saiu mal, mas hoje teria escrito tudo de forma diferente. Na altura, era mais medrosa e mais insegura nas considerações que tecia, temia que todas as impressões e descrições fossem interpretadas como sendo demasiado subjectivas. Hoje, porém, parece-me que uma reportagem sem esse cunho, sem o olhar de quem viu, não é uma boa reportagem. Sinto, mesmo como leitora, que uma reportagem intensa é aquela em que se sente que o jornalista mergulhou naquela realidade de tal forma que é como se o leitor lá estivesse também. A este propósito, encontrei algumas coisas interessantes no Livro de Estilo do Público, reeditado em Março de 2005 (e que se mantém, neste aspecto, igual à edição de 1997): “Observação – O rigor da in­ formação tem como contraponto indispensável a arte da observação. Uma informação tecnicamente rigorosa perde sugestão e agressividade jornalística se não comportar a argúcia da observação sobre as pessoas e as coisas ou sobre o clima que envolve situações e acontecimentos. Uma notícia à primeira vista banal pode ganhar uma dimensão estimulante e, eventualmente, rica

de implicações, se o jornalista estiver disponível para captar o imprevisto.” Naquela manhã, quando cheguei às aldeias serranas, por volta das 10h00 ou das 11h00, fui directamente a um bar, chamado Fantasia. Um bar muito peculiar, difícil de caracterizar, rústico e étnico, com uma pitada de reagge e de rock, e sobretudo muita fantasia à mistura. O nome era de resto muito apropriado. Lá dentro, fui atendida por uma senhora, de vestido azul, com dois enormes malmequeres nas orelhas. Pedi-lhe um café e fui-me sentar na única mesa ocupada do bar àquela hora da manhã. Ouvia-se reagge e o rapaz que lá estava sentado cantarolava, enquanto bebia um copo de leite e enrolava um charro. Tinha um bom início para a minha reportagem, não fosse a senhora dos malmequeres e o rapaz terem começado por pedir à Carla Carvalho Tomás (fotojornalista) para não fotografar os charros. Depois, foi a vez de ele me pedir para não escrever que estava a fumar, porque isso podia causar problemas às pessoas da aldeia. E a história repetiu-se com todas as outras pessoas com quem falei, todas se queriam proteger dos problemas que poderiam advir do facto de aquela informação ser publicada. Ali fuma-se à vontade, toda a gente fuma drogas leves. O problema deles não era assumirem que aquele hábito faz parte de um estilo de vida, o problema deles era terem a polícia a intrometer-se na vida que eles asseguravam ser pacata naquelas aldeias. Descobri, mais tarde, que afinal não era tão pacata assim, mas isso já foi muito depois do meu estágio, quando assassinaram lá um homem. No dia em que esse episódio aconteceu, eu não estava a trabalhar e foi outro colega que escreveu sobre o assunto e que trouxe à luz do dia uma pacatez afinal frágil. E da qual, na altura, não me apercebi bem.

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Na altura, aqueles pedidos para não escrever sobre os charros funcionaram, para mim, como uma espécie de off the record, algo que teria que respeitar. E respeitei, não escrevi uma palavra. Vejamos o que diz o livro de estilo (as duas versões coincidem mais uma vez): “Off-the-record – 1. A fonte pode não autorizar a divulgação da informação que presta – é o chamado off-the-record. Mas o anonimato e o off-the-record só existem para proteger a integridade e a liberdade das fontes, por isso o jornalista deve sempre confrontar a fonte que exige um ou outro com a real necessidade desse recurso, não aceitando com facilidade a evocação prévia de tais compromissos sobre assuntos em que a fonte nada tem a temer. E, sempre que considerar estar a ser objecto de algum condicionamento, deve recusar receber informações não atribuíveis ou off-the-record. As informações fornecidas com qualquer embargo devem ser sempre reconfirmadas e discutidas previamente com o responsável do sector. 2. Ao jornalista cabe respeitar escrupulosamente o compromisso de off-the-record, mas a sua obrigação é informar o público. Por isso, deve procurar outras pistas e “furar” noutras direcções, desde que nunca ponha em causa a fonte de origem. 3. Numa entrevista formal é ao entrevistado que cabe precisar os limites do off e do on-the-record. Tais limites, porém, carecem de um entendimento prévio sobre o objectivo da entrevista; se existir o risco de demasiados off porem em causa tal objectivo, é legítimo manifestar ao entrevistado a eventualidade de, após revisão do material recolhido e publicável, se optar pela não publicação da entrevista.” Não sei se, hoje, teria procedido exactamente da mesma forma. Não teria, claro, posto nome algum, mas provavelmente teria dito, pelas minhas palavras,

