Cadernos de Jornalismo n.° 5 2011

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Levantados do Chão

Diálogos Urbanos

“O conhecimento não é neutro“

António Feio. O Artista sem tretas

aqui dentro


(Pรกgina deixada propositadamente em branco)


cader nosdejor nalismo

01 maio

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secção de comunicação departamento de filosofia, comunicação e informação colégio de s. jerónimo

n 05

www.uc.pt/fluc/dfci/ imprensa da universidade de coimbra rua da ilha 3001-451 coimbra e-mail: imprensauc@ci.uc.pt www.uc.pt/imprensa_uc

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Perfis António Feio. O Artista sem tretas . 2 Albert Camus. Entre o Sol e o Mar . 5

Entrevistas Ninguém luta para defender valores que não ajudou a construir . 7 “O conhecimento não é neutro” . 12

Diálogos Urbanos . 18 Teoria Prática The Wire: a ficção ao serviço da realidade . 28

Conto Sem-abrigo morre durante acto heróico . 34 Um repelente cheiro a morte .

Reportagens Fantasmas de Coimbra . 40 Levantados do Chão . 48

Crónica Cores frias . 58

Cartoon . 60

Inês Murta 2010

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Ant贸nio Feio O artista sem tretas texto: Marta Pedro

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Rir. Rir sempre. Rir é o seu passatempo preferido, é o seu refúgio, é a sua lição de vida. Ri sempre. Ri de si, ri do riso dos outros, ri da ignorância, e faz sorrir para não se sentir sozinho enquanto ri por dentro. Os seus olhos são verdes mas podiam ser castanhos, como os da sua mãe. Irrequietos, vão exigindo às sobrancelhas o mesmo ritmo. Gesticula enquanto fala, gosta de confrontar o olhar dos outros com o seu, depois vai libertando-o como que concedendo-lhe autorização para ouvi-lo. As rugas bem traçadas no rosto não são mais do que o reflexo de uma vida bem vivida, nos limites e para lá deles. António Feio é actor e encenador, como lhe quiserem chamar, não faz questão de definir o que faz, desde que faça alguma coisa. Gosta de representar, mas quando fica atrás do pano sabe como pôr os outros a fazê-lo. O humor herdou-o do pai e da mãe. A alegria de viver veio da mãe, o humor corrosivo o pai emprestou-lho. Tem uma família cigana. Não pela origem, mas pela união. É o mais novo, a alma da família, mas não o sabe, e teima em negá-lo. Para onde um vai, vão todos, não invadem o espaço uns dos outros, ficam à espera que os deixem entrar. Foi assim que Feio cresceu e aprendeu o valor da palavra solidariedade. Da infância guarda as melhores recordações. Brincou tudo o que havia para brincar, e gostou tanto que ainda hoje o sabe fazer. Lembra‑se da liberdade que sentia e do tempo que perdia a passear junto à praia ou no pinhal por trás da casa de Carcavelos. Voltar atrás no tempo faz-lhe confusão, causa-lhe estranheza. Sente que mudou, e não sabe se para melhor ou para pior. Datas não são com ele, sabe que as coisas aconteceram, sabe que gostou de as viver, mas não precisa do calendário para as lembrar. Lembra-se que tinha doze anos quando soube o que era teatro. Foi para um ensaio com a mãe e nunca mais conseguiu deixar o palco. Foi Carlos Avillez quem o convidou para a primeira peça. Para ele não passava de um jogo que lhe mostrava um mundo novo e pessoas interessantes. Sempre se contentou com pouco e nunca questionava muito o que lhe ia acontecendo, ainda hoje é assim. Quando pisou o palco do Teatro Experimental de Cascais percebeu que aquele era o seu mundo e que o que tinha do outro lado lhe agradava. Houve alturas em que tentou não viver para o teatro. Trabalhou como desenhador num ateliê, mas a imaginação não se sentia satisfeita. Percorreu vários grupos de teatro. Fez peças de todos os géneros e feitios. Fez de tudo e mais alguma coisa, raramente de mau, achavam sempre que não tinha perfil. O trabalho faz-lhe bem porque lhe dá a utilidade que precisa para se sentir vivo. Os colegas, esses tornam-se amigos. Com todos os que partilhou o palco, fez amizade e muitas fez questão de as manter

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para a vida. José Pedro Gomes, o amigo d’As conversas da treta foi um deles. Foi na peça Inoy-take 5 que se conheceram. A cumplicidade que os une em palco não termina quando o pano cai. A teimosia de ambos choca por vezes, mas Feio não se importa de pensar duas vezes, ouvir três e ceder. Gosta de agarrar os que ama na sua vida. A possibilidade de perder as pessoas importantes irrita-o, nota-se pela velocidade que as palavras ganham. É um amante nato. O seu talento para a conquista nunca ficou indiferente a ninguém. Ama fugazmente tudo e todos. As suas ex-mulheres são as suas melhores amigas. Deram-lhe o que dele vai ficar, para além da memória, os seus quatro filhos. Bárbara e Catarina são as mais velhas. Catarina é o seu rouxinol. Feio adora reclamar da sua má voz enquanto dança ao som do que ela canta. Sara, fruto do segundo casamento do actor, com a também actriz, Cláudia Cadima, ganhou asas e voou para longe. Londres é hoje em dia uma paragem obrigatória para António Feio. As saudades da filha guiam-no sempre que pode para lá. Passeiam horas a fio pelas avenidas e acabam sempre no teatro. Não é um pai galinha, não se importa que os filhos caiam, pois sabe como ajudá-los a levantar. A única coisa que não lhes permite que não façam é que deixem de fazer o que querem. É observador. Não lhe importam a cor dos olhos, a forma como se veste ou a data de nascimento — são os gestos das pessoas, a forma como falam ou um simples tique que lhe prendem a atenção. Prefere almoçar sozinho para não ter algo que o distraia dos “filmes de café”. Depois pega nos pormenores e transforma-os em personagens. Foi assim que o Toni nasceu, a personagem que ficou sempre colada ao homem actor. Há alturas no meio das suas conversas que o Toni emerge, que empresta expressões ao António. Acabou por ficar um pouco do boneco em si, mas não se importa porque é assim que as pessoas comuns falam, é assim que ele sabe falar. Sem rodeios e sem palavras demasiado bonitas. Fala do que vive e daí a frontalidade que lhe parece querer fugir dos olhos. Fá‑lo pausadamente. Não se inibe de parar ao fim de cada frase, para sorrir, ou para pensar sobre o que disse. Não tem paciência para as queixas. Não as entende e replica quando elas existem. Relativiza tudo, não é que não dê importância às coisas, não deixa é que o mundo gire à volta delas. Afasta as chatices, custem elas o que custarem. Aliás nunca foi forreta, muito menos quanto à vida. Não se arrepende de nada do que fez e o que não fez foi só porque não quis. Com Feio, os problemas não têm problemas, ele descomplica, torna-os banais. Tudo pode ser uma treta se assim o quisermos ver. É um “bacano” e sabe disso.

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Raramente o vemos com a barba feita, é essa a intenção. Os seus óculos, com armações de todas as cores, ficam pelo pescoço a maior parte das vezes. O cigarro esse não o larga. Na orelha, na boca ou no pensamento. Há um mês tentou deixar de fumar, mas o vício foi mais forte que a sua teimosia. Há quarenta anos que fuma, e não sabe por quantos mais irá fazê-lo. Se soubesse nunca teria cedido à insatisfação da primeira prova. Trabalhou em dobragens de desenhos animados, foi professor de novas gerações de actores. Nuno Lopes é um deles, foi Feio quem o ensinou a trabalhar, a nunca parar. Deu-lhe lições de teatro e de vida. Hoje em dia vive o seu dia-a-dia, entre aquilo que a vida lhe vai impondo e o que ele quer fazer. Fez rádio, televisão e cinema, mas é no palco que se sente útil. Quando não tem que passar pelo Curry Cabral, António Feio vai para o teatro. O seu maior desafio é apurar os pormenores. Às vezes sente necessidade de subir para cima do palco e exemplificar. Enquanto encenador, tenta tornar o teatro naquilo que as pessoas querem. Não gosta de olhar para uma cadeira e sentir que está vazia por sua causa. O tempo ensinou-lhe a não fazer grandes planos para nada. Tudo o que os outros fazem questão de planear por si tem um “em princípio sim” como resposta. O próximo mês trar- ‑lhe-á a frescura dos 55 anos. Espera lá chegar. Desde pequeno que achava que as pessoas morriam aos 50. Agora quando se lembra disso, além de sorrir , tenta pensar que já passou o limite. O cancro no pâncreas que descobriu há cerca de meio ano, fá-lo viver entre os altos e os baixos da vida. Apesar de a lembrança da doença lhe bater à porta todas as manhãs, faz questão de sorrir para o “bicho”. Está a aprender a ter cancro. Tem o mesmo medo que todas as pessoas, mas tenta olhar para o outro lado da história. O tempo agora parece-lhe maior, ele parece mais capaz de o aproveitar. A força com que tem encarado as possibilidades e as impossibilidades, tornaram-no ainda mais admirável, por todos os que o rodeiam e ultimamente têm sido muitos. Hoje os seus planos resumem-se ao amanhã. Ainda quer fazer muita coisa, conhecer muita gente. Mas nada a correr para isso prefere não o fazer. A sua única preocupação é ter feito algo de interessante. Não teve uma vida má, disso tem a certeza. A morte não o assusta, não lhe apetecia ter que a deixar tornar-se protagonista, mas se tiver que ser, “paciência”.

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Albert Camus Entre o Sol e o Mar texto: João Gaspar

Olho à volta. Mais de dez livros amachucados pelos dedos encavalitam‑se na secretária, entre papéis e pequenas notas. A caneta permanece pousada, o som das teclas do computador cessou, os cigarros vão-se consumindo com o tempo, a caneca de café está vazia e a doce voz de Joanna Newsom foge das colunas a cantar a camusiana This Side of The Blue. Desenho curvas no meu pequeno quarto à procura de algo. Não sei bem o quê. Camus é assim. Revolta. Incita. Apaga. Desvaira. Quebra-me em dois. Deixa-me mudo, a mastigar pensamentos fumegantes. A música de Newsom acabou. No silêncio profundo e crepitante da noite, procuro as palavras. Um livro aberto chama pelos meus olhos cansados e dá-me a cintilação intelectual que procurava em Albert Camus. “Na ilusão da vida, eis o homem que encontra as suas verdades e que as perde sobre a terra da morte, para regressar através das guerras, dos lamentos, da loucura de injustiça e de amor, da dor, enf im, a essa pátria tranquila em que a própria morte é um silêncio feliz.” (CAMUS, 2007:13) O silêncio feliz sacudiu Camus deste mundo de humanos na primeira segunda-feira de 1960. Morreu a fitar o sol, deitado entre as chapas de um Facel desventrado por uma árvore. Morreu um escritor e morreu um homem. Um homem que aclamou o amor que tinha pela vida e que olhou de olhos bem abertos para a luz e para a morte, agarrando o mundo com os seus gestos. Um homem a quem a dor apenas fez engrandecer a sua sede de viver.

A criança e a miséria Um apartamento pequeno, uma mãe analfabeta e de ouvidos atados pela surdez, um pai morto na batalha de Marne, o fulgor do sol da Argélia, o azul puro e líquido do mar e uma miséria sentida e amada por Camus. Foi essa a sua infância. Foi esse o fio de ouro que alumiou toda a sua obra de um oculto esplendor. Nessa Argélia povoada ao acaso, conquista de aventura, apareceu o homem que a sentiu mais cruelmente do que qualquer outro. Junto da sua mãe, enraizou uma intimidade feita de aceitação e de constrangimento. Junto do mar e do sol da sua terra, lavrou um forte e incessante amor. Foi em Argel, precisamente no bairro de Belcourt, onde a concepção de Inferno é um amável gracejo, que o escritor nasceu, de olhos postos na miséria dos homens e na beleza da vida. A vida de operário, talhada para todas as crianças que ganhavam bigode nos pobres bairros da capital argelina, não chegou às mãos de Camus. O seu professor, Louis Germain, viu em Camus um aluno dotado de uma excelência rara. Tirou-o dos amargos fados fabris e arranjou-lhe uma bolsa. Os olhos de Camus, já cheios de sol e de mar, foram abrindo cada vez

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mais. A fazer figura de indigente num liceu para burgueses, foi-se apercebendo das disparidades entre os dois mundos onde convivia todos os dias. Bairro dos pobres, escola dos ricos, bairro dos pobres, escola dos ricos, miséria, ostentação, silêncio, sabedoria. No liceu, distante dos bairros pobres de Argel, Camus ganhou um carinho especial pela bola de futebol, ensinando-lhe as suas únicas e verdadeiras lições de moral. Todavia, foi num domingo de futebol, envergando a camisola do Racing Universitário, que Camus recebera uma sentença perpétua. Nesse domingo, depois de um jogo nervoso e aguerrido, Camus, ensopado em suor, caiu de cama. Sofre uma lesão pulmonar. Acaba tuberculoso. Aos 16 anos a doença ataca-o sem ele poder defender-se. Ficou mais forte. Com a doença a acompanhá‑lo, o pequeno Albert, que entretanto seria senhor Camus, sente a necessidade de se completar antes da morte aparecer, espreitando pelos olhos de uma tísica impiedosa. No bairro de Belcourt, abraçado à miséria e à liberdade resplandecente, Camus menino. No bairro de Belcourt, abraçado às alegrias bruscas e à tuberculose, Camus homem. Agarrou desde então a crença de não renunciar nunca à fortuna de existir.

A Resplandecência A tuberculose foi aparecendo ao longo da sua vida, cortando-lhe caminhos e sonhos. A doença cegou-o, deixou-o impotente de seguir a luz das suas identificações paternais. Impediu-o de jogar futebol como Louis German, de ser professor como Jean Grenier (o seu mestre) e de combater os alemães como o seu próprio pai. Num quarto com uma arca que servia de cama e de armário, acompanhada de livros empilhados contra a parede, aparece Camus. Depois do bacharel em Filosofia, depois da paixão por Malraux, Gide, Proust, Dostoievsky, Stendhal, restava um Camus sucumbido a uma promessa não cumprida. Aos 25 anos era um homem sozinho, entregue à pobreza de um quarto pequeno e despido de mobília, na capital argelina. Para trás, ficou um casamento efémero, a expulsão do Partido Comunista, a rejeição da sua entrada na Universidade, o despedimento do humilde emprego que matinha como escriturário. Um erudito abaixo do proletariado. Esquecido. Foi nestas condições que o filho pródigo da Argélia começaria a crescer e a retribuir todas as esperanças que nos seus ombros se pousaram. Entra no Alger Républicain em 1938 e, como jornalista, enceta uma carreira difícil e escandalosa, descortinando casos do desenraizamento dos árabes da sua própria pátria. Nesta altura, Camus não faz qualquer diferença entre a escrita do livro e do jornal. Não faz, nem quer fazer. Escreve sem obscuridade nem complacência.