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que ali se fumam drogas leves à vontade. Na altura, acreditei ingenuamente que aquelas aldeias eram realmente pacatas e que o facto de eu escrever aquilo podia estragar a vida àquelas pessoas. Hoje, acho que me enganei. Fui ingénua. Não que o factor drogas leves seja importante em si. O que transparecia na minha reportagem era uma tranquilidade que, afinal, se revelou frágil. E foi deste ‘outro lado’ que não falei. Este foi apenas um exemplo de ingenuidade e de deslumbramento que me ficou, da altura em que era uma estagiária. Não escrevi uma única mentira na minha reportagem. Só que a verdade tem sempre outra face. E foi essa face que me faltou. Ficou-me de aviso. Só é pena é que não haja um dia em que somos estagiários e ingénuos e outro em que deixamos de o ser. Essa fronteira não existe. Não se fazem três meses de estágio e já está, deixa-se de errar. Continuei a aprender, até hoje. Destaquei, ao longo das páginas que constituem este relatório de estágio, a reportagem que fiz no Talasnal, porque me pareceu um interessante exemplo de algum deslumbramento e imaturidade próprios de um início de aprendizagem profissional. Não é em termos formais que a reportagem peca, mas em termos de ousadia. Haveria, porém, muitos outros exemplos sobre os quais me poderia debruçar neste relatório, porque, como disse neste relatório, o meu estágio foi rico e diversificado em experiências. Escrevi várias peças sobre os mais variados assuntos: muitos artigos de cultura, de política educativa, de política local, artigos de sociedade, peças relacionadas com desemprego na Região Centro, reportagens sobre as Repúblicas em Coimbra, notícias sobre programas, protocolos, iniciativas para a Baixa da cidade, fotolegendas sobre a co-incineração em Souselas...

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Ле о н ти й _ Ус о в , 2007

Trabalhei e mostrei-me sempre disponível, mas fui apoiada, corrigida, estimulada, criticada. Ter feedback dos jornalistas mais velhos sobre os trabalhos que fazemos é bom, suponho, durante toda a vida, mas sobretudo nesta fase. Porque estamos às escuras, embora cheios de vontade. Também o Álvaro Vieira me leu e corrigiu dezenas (centenas?) de artigos, como, de resto, ainda hoje continua a fazer, sempre que lhe peço. Depois, há o Aníbal Rodrigues, que também me ajudou sempre que pôde. E a Susana Ribeiro do online que também me ajudou sempre que precisei. E depois há a Carla Carvalho Tomás, a fotógrafa com quem conversava bastante durante o estágio (e ainda hoje o faço) sobre fotografia. Fazia-lhe perguntas, ela explicava-me as dificuldades do ofício, enfim, curiosidades e questões que não tive oportunidade de aprofundar na faculdade, porque fotojornalismo simplesmente não constava do programa curricular, o que também me parece uma grande lacuna (não sei se já consta). Acho, francamente, imprescindível estudar-se fotojornalismo, hoje, num curso de jornalismo, não só porque é uma forma de jornalismo como as outras, mas porque a imagem assumiu um papel muito importante na sociedade actual. Feliz ou infelizmente. Mas, no jornalismo, estamos sempre a tempo de mudar. Ou melhor, temos mesmo que mudar, com o tempo, muito e em muitos aspectos. E as mudanças já estão a acontecer. Seja como for que se desenhe o futuro, apenas há uma coisa que sei: “É através das histórias que travamos o nosso combate para entender o mundo” (Paul Auster, Experiências com a verdade)

Fot ogr af ia •

Por ter sido tão positiva a aprendizagem que fiz durante o estágio, por ter passado por tantas situa­ ções, por ter aprendido tanto – terapia de choque quase, fui imediatamente lançada às feras, como se costuma dizer – é que, passado tanto tempo sobre ele, se tornou difícil escolher apenas alguns momentos sobre os quais me deveria debruçar para analisar criticamente. A minha memória é um pouco difusa neste campo, tive que ir confirmar algumas datas aos arquivos do Público, porque já nem sabia bem se tinha feito determinado trabalho durante o estágio ou depois dele. Estamos sempre a aprender e a minha atitude não mudou só porque acabei quatro meses de estágios. As dúvidas, as incertezas, as interrogações fazem parte de mim e do meu dia-a-dia. Penso que resta apenas reiterar que considero que o meu estágio foi bastante positivo, não porque fiz trabalhos de primeira página que mais ninguém fez, mas porque aprendi. E esta é a principal função de um estágio: aprender. O resto é uma eterna e incessante procura que está sempre em aberto. O resto dessa aprendizagem continuo a fazê-la todos os dias, cada vez que escrevo um novo artigo para o jornal. Findo, então, este relatório, sublinhando como foi importante para mim ter feito estágio num jornal que me acolheu, que me deu trabalho para as mãos, que me deixou trabalhar, sem medo dos meus erros e da minha imaturidade. Que me deixou crescer. O ambiente na delegação de Coimbra do Público, que é óptimo, também contribuiu, claro, para o balanço claramente positivo que faço do meu estágio. Como já disse antes, a Graça é incansável com os estagiários.