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© Petr Vorel • 2005

A nos mais tarde, distante da resplandecente A rgélia, Camus acaba O Estrangeiro enquanto a Wehrmacht desf ila, soberana, nos Campos Elísios. Anda por França ao sabor das ondas da resistência, acompanhando a redacção do Paris-Soir. Com a ofensiva alemã como banda sonora, o Mal-Entendido germina por entre o absurdo de Camus enquanto as primeiras frases do Mito de Sísifo já chicoteiam a sua cabeça. Acaba por regressar à terra que o viu crescer sem dinheiro nem planos. Depois da publicação de O Avesso e o Direito e Núpcias em Argel, O Estrangeiro materializa-se e sai corajoso em 1940, entregando um herói trágico à sociedade, para a ajudar a vencer o seu destino. Depois de O Estrangeiro, Camus sobe ao Olimpo literário. Apesar da crítica que o isola dos intelectuais franceses, após o lançamento do Homem Revoltado em 1949, Camus recebe o Prémio Nobel da Literatura em 1957. A sua obra f ica imortalizada. A sua revolta é aclamada e aplaudida. O Primeiro Homem é o seu último livro. Um livro inacabado, escondido entre as suas mãos já sem vida, naquela segunda-feira traiçoeira de 1960. O homem morre, mas o silêncio feliz que se abraça aos seus olhos curiosos deixa para trás um rasto de sons,

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rasgados entre a miséria e a revolta, entre o sol e o mar, entre a solidão e a felicidade, entre a História e a Tragédia. A sinfonia camusiana canta-se em timbres insurrectos, uma Grosse Fugue de Beethoven em palavras, afinada por paisagens argelinas em sóis quentes africanos. “Dentro em pouco, quando me lançar nos absintos para fazer entrar o seu perfume no meu corpo, terei consciência (…) de realizar uma verdade que é a do sol e que será também a minha morte. Num certo sentido, é bem a minha vida que aqui jogo, uma vida a saber a pedra quente, cheia de suspiros do mar e das cigarras que começam agora a cantar. A brisa é fresca e o céu azul. (…) Este sol, este mar, o meu coração rebentado de juventude, o meu corpo a saber a sal e o imenso cenário onde a ternura e a glória se encontram no azul e no amarelo. (…) Tudo aqui me deixa intacto, nada abandono de mim próprio, (…) basta-me aprender pacientemente a difícil ciência de viver…” (CAMUS apud MATHIAS, 1978:28) Deixo-o entregue à sua pátria tranquila, mergulhado numa Argélia onde os deuses não precisam de existir. A Argélia basta-se a si própria, assim como o seu filho. Camus basta-se a si próprio… A amar desmedidamente. Entre o sol e o mar…

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Ninguém luta para defender valores que não ajudou a construir Entrevista a Manuel Louzã Henriques Sentado num canto sala de estar, entre uma dezena de discos e um velho realejo, Manuel Louzã Henriques, de roupão enfiado, observa atentamente o maço de SG Gigante que jaz sobre a mesa. Nas quase duas horas de conversa queima mais de 30 cigarros. São eles que lhe servem de batuta a marcar as pausas do discurso. Detentor da maior colecção portuguesa de instrumentos etnográficos, cedida à Câmara Municipal da Lousã, onde emprestou o nome a um museu, o médico ainda segura o fio condutor das múltiplas facetas que ramificam no seu percurso. texto e fotografias: João Miranda

É frequentemente descrito como psiquiatra, etnógrafo ou activista político, mas sem que estes vários caminhos se cruzem. Até que ponto existe uma assimetria entre estas várias vertentes? Evidentemente que tudo está ligado, não pode haver grandes compartimentos estanques. O conhecimento entrecruza-se, o saber é actualmente de tal modo extenso que dificilmente pode haver homens enciclopédicos, pelo que terão de ser subsidiários uns dos outros. Quando acabei o curso, na altura os Liceus, tive um espaço de indecisão: Ciências ou Letras? Na lógica dessa altura, de adolescente, cheguei à conclusão de que o saber científico, não só por ser mais racional, era mais claro. E daí que optei pela ciência. Medicina, porquê? Porque continua a parecer-me um exercício de humanismo, e dentro dela a Psiquiatria, por ser uma ciência de grande preocupação humanística. O psiquiatra tem de ser um homem preocupado e todas as formas de saber dão corpo à sua estruturação profissional. Admitimos que um técnico de saúde ou um engenheiro que têm o exercício profissional que obriga, a maior parte das vezes, a saber mais de cada vez menos. Na Psiquiatria, isso não é verdade. Porque todo o conhecimento lhe permite conhecer melhor o Homem e as suas formas de adoecer.

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Nasceu em Castanheira de Pêra… …Serra da Lousã. … na Serra da Lousã e oriundo de uma família ligada ao trabalho do campo. Poderá estar também aí a origem da sua paixão pela Etnografia? Está com certeza, se eu disser que as minhas origens são das comunidades agro-pastoris da Serra da Lousã. Mas também marcada pela emigração transoceânica, no Brasil e na América do Norte. Foi, aliás, essa emigração é que permitiu um certo desafogo de vida. Daí que, possivelmente, o encontrar essas coisas e o contactar com esse mundo, de ruralidade, me tivesse chamado a atenção para o que poderia estar, e que está, por detrás dessas culturas. Desta nossa cultura rural. Cedeu a colecção… … Sim, foi essa preocupação, de muito novo, das contradições e dos encontros da História, que passa também pelos instrumentos musicais populares, que também dão um testemunho das tradições. Entreguei um espólio para servir de base a um museu de instru-

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mentos populares, portugueses e não só. Africanos, que nos falam de parte de um império, mas que também falam de encontros etnomusicais, que são mais evidentes na música e dança portuguesa do que se imagina. Mas é preciso ver que essa colecção é estudada, não obedece a um puro coleccionismo, na base do ter coisas. E foi arranjada com a preocupação de que viesse a ser socialmente útil, para quem a quisesse ver e sobretudo estudar.

Considera que fazem, hoje, falta na televisão pública programas como “O povo que canta”, do Michael Giacometti? Fazem falta, de facto. Não necessariamente comigo, que não tenho tempo, nem disponibilidade. A cultura popular está muito desleixada, principalmente ao nível das televisões. Quase não tem lugar. Mesmo os ranchos folclóricos, que nem sempre assentam em critérios muito escorreitos, não têm tido a presença que lhes é devida.

Na tese de mestrado de Ana Valadas, esta refere um arrependimento de Louzã Henriques por ter cedido o espólio e pela forma como a Câmara Municipal da Lousã o encara. Não tenho arrependimento. O que não tenho é disponibilidade para poder estar sempre em cima dessas coisas. Porque vivo do meu trabalho, que me ocupa o meu tempo. Agora, o material deve ser um bem público e ninguém está em melhores condições de o transformar em bem público do que as autarquias. Só que, sem cair em exigências excessivas, a colecção deve ser mais cuidada e conservada. O que infelizmente não tem acontecido.

É inevitável estabelecer um paralelismo entre o interesse pelas raízes e tradições do povo português e a sua militância no PCP. Voltando um pouco ao início da conversa, tudo isto: o meu lavor profissional; a minha preocupação com a etnografia, onde creio que está a “alma” [aspas pedidas pelo entrevistado] de um povo, e as minhas origens, tudo isto está dentro do que foram as minhas preocupações de ordem ideológica e política. O que mais uma vez acentua que tudo está ligado.

Se as exigências não forem atendidas, defende um novo caminho para o museu? Acho que esse caminho tem de ser aperfeiçoado, pelas diferentes formas de saber que nele se encontram. E ao mesmo tempo, as autarquias têm de investir nesses museus, escolhendo pessoas e profissionais competentes. A tese refere uma colecção de 3000 peças… … É um número um bocado exagerado e que não é necessário. Algumas centenas… Mas é um acervo que hoje é impossível de conseguir, com as alterações que houve na sociedade. Há uma outra parte que ainda tenho em meditação, que é o tema do acesso que o cidadão vai tendo, ao longo do século X X, às novidades. Especialmente, aquilo que já podem ser consideradas máquinas: rádio, grafonolas, máquinas de costura. Que vão entrando pela casa do cidadão comum. Por exemplo, a máquina de costura foi de importância fundamental para a independência das mulheres em relação aos maridos, e isto ref lecte-se na conjugalidade e na mudança de hábitos e costumes. Como é que avalia hoje o panorama do estudo da Etnografia em Portugal? Já há um conjunto de estudos, que se devem a muita gente, mas em que se destaca o grupo do Ernesto Veiga de Oliveira e daquilo a que chamaram os “Três Mosqueteiros da Etnografia Portuguesa”, que era o próprio, o Fernando Galhano e o Benjamim Pereira. Bateram todo o território português, estudando as alfaias agrícolas, instrumentos musicais, velhas tecnologias, as máscaras… Podemos dizer que percorreram toda a realidade étnica do país. Estão ali as bases de todo o estudo do futuro. E estão a ser desenvolvidas, essas bases? Creio que sim. Há pouco tempo, António Arnaut referiu na apresentação de um livro que Manuel Louzã Henriques merecia um programa televisivo.

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O livro de Teresa Carreiro, sobre a vida da República Palácio da Loucura, refere que já era militante do PCP em 62. Quando é que se dá a sua adesão ao partido? Essas coisas pretendem sempre uma resposta rápida, e normalmente não é essa a rapidez. Num mundo de clandestinidade e perigosidade política, as pessoas vão-se aproximando. Não há um cartão. Há uma aproximação que se vem dando desde o fim da minha adolescência, e há um estágio que se dá no MUD Juvenil, sem papéis escritos, há compromissos, participações, mais ou menos corajosas. Mas quando é que se dá esse primeiro contacto? Aos 19, 20 anos. Quando resolvo optar por Medicina. O curso, já o atravesso todo com um grande compromisso político. O que é que leva um jovem de 19 anos, durante aquele regime, a aderir ao PCP? O problema é este: eu tenho uma certa raivinha pessoal aos indivíduos saídos do povo, e que tendo conhecido a vida do povo, por ascensão de classe, não só se distanciaram como quase tiveram ódio em relação às suas origens, incluindo o próprio Salazar. E depois há o fenómeno da consciencialização da vida e do mundo, que nos vai permitir tomar opções de ordem humana, política e social. Mas também conheci muita gente, que tendo sido criada em berços de ouro, fizeram opções de esquerda autêntica. Em 62, é preso, no início da Crise Académica, mas na qual não chega a participar. Se alguma coisa eu tinha a ver com o desencadeamento, já estava preso quando ela rebenta. Aliás, não sei até que ponto a vaga de prisões que se dá antes não tem a ver com isso mesmo. Na altura, já tinha grandes responsabilidades políticas. Teresa Carreira apresenta-o como o estudante que esteve mais tempo preso pelo regime, e que chegou a passar por todas as cadeias políticas. A que é que se deveu esta metodologia, por parte da PIDE, de ter que o passar… …Fazia parte da organização deles. Havia os julgamentos e muita gente tinha prisão correccional, de um ano. Aqueles que recebiam

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penas maiores e medidas de segurança iam parar a Peniche, que foi o que me aconteceu a mim. Mas também por responsabilidades políticas, não era por mero acaso. Eles não eram cegos, não é?

preocupação, aprofundamento e aproveitamento da arte popular. Concretamente da que é teatralizável, ou levada a espectáculo. Mas somos amigos, e cá nos vamos entendendo.

Embora não morasse lá, era membro activo do Palácio da Loucura desde o liceu. Por um motivo muito simples. Em jovem, tocava guitarra, o que era uma forma de animação das coisas. E assim estabeleci contacto com muitas gerações, com quem mantive sempre o contacto tertulial.

Esta ligação ao associativismo, e ao próprio movimento estudantil, advém das responsabilidades políticas da altura? Não. O grande movimento associativo em Portugal, do século XIX em diante, dá-se fundamentalmente sobre a égide da maçonaria, mas não só. E toda a esquerda procurou ter essa preocupação, mas nem sempre a conseguindo levar à prática. Até porque sendo perigosa e clandestina, a organização de combate político não podia expor-se excessivamente. Mas podia ter uma palavra a dizer nas associações populares, daí que todo o movimento associativo era um terreno não só dos produtos naturais da cultura popular como também do combate político.