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A arte maior de Tchékhov Absolutamente tchekhoviana, a peça “Tchékhov e a arte menor” é o cartão de visita ao ambiente aristocrata da Rússia oitocentista. Numa atmosfera intimista, e aproveitando as potencialidades da Oficina Municipal do Teatro, os actores desabafam com o público. À medida que as situações se desenrolam, tudo aquilo que aparenta ser perfeitamente risível, ganha contornos melodramáticos. Num primeiro acto, um trágico à força desabafa a vida infame no seio da aristocracia. A lamentável existência de ser, de servir a futilidade, que leva à loucura. O dramaturgo russo faz um retrato deliciosamente irónico, ao mesmo tempo dramático de uma classe que vive num mundo umbiguista, incapaz de olhar para o que o rodeia. Tchékhov tem o dom de nos transportar para a cena, de nos fazer rir de nós próprios – Oh vida infame, a de todos nós: a correria do quotidiano e dos transportes públicos atulhados de gente. Fala-se também de luto. O luto de uma mulher que diz ter morrido para o mundo depois da morte do seu marido. De repente, essa dor é surpreendida pela visita de um homem – um macho, urso, sexo forte – que pretende cobrar as dívidas do falecido. Tchékhov retrata o jogo de sedução, a redenção de um homem ao sexo feminino que mal se apercebe do poder que tem. Mas é aquando do pedido de casamento que a atmosfera envolve totalmente o espectador. O sofrimento e a incapacidade de expressar sentimentos provocam palpitações e centelhas nos olhos não apenas do actor. A excelente representação de Miguel Magalhães exalta o público que se vê envolvido na discussão gerada em torno da sua visita a casa da sua amada. Durante breves minutos, o pretendente vê-se incapaz de expressar o que sente e de pedir Natália Stepánova em casamento. O actor sofre e por fim declara-se. Faz-se uma pausa e festeja-se com champanhe. Após o intervalo, num acto metateatral, o actor dialoga consigo mesmo. Tchékhov espelha assim o adeus da profissão de actor que se confunde com a própria vida. Chama-lhe o Canto do Cisne, metáfora para as últimas realizações da pessoa. O actor fala sobre a arte de representar, confronta-se com a velhice – no palco e na vida – e lembra a memória fugaz do público. Durante um discurso – “com fins filantrópicos” – acerca dos Malefícios do tabaco, discute-se uma vez mais o sexo fraco. Ivan Ivanóvitch Niúkhin vive, sempre viveu, à sombra do sucesso e dinheiro da sua mulher. É um homem frustrado com a vida e consigo próprio, por nunca ter conseguido realizar nada sozinho. Um cobarde “altruísta” que desabafa com o público, em vez de discursar sobre os tais malefícios. Tchékhov apresenta-o como um condenado que pede ajuda à plateia que assiste à palestra. Por fim, o jubileu. O aniversário do banco dá o mote a uma encenação gradualmente frenética. Aparentemente, tudo está quase pronto para a celebração: o discurso está praticamente acabado, e os sócios do banco a chegar. A primeira contrariedade aparece com a chegada da esposa e a sua conversa completamente fútil. Aliás, ao longo de toda a peça os diálogos giram em torno da futilidade. E este é sem dúvida o acto mais tchekhoviano de toda a peça, onde a importância do parecer suplanta o ser, e no final tudo é desmascarado. A peça acaba com os actores a espezinharem o fraque, o “espartilho” da alta sociedade. Não é a primeira vez que a Escola da Noite encena peças do dramaturgo russo. Em 2004, teve em cena “O Cerejal”. Contudo, esta é a verdadeira homenagem que faz ao teatro de Tchékhov. Com este conjunto de pequenas peças em um acto, a Escola da Noite mostra ao grande público o melhor de Tchékhov, peças menores apenas de tamanho, mas com toda a genialidade da sua arte maior: o teatro.

Ana Filipa Oliveira

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Simplesmente Tchékhov Um tapete, um banco, uma mesa, um candeeiro. Adereços suficientes para se readaptar seis vezes e surpreender o público ao longo de três horas de teatro. Em “Tchékhov e a arte menor”, a Escola da Noite apresenta seis peças em um acto, de Anton Tchékhov. São peças pouco conhecidas, esquecidas ou tidas como parte da obra menor do dramaturgo russo. Mas a companhia de teatro de Coimbra trata-as como obras-primas. E nada melhor para realçar o valor de uma preciosidade do que despojá-la de elementos desnecessários. O cenário de “Tchékhov e a arte menor” é simples, tal como são simples as situações retratadas nas peças: um desabafo entre amigos, a cobrança de uma divida, um pedido de casamento, o aniversário de um banco,… No entanto, por trás desta simplicidade, escondem-se problemas existencialistas que preenchem o quotidiano da maioria das pessoas (as de finais do século

xix ,

contemporâneas de Tchékhov, e

as do século xxi), caricaturados até ao limite do ridículo. A alternância entre tragédia e comédia dá-se de forma tão rápida como a alteração dos lugares da plateia. É que, a cada pequeno intervalo, o público é literalmente transportado para outro ponto da sala, sem sequer precisar de se levantar da cadeira. Uma pequena viagem que marca a mudança de peça e aproxima espectadores e actores. A Escola da Noite tira o máximo partido das potencialidades da Oficina Municipal de Teatro. Não há palco: há uma carpete onde se desenrola a acção. Não há uma plateia perdida na escuridão: há quatro bancadas próximas que rodeiam os actores e onde é fácil ver quem sorri, quem chora a rir ou quem (quase ninguém) faz um esforço por não adormecer. Os actores surgem da direita, da esquerda, do canto, de trás das bancadas,… E o público, com os pescoços no ar, vai tentando perceber de onde vêm as vozes, arriscando-se olhar para uma das paredes negras, à espera de ver aparecer mais uma personagem. Depois, em “palco”, tudo funciona. Eximiamente caracterizados, os cinco actores da Escola da Noite vão mudando de personagem sem que, nalguns casos, consigamos perceber quem está por detrás da “máscara”. O desempenho é também notável. Monólogos fascinantes, caricatas barafundas às quais é impossível desviar o olhar, diálogos repletos de amargura e saudosismo… tudo a culminar numa apoteótica loucura final, logo cortada pela ternurenta calma das personagens de “O canto do Cisne”. A verdade é que, nesta produção aparentemente simples, tudo está pensado ao pormenor. Cenário, actores, público, timings, música, luzes, tudo está em perfeita harmonia, de forma a valorizar o trabalho dos actores e o envolvimento da assistência no espectáculo. Esse envolvimento começa ainda antes do início da peça, quando alguns actores vestem as personagens e se passeiam pelo bar do edifício. Continua à entrada da sala, onde meia dúzia de “seguranças”, de fato-macaco azul, nos recebem. Prolonga-se ao intervalo e mantém-se mesmo depois de o espectáculo terminar, ao apercebermo-nos de que as paredes negras desapareceram e estamos agora dentro da sala de ensaios, ou de arrumos (ou talvez ambas as coisas) da Oficina Municipal de Teatro.

Sandra Ferreira

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“S e f i c a r s a t i s f e i t o , r e f o r m o - m e , n ã o v a l e a p e n a ” Foi sentado à mesa habitual, do restaurante habitual, que encontrámos Andrzej Kowalski, depois de uma manhã a dar aulas em Montemor-o-Velho. Relaxado durante o café, fala sobre o seu percurso enquanto encenador, realizador, actor e traça o panorama do teatro português. De barba escura e de olhos claros, em Andrzej Kowalski apenas contrasta o discurso, entre o assertivo e o empolgante, entre o transparente e o enigmático. De resto, tudo é uniforme. Ao contrário de “Antígona”, não há nada de ameaçador nos silêncios de Kowalski. Na ausência de palavras, sorrisos. O pano vai baixando à medida que o ponteiro acelera, porque de outra forma, a conversa daria lugar a um segundo acto. Desta vez, Andrzej Kowalski falou sem palmas e para um simbólico público. Diana do Mar, Marta Poiares e Tiago Pimentel Que motivações o trouxeram a Portugal? Estive em 73 numa ilha muito bonita no meio do Adriático, num festival de teatro, enquanto estudante. E vi pela primeira vez na vida uma portuguesa. Passados cinco dias disse que ia casar com ela. Ela riu-se. Passados dois anos casei. No final dos anos 70 viemos para Portugal. Uma razão tão banal e tão bonita como esta. Quando é que surge a sua ligação ao teatro? Tinha sete anos quando comecei a fazer cinema e teatro. A partir daí, tudo o que fazia, tirando

do caminho a Escola Técnica de Construção de Minas, era na perspectiva de uma mais-valia para o que gostava de fazer. Na universidade, dediquei-me mais ao teatro porque era uma das partes obrigatórias do curso. E dentro do teatro académico formámos a “Cena Plástica”, um grupo que está bastante na berra. Na altura em que chegou a Portu­ gal, qual era o panorama que se vivia? Vim pela primeira vez em 74, logo depois do 25 de Abril, e de vez, passados dois anos. Foi um grande movimento de

descentralização, havia muita movimentação. Nos primeiros anos, trabalhei para faoj, actual Casa da Cultura da Juventude de Leiria. Funcionava como animador teatral, de cinema e fotografia. E realmente havia teatro que nunca mais acabava. Posso dizer que na região de Leiria, em 78, quando eu comecei a trabalhar, havia 80 grupos de teatro amador com espectáculos. Havia uma dinâmica terrível, no bom sentido da palavra. O único senão é que era, ao mesmo tempo, um teatro bastante afunilado, o que era natural nesta altura. Onde Brecht era quase obrigatório,

onde o teatro tinha naturalmente toda uma componente ideológica, e ainda bem, porque Portugal tinha que romper com alguns maus hábitos anteriores. Quando cheguei visionava-se um teatro militante até aos ossos, depois voltou ao seu normal. É uma situação que já não vivi na Polónia, em que também houve este período de teatro militante ou quase ideológico. Onde se dizia que “Romeu e Julieta” ou “MacBeth” eram peças sobre a luta de classes. Mas indiferentemente desta fase, não há dúvida nenhuma que foi um grande período de movimentação em Portugal.

Qualquer trabalho que faço marca-me no momento (...), outros não me deixam saudades Dos trabalhos que realizou até hoje, quais destaca? Não é fácil responder, há vários. Dos trabalhos que fiz em Portugal e em África suponho que o que me marcou mais ultimamente foi o trabalho que fiz na prisão central de Coimbra, “Só entra quem vier às fatias”. Foi o processo mais marcante para mim, tanto a nível humano como artístico. Outro que me marcou bastante, e não estou a falar só de qualidade, mas do processo de criação, foi o primeiro trabalho em África, na Guiné-Bissau. Agora, dizer qual me marcou mais...

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Estou ainda com o espectáculo “ Na m a n h a Ma k b u n h e” e m Lisboa, também com africanos. É evidente que ainda estou agarrado a ele. Qualquer trabalho que faço marca-me no momento. Depois, ganhando alguma distância, uns marcam-me num sentido, outros não me deixam saudades. Não me envergonho do trabalho, mas não posso dizer que me marcou. A partir de certo momento, isto torna-se também um pouco rotineiro, embora tente não ganhar rotina, porque qualquer espectáculo é sempre um desafio. Faço relativamente poucos espectáculos, um ou dois

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por ano, no máximo. Nem quero fazer mais. Estes dois marcaram-me muito humanamente e, em termos artísticos, estou satisfeito. Um outro, também em Coimbra, de que gostei muito, foi o “Puta de Vida”, com a Bonifrates. Referiu que a produção teatral em Portugal tinha uma vertente militante. Qual é a realidade hoje em dia? Acho que agora é normal. É um trabalho profissional, como o de um músico, de um pintor, de um escultor ou de um bailarino. Neste momento, o teatro arte nunca vai poder deixar de ser