Ainda assim, hoje mantém-se como uma referência dentro da república. É capaz disso, pode acontecer na medida em que normalmente havia, ou ainda há, umas certas discursatas, que ao contrário do que muita gente pensa tinham sempre alguma preocupação cultural e, mais ou menos veladamente, de ordem política. Coisa que penso que já não é tão actual nem tem o mesmo sentido desse mundo secreto e perigoso que se vivia nesse tempo. Foi também esse gosto pela guitarra que o levou à Tuna Académica? Sim, embora a guitarra não fosse um instrumento da própria tuna, mas ali passei a tocar um bocadinho de viola, o que estava mais na estrutura do grupo, e acabei por, durante o tempo em que lá andei, ser o orador oficial da tuna. Depois passei para o teatro dos estudantes, que culturalmente era mais interessante. Tornei-me um grande amigo do professor Paulo Quintela, que também era muito meu amigo, sem credenciais nem coisas de famílias. Existia a vontade, por parte do Adriano Correia de Oliveira, de musicar alguns dos seus versos, algo que nunca chegou a concretizar. Guarda pena? Nunca foi um problema que me preocupasse muito. A vivência do Adriano vivo-a com mágoa, porque foi uma tragédia criada pela própria mão dele. Ele na última fase da vida estava muito degradado, até do ponto de vista artístico. E nunca consegui fazer nada dele, apesar de sermos muito amigos. Segurá-lo nos tempos do alcoolismo, não consegui. O Adriano era mais novo do que eu e, até por razões ideológicas, estabelecemos uma ligação, ele dormia aqui [em casa], ficava por aqui… Em 1966 é formado o GEFAC... … Em toda a minha vida, a esse nível tertulial de cafés com a minha geração, tinha batido o gosto pelas coisas do nosso povo, mas não estive directamente ligado a essa formação que, aliás, tinha começado por ser um grupo de cantares e dançares. A minha geração já se tinha ido embora, mas é natural que alguma coisa f icasse do que eu defendia, de tentarmos agarrar a nossa cultura popular. O certo é que depois considerei que o GEFAC agarrou uma face da coisa portuguesa muito interessante. Tem naturalmente os seus altos e baixos, sempre lhes prestei a ajuda que me pediram, ainda hoje sou amigo deles e sou sócio honorário talvez por causa disso, o que não quer dizer que não seja nalgumas coisas um crítico implacável. Porque acho que alguns deles, ou até todos, deviam ter maior cultura etnográfica. Se se chamam Grupo de Folclore e Etnografia da Associação Académica, embora como amadores, terão de ter maior

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Ao mesmo tempo, era sócio do Ateneu. Não poderia haver aqui uma contradição, sendo o Ateneu mais voltado para a população de Coimbra? Ainda sou. Isso foi uma coisa mal interpretada historicamente. Sempre houve uma parte da academia que tinha preocupações de ordem política e social, e que esteve com a gente de Coimbra nas suas diferentes nuances, dando a sua colaboração. Existiu sempre um papel, dentro do associativismo, que não era separatista, antes pelo contrário, era de fusão. E não raro, nas coisas que envolveram os movimentos populares, Coimbra teve sempre uma grande inf luência anarquista, mas sempre esteve estudantada envolvida nisso. Não era uma coisa tão separada como parece à primeira vista, embora pudesse sobreviver um bocadinho dos impulsos de classe. Certo, mas isso era com outra gente, porque também nunca houve só uma Academia, houve sempre duas. Uma que se comprometia com o seu povo, e não estou a falar só dos comunistas, e outra que não, que no fundo assentava numa certa aristocracia e que naturalmente se constituía maioritariamente, mas não exclusivamente, de direita. À luz de tudo isso, como é que viu o processo de luta académica, primeiro em 62 e depois em 69? A luta tem uma fase de enchimento e depois de esvaziamento, que também corresponde às formas de repressão. Em pleno salazarismo, o poder estava enquistado e exercia-se com todo o descaramento. Teve oscilações, inclusive com o fim da guerra, mas logo que se afirma o panorama do chamado ocidente, volta outra vez a ter força e a utilizar as suas formas de repressão sem grandes limites. Só que quando essa repressão acontecia, havia um certo esvaziamento e a luta enfraquecia, era necessário reconstruir tudo, e voltar ao processo de enchimento, com tudo o que se podia. Mas na passagem dos anos 60, creio que houve sempre uma continuidade, que se deu porque as formas de luta deixaram de ser fechadas aos núcleos de resistentes, mais ou menos clandestinizados. Começaram a envolver estudantes, curiosamente através das próprias estruturas e organismos académicos e da própria direcção da Académica. A luta dava-se aí. E onde se tornou mais vitoriosa foi através das Repúblicas e do Conselho de Repúblicas, onde as pessoas começaram a ler mais, a ter influências mais directas de referências ideológicas e dizendo-o. A continuidade da luta estudantil

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já tinha na maior parte dos casos um propósito político, que em determinada altura passou a ser predominantemente de esquerda, embora com algumas nuances. Foi também importante o esforço de libertação social das mulheres, e a sua maior frequência universitária. As raparigas estudantes começaram a desabrochar e a alinhar nas lutas, isso foi muitíssimo importante. Modificou o tipo de namoro, de relação, de estatuto, começou a aproximar-se da modernidade.

Entre 65 e 74 manteve tarefas e responsabilidades políticas? Mantive sempre contactos e labores políticos, mas não já propriamente com a responsabilidade anterior, até porque as medidas de segurança permitiam que automaticamente a pessoa fosse presa, sem necessidade de mais. Podíamos dizer que as medidas de segurança permitiam quase uma pena de prisão perpétua, porque eram renováveis pela própria polícia política.

Estando ainda ligado ao GEFAC e à A AC, como encara hoje o associativismo académico? Não tenho uma convivência demasiado intensa para ter uma consciência plena do que se passa, mas acho que o estudante actual está de tal modo preocupado com o seu futuro, que não é nada fácil que invista numa certa competitividade escolar, por vezes até no mau sentido. Ao mesmo tempo, o seu sistema lúdico deixa de ser feito pela sua própria mão. Quando o estudante se queria divertir, tinha que criar os seus próprios divertimentos, porque a cidade não lhos vendia. Nos tempos actuais, a cidade vende discotecas, bares... e o estudante já não tem necessidade de fazer os seus bailes, de fazer as suas festas, a não ser mais típicas que mantêm a rotina de tradição. Mas entretanto, também há uma decadência ideológica que se reflecte na organização de pensamento e consciencialização da vida. Não é um factor geral, há várias cores, mas a conf litualidade académica baixa bastante devido à ordem pragmática não só de sobrevivência, como também uma marca de carreirismo.

E depois de 1974, nunca se desligou do PCP. Ainda acredita naquele ideal de construção de sociedade? Nunca me desliguei. Acredito que, no fundo, só o marxismo, e a sua adequação progressiva aos tempos que vão correndo, permite fazer uma leitura escorreita da História e da evolução dos povos. E há-de vir sempre à superfície, porque a grande burguesia nunca teve dignidade moral para governar o mundo, há-de criar cada vez formas mais injustas. A própria economia tende a não conceptualizar princípios de ética e de justiça no seu lavor, e vai criar um inferno que mais tarde ou mais cedo todos os homens de coração e boa vontade hão-de destruir. E naturalmente, nunca, nem o marxismo, nem os próprios partidos comunistas, tiveram a preocupação de fazer os grandes fatos, vestidos, não me refiro aos factos, que isto agora está tudo misturado, dos homens do futuro. O homem do futuro é que tem que fazer o seu próprio vestido. E há-de adaptá-lo num futuro que não está tão longínquo como muita gente pensa, porque o mundo está a ficar agressivo, injusto e perigoso.

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E não teme pelo contrário, pela agudização desses problemas? Infelizmente, só quando há agudizações e grandes contrastes é que as grandes massas tomam consciência e começam a ficar aptas para qualquer forma de luta. No geral, ninguém luta para defender valores que não ajudou a construir. E a dinamização da cultura popular pode ser um caminho para isso? A dinamização da cultura, naturalmente da popular também, por ser a mais próxima do povo. Mas que não dispensa outras formas de cultura. Em 2007, foi um dos subscritores do abaixo-assinado “Liberdade e Democracia” que, entre outras questões, exigia a dinamização cultural, como vincula a Constituição. Que visão tem do panorama cultural actual português? Acho que apesar de tudo, está melhor em relação ao passado, mas acusa as dificuldades financeiras e de organização decorrentes do que se tem verificado no pós-25 de Abril. Além de alguma incompetência cultural que a dinamize, junto do poder, como um valor fundamental e uma riqueza humana sem igual. Até que ponto o cumprimento da actual Constituição poderia ser um passo para a ruptura da situação actual? [A Constituição] tem os condimentos necessários para que isso seja possível, mas é muito difícil que tenha gente em quantidade e

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qualidade para lhe dar corpo na luta social. Já o velho Lenine chamava atenção para uma coisa: só a classe popular é capaz de lutar poderosamente por valores que não são os seus. É preciso tempo, consciencialização e participação activa no plano político. Não existe muita informação, no espaço mediático, sobre Louzã Henriques. Faz por isso? Não. Não é coisa que me interesse muito, até porque sou um bocado contra essa criação de balões de “eu, eu, eu”. Sou autenticamente contra. Mas tenho tido muitas participações junto do museu, que foram publicadas e muito mal escritas, uma vez que foram transcritas de gravações. Também faço uma vida, do ponto de vista da praxis, muito rotineira. E quando vou a qualquer coisa é porque sou chamado, não me vou lá meter. Olhando para trás, sente que tomou o rumo certo? Acho que sim. Mudava só algumas coisas. Se tivesse tido uma carreira médica, que não tive possibilidades de ter, teria talvez uma disponibilidade de tempo para mais coisas e outro tipo de coisas. Mas aceitei essa hiper-ocupação do tempo. Hoje já não. É um problema da velhice. Talvez desenvolvesse alguns textos com pretensão literária. Ainda falta encontrar peças para a colecção Louzã Henriques? Falta. E faltará sempre. Mas as fundamentais estão lá.

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Š João Silveira Ramos 12

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“O conhecimento não é neutro” Entrevista a José Manuel Pureza No espaço de mês e meio, de ilustre desconhecido da opinião pública, passou a uma das mais fortes presenças no espaço político nacional. O seu percurso fulgurante é em tudo atípico. Até no modo como lida com as solicitações de que é alvo: ainda atende o telefone à primeira e responde às mensagens que lhe deixam no seu facebook. Quem é José Manuel Pureza? O que pensa da política nacional? E que leitura faz das questões internas do seu próprio partido? texto: Tiago Martins

Este seu interesse pela política, quando surgiu? Nasceu sobretudo no 25 de Abril, que coincidiu com a minha adolescência. Digamos que eu me identifiquei e ganhei identidade a pensar no primado da causa pública e a política apareceu-me como o veículo certo para isso. Hoje em dia, os adolescentes identificam-se de muitas outras maneiras. Apesar de tudo, acho que a causa pública continua a ter um peso muito grande na formação de identidades da malta mais nova. Por exemplo, a grande disponibilidade que têm para o trabalho humanitário ou voluntário é uma outra forma de lhe dar importância. Participou no associativismo estudantil? Participei, mas nunca em cargos directivos. Acho que sempre tive alergia a cargos dessa natureza, apesar de isto parecer contraditório.

universidades… Se a pergunta é mázinha no sentido de ambicionar chegar a algum posto de relevo público, isso nunca ambicionei e não ambiciono. Como é que de ilustre desconhecido da opinião pública passa a líder parlamentar do Bloco de Esquerda? Por responsabilidade de quem me escolheu. Quem me escolheu achou que esse ilustre desconhecido tinha competência para desempenhar este cargo de uma forma eficiente. Portanto, a responsabilidade não é minha. Eu não me candidatei, mas aceitei a escolha.

Que outros interesses tinha enquanto adolescente? (Risos) Tinha os interesses que qualquer adolescente tem: despertar das hormonas, tudo o que isso envolve, um grande interesse pela literatura, sobretudo pela de ficção. Há grandes textos que li na altura que me marcaram para sempre. E tinha também um grande interesse pela música, pelas grandes propostas musicais de ruptura com o establishment na altura.

Como é que são os seus dias na Assembleia da República? Uff ! (risos). São dias de vertigem, com duas ou três grandes preocupações. Uma delas é estar atento às iniciativas das outras forças políticas para ver quais delas são susceptíveis de negociação e quais delas não o são. Depois, uma outra, é a preocupação com o que se passa fora do Parlamento. O Parlamento é tão absorvente que, por vezes, perde-se a noção do que se passa lá fora e, no entanto, ouvir as notícias, ler os jornais, saber o que está a acontecer é absolutamente fundamental. Por outro lado, o tempo no Parlamento é muito preenchido com trabalho em plenário ou trabalho em comissões.

Ambicionava chegar onde chegou? Ambicionava chegar onde cheguei enquanto homem. Nunca tive ambições de fazer carreira, mas sempre ambicionei trabalhar numa coisa que gostasse. Sempre sonhei ter plataformas de empenhamento cívico alargadas e sempre ambicionei ter muita liberdade. Sempre procurei encontrar espaços de respiração, fora de ambientes disciplinados, canónicos, seja nos partidos, seja nas igrejas, seja nas

Quais são as principais dificuldades pelas quais tem passado? Negociar é sempre uma tarefa muito difícil porque exige firmeza e, ao mesmo tempo, margem de abertura. Depois, há uma segunda dificuldade que é “pôr a render” os talentos de 16 deputados e nem sempre é fácil: saber encontrar o momento certo para a pessoa certa falar ou intervir, ou perguntar, ou, ainda, coordenar as iniciativas legislativas e de fiscalização política dos 16 deputados.

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E ainda tem tempo para si? Tenho mais tempo do que tinha antes para algumas coisas. Por exemplo, para a leitura, porque vou dormir fora de Lisboa e utilizo o metro. Nessas circunstâncias tenho mais tempo para ler e muito menos tempo para outras coisas. Tenho muito menos tempo para a minha família e isso faz-me muita falta. Tenho também muito menos tempo para a concentração com tranquilidade, para saber o que se passa no mundo; é muito sob o ímpeto da necessidade do momento, muito menos pausado e reflectido. A sua carreira académica é mais conhecida pelos trabalhos na área da Sociologia e das Relações Internacionais. No entanto, começou por se licenciar em Direito… É verdade. Licenciei-me em Direito, é certo, mas nunca quis exercer nenhuma daquelas profissões que normalmente lhe estão associadas. Advocacia, magistratura, notariado, nunca quis exercer isso. Entrei para Direito com um objectivo, que foi o de vir a estar próximo da diplomacia e, por isso, rapidamente me apaixonei pelo Direito Internacional. E depois tive a oportunidade de, logo que terminei o meu curso, trabalhar na academia como professor, primeiro na Universidade Nova de Lisboa e, depois, na Universidade de Coimbra, justamente nessa área, de Direito Internacional, Instituições Internacionais, Relações Internacionais. Portanto, esta é uma evolução de quem olha para o Direito como uma ferramenta de intervenção social. Então, posso depreender das suas palavras que a sua carreira académica sempre adquiriu uma forma de intervenção política… Sim, sem dúvida. Eu sempre achei que o conhecimento não é neutro. O conhecimento pode e deve ser objectivo mas não deve ser neutro porque todo o conhecimento que produzimos influencia desde logo o nosso olhar sobre a realidade e, deste modo, influencia a própria realidade. Temos, portanto, a obrigação ética e científica de produzir conhecimento que intervenha no sentido de corrigir desigualdades, de corrigir injustiças, de nos dar horizontes de futuro mais agradáveis. Começa hoje mesmo a cimeira de Copenhaga e, justamente aí, está uma forma de conhecimento na área das ciências do ambiente, das ciências naturais, produzida ao longo de anos por imensos cientistas. Hoje ela permite olhar para um problema social da maior dimensão, que são os desequilíbrios ambientais e intervir aí para os corrigir. E como é que faz a viragem da Sociologia e depois para os Estudos para a Paz? Por uma razão muito simples. Nunca quis olhar para o Direito como uma área em si mesma, mas sim como um utensílio de intervenção na sociedade. A Sociologia aparece como algo cujo universo é muito mais amplo que o universo do Direito, porque nos mostra o funcionamento das sociedades e os fundamentos profundos de motivações pessoais e colectivas. E como o fiz na área das Relações Internacionais, sem grande surpresa, acabei por encontrar nos Estudos para a Paz uma forma de ler as Relações Internacionais de uma maneira comprometida com um certo valor, comprometida com um certo horizonte. E esse horizonte é o da Paz, que não seja apenas a da paz das armas caladas, mas que seja a da justiça social, a da justiça económica, da autonomia… Os Estudos para a Paz são uma peça