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militante, porque só devemos falar se tivermos algo para dizer. Só devíamos fazer qualquer coisa porque queremos partilhar qualquer coisa que nos toca. Cada um de nós tem a sua ideologia, como é evidente, e cada um de nós vai criar coisas de acordo com a sua ideologia. Mas isto não quer dizer que esta ideologia seja comum, o que aconteceu um pouco no final dos anos 70, princípio de 80, em que quase era obrigatória para toda a gente. O que a arte tem de bonito é principalmente isso: cada um é como é, cada um é diferente, e nesta diferença é que está a beleza


do ser humano. Há aquela frase, “todos diferentes, todos iguais”, e eu costumo fazer uma outra a partir dela: “Todos diferentes, graças a Deus”. Neste momento, penso que o teatro tem a sua posição normal. Há pessoas que trabalham, que vivem disso, que têm de ter espaço para criar, para trabalhar. No meio disto tudo, há criações mais ou menos artísticas. Não me perguntem o que isto quer dizer. Tenho pena, mas não é uma pena que eu não durma por causa disso. O movimento teatral - estou a falar de amadores – e de público inclusivé, está a esmorecer. Mas não sei se é muito preocupante. Cada época, cada tempo, tem as suas coisas. Não me parece ser um drama.

Por falar em drama, pensa que por esta altura as produções ar tísticas que se fazem em Portugal aludem aos grandes dramaturgos ou ficam-se por jovens experiências de actores amadores? Suponho que não se ficam. O grande problema do teatro e, atenção, não é só do teatro português, o drama é um pouco esse. O teatro tem medo de ir às jovens experiências. O que é que isto significa? O teatro é uma arte cara. Há realmente falta de novas experiências. Digo eu, porque trabalho com malta nova e acontece-me nos castings o actor novo, que saiu da escola, perguntar-me quanto

vai ganhar... Há duas razões para isto. A primeira é que a malta nova não tem muitas condições para arriscar. Têm o problema do espaço, da publicidade e de mostrar o trabalho para fora. E já nem falo nesta dialéctica natural de geração para geração. É evidente que nós cotas também temos que defender o nosso espaço, o que é natural. Nisto não tenho problemas de consciência, porque apoio muito a malta nova. Mas realmente não há possibilidade nenhuma para quem começa. Não há espaço, não tem condições para experimentar, para ter o direito de se espalhar, inclusivé. Tal passa por uma política muito mais abrangente: uma política

cultural. Suponho que o teatro está virado para o que está mais ou menos estabelecido. Não queria chamar a isto conservadorismo, porque também sou um bocado conservador quando escolho textos já escritos. Só que é raro escolher um texto escrito, é raro ir a um Shakespeare ou a um grego qualquer. Privilegio escrever o texto ao longo dos ensaios. Por exemplo, neste espectáculo agora em Lisboa, “Namanha Makbunhe”, partimos de “MacBeth”. Está bastante adaptado, embora a estrutura continue a de Shakespeare. Passa por o que cada um procura. Sou encenador, não sou escritor.

isso não me estimula muito em termos teatrais. Para mim, o teatro é muito mais que texto. É imagem, som e corpo.

saudáveis, há momentos em que as pessoas continuam a encontrar-se, quando há alguma coisa para dizer.

Por falar em experiências com gente jovem, teve vários trabalhos em Coimbra com grupos de teatro de estudantes. Como é que foram estas experiências? Tive experiências com o teuc (Teatro Experimental da Univer­ sidade de Coimbra) e o citac (Curso de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) no final dos anos 80, que foram um pouco diferentes desta última que tive agora com o teuc. A proposta que lhes fiz foi a partir de um texto, o “Antígona” de Sófocles, criar alguma coisa nossa/vossa. Foi uma surpresa bastante agradável. No princípio houve uma resistência, mas rapidamente esta barreira foi quebrada. Conseguimos cons­ truir o espectáculo juntos, no seu conjunto, tanto actores como eu, um espectáculo que era muito mais nosso do que uma encenação do ensaio Sófocles. Isto deixa-me optimista. Apesar das mudanças todas de gerações, naturais e

Que falhas aponta ao Teatro Universitário? Parece-lhe que há uma espécie de mimetismo relativamente ao teatro profis­ sional? Acho que o erro do teatro universitário é tentar imitar ou andar atrás do teatro profissional. O teatro profissional tem as suas condições, os seus financiamentos, o seu público, enquanto o teatro universitário é o teatro por exce­ lência da experimentação. Porque é universitário, porque é malta que está a experimentar, e não tem de fazer contas. Aliás, tudo o que saiu de mais importante do teatro europeu e americano partiu do teatro universitário, porque aí experimentava-se à vontade. Pergunto-me: entre um actor com 20 anos de carreira, que tem experiência, tem técnica, e um jovem, mesmo da escola de teatro, não faz muito sentido fazer teatro de actor. O teatro de actor tem que ter texto, não há

hipótese. Agora um actor sem escola, por exemplo da prisão, ou universitário, tem algo mais que técnica. Tem coisas lá dentro que não são estranguladas pela técnica. E agradou-me este úl­ timo trabalho com o teuc pela abertura da malta que entrou neste grupo.

Interessa-me muito mais tocar o espectador Que tipo de textos procura? Procuro textos, eventualmente, embora a minha escola, nem sequer texto tivesse, era sem pa­ lavras. O que conheço, e conheço pouco, em relação a dramaturgia nova, não digo que seja bom ou mau, porque suponho que é igual a tudo. Não procuro teatro com muito diálogo, muito paleio, muito blá blá blá, tripas para fora, etc., que é um pouco o que a dramaturgia nova tem. Mas o que conheço é um pouco uma tendência de ir lá mexer dentro a um certo egocentrismo, da parte do próprio dramaturgo. Interessame muito mais tocar o espectador com algumas coisas que acho que podem ser comuns e não me ocupar muito comigo. É evidente que há coisas de que falo porque me tocam, mas tocam-me a mim porque tocam-me de fora para dentro, e não de dentro para fora. Tocam-me de fora para dentro, e depois eu mastigo isso e deito para fora de acordo com o meu interior, lógico. O processo é este. Suponho que teria dificuldade em pegar num texto que reconheço como literariamente bom, mas

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Parece-lhe que falta público ao teatro ou falta teatro para o público? Falta teatro para o público. Não podemos esquecer que a maior parte do público é malta nova. A vossa geração e a minha são diferentes no sentido de hábito de ver coisas. Por isso, o natural, normal e saudável é que os vossos hábitos de ver coisas e maneira de ver coisas sejam diferentes dos nossos. A dispersão é muita. Acho que o teatro ficou quase que no caminho da ópera. É uma arte nobre, mas escassa. Suponho que é muito complicado falar de público. É relativo. O teatro não chega para público. Agora, não podemos afirmar que o teatro tem o mesmo peso que tinha há trinta anos atrás. Não vai ter.

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Em Por tugal, há pessoas a lamentar que tenha deixado de passar teatro na televisão... Isso passa pela educação em si. A escola leva normalmente os alunos para um Gil Vicente, inde­ pendentemente de como está feito. Na Polónia, por exemplo, o teatro televisivo é um dos mais fortes e com maior público de audiência. Passa pela educação, mas também por política cultural.

E passa por nós todos. O mais fácil é dizer “o público não se interessa por teatro”, mas eu também não me interesso por heavy-metal, e ele deixa de existir? Mas acredito que há público, tenho provas. Parece-lhe que em Portugal existe uma falta relativamente à formação, isto é, no sentido em que existem poucas escolas

de teatro profissionais fora de Lisboa? Não, não. A Polónia tem 40 milhões de habitantes e tem duas escolas de teatro. Só que são escolas a sério. Portugal também tem pelo menos duas a sério. Não quer dizer que as outras não sejam a sério. A nível de escolas sou da opinião de concentrar, mas concentrar pelas qualidades que temos e não

desperdiçar. O mercado é muito pequeno. Quantos actores saem do Conservatório em Lisboa e têm trabalho logo? Embora, com as telenovelas, isso esteja muito melhor do que há alguns anos atrás. Não me parece que seja preciso mais escolas de teatro. A criação artística não passa por muitas escolas artísticas, passa por algumas boas, isso sim.

A política cultural é (...) experimentar, pura e simplesmente Referiu o problema da política cultural. Que soluções aponta para esse problema? Qual é o papel das câmaras e dos teatros municipais? É proporcionar o que de melhor se faz por aqui. E não se preocupar tanto com a bilheteira. Mas isto é evidentemente controverso e qualquer vereador da cultura me vai contradizer logo. A dificuldade está no equilíbrio entre o que é popular e o que é menos popular. O Filipe La Feria tem as multidões que tem e acho muito bem. O mu­ sical dele é popularucho, substitui um bocado o Parque Mayer, a revista portuguesa. Só que há produções cujo objectivo não é encher os espectáculos, são apenas um movimento. E a política cultural passa precisamente por estabelecer este equilíbrio. Uma das figuras mais emblemáticas

do teatro mundial do século xx, Jerzy Grotowski, durante dez anos tinha entre dez a vinte pessoas no público. Só que durante dez, doze anos tinha subsídios para trabalhar. Até ao momento em que estive na fila de espera um ano para ver um espectáculo dele. Em Nova Iorque pagavam mil dólares por bilhete. É um investimento que se faz. A polí­ tica cultural é um pouco isso, criar espaço e condições para podermos experimentar, pura e simplesmente. Depois de ter vindo para Portugal, nunca mais pensou em voltar para a Polónia? Vou lá pelo menos duas ou três vezes por ano. De vez em quando vou lá trabalhar, com espectáculos. Tenho contacto constante com as pessoas com quem trabalhei

quando era jovem. Mas o essencial a nível de trabalho profissional é aqui em Portugal e em África, que ultimamente é a minha aposta forte. Porquê essa paixão por África? África é pior que droga. É viciante. O meu primeiro contacto com África foi através do cinema documental. Fui fazer vários docu­ mentários, o primeiro foi mesmo no mato. E depois o pes­soal é espectacular. São registos que aqui não temos, são experiências e espiritualidades completamente diferentes. No meu trabalho, o que me interessa é experimentar coisas novas. De vez em quando, perguntam-me: “Está satisfeito com o seu último espectáculo?”, e eu costumo dizer: “Se ficar satisfeito reformo-me, não vale a pena mais”.

Qual é a próxima experiência que tem no horizonte? Uma concreta é fazer um espec­ táculo ainda em 2008, em Faro. Vai ser uma espécie mista de musical a partir de Dom Quixote, com o meu amigo cenógrafo polaco. Vai ser assim uma coisa um pouco esquisita, ópera eventual­ mente. Este é o único realmente concreto. Concreto é quando estreamos, no teatro nunca se sabe até ao fim. Depois há três ou quatro projectos que são isso mesmo projectos. Alguns são em África, outro é no Brasil, outro na Dinamarca. Os dias em que dou aulas em Montemor-o-Velho e em Leiria, permitem-me parar um bocado e pensar, para não ficar cota muito rapidamente.