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desta trajectória de tudo o que foram opções tomadas ao longo de uma vida que se materializa no terreno cientifico. Num dos seus livros, Fogo sobre os Media, faz a distinção entre Jornalismo de Guerra e Jornalismo para a Paz. Quais as principais diferenças? Temos uma tradição na área do jornalismo que é a de um discurso sobre a guerra feito, não por repórteres de guerra, porque esses e essas são aqueles que têm a oportunidade de ver in loco o absurdo dos conf litos armados. Não me estou a referir a esse jornalismo, mas sim àquele jornalismo do dia-a-dia, que trivializa as violências, que quase enaltece socialmente o adversarialismo e cria condições de senso comum para que, mais tarde ou mais cedo, uma guerra possa ser aceite socialmente como a única saída. O Jornalismo para a Paz é exactamente aquele que, ao contrário disso, se compromete com o valor da Paz. Este enaltecimento pode também ser aplicado à própria cobertura noticiosa da política? Absolutamente. Tem vindo a tornar-se protagonista assíduo nos media. Que considerações tece à cobertura noticiosa da prática política pelos media nacionais? Neste mês e meio, tenho tido uma relação próxima com essa realidade. Mete muita impressão a obsessão pela superficialidade que marca muitas das agendas noticiosas. Não estou a dizer que isso seja resultado da opção dos jornalistas que estão no terreno. Os repórteres seguem, evidentemente, uma agenda determinada pelas direcções de informação. Por outro lado, também se sabe que a limitação económica nos meios de comunicação social determina redacções cada vez mais reduzidas em que os jornalistas são empurrados para tarefas multifuncionais. Isto não faz sentido e determina uma grande superficialidade. Esta vem, acima de tudo, da falta de tempo para reflectir por parte dos jornalistas e da falta de memória que isto implica. Quem vai hoje cobrir uma actividade qualquer não consegue estabelecer os nexos entre aquele facto e uma série de outros que foram passando e que dão sentido àquilo. Não discuto a competência das pessoas porque, do ponto de vista técnico, serão muito competentes. Aliás, dou-me diariamente com jornalistas da maior competência profissional. Mas creio que à cobertura noticiosa da actividade política falta, sobretudo, uma grande memória. Falta esse tempo para reflectir. No Parlamento, às vezes, passam-se coisas absolutamente inexplicáveis. À volta de um pequeníssimo erro processual é uma agitação brutal, é uma feira que não pode imaginar. Todos os canais de televisão, todas as rádios, todos os jornais com os microfones apontados e aquilo não tem importância rigorosamente nenhuma! É a febre do imediato, do efémero e creio que isso nos empobrece a todos. Crê que se joga também com esses factos para desviar as atenções do que é discutido? Acho que foi Chomsky que disse uma vez que, na condução da agenda mediática, se joga sempre na hipervisibilidade de umas coisas para garantir a invisibilidade de outras. Durante a Guerra Fria, a grande cobertura que se deu a determinados conflitos permitiu, por exem-

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plo, invisibilizar outros. Ninguém sabia de Timor porque os focos mediáticos se concentraram noutras áreas. Na política nacional é a mesma coisa. Aquilo que é hipervisível, invisibiliza outras gravidades. Precisamos de ter uma atenção muito grande sobre realidades sociais que são marcantes no país, como é a pobreza, a falta de horizontes da gente mais nova, a realidade da precariedade. Considera a actual cobertura noticiosa como uma fonte de distorção da realidade social? Em alguma medida é. Mas não quero com isto estar a dizer que é tudo perverso. Acho que tem essa dimensão e que os jornalistas mais conscientes, enquanto, cidadãos têm realmente essa noção. Também me preocupa que, ao dar-se grande relevo a pequeninas coisas, se possa contribuir para uma descredibilização da política. Não quer dizer que os políticos não se ponham a jeito! Todos nós, sem excepção. Mas acho que, justamente por haver políticos que vivem em função dos media, seria bom que estes trabalhassem uma outra agenda. As acções de campanha do BE são, regra geral, pautadas pela fraca massa humana que as envolve, optando-se muitas vezes por as ocultar com acções simbólicas como ir dar um passeio de barco ou de helicóptero. O que é que falta na estrutura do BE? As várias forças políticas escolhem estratégias em função daquilo que lhes convém em cada momento. Sinceramente, não sei se um passeio de barco é uma prova de fraqueza e uma arruada uma prova de força. Acho que cada vez mais uma arruada é uma liturgia feita de coisas totalmente postiças. Olhando para as últimas campanhas eleitorais, vejo que as grandes concentrações de rua são quase todas trazidas de camioneta, com alugueres de primeiros andares para lançar confettis. Aquelas pessoas que estavam nas varandas em Coimbra são exactamente as mesmas que estavam em Santarém passadas umas horas, ou que estavam em Braga umas horas antes! Portanto, não sei se um passeio de barco, uma conversa com pescadores ou uma visita a um centro social é algo que prove fraqueza. Uma coisa é óbvia: o Bloco de Esquerda tem menos militantes do que têm os outros partidos parlamentares, com a excepção dos Verdes. Logo, procuramos nas nossas acções dar maior visibilidade às causas, independentemente de termos muita ou pouca gente. Se não fosse a importância conferida pelos media, as acções de campanha do BE corriam o risco de ter um impacto reduzido na opinião pública? Não creio que isso se aplique ao Bloco. Creio que a capacidade de trazer para o debate público certas causas por parte de todos os partidos é sempre intermediada pelos meios de comunicação. O Bloco não faz dos meios de comunicação uma compensação da sua fraqueza. Ou então, todos fazem. Veja-se aquilo que se passa com o PS e o PSD. Não há qualquer iniciativa que ganhe relevo social pelos seus méritos próprios, sem intermediação dos meios de comunicação. Essa é uma condição de todas as forças políticas. Sem os media, o BE teria hipótese de ser a força política em que se tornou? Um dos segredos do sucesso do Bloco foi a capacidade de evidenciar a proximidade com causas que estavam carentes de uma força política,

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que as representasse de maneira firme. Isso faz-se pelos meios de comunicação? Faz. E o Bloco fez bem. E saber casar interesses sociais efectivos com interesse mediático não é qualquer um que é capaz de fazer. Isso não é nenhum pecado, é antes um serviço que se presta. Agora o que eu não aceito é algo que pode estar implícito na pergunta: que “o Bloco é um produto dos meios de comunicação”. Não é verdade. O Bloco é tão produto dos meios de comunicação como outros. O Bloco é, acima de tudo, produto da compreensão que as pessoas têm de que a nossa agenda e a nossa insistência em certos tópicos está certa. É a força do BE fruto da conjuntura actual? Não creio. Veja bem, o anúncio da hecatombe do Bloco já foi feito “n” vezes. Logo que apareceu tinha nascido para morrer dois meses depois. Era um casamento entre maoístas, trotskistas e ex-comunistas, logo aquilo não ia dar. Deu, tivemos dois deputados, depois três, depois seis, depois oito e agora tem dezasseis. E crescemos em muitas conjunturas diferentes. Crescemos com maioria relativa do Partido Socialista, crescemos com Governos de direita e com maioria absoluta do Partido Socialista. As várias conjunturas foram já suficientemente diferentes para mostrar que a existência do Bloco não é meramente circunstancial. É uma questão mais funda do que isso. Mas como pode uma força sobreviver se, como demonstraram as autárquicas, não tem implementação a nível local e regional? Creio que a dinâmica política em Portugal não está obrigatoriamente sujeita aos partidos de massas clássicos, que assentam numa estrutura em rede pesada, local, que depois vai crescendo do local para o nacional. Não tem que ser assim. A verdade é que a nível internacional há forças políticas que têm grande dimensão nacional e que não têm sustentação local forte. Esse é justamente o caso actual do Bloco. Agora é óbvio que as autárquicas lançam ao Bloco um desafio enorme que é o de ser também uma força política com credibilidade para discutir as agendas locais. E creio que estes resultados, desse ponto de vista, denotam grande fragilidade. Porquê estes resultados? Têm essencialmente duas explicações. A primeira é a de que o eleitorado entendeu, seja à direita, seja à esquerda, manter no essencial o establishment político local. Foi assim em Coimbra, no Porto, em Lisboa. Mais ainda, houve uma grande tendência para a bipolarização. Em terceiro lugar e acima de tudo: o Bloco mostra as suas fragilidades em termos de implementação local. Nós não temos, nesta altura, salvo casos raros, capacidade de apresentação credível de propostas de carácter local. Estas são as principais explicações, não há que evitá-las. Faz parte da estratégia do Bloco inverter esta situação? Evidentemente. Temos algum tempo à nossa frente, mas evidentemente que uma geração de interlocutores locais não se forma em quatro anos. É um processo longo. As outras forças políticas são estáveis do ponto de vista local porque têm uma implementação feita ao longo de décadas. Portanto, não vai ser em quatro anos que isto vai acontecer. Agora, acho que fazemos bem em investir na formação e informação de quadros locais para que, a pouco e pouco, vão ganhando credibilidade aos olhos do eleitorado.

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Daí os candidatos autárquicos serem tão jovens… O Bloco é uma força política com uma estrutura etária muito clara desse ponto de vista. É normal que haja uma presença forte de malta mais nova, até porque é essa camada que adere com mais evidência às propostas políticas do Bloco. Apesar de na nossa Direcção Política nacional haver uma tendência para a geração dos 50 anos, é verdade que temos tido sempre uma grande preocupação em rejuvenescer os nosso quadros. É isto um plano estratégico a longo prazo? Acho que é um bocadinho pretensioso da nossa parte pensar nesses termos. Há uma preocupação com essa questão, isso há. O Bloco tem crescido sistematicamente, mas o crescimento, a partir de determinado momento, lança desafios a uma certa estruturação. Nós podemos crescer muito rapidamente, mas é como aquelas crianças que depois se tornam frágeis do ponto de vista físico. Por isso, temos de ter esse cuidado em criar músculo, em criar ossatura firme, tal como uma pessoa que cresce. Não é, portanto, um plano estratégico mas uma preocupação para que a nossa contribuição não esmoreça. Não considera que o BE poderia ultrapassar esta fraca representação a nível local através de coligações com o PS, à semelhança do que faz o CDS e o PSD? Fazer coligações só para disfarçar a nossa fraqueza, como faz o CDS, é uma coisa que acho errada porque ela seria evidenciada. Acho que o Bloco deve estar disponível para se articular com outras forças políticas à esquerda e há diálogos a fazer. Todos estamos em falta desse ponto de vista. E com o PCP? Todos os diálogos são muito necessários e acho muito bom que haja convergência em coisas essenciais. Neste mês e meio de legislatura tem havido convergências muito importantes, na luta contra a corrupção, nas questões relativas ao subsídio de desemprego, ou a defesa de uma reforma sem penalizações aos 40 anos de descontos. Tem havido realmente uma grande convergência. O que é preciso é que ela continue. Pôr no horizonte, como única forma de materialização uma coligação é qualquer coisa que empobrece. O que é que distingue os dois partidos? Distingue-nos a nossa história, a nossa visão da História. O PCP tem umas experiências com o chamado Socialismo real, que é completamente diferente daquela que nós temos; tem um conjunto de alinhamentos internacionais que não são os do Bloco de Esquerda, e tem uma concepção da relação do partido com a sociedade que é diferente da nossa. Por exemplo, na relação com os sindicatos, com o movimento estudantil… ou até na prioridade dada a certos temas. As nossas próprias concepções de agendas são diferentes.

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A soma dos votantes nas 3 forças de esquerda é frequentemente superior à dos votantes nas coligações CDS, PSD e PPM. No entanto, a sua divisão abre caminho para que estes consigam conquistar diversas autarquias. É a esquerda “burra”? Compreendo perfeitamente a razão de fundo desta afirmação, mas não a razão episódica. Aliás, exprimi ao autor dessa afirmação, de quem tenho muito prazer em ser amigo, as minhas discordâncias. Os partidos de esquerda têm de perceber, e não é fácil, que para lá do seu interesse delimitado há um interesse mais amplo que é o interesse da esquerda. O problema é que se conta como fazendo parte da esquerda algo que não é de esquerda. Está-se aqui a fazer uma aritmética de partida que dá como tranquilamente dentro dessa aritmética algo que está fora dela… Refere-se ao Partido Socialista? Não, refiro-me a parte do Partido Socialista. Para as políticas de esquerda nós nunca pudemos contar, salvo raríssimos casos, com a direcção Política do Partido Socialista. Mais até: nestes últimos anos tem sido a direcção política do PS, e este primeiro-ministro em especial, que tem chefiado estratégias que são tudo menos de esquerda. Portanto, não é sério durante 364 dias do ano exprimirmos indignação por opções políticas que manifestamente não são de esquerda e no 365ºdia virmos dizer que é necessário juntar a esquerda toda, incluindo essas pessoas. Elas não contam para esta aritmética. A esquerda é maioritária em termos sociológicos, mas a esquerda sociológica não é a esquerda política. Mas não preferia, mesmo com estas limitações, estar com o PS… Mas nós já provámos isso! Essa pergunta não é para nos ser colocada a nós. Quando se tratou de legislar sobre a interrupção voluntária da gravidez, estivemos na primeira linha de um trabalho de articulação muito intenso com as várias forças políticas de esquerda. Nessa altura, justiça seja feita, o primeiro-ministro não faltou. Isso prova que quando é preciso e é possível fazer pontes nós aí estamos. Mas, veja bem: há uns dias, discutíamos uma proposta do Bloco para terminar com a distinção da corrupção como prática de acto lícito e para a prática de acto ilícito. O PS ficou isolado, por determinação do primeiro-ministro. Esta semana, vamos votar uma proposta do Bloco sobre segredo bancário e outra sobre enriquecimento ilícito. Há indicações claras por parte da direcção Política do PS para não deixar passar. Quer dizer, nestas matérias que é onde se faz o dia-a-dia, essa aritmética devia funcionar. Pessoalmente, estou muito empenhado que haja uma maioria que à esquerda resolva estes problemas, mas sei que não posso contar com o PS por determinação do senhor primeiro-ministro. O que é que aconteceu então à facção mais à esquerda do PS? Ela existe. A legislatura passada ela exprimiu-se de uma forma muito audível e corajosa no Parlamento, votando contra as indicações da sua