Quem é Andrzej Kowalski? Nasceu na Polónia em 1951, mas foi em Portugal que se estabeleceu e por África que se apaixonou. A sua formação passou pela Escola Técnica de Construção de Minas e, posteriormente pelo curso de Filologia Polaca com especialização em Teatrologia e Filmologia. Pelo caminho desenvolveu actividades no campo da fotografia experimental, nomeadamente no Laboratório Central de Fotografia da universidade Católica de Lublin , ainda na Polónia. Foi director do Teatro Académico da mesma universidade, que incluía seis grupos, representantes das diversas convenções teatrais. Num deles, o “Cena Plástica”, acaba mesmo por trabalhar simultaneamente como actor e encenador. Em 1976, vem para Portugal. Em Leiria fica responsável pela animação teatral, cinematográfica e fotográfica do distrito. Dedicou-se ainda ao Teatro Experimental de Leiria (tela) como encenador, tendo sido um dos fundadores da companhia. Posteriormente abandona o “tela” e participa na formação de um novo grupo: O “Teatro das Quatro Estações”. Para além de encenador, director artístico, actor e realizador exerce ainda a actividade de docente em Leiria e em Montemor-o-Velho nas áreas de expressão dramática, de realização video-cine­matográfica e de meios e técnicas audiovisuais. Desde 2000, é membro da Direcção da Cena Lusófona e tem orientado vários cursos, workshops, ateliers de teatro e de vídeo na Alemanha, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, ex-Jugoslávia, Polónia e Portugal. Dos seus principais espectáculos destacam-se “Macbeth” e “Hamlet” de Shakespeare, o “Fausto” de Goethe com o citac, “Puta de Vida” com a “Bonifrates” - Coimbra entre outras. Das colaborações com o teuc de realçar “D. Quixote” de Cervantes, e o “Ensaio Antígona” a partir de Sofócles. Em cena, mais uma vez Shakespeare com “Namanha Makbunhe”, uma “espécie de Macbeth africano”. Já no campo dos filmes, o destaque vai para os documentários realizados essencialmente na Guiné-Bissau. Dos livros publicados encontram-se substancialmente manuais direccionados para os aspirantes ao mundo da arte teatral.

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por falar em [ ]


Nos bastidores de Fausto CITAC 1990 Andrzej Kowalski [na primeira fila, terceiro a contar da esquerda]

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wwwww ´ bliuʃ ] [ sĩkud a

Prémio Jovem Jornalista Europeu

Curso “Justiça e o Jornalismo Judiciário”

III Jornadas Internacionais de Jornalismo

II Conferência Europeia de Comunicação da ecrea

A Direcção-Geral para o Alargamento

O Sindicato dos Jornalistas, o

14 de Março de 2008 – Auditório da

Políticas da Comunicação e Cultura

da Comissão Europeia e a European

Movimento Justiça e Democracia,

UFP e Salão Nobre

na Europa • Barcelona, 25-28 de

Youth Press promovem o Prémio

a Universidade Católica e o Cenjor

Jovem Jornalista Europeu. As

organizam o curso «A Justiça e

As III Jornadas Internacionais de

inscrições estão abertas até 15 de

o Jornalismo Judiciário», com o

Jornalismo, organizadas por um

A

Março para repórteres entre os 17 e

objectivo de aproximar os universos

grupo de pesquisadores e docentes

Research and Education Association)

os 25 anos oriundos dos 27 estados-

da Justiça e da Comunicação

de jornalismo da Universidade

encarregou a Universidade Autónoma

-membros e dos oito países candidatos

Social. O curso decorre de 2 de

Fernando Pessoa, pretendem ser

de Barcelona ( uab ) da organização

à União Europeia.

Abril a 25 de Junho e destina-se a

um espaço privilegiado para se

da sua II Conferência Europeia de

jornalistas, licenciados e finalistas de

apresentarem e discutirem ideias e

Comunicação, através da Faculdade de

Comunicação Social e de Direito.

resultados de pesquisas no campo

Ciências da Comunicação da

dos Estudos Jornalísticos, bem como

Instituto da Comunicação (InCom- uab ).

São aceites artigos sobre o alargamento europeu publicados entre

Novembro de 2008

1 de Janeiro de 2007 e 15 de Março

O curso tem uma duração de 66

para se lançarem as bases de projectos

de 2008 em órgãos impressos e online,

horas, divididas por dois seminários

comuns.

tendo no máximo 2000 palavras.

de 33 horas cada, com início a 2 de Abril e fim a 25 de Junho de 2002.

O texto pode ser escrito em qualquer

(Europena Communication

uab

e do

[mais informação em O tema das III Jornadas Internacionais

http://www.ecrea2008barcelona.org/

de Jornalismo, “Jornalismo e

esp/home.asp]

das línguas oficiais dos 27 estados-

O curso decorre às 3. as e 5. as feiras,

Democracia Representativa”, promete

-membros ou dos oito países

das 18h00 às 21h00.

colocar políticos, marketeers,

candidatos à União Europeia, mas

ecr ea

professores, jornalistas, estudantes

aquando da inscrição os concorrentes

As sessões teóricas efectuar-se-ão na

de jornalismo e demais interessados a

devem disponibilizar um resumo de

Universidade Católica Portuguesa

debater as sempre complexas relações

200 palavras em inglês.

Campus de Palma de Cima, em Lisboa

entre a esfera da política, a esfera do jornalismo e a esfera dos cidadãos.

As inscrições podem ser feitas através

Práticas no Cenjor

do sítio oficial do prémio ou enviadas

R. Júlio de Andrade, n.º 5, em Lisboa.

por

Informações e secretariado Prof. Doutor Jorge Pedro Sousa

e-mail para info@eujournalist-award.eu.