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direcção de bancada e direcção política, por exemplo, em matéria de avaliação dos professores. O que me parece é que há aqui uma fidelidade, por parte da actual direcção, a uma visão que não honra o passado e uma visão de esquerda. Isso tem sido dito, não por mim, mas por gente como Manuel Alegre, que tem sublinhado quanto há de distância entre essa direcção e um comportamento quotidiano à esquerda. Há pouco falou da estrutura descentralizada do Bloco. No entanto, a actual direcção tem vindo a ser criticada pela centralização das decisões num grupo restrito. Faz parte deste grupo? As críticas são sempre de levar em conta. Chamo a atenção para o facto de, nos momentos de decisão colectiva, nas Convenções Nacionais por exemplo, boa parte das vozes que agora aparecem a fazer esse tipo de crítica terem uma expressão interna muito reduzida. Portanto, não demos a esse tipo de observações mais importância social do que ela tem. Acho que qualquer direcção partidária deve ter em conta aquilo que é uma expressão de mal-estar, seja de quem for. Mas, uma força política que cresce tem que ter uma coordenação e não podemos alimentar a ilusão de um partido infinitamente descentralizado ou de uma generosidade basista que depois não teria senão consequências muito perigosas. Tem que haver coordenação e isso envolve um certo grau de centralização. Não confundamos é isto com pessoalização das coisas, nem com centralismo democrático à velha maneira estalinista. E alguns desses que fazem estas críticas têm alguma nostalgia de centralismo democrático à Estaline. Preocupa-o a acusação de asfixia das forças minoritárias dentro do partido (veja-se o caso de Gil Garcia, 13º à Câmara de Lisboa)? Não me preocupa porque não acho que isso seja verdade. A prova é a de que, sistematicamente, o Gil Garcia e outros elementos das chamadas minorias dentro do Bloco vêm à praça pública dizer aquilo que têm que dizer e nunca foram sancionados. Mal seria! Sairia do Bloco no momento em que houvesse qualquer sanção por opinião política. Acho que não há nenhuma asfixia. A corrente Ruptura/FER tem assento na Mesa Nacional onde apresenta as suas propostas. Não pode é pretender que sejam lei porque elas são debatidas e discutidas e há depois tomadas de posição maioritárias de um lado ou de outro. Como justifica a necessidade de afirmação de forças como a Ruptura, que até um jornal próprio têm? Isso tem que perguntar ao Gil Garcia e aos seus companheiros da Ruptura/FER, não é a mim. Há uma coisa que eu observo: é que o entrosamento entre as várias correntes que num certo momento confluíram para o Bloco não conta com uma disponibilidade por parte da Ruptura para perder a sua identidade de grupo fechado. Há um comportamento por parte dos membros da Ruptura que é muitas vezes de natureza sectária. Agora o porquê de ser assim… não sei. Não sou da Ruptura, nunca fui da Ruptura, não quero ser.

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Um grupo que se comporta de forma fechada e como seita acaba depois por fantasiar asfixias e coisas do género. O Bloco ainda não se libertou do conglomerado de forças que o criou? Não se libertou completamente, isso é inegável. Mas fez um caminho bastante apreciável. A ameaça que desde sempre tem sido lançada de que nos vamos todos comer uns aos outros está por provar. E mais ainda: muitos partidos estrangeiros da nossa área política nos fazem frequentemente chegar a sua necessidade de perceber qual tem sido o segredo do sucesso do Bloco. A experiência do Bloco numa esquerda alternativa, não clássica, é efectivamente, uma experiência invulgar à escala europeia. Não deixa de ser curioso que o professor seja de Coimbra, onde o Ruptura tem uma força assinalável. É uma estratégia de partido ou não tem nada que ver com isso? Eu não me sinto instrumentalizado por nenhuma estratégia de combate ao Ruptura. Isso seria ridículo. Não é algo que mereça uma estratégia sofisticada de combate. Devo dizer, em abono da verdade, que nos tempos mais recentes tivemos empenhamento sempre disponível por parte dos membros dessa corrente. A minha participação em mecanismos do Bloco e institucionais não tem nada a ver com a vida interna do partido, mas com a vontade de ter alguém disponível para fazer as negociações que são necessárias, de ter uma voz firme. Tem muito que ver com desempenhos e não com estratégias internas. Há pouco falava do segredo do Bloco de Esquerda. Qual é o segredo? (Gargalhada) O segredo tem sido concentrarmo-nos na pluralidade de agendas que estão à nossa frente, sem fazer a hierarquia de causas. Tem sido muito a concentração, não em debates internos estéreis do ponto de vista ideológico, mas na militância tendo em conta as questões plurais que nos aparecem. O Bloco é, em si mesmo, um laboratório de articulações à esquerda que poderia e deveria gerar articulações mais amplas à esquerda. E ambiciona vir a ser opção de Governo? Claro. Nós não estamos nisto por desporto nem para ter razão. O Bloco veio à política, e foi por isso que entrei, justamente para, diante destes desafios concretos, plurais, de várias arenas de combate e transformação social, fazer maioria. Para fazer maioria, incluindo a capacidade de assumir responsabilidades de condução das políticas. Estamos no debate político em todas as escalas para formarmos maiorias de transformação. A curto prazo? Isso é perspectivado em função daquilo que for a combinação de forças que o eleitorado decide em cada momento. Como dizíamos na última campanha, estamos prontos.

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Diálogos Urbanos Diálogos

Uma cidade é o encontro de múltipos olhares e sensações,

um espaço de fruição e descoberta, onde cada um vê, sente

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e vive de forma muito íntima essa relação especial. Agustina Bessa-Luís, quando recordava Coimbra via uma cidade onde “os prédios sobem e descem pelas encostas como os anjos pelas escadas de Jacob”. Eugénio de Andrade, que em Coimbra descobriu Oliveira Martins pela mão amiga

texto: Patrícia Troca

de Torga e nas lições de Matemática com Joaquim Namorado mergulhou na poesia de Neruda e Maiakovski, não conhecia um verso de jeito sobre a cidade. “Não espanta — dizia — que por aqui a poesia tenha escolhido a prosa para habitação”. Nas páginas seguintes, imagem e texto dialogam — ou seduzem-se? — num jogo de sombras e sinais para nos mostrarem um fragmento da cidade que escapa ao olhar apressado de quem não sente o espaço que habita.

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Os sentimentos que invadem o peito Não cabem num coração humano. Mas as paredes, Primeiramente imóveis, Palpitam cada sentir deste espaço. E se o Homem Puder alguma vez acreditar Que não era um sino ou um gato ou alguém Que era só o coração da cidade

© Carlota Rebelo

Este, a bater Imóvel nas paredes que se erguem Nem assim aurículas e ventrículos Bombeiam a solidão Que invade neste momento o coração De um sapiens sapiens.

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A cidade vai mais além quando chega à Alta E o sentir humano perde razão de ser. Os pés não podem largar-se do chão, Quebrando o uníssono do Homem com a cidade. Ser Homem na Alta é ser sozinho. As paredes que são feitas de sentir Mostram Mais do que qualquer coração As feridas de que ambos são feitos. A f raqueza das tuas paredes, “ ó cidade” Reforça-se de quem f ica para trás no sentir Mas não te abandona O povo, que é quem mais ordena .

Ecos do coração humano Não desistem de chegar à alma Depois de os passos os terem levado À Alta de Coimbra .

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Š Carlota Rebelo Diålogos Urbanos

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Eles, sedentos de vencer, Imbuídos da força de um fado Constroem caminhos de revolução.

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Quando, por vezes, o luar se esconde Que outro refúgio tem, se não a Alta ? Nos seus caminhos passaram Os corações inebriados de paixão Cobertos por um manto preto. São passos de boémios sonhadores De pernas torpes e olhar nublado Com trilhos perdidos Que o álcool remexeu.

© Carlota Rebelo

O luar vem invadir Estes olhos que já não vêm Homens que, de certo, Só já têm o coração na voz E , sob o luar que se escondeu , Recatadas donzelas Vêm ouvir a serenata .

Diálogos Urbanos

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As paredes também se fazem De sentimentos que permanecem. Na Alta vai-se além da juventude. Há caminhos certos. Feitos de Fé e de símbolos De História e reis “Do bater da velha Cabra”… A cidade aqui é quotidiano. Quem sabe impregnado de pequenos pecados… Daqueles que podem ainda lavar-se… Molhadas, as roupas pairam No limbo do vento Da “Coimbra do Mondego E dos amores que lá tive”.

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Diálogos Urbanos


Cada dia começa e acaba Na triste solidão de se ser apenas humano Na cidade certa de um amanhã Tal como de sentimentos e de luz

© Carlota Rebelo

Que o Homem procura ref lectir na Alma

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“Segredos desta cidade” Que a Alta encerra para a vida .

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Diálogos Urbanos

© Carlota Rebelo

Em Coimbra , os meninos de oiro - são de oiro os seus meninos” São trazidos do céu , fazem-se Homens. Constroem segredos.


© Carlota Rebelo

Teoria Prática & Prática Teórica

Diz-nos José Luiz Aranguren que, para Aristóteles, a teoria era a forma suprema da praxis. Em Teoria Prática & Prática Teórica confrontamo-nos com um artigo que nos mostra como o pensamento teórico é fundamental para orientação da acção e como as práticas são essenciais para a problematização de questões fundamentais do nosso quotidiano.

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The Wire: a ficção ao serviço da realidade texto: Lídia Paralta Gomes

Os desaf ios éticos e deontológicos do jornalismo de hoje

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1. Introdução Decorria o ano de 2002 quando o canal por cabo norte-americano HBO estreia a primeira temporada do drama policial The Wire. Criada por David Simon, antigo repórter de casos de polícia do jornal do Maryland The Baltimore Sun, a série é frequentemente considerada pela crítica como uma das melhores séries de televisão de todos os tempos. Porquê? The Wire é muito mais do que um drama policial. Filmada, produzida e passada na cidade de Baltimore, esta produção televisiva é um retrato cru e ultra-realista das cidades americanas e de como as suas instituições têm efeitos nos indivíduos. De como a polícia, o crime, a política, e o poder judicial se relacionam, numa teia nem sempre translúcida onde ninguém é inocente ou incorruptível na sua plenitude. Cada temporada de The Wire escolhe um cenário icónico de Baltimore. A primeira temporada foca-se no tráfico de droga e nos seus barões (tema, aliás, transversal e motivador de toda a série), a segunda no funcionamento do porto de Baltimore, a terceira temporada é um retrato da burocracia e das idiossincrasias do governo da cidade. Já a quarta temporada tem como pano de fundo o precário sistema escolar de Baltimore e a quinta e ultima temporada, objecto de análise deste artigo, entra no mundo da imprensa escrita, das suas f iguras, dos bons e maus jornalistas, das boas e más histórias, das notícias verdadeiras ou não tanto, da promiscuidade entre os actores sociopolíticos da cidade e o seu jornal. A quinta temporada de The Wire, retrato do The Baltimore Sun e das suas caras, traça um esboço dos desafios à ética do jornalismo dos nossos dias. A crescente comercia-

lização dos media, a falta de meios e os jornalistas sem escrúpulos colocam-nos muitas perguntas e dúvidas, questões essas que a deontologia procura responder. O objectivo deste trabalho é então procurar essas ameaças à ética jornalística e as possíveis respostas da deontologia tendo como pano de fundo este retrato realista da vida urbana e a profunda exploração dos mais quentes temas sociopolíticos que nos oferece Baltimore e a série The Wire.

2. Por detrás da 5º temporada de The Wire O jornalismo é um tema caro a David Simon, o criador de The Wire. Depois de deixar a universidade, Simon trabalhou como repórter de casos de polícia no The Baltimore Sun. Apaixonado pela profissão, chamava-lhe “o trabalho de Deus”. Inicialmente Simon era um idealista, inspirado pela cober tura do Washington Post ao caso Watergate, mas torna-se cada vez mais pragmático à medida que ganha experiência. Chega mesmo a afirmar, numa entrevista ao Seattle Post, que no final da sua carreira o seu objectivo passava apenas por contar a melhor história possível sem fazer batota. No início dos anos 90 chega ao The Baltimore Sun uma nova direcção. John Carroll e William Marimow transitavam do Philadelphia Inquirer com u ma excelente reputação. Numa reportagem na revista The New Yorker, em Outubro de 2007, Simon não poupa críticas aos dois jornalistas que irá retratar em The Wire : “Quando os rapazes de Filadélfia apareceram, chegaram com o mito de que tinham as chaves do reino e que nos iam mostrar o que era fazer jornalismo”. Afirma ainda que para sua grande surpresa – “por causa da reputação

que traziam – eles eram surdos e estavam esfomeados por prémios e mais preocupados em se engrandecer do que em construir um jornal de qualidade.” Eventualmente Simon acabaria por deixar o jornal e dedicar-se à escrita de ficção. Esta desilusão com o jornalismo foi o ponto de pa r tida pa ra incluir uma sala de redacção em The Wire. A preocupação de Simon com o poder do jornalismo, com a sua cada vez menor capacidade para criar reacções nas pessoas tornava imperativo que o público conhecesse a realidade. A quinta temporada de The Wire é sobre as pessoas que supostamente deveriam monitorizar o mundo e fazer soar o alarme – os jornalistas. E porque não o fazem? Simon aproveita situações vividas por ele mesmo, pessoas que conheceu, práticas que foi obrigado a adoptar para denunciar os vírus que contaminam a profissão nos dias de hoje: a crescente concentração e comercialização mediática e as suas consequências como a lógica “fazer mais com menos” e a ambição desmedida, a importância dos prémios que pode levar os jornalistas às maiores desonras como a invenção de histórias, de fontes e de notícias.

3. Os protagonistas · Scott Templeton Templeton é um jovem jornalista com um passado em jornais locais menores. Antes de ser contratado pelo The Baltimore Sun trabalhou no Wichita Eagle e no Kansas City Star, mas o seu grande objectivo é chegar a um grande jornal nacional como o The Washington Post ou o New York Times. É extremamente ambicioso e de ética discutível.

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Este desejo de trabalhar num dos grandes jornais americanos vai fazê-lo inventar um história com grandes repercussões. O seu estilo de escrita é um reflexo da sua personalidade: exagerada, floreada, pouco objectiva, procurando primeiro os sentimentos do leitor e ignorando a verdade dos factos. É tido como um excelente profissional pelos editores-chefes do jornal Thomas Klebanow e James Whiting mas os jornalistas veteranos do The Baltimore Sun, nomeadamente Gus Haynes, desconfiam da sua conduta.

· Gus Haynes Dedic ado e com princípios, Haynes é um repórter cheio de experiência e o actual editor de cidade do The Baltimore Sun. Dada à sua experiência e perseverança, mantém muitas fontes na Policia de Baltimore e consegue ler nas entrelinhas os discursos dos políticos e polícias da cidade. Vai ser um crítico da nova direcção do jornal que procura o reconhecimento a todo o custo nem que para isso o rigor seja prejudicado. É o epítome da moralidade numa redacção que começa a apodrecer.

·James Whiting Whiting é o novo director executivo do The Baltimore Sun. É a mbicioso e o seu gra nde objectivo é ganhar um Pulitzer para o seu jornal. Prefere evidenciar o “aspecto Dickensiano” das histórias, ou seja, a sua emotividade, do que a profundidade e os reais problemas sociopolíticos de Baltimore.

· Thomas Klebanow Vaidoso mas tímido, Klebanow é o Director Geral do The Balti-

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more Sun. É o responsável pelos cortes e rescisões de contrato exigidos pela administração do grupo empresarial a que pertence o jornal e impõe a política de “fazer mais com menos”.

4. O enredo Quando a acção da quinta temporada de The Wire tem o seu início, são tumultuosos os dias que se vivem no The Baltimore Sun. Há delegações a fechar um pouco por todo o mundo e na cidade do Leste americano paira o fantasma dos despedimentos. A alguns dos mais experientes e veteranos jornalistas é oferecida a rescisão amigável do contrato. No primeiro plenário são-nos apresentadas as quatro figuras essenciais da trama : o jovem jornalista Scott Templeton, o veterano Gus Haynes e os dois novos directores, James Whiting e Thomas Klebanow, homem da administração. Os chefes anunciam mudanças, é preciso fazer “mais com menos”. Discute-se uma reportagem sobre o sistema escolar de Baltimore e desta troca de ideias as personagens revelam-se: Gus faz notar que seria importante ir mais além, ver o que está por detrás do abandono das escolas públicas. Whiting e Klebanow querem uma história forte, humana, focada nas escolas e nos seus alunos, onde salte à vista o “aspecto dickensiano” (The Wire, ep.1). Scott Templeton, jovem jornalista apostado em subir rapidamente, concorda c om a v isão dos d irec tore s. Ganha a confiança de Whiting e Klebanow e é incumbido de trabalhar a história. A partir daqui Templeton, o seu trabalho e os seus métodos, tornam-se o centro do enredo. Templeton não quer menos que o The Washing ton Post ou o The New York Times. Chega à

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redacção com as histórias mais incríveis. Apresenta a Gus Haynes, editor de cidade, a história de E.J, um miúdo paraplégico que conheceu à porta do estádio de basebol de Baltimore. Sem dinheiro para a entrada esperava a solidariedade de alguém. Mas não tem fotos nem o nome completo do rapa z. Haynes, experiente e íntegro, acha que não há elementos suficientes para publicar a história. Whiting diz que a situação não é a ideal mas está seguro da sua veracidade. No dia seguinte a reportagem de Scott causa revolta entre os mais veteranos da redacção. Não há uma foto do rapaz, um nome, só uma alcunha. Entretanto, na cidade, estala o caso do assassino em série de sem-abrigo. Gus envia Scott para o terreno para conseguir testemunhos de outros sem-abrigo e o jornalista volta com a espantosa história de uma família de quatro, a viver debaixo da ponte, com um pai que teme pela vida dos seus filhos. Templeton apresenta a Gus o nome do pai: Nathan Levi Boston. Mas Nathan Levi Boston é apenas o nome de um indigente a quem Templeton havia tentado pedir declarações sem sucesso. Templeton é ambicioso e percebe que pode estar aqui a sua galinha dos ovos de ouro. Dep oi s de a l g u n s d i a s s em novidades no caso, Templeton entende que tem de fazer algo. Forja então uma chamada telefónica e anuncia aos directores e a Gus que o serial killer lhe telefonou, contando pormenores dos crimes. O caso do assassino em série, a que o The Baltimore Sun não havia dado destaque anteriormente, aparece na primeira página do jornal no dia seguinte. O foco coloca-se em Scott Templeton que é alvo dos maiores elogios dos dois directores, Whi-

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ting e Klebanow. Este mostra uma atitude de falsa modestia, dizendo que a história “escreveuse a si própria” (The Wire, ep.6). K lebanow diz que Scott foi à rua, lutou pela notícia. Templeton propõe passar uma noite com os sem-abrigo, ideia que os directores recebem com agrado. Entretanto Scott é convidado para entrevistas em televisões e rádios locais e nacionais. Klebanow vê nestes convites um modo de mostrar o jornal e as suas notícias quando as candidaturas para os Pulitzer se aproximam. Templeton, dissimulado, diz que não está habituado a tamanha atenção. Whiting, mais uma vez, considera que o jornal deve procurar o “aspecto dickensiano” no caso dos sem-abrigo. Mais uma vez recusa uma análise profunda do tema. Para os directores do The Baltimore Sun é mais importante o aspecto humano e as emoções, colocando o rigor de lado. A matéria sobre a precariedade do sistema escolar de Baltimore é colocada de lado já que, para Whiting, o caso dos sem-abrigo “tem mais impacto” (The Wire, ep.6) Entretanto, Scott Templeton continua o seu trabalho de campo. Fala com um veterano de guerra com síndrome pós-traumático. Chega à redacção uma queixa a u m a not ícia re d ig id a por Templeton e Gus pede-lhe para confirmar os factos. Um polícia telefona a Scott fazendo-se passar pelo assassino dos sem-abrigo, o jornalista é apanhado na sua própria rede. O The Baltimore Sun coloca todos os seus recursos na cobertura do caso. Templeton vai ser entrevistado pelo próprio jornal para a matéria principal. Depois da queixa, Gus, que já não apreciava o estilo exagerado de Templeton, apresenta as suas dúvidas aos dois directores. Apesar de Scott ser o actor principal

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da notícia, não vê necessidade de este escrever na 1º pessoa. Gus acusa Templeton de ornar em demasia as suas notícias; achao pouco sério. No seu último artigo, escreve sobre a experiência de viver com os sem-abrigo, segundo Gus, “como se estivesse há semanas com eles” (The Wire, ep.7), quando na realidade só passou com eles uma noite. Além disso, acha o seu discurso épico, heróico, como se estivesse a pôr a sua vida em risco para conseguir a reportagem. K lebanow não ouve as preocupações de Gus Haynes e toma a responsabilidade da publicação do artigo. Os jornalistas veteranos do The Baltimore Sun enfurecem-se cada vez mais com os artigos de Scott que vão contra todas as regras do jornal, ou pelo menos do que já foi o jornal, Gus diz que não confia em Templeton, que lhe pediu para tirar a limpo a queixa que lhe foi dirigida e que este voltou com uma desculpa completamente inverosímil. Em conversa com uma jornalista da sua geração Gus comenta que todos os jornalistas já foram enganados mas há que admitir o erro, o que Scott estranhamente nunca faz. Um jornalista que nega uma mentira ou um erro e que, para piorar, mente na correcção do erro também é capaz de mentir para melhorar uma história. Gus relembra a história do miúdo à porta do estádio de basebol, cheia de incoerências. No mesmo dia chega mais uma queixa ao jornal: o veterano de guerra que Scott havia entrevistado acusao de coloc a r pormenores na notícia que nunca aconteceram. Scott nega a acusação, mas Gus, falando mais tarde com um dos companheiros do veterano, prova a sua mentira. Scott volta a escrever um texto sem citar fontes e Gus veta a sua publicação. O jovem jornalista não aceita a decisão de Gus


e argumenta que utilizou uma fonte anónima porque “a sua citação era fantástica” (The Wire, ep. 8). O veterano mostra a sua preocupação e, pela primeira vez implicitamente, faz notar as suas dúvidas em relação à veracidade dos relatos de Templeton. Numa reunião com alguns editores e jornalistas da sua confiança, Klebanow e Whiting traçam a estratégia para a candidatura aos Pulitzer. As notícias devem de preferência encaixar nas categorias do prémio. Um dos jornalistas do The Baltimore Sun investiga o historial de Scott Templeton e confirma um sem número de incongruências, desde exageros a aperfeiçoamento de citações. Comenta com Gus:

“É como uma malha de uma camisola, assim que puxas....” (The Wire, ep.9) Depois de Scott afirmar que viu um rapto a um sem-abrigo, facto que a polícia rapidamente desmente, Gus tenta mais uma vez abrir os olhos a Klebanow: “Já reparaste que os tipos que fazem isto, os Blairs, os Glasses, os Kelleys, começam sempre com uma coisa pequena, uma citação que melhoram. Depois é uma notícia inteira e logo já vêem coisas extraordinárias” (The Wire, ep.10) Mostra os artigos que provam as invenções de Templeton, mas ainda assim os directores tomam o partido do jovem jornalista. No f inal da temporada, Scott Templeton ganha o prémio Pulitzer pela cobertura do caso do assassino dos sem-abrigo, missão cumprida para Whiting e Klebanow. Gus Haynes é demitido do cargo de editor.

5. A 5º temporada de The Wire à luz da deontologia Na descrição da trama que efectuei no ponto anterior estão bem espelhados alguns dos desafios que o jornalismo dos nossos dias se vê obrigado a encarar. No The Baltimore Sun sente-se a quebra de vendas que grassa pela imprensa escrita. Há despedimentos e, consequentemente, menos jornalistas para cobrir a mesma realidade. De cima as ordens são muito concretas, mesmo com menos pessoas, com menos experiência, há que fazer mais. O jornal vê-se comandado por dois directores pouco preocupados com o rigor e mais interessados em vendas e prémios, para além de que a ambição desmedida de um dos membros da redacção coloca em risco a idoneidade do The Baltimore Sun. Mas deveremos olhar para The Wire apenas como uma série de televisão com todas as particularidades que o discurso ficcionado carrega ou como um relato hiper-realista? Com uma revisão da literatura adequada, podemos perceber o quão próximo da realidade está a série de David Simon. A quebra de vendas dos jornais está a tornar cada vez difícil a sobrevivência dos mesmos, já que os projectos editoriais tor n a m- s e p ouc o rent ávei s . Consequência desse facto é a precarização das condições de traba lho dos jorna listas e os cortes nas redacções, cada vez menos numerosas e mais baratas. O recurso aos despedimentos colectivos ou rescisões de contrato e a contratação de jovens menos qualificados e estagiários em detrimento de profissionais mais experientes (Fidalgo, 2008) é hoje uma realidade e The Wire mostra-o bem: logo no início da temporada, vários jornalistas,

com larga experiência e muitos contactos, são “convidados” a sair o que rapidamente se repercute nas relações com as fontes. Directamente relacionado com este facto está a sujeição à lógica comercial: a quebra de vendas leva à proletarização da condição dos jovens jornalistas e, estes, receando a falência do seu empregador, são inf luenciados para sacrif icar as verdadeiras notícias de interesse público em função do que pode trazer mais leitores ao jornal. Neste caso, os jornalistas do The Baltimore Sun são pressionados pelos seus superiores a escrever histórias de carácter mais humano, com pouca profundidade, para assim terem mais leitores, mais visibilidade e mais possibilidades de conseguir nomeações para os Pulitzer. No pla no da a ná lise étic a e deontológica, esta 5º temporada de The Wire é muito rica. Na opinião de Joaquim Fidalgo, o rápido desejo de sucesso é um entrave à independência, autonomia e à qualidade do trabalho jornalístico, resultado da crise da imprensa escrita e da concorrência feroz entre meios de comunicação (idem, 2008). Os critérios comerciais ganham assim uma importância desmedida. Os casos de jornalistas desmascarados depois de inventarem ou plagiarem histórias, ou mesmo usando frequentemente fontes não identificadas, é um sintoma desta “doença”. O caso apresentado na série do jorna lista Scott Templeton é baseado nos mediáticos casos de Jayson Blair, do The New York Times, Stephen Glass, do The New Republic, ou de Janet C o ok e , do T h e Wa s h in g t on Post. Tal como Blair, Templeton mostrava-se um repórter talentoso, capaz de trazer para a redacção citações “too good to be true” (Fidalgo, 2004:12), tal

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como Glass fabricou notícias e tal como Cooke ganhou um Pulitzer por uma história pelo menos parcialmente inventada. Seg u ndo Joaqu im Fid a lgo (2008), a multiplicação destas “ derrapa gens ética s” no traba lho jorna lístico é fruto de um certo “relativismo ético” tolerado pelas empresas, numa era de concorrência desmedida e de lógica comercial feroz. Dá o exemplo do abuso da utilização de fontes não identificadas por parte de Jayson Blair, algo nunca questionado pelas chef ias do The New York Times, ideia transcrita também para o cenário de The Wire, onde as brilhantes declarações que Templeton conseg u ia nu nc a mereceram a preocupação dos directores, apenas do seu editor Gus Haynes. Tal como Blair, Templeton usava a confidencialidade para inventar ou distorcer citações. E ste proced imento está bastante generalizado no jorna lismo norte-a merica no, principalmente no político, já que os directores, com fome de títulos fortes e que agarrem o público, nem se preocupam em indagar os seus jornalistas acerca da utilização de fontes n ão ident i f ic a d a s ( Fid a l g o, 2004 :12). Há, portanto, um certo clima de impunidade que só a regulação parece ter poderes para travar. Segundo Estrela Serrano, “o “endurecimento” d a reg u laç ão dos media por parte do próprio poder político reside no comportamento dos próprios media, nas derrapagens individuais e num certo laxismo do sistema mediático, que não parece preocupado com as suas derivas senão perante a ameaça de medidas legais” (Serrano, 2007:129). Mas não será importante apostar na autoregulação para o jornalismo não ver o poder político ditar as suas regras?