[mais informação em

Centro de Estudos da Comunicação

http://www.jornalistas.online.pt]

E-mail: j.p.sousa@mail.telepac.pt

Há ainda a possibilidade de envio de cópias de artigos impressos por correio

Ou

normal para:

Dra. Paula Dias

media consulta

International

Gabinete de Comunicação e Imagem |

Holding AG, European Young

Universidade Fernando Pessoa

Journalist Award, Wassergasse 3,

Telefone: 22.507.13.55

10179 Berlin, Germany.

E.mail: pdias@ufp.pt

[mais informação em

[info retirada de http://www.ufp.

http://www.eujournalist-award.eu/]

pt/events.php?intId=10046]

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Envie informações para cjornalismo@ci.uc.pt


que força é essa a dos jornais no tal verão quente Ricardo Alexandre A pergunta poderia ser feita por muitos daqueles que chegam à universidade para aprender jornalismo mas, para mal dos nossos não parcos pecados, poderia igualmente ser feita por muitos e muitas daqueles que já andam na prof issão há uma mão cheia de anos e duas de sobranceria e três houvesse seria para amparar o vedetismo tão reinante quanto fugaz, tão espectacular quanto inconsequente. É, na verdade, inquietante, o quase absoluto desconhecimento, ao nível da classe, entre aqueles que (ainda como eu), têm menos de quarenta anos de idade, apesar dos dezoito de prof issão, sobre um período marcante da nossa história contemporânea.

Adaptada para livro, a dissertação de mestrado do jornalista João Figueira preenche essa lacuna a todos aqueles que desconhecem em absoluto o que foi o Verão Quente de 1975, ao mesmo tempo que fornece uma quantidade substancial de factos, histórias e interpretações a todos aqueles que já possuem alguns conhecimento sobre este tempo em que os jornais eram, verdadeiramente, «actores políticos». Figueira recorda Saramago, à época director-adjunto de um Diário de Notícias muito “colado” ao governo do então primeiro-ministro Vasco Gonçalves que terá afirmado a Jacques Frémontier: «estamos em plena luta de classes. É uma batalha de vida ou de morte entre eles e nós». Era assim. Nós e eles. Vida e morte (talvez um exagero). Com poucas intermitências e menos reticências. O Expresso declarava o seu inequívoco apoio ao Grupo dos Nove e o Jornal Novo tinha óbvias ligações umbilicais ao Partido Socialista de Mário Soares. O autor procura, com mais do que razoável sucesso, respostas para perguntas como «Que país político nos mostrava e contava o dn, o Expresso e o Jornal Novo?» ou, como afirma o autor, talvez melhor: «que país desejava cada um dos jornais e por que modelo social e político lutavam?». No prefácio de «Os Jornais como Actores Políticos: O Diário de Notícias, Expresso e Jornal Novo no Verão Quente de 1975» Adelino Gomes conclui dizendo que «é uma prova de coragem académica e honestidade jornalística». Este breve texto sobre a obra de João Figueira poderia acabar aqui e estaria tudo dito. Ou quase. O rigor metodológico e a seriedade com que o autor analisa um tempo em que o país assistia à «prática de um jornalismo cheio de ideologia, em

que a política é uma urgência, após 48 anos de ditadura e ausência de liberdade de expressão e de pensamento», são exemplares. Este livro dá que pensar, quando referências a práticas de um dos jornais em 1975, no caso o Expresso, não são muito diferentes daquilo a que assistimos todos os dias e semanas no jornalismo português mais de vinte anos depois: «o recurso a fontes não identificadas é uma prática normal e corrente neste jornal (…) o autor dos textos e as fontes não identificadas são a mesma pessoa? Que razões impedem o jornalista de identificar as fontes? Se as opiniões das fontes (não identificadas) são idênticas às do jornalista porque é que este não as assume (…)?». Era assim, não é? Nem todas as vontades (ou práticas ou automatismos profissionais) mudam com a mudança do tempo. Tanto mais que este tempo, o nosso, o de hoje e agora, fica a muitas milhas de distância na entrega, paixão e até rasgo e criatividade com que o ofício era exercido. Uma enorme mais-valia do livro são as entrevistas, no final, aos directores dos três jornais – Luís de Barros (Diário de Notícias), Francisco Pinto Balsemão (Expresso) e Artur Portela Filho (Jornal Novo) –, confrontados com declarações, práticas e posições tomadas naquele inesquecível Verão de 75. Figueira recorre a um clássico no início do primeiro capítulo, citando Cícero: «Ignorar o que aconteceu antes de nascermos é permanecer sempre criança». Invoco aqui o direito, naturalmente excessivo, a uma personalização do dito: ignorar o que aconteceu quando éramos criança é permanecer por nascer. Este livro ajuda-nos a crescer. Como jornalistas, provavelmente. Como cidadãos, com toda a certeza.

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C r é d i t o s

f o t o g r á f i c o s

Capa: © Maria Inês Murta Página 28: © Museu Amon Carter, Fort Worth, Texas Página 34: Manual de Integração para Decisores Políticos e Profissionais, Comissão Europeia © Ruben Timman Página 37: Vougue © Irving Penn Página 39: © Je r r y U e l s m a n n Página 47: © Леонтий_Усов Página 53: Cortesia citac

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(Pรกgina deixada propositadamente em branco)


j o r n a l i s m o

é

o

p r i m e i r o

Uliana Castro • Rio de Onor, Trás-os-Montes, 2007

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