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5.1 A resposta da deontologia – o caso português Numa era de novos desafios à profissão, como alguns que acabámos de expor, a importância da autoregulação é fulcral. No panorama português discute-se a adequação do nosso organismo auto-regulador, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, ao nível da sua credibilidade pública, autoridade entre os seus membros e eficácia de actuação (Fidalgo, 2008). Há quem considere que o Código Deontológico constitui um documento apenas aplicável aos membros do Sindicato, logo o Conselho Deontológico apenas tem poderes sobre estes. A verdade, segundo Alfredo Maia, é que todos os jornalistas portugueses têm assumido “como seu o Código Deontológico, independentemente da sua condição de sindicalizados” (Maia, 2007:149), ao ponto de a elaboração e aprovação do código ter envolvido todos os jornalistas e não apenas os membros do Sindicato. Assim, o poder de regulação e controlo do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas é considerado por todos os jornalistas e até por cidadãos e entidades que a ele recorrem, embora os seus poderes não sejam tão vinculativos como se desejaria (idem, 2007:150). Da mesma opinião não são Carlos Albino ou Mário Bettencourt Resendes que defenderam a criação da Ordem dos Jornalistas por considerarem existir um défice de auto-regulação e a Ordem ser a única forma de abranger todos os jornalistas e conseguir uma eficaz autodisciplina da profissão através do respeito pelo Código Deontológico e da punição da sua violação. (Fidalgo, 2008). As próprias empresas devem criar instrumentos de auto-regulação. Veja-se o caso norte-americano. Depois do escândalo Blair, o The

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New York Times adoptou regras mais restritivas quanto ao uso de fontes não identificadas e instituiu os fact-checkers, profissionais encarregados de conf irmar a veracidade no terreno de notícia s já public ada s. Ta mbém nomeou finalmente um Provedor do Leitor, função que até então desprezara. Aliás, na opinião de Joaquim Fidalgo, a ausência de instrumentos que permitissem um interface entre os leitores e o jornal foi um dos motivos pelos quais as pessoas envolvidas nas intervenções e invenções de Blair nunca, ou quase nunca, tiveram a oportunidade de se queixar ao jornal (Fidalgo, 2004:13), o que atesta bem a importância deste instrumento para uma melhor auto-regulação. Em Portugal, iniciativa s como o Livro de Estilo do Público e os Códigos de Conduta da revista Visão e do Expresso, mostram um esforço de auto-regulação, a exemplo do que acontece com a figura do Provedor do Leitor no Público, Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Em Novembro de 2003, cerca de vinte órgãos de comunicação social assinaram um “acordo de auto-regulação” especificamente dirigido à cobertura noticiosa de processos judiciais, numa reacção à cobertura nem sempre digna do processo Casa Pia. É impor ta nte a prof issão empenhar-se na instituição de iniciativas estabelecidas dentro dos Meios para Assegurar a Responsabilidade Social dos Media, os MARS, de forma a manter a sua autonomia em relaç ão ao poder político e prestar um serviço mais sério e idóneo aos seus leitores. A auto-regulação apresenta-se assim como essencial na monitorização do trabalho dos jornalistas pelos jornalistas, que devem ter a capacidade de definir as suas próprias regras e fazerem valer essas regras, respeitando-as e promovendo-as.

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6 . Conclusão No derradeiro diálogo, quando já sabe que os seus esforços para desmascarar Templeton foram em vão, Gus Haynes explica a uma jovem jornalista: “Olha à tua volta. O lago está a encolher, os peixes estão nervosos. Ganha nome, ganha um prémio, talvez encontres um lago maior do que este. O Whiting, o Klebanow, o Templeton, vão ganhar um Pulitzer ou dois e depois vão-se embora para sempre. Para eles este é o objectivo. Eu? Sou demasiado simples para fazer isso. Só quero ver uma coisa nova todos os dias e escrever uma história sobre isso.” O idealista Gus Haynes já não é um jornalista do nosso tempo. Hoje em dia a profissão debate-se com desafios que se reflectem na forma como fazemos o jornalismo. A crescente comercia lização, a crise da imprensa escrita, a concorrência feroz mudaram os valores, as práticas e fizeram as questões da ética, da deontologia, da auto-regulação e dos MARS mais importantes do que nunca. The Wire tem o condão de nos abrir os olhos, nos fazer perceber o que está podre no jornalismo e até que ponto a ambição e a procura da glória não olhando a meios pode chegar. No f im, os “maus” ganham, um sinal de alerta para os prof issionais da área, para se organizarem, para se auto-regularem. Para que “cancros” como Templeton, Whiting e Klebanow nunca mais entrem numa sala de redacção.

7. Bibliograf ia FIDA LGO, J. 2004. O ca so Jayson Blair/ The New York Times : da responsabilidade individual às culpas colectivas. Comunicação apresentada no II Congresso Ibérico de Ciências

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da Comunicação / III Congresso da SOPCOM, Universidade da Beira Interior / Covilhã, Portugal SERRANO, E. 2007. Pensar a regulação dos med ia nu m a socied ade em mudança, Comunicação e Sociedade. 11, pp.129-133 M A I A , A . 2 0 07. O i mp er at ivo d a regulação participada. Comunicação e Sociedade. 11, pp.149-155 FIDA LGO, J. 2008. Novos desaf ios a um velho ofício ou... um novo ofício? A redefinição da profissão de jornalista. In. M. PINTO e S. MAR INHO (org.), Os Media em Portugal nos primeiros cinco anos do século X XI. Porto: Campo das Letras/ Universidade do Minho The Wire – Season 5. 2008. HBO – Home Box Office HBO: The Wire: City Editor Augustus “Gus” Haynes [online]. [Acedido em 06/01/10]. Disponível em: http:// www.hbo.com/the-wire/cast-andcre w # /t he -w i re /c a st-a nd- cre w / augustus-gus-haynes/index.html HBO: The Wire: Scott Templeton [online]. [Acedido em 06/01/10]. Disponível em: http://www.hbo.com/the-wire/ cast-and-crew#/the-wire/cast-andcrew/scott-templeton/index.html H BO : The W ir e : Man a g in g E d it or Thomas Klebanow [online]. [Acedido em 0 6 / 01/10 ] . Di spon ível em : http://www.hbo.com/the-wire/castand-crew#/the-wire/cast-and-crew/ thomas-klebanow/index.html HBO: The Wire: Executive Editor James C. Whiting III [online]. [Acedido em 06/01/10]. Disponível em: http:// www.hbo.com/the-wire/cast-andcre w # /t he -w i re /c a st-a nd- cre w / james-c-whiting-iii/index.html Interviewing the man behind The Wire [online]. [Acedido em 10/01/10]. Disponível em: http://www.slate. com/id/2154694/ Prof ile : Stealing Life : The New Yo r k e r [ on l i n e ] . [ A c e d i d o e m 11 / 0 1 / 1 0 ] . D i s p o n í v e l e m : h t t p : / / w w w. n e w y o r k e r . c o m / reporting/2007/10/22/071022fa_ fact_talbot?currentPage=1


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Sem-abrigo morre durante acto heróico texto: Martha Mendes E UA — 2 6 Ab r i l 2 0 1 0 . Um sem-abrigo foi esfaqueado até à morte ao tentar salvar uma mulher de um assaltante, no bairro de Queens, em Nova Iorque. Segundo o vídeo de segurança divulgado pelo jornal New York Post, Hugo Alfredo Tale-Yax esteve cerca de uma hora no chão, numa poça de sangue, até chegar uma ambulância. Nesse espaço de tempo, cerca de 25 transeuntes passam indiferentes, sem ajudarem o sem-abrigo. Tudo aconteceu domingo de manhã quando Hugo tentou salvar a mulher e foi esfaqueado no peito diversas vezes. Tentou perseguir o seu atacante, mas acabou por cair no chão, em frente à câmara de segurança. O vídeo mostra a indiferença dos transeuntes, que não param para ajudar Hugo. Há até quem tire uma fotografia com o telemóvel e continue o seu caminho. Apesar de a polícia ter recebido quatro chamadas pelos gritos da mulher assaltada, não foram informados do estado do sem-abrigo.

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Um repelente cheiro a morte texto: Martha Mendes

Na verdade, Hugo sempre soube que ia acabar assim. Desde aquele dia em que nada viria a ser igual, ele sabia. Sentia que a sua vida ia terminar depressa, sem que isso incomodasse alguém. Nunca imaginou que fosse por esfaqueamento. “Talvez um tiro ponha fim a tudo”, costumava pensar. Um tiro dado por um daqueles “vândalos” que o ameaçavam regularmente nas ruas. “Vândalos”. Era como Hugo lhes chamava. Imaginava uma morte limpa, rápida, indolor. Nisso enganou-se. Acabaria por ser esfaqueado até à morte, numa rua de Nova Iorque. No bairro Queens, para ser mais exacto. Para muitos, Queens era um lugar adorável. O bairro de onde os nova-iorquinos viam aviões levantar voo, onde assistiam aos jogos do Mets e às vezes a alguns jogos de ténis, no US Open. Os operadores turísticos costumam mesmo referir-se ao bairro como “a Nova Iorque real e honesta, nem elitista, nem yuppie”, “a verdadeira experiência viva do melting pot”. Mas para Hugo o bairro era uma casa. Cada rua era um corredor, cada praça uma sala. A entrada do bairro, com o seu trânsito infernal e as cores ensurdecedoras da máquina urbana, era o hall de entrada do seu cantinho. Ele nem sempre tinha vivido ali. Na verdade, a rua – e aquela rua em particular – estava cheia de estórias como a sua. Estórias de homens, nalguns casos com família, a quem a vida tinha apontado este caminho. Também havia estórias de homens que tinham feito as escolhas erradas. E estórias de homens que se tinham arrependido tarde demais. O tempo levou Hugo até às ruas de Queens, a sua casa. Ali até tinha um banco que os outros consideravam “seu”. Sabia que debaixo daquele banco podia deixar as suas poucas coisas que ninguém lhes mexia. Os estranhos por medo, os camaradas sem-abrigo porque conheciam as regras da rua. Mas nestes não se incluíam os “vândalos”. Era assim que ele lhes chamava. Traficantes de droga na sua maioria, não perdiam uma oportunidade para ameaçar os sem-abrigo. E os outros, transeuntes que vinham à procura dessa “Nova Iorque real e honesta” que anunciavam as operadoras turísticas. Era só essa a estória de Mary. Inglesa, estava pela primeira vez nos Estados Unidos. Era, na verdade, uma aluna finalista de arquitectura que tinha decidido festejar o fim da licenciatura com uma viagem a Nova Iorque. As cidades sempre a tinham fascinado. A dinâmica, o barulho, o fumo, as pessoas, a pressa, o calor, o frio. A vida. Em Inglaterra, vivia em Londres, onde o frio cinzento e pesado que parecia deixar desconfortáveis todos os outros, era um encanto para ela. Nos Estados Unidos sempre quis conhecer a cidade que nunca dorme. Tinha apenas uma mochila. Não se percebe como é que uma jovem de ar tão simples pôde despertar tanto interesse nos “vândalos”. Mas eles eram um pouco assim: escolhiam as vítimas aleatoriamente, nem sempre por causa do dinheiro que adivinhavam poder roubar, nem sempre por causa da fraqueza de que se apercebiam. Às vezes as vítimas eram tão-somente um desejo a que eles não podiam resistir. Um íman que os puxava na direcção da raiva, da vingança, do mal. Às vezes as vítimas, sem o

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saberem, estavam a atraí-los como as flautas chamam a si a serpente. Como por magia. Era essa magia que Mary espalhava pelo bairro, com o seu passo leve, o mapa dependurado na mão, a alça da mochila a escorregar pelo ombro, os olhos perdidos de quem quer ver tudo, os agasalhos fortes para o tempo frio de Janeiro. E Hugo também não era imune a essa magia. Havia algo em Mary que lhe lembrava a sua outra vida, aquela que vivia antes de ter conhecido o repelente cheiro a morte. Primeiro foi só uma atracção. Uma jovem de ar perdido, à noite, em Queens. Não parecia ser dali e, no entanto, a sua figura enquadravase na perfeição na paisagem de buliço de um fim de dia em Nova Iorque. Hugo foi seguindo aqueles passos à distância, não a queria assustar. Parava quando ela parava, acelerava quando ela acelerava, para não a perder de vista. Apesar de manter alguma distância, Hugo conseguia sentir-lhe o perfume. Jovem e fresco, como um frasco de Primavera. De repente veio-lhe a memória daquele dia. Se ao menos Hugo lhe pudesse roubar aquele cheiro suave. Se ao menos a pudesse matar. Se ao menos se pudesse vingar da vida. Um instante bastava. Isso era uma lição que Hugo tinha aprendido bem. Afinal, tudo tinha sido decidido num instante, num acidente de automóvel. A sua vida tinha terminado numa estrada. Velocidade a mais, cuidado a menos. Hugo recordava pouco desse dia. Era sempre assim com as coisas realmente importantes. Tinha vindo do hospital mais cedo. Naquele dia, o médico tinha menos pacientes do que era normal porque o fim-de-semana fora já estava agendado e Hugo gostava de viajar de dia. Saíram cedo de casa, Hugo, ela, os miúdos, a avó deles. A carrinha era nova, tinha poucos meses na família. Uma novidade que veio com a chegada do quarto filho. Depois foi só o horror. Vidros partidos, sangue, choro e gritos. O impacto. Até que se fez silêncio. Um silêncio de morte. Depois da perda, Hugo passou muitos meses sem falar. Arranjaramlhe um psicólogo, depois um psiquiatra. Chamaram-lhe “stress pós-traumático” e deram-lhe comprimidos. Um dia ele desapareceu e nunca mais ninguém soube dele. Fechou a porta de casa atrás de si e, com isso, fechou a vida que tinha conhecido até então. Começou a deambular pelas ruas da cidade até perceber que aquilo se podia tornar um hábito. Quando o sono chegou, Hugo escolheu um banco e dormiu. Desses instantes breves que mudariam tudo, Hugo recordava pouco mais do que o cheiro a sangue e a morte. Cheiro a borracha queimada dos pneus dos carros. A alcatrão da estrada. Todos os cheiros misturados num cheiro que era exactamente o cheiro da morte. E Hugo pensou, nesse instante, que se a sua filha mais velha não tivesse morrido naquele acidente teria agora talvez a mesma idade daquela jovem que passeava feliz por Queens. E talvez tivesse também o mesmo cheiro a Primavera, e não aquele cheiro a morte que o pai haveria de recordar para sempre. E talvez tivesse os mesmos sonhos, a mesma curiosidade. E talvez andasse também a viajar pelo mundo com a alça da mochila a escorregar pelo ombro. E uma raiva genuína foi-lhe crescendo no peito. Se pudesse ao menos matá-la. Hugo desejava poder acabar com aquela felicidade. Pôr fim a tanta juventude e a tanto futuro. Como a vida tinha feito consigo. Primeiro foi só uma atracção. Mas agora torturas monstruosas passavam pela cabeça do sem-abrigo. Um desejo de vingança mórbido e confortável tomava-lhe conta da cabeça e das acções, enquanto

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ele seguia Mary, cada vez mais colado à sua pegada. E aquele cheiro fresco, a Primavera, que teimava em tomar de assalto os sentidos do homem que em tempos tinha perdido tudo persistia. Como sempre acontecia com as coisas importantes, se Hugo tivesse sobrevivido para contar o que aconteceu, não se lembraria de grande coisa. Só do cheiro. O cheiro mantinha-se intacto na memória do homem. De novo, o cheiro a sangue. Era de novo aquele horrível e nauseabundo cheiro a morte. O cheiro mais repelente do Mundo. Mary não havia despertado apenas o interesse e a raiva de Hugo. Os “vândalos” também tinham reparado nela. Começaram por chamála. Mas Mary ia distraída a olhar para um mapa cujas indicações parecia não perceber. Não estava a ignorá-los, não estava com medo. Simplesmente não os ouvia. O medo veio alguns minutos depois. Começaram por lhe puxar a mala e com isso atiraram-na ao chão. Insultaram-na. Abriram a mochila e começaram a esvaziá-la para o chão da rua. Quando perceberam que a jovem tinha pouco mais do que uma dúzia de dólares, uma raiva incontida atirou-os contra Mary. Foi nesse momento que Hugo não pôde continuar a olhar. Lembra-se vagamente de ter corrido na direcção deles, de os ter empurrado e da força do seu empurrão ter deitado ao chão os três homens desprevenidos, que não contavam com a ofensiva. Lembrase de se ter odiado por ter desejado fazer-lhe mal. Lembra-se de ter ajudado a rapariga assustada a erguer-se do chão e de ter sentido o seu cheiro a Primavera uma última vez, antes de a ver correr, fugir, e esgueirar-se pelas ruas dessa Queens imensa e barulhenta. Depois voltou o cheiro horrível, repelente, a morte. Hugo recordaria, se tivesse sobrevivido, a sensação de ter o frio do aço da faca a penetrar-lhe o corpo. Primeiro a pele, depois os órgãos. Recordaria os gritos de raiva dos “vândalos”, recordaria a forma como estes festejaram a sua morte como se estivessem numa espécie de ritual tribal de sacrifício de uma vida. Recordaria o toque do cimento do chão da rua, que se tingia de vermelho aos poucos, contra a pele do seu rosto. Talvez recordasse a frieza das dezenas de pessoas que passaram, indiferentes, pelo seu corpo morto, a ficar cada vez mais frio, durante os mais de sessenta minutos que a polícia demorou a chegar ao local, apesar das sucessivas chamadas desesperadas de Mary. Era o corpo de um sem-abrigo. Apenas o corpo de um sem-abrigo. Talvez recordasse o jovem que, indiferente à sua morte, parou encostado a uma parede para tirar, com o telemóvel, uma fotografia ao cadáver que agora jazia em plena rua. E Hugo recordaria, certamente, a sua última visão. Espalhados pelo chão dessa rua por onde agora corriam os “vândalos” em bando, em fuga do local do crime, estavam os objectos que Mary, a jovem feliz, trazia na mochila e que haviam sido despejados. Um telemóvel, um perfume, uma maçã já tocada que Mary nunca chegou a comer. Um bloco de notas, duas canetas – das quais uma já não tinha tampa – e um pacote de lenços. Uma carteira entreaberta. Lá dentro, vários cartões, pequenos papelinhos e uma divisão que deixava que se entrevissem pequenas fotografias, tipo passe, que a jovem trazia sempre consigo. Da carteira, o pai de Mary olhava Hugo. Um homem grisalho, forte, sorridente, feliz. Agradecido. Foi a imagem desse homem que lhe fechou os olhos. Coimbra, 27 de Abril de 2010

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Fantasmas de Coimbra Pessoas invisíveis que já fazem parte da “paisagem” de Coimbra. Fantasmas que se acendem com a alvorada, e desaparecem no ocaso. Desaparecem ao acaso. Até ao raiar do novo dia. Fantasmas que se dissolvem na chuva, outros que vivem dela. Para muitos dos que com eles se cruzam todos os dias, nunca existiram. Mas a verdade é que subsistem. Insistem em lutar nesta Coimbra que nunca foi, e talvez nunca venha a ser sua. texto: Adérito Esteves Ao caminhar por Coimbra por vezes podemos sentir-nos transportados para o tempo em que esta ainda se chamava Aeminium. Pelo menos, é de lá que parecem vir alguns dos vultos que habitam a cidade. Mas os vultos têm um homem por trás. Que tem uma vida associada. É altura de dar cor e vida a alguns dos vultos que nos visitam no dia-a-dia.

vêem. Não o ouvem. Ou pelo menos assim parece. Baixam a cabeça, viram os olhos, seguem o caminho. Alguns, muito poucos, numa quase amabilidade forçada abanam a cabeça negativa mente. Menos a inda são aqueles que acompanham esse movimento da cabeça com um “obrigado”, agradecendo, quiçá, a abordagem.

Estes não são fantasmas que a ssombra m a cidade. Ta lve z sejam assombrados por ela. São pensadores, conversadores ou vendedores de sorte. Sorte que há muito não têm, e que talvez não saibam procurar. Mas lutam. À sua maneira. Não pedem. Ou pelo menos não se limitam a pedir. Têm algo para oferecer. Aqui, foi-se em busca do que têm para oferecer. E descobriram-se histórias de vida, que se contam em seguida. Para depois desaparecerem como os seus actores.

Com cerca de uma dúzia de re v ist a s no braç o e squerdo, outras tantas na sacola vermelha de fecho estragado, Giuseppe vai percorrendo, com pequenos passos, não mais de quatro metros quadrados. Pisando sempre o mesmo chão faz quilómetros nesse espaço, sempre pensativo. Por vezes distante. A certa altura pára. Dirige-se a mim. Contando-me que tem artigos escritos no Brasil, na Holanda “e em mais países ! ”. Fa la-me da complexidade do escrever. Explica-me que é um erro escrever sem conhecer a especif icidade de cada ca so. Escuto aquelas pa lavras com atenção. “Eu sou um pensador, sabe?”. Percebo que precisa de descansar um pouco. Está uma atípica manhã de Abril, com perto de 30 graus. Enquanto dia loga noto-lhe uma curiosidade na fala: todo o tipo de tom que emite teima em terminar num “tu”, “ta”, do típico sotaque italiano. Como “tutto nella vita”.

O pensador italiano Giuseppe Cianciola é um pensador italiano que vende revistas nos tempos livres. Há pessoas que o vêem, impecavelmente vestido, entre a Ferreira Borges e a Visconde da Luz. Em frente às escadas de S. Tiago, sugerem. Eu vejo-o. Num movimento já meca nizado va i estica ndo o braço direito anunciando a “Cais”. Os transeuntes não o

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Depois de uma pequena pausa regressa à sua luta, à sua “vita”. Estou a observá-lo há mais de meia hora, quando à enésima abordagem consegue vender o seu primeiro exemplar do dia. Parece recusar-se a ficar pela simples troca do “vil metal” pelas palavras compiladas naquele A4 de papel. Dois, três dedos de conversa e um quase sorriso arrancado pela senhora que acaba de comprar mais uma “Cais”. Ainda há pessoas que param só para conversar. E nesses momentos nada mais importa para o pensador italiano. Dois minutos de conversa valem-lhe mais do que duas moedas de euro, com que se compra uma revista. “Olá Sr. José, como está?”, pergunta uma rapariga que passa. “Não, hoje não vou comprar a revista, deixe ver. Pois, essa já tenho. É a mesma da semana passada”. É, de facto, a mesma da semana anterior, e da outra. A revista é mensal e estamos nos últimos dias de Abril. Desta vez não vai haver venda, mas a conversa parece encher de força o frágil homem. Mais tarde confessar-me-á que é isso que lhe enche as medidas nesta “profissão”. É a falta disso que lamenta. É dessa falta que culpa a “crise”. A “crise”, diz, levou-lhe amigos. Recusa-se a falar em perder clientes, pois considera isso secundário. Contudo, lamenta profundamente que

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alguns amigos tenham deixado de passar pelo “seu espaço” por não terem, agora, possibilidades de comprar a revista. Pensa que talvez “o sentimento de culpa” os tenha levado a desviar o seu caminho. Mais meia hora mal contada, e uma nova venda. Desta vez é um senhor que, apesar do ritmo apressado do seu passo, abranda e mete a mão à carteira, sem precisar do anúncio que deve ouvir tantas vezes. Outras pessoas há, que se desviam da abordagem deste fantasma. Talvez assustadas. Com medo que o seu braço estique dois metros e possa invadir o ar que respiram. Penso para comigo que se calhar aquela distância é escassa. “Penso que vou parar. Sinto que hoje não é um bom dia. A experiência diz-me isso”. O tal feeling que anda por esta altura na boca de toda a gente leva Giuseppe a parar. Depois de mais de duas horas de insistência, o dia não parece estar a correr de feição. Foram apenas duas as revistas vendidas, e dado que tem direito a 70% do valor de cada uma, a manhã rende-lhe a mísera quantia de 2.80€. “Melhor que nada”, atira com ar conformado. Pergunto-lhe se o posso acompanhar ao almoço, e a resposta é um “sim claro”. “Onde quer ir?”, pergunta-me. “Leve-me onde

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costuma ir, a um sítio que goste”. Guia-me por ruelas da baixa até ao Terreiro da Erva. Entramos na “Casa das bifanas”. Ambiente agradável, mais não seja, pelo fresco que nos oferece. A mistura de cheiros abre o apetite a qualquer guerreiro que passe por aquelas paragens. Bifanas, hambúrgueres, salsichas, a oferta é variada. A vivacidade e o volume das conversas entre os clientes atestam a qualidade dos petiscos. A satisfação das barrigas. Nada melhor do que uma boa conversa ao almoço. Aí conheço este italiano de Bari. As suas histórias. Acima de tudo o seu conhecimento. Mas no meio do turbilhão que é a existência deste pensador, coloquemos alguma ordem. Comecemos pelo início. Pelo princípio da caminhada que o trouxe até esta Aeminium intemporal. Quando aos vinte anos de idade saiu da Itália natal guiava-o a “inconsciência”. A sede da descoberta. E seguindo esse rumo, correu vários países da Europa, fazendo de tudo um pouco para ter que comer. Mas a idade das loucuras havia de chegar ao fim. Quando, cerca dos 30 anos, quis dar um rumo certo à sua vida, o fado assim não quis. O mapa pelo qual passou a guiar-se foi o destino. Foi esse o culpado da sua chegada a Portugal. Depois de um ano por terras algarvias fixou-se em Coimbra, onde está há 10 anos. Agora, com uma vida difícil, diz que a única coisa que ainda o faz viver é a coragem, “é a última coisa que me resta”. Mas tem fé. É muito religioso. “Não desses que vão à missa todos os dias, mas quando posso, ao domingo, costumo ir”. A sua fé faz-se de leituras. E aí há um livro que sempre o acompanha: “Livro de

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Santo Agostinho (Confissões) ”. Giuseppe conta-me que se baseia no livro, aplicando os seus ensinamentos aos dias de hoje. Assim, numa escritura de “confissões de louvor à grandeza de Deus”, este cidadão do mundo faz as suas “confissões de miséria, grito de alma de um homem que (…) se sentiu tocado pela graça de Deus no mais íntimo do seu ser, perdoado dos seus erros, do orgulho, do pecado”. O pensador italiano transporta-se para a pele de Santo Agostinho e isso aproxima-o do seu ser, como que libertando a sua consciência. Mas voltando à mesa do almoço, começo a perceber o porquê de se intitular de “pensador”. Para além das conversas com os amigos que lhe compram as revistas, há uma outra coisa que adora fazer: ler. Afirma que quando lê não se sente sozinho, que o seu pensamento voa. Ao falar com Giuseppe percebe-se que é um homem de muita cultura. Fala de tudo. Com conhecimento. Durante a conversa ao almoço este barese explica-me os primórdios da civilização no Egipto. Dos problema s socia is da China, ao Corão, passando pelo budismo, de tudo faz questão de se mostrar conhecedor. Teologia, filosofia. A forma como encadeia o discurso deixa perceber que as suas leituras são a sua grande companhia. Só mais tarde, quase no final da conversa, percebo que também se interessa por futebol. Pelo futebol italiano, mas sobretudo pela história do futebol. Mundiais. Europeus. Finais da liga dos campeões. Leva-me consigo pelas suas memórias. E deixo-me ir. Guiado pela emoção com que fala do seu gosto pelo desporto.

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À medida que os copos do “branquinho” se vão acumulando na mesa, Giuseppe vai esquecendo um pouco o português. Refugiase no materno italiano, ainda que sem notar que o faz. Com maior ou menor dificuldade vou conseguindo deslindar o que diz. Mas o almoço já se arrasta há algumas horas e Giuseppe diz-me que tem de ir. Já não vai voltar às vendas hoje, mas tem de ir para casa. Há compromissos a cumprir. Nas despedidas pede-me que volte. Que traga mais perguntas. A companhia faz-lhe bem, e ajuda-o a esquecer os problemas de uma vida que não acredita que possa vir a ter um final feliz: “isso é nos filmes, que acontece”.

O vendedor da sorte A cerca de mil metros do posto de venda de Giuseppe encontro outro fantasma. Valdemar Matias, 63 anos, é um infortunado que vende a sorte na rua da Sofia. É cego. Afirma que lhe arrancaram os olhos há cerca de quarenta anos. Apesar de não gostar de falar sobre o assunto – porque “foi há muito tempo, não interessa isso. Já não se pode fazer nada!” –, confidencia que foi em Lisboa que lhe fizeram essa crueldade. Hoje em dia, e apesar das limitações impostas pela sua condição, diz-se feliz. “E isso é melhor do que ter dez milhões de fortunas guardadas num banco. Eu não junto dinheiro nenhum. Não preciso. Nunca tive mulher. Comigo é chapa ganha, chapa gasta”. O ponto de venda diário está situado em frente ao Centro Comercial Sofia. É ali, na fachada do antigo edifício conventual da ordem de S. Domingos – também conhecida como ordem dos pregadores – que o Valdemar apregoa aos ventos. Das centenas de pes-

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soas que diariamente lhe passam a cerca de um metro de distância, poucos são os que dão pela sua presença. As palavras algo enroladas, que dispara a um ritmo quase alucinante, são constantemente abafadas pelo ronco dos carros que vão passando. Muitas vezes dá a ideia que Valdemar fala para si. Não se percebe muito bem o que apregoa. Encostado à placa que marca o edifício como património histórico, também ele parece pertencer a um outro tempo. Distante. Longínquo. Esquecido no tempo. Apagado da memória das pessoas que não o viveram. E fora do campo visual da maioria que passa. Mas não das crianças. Há quem diga que estas têm mais sensibilidade para as coisas sobrenaturais. Que conseguem, inclusivamente, falar com seres que já não se encontram no mundo dos vivos. São mais tolerantes. A verdade é que esse dizer dos antigos faz-se notar quando se está perto de Valdemar. Não há criança que passe e que não veja o vendedor da sorte. Muitas vezes os adultos que as acompanham passam sem notar qualquer presença. Mas as crianças não. Despertalhes curiosidade aquele ser, que talvez não percebam ser real. E enquanto lhes é fisicamente possível, mantêm-se com os olhos colados em Valdemar que, indiferente a todas essas observações, mantém-se com a caixa de esmolas segura entre as duas mãos, e com as taludas entaladas entre os dedos. Há um senhor que passa, como tantos outros. Contudo, este abranda. Parece não ter a certeza se viu a lguma coisa. Hesita. Olha para trás e dá de caras com Valdemar. Não parece seguro do que vai fazer mas fala-lhe


quase ao ouvido. “Desculpe, qua nto cu sta c ada ta luda ? ”. “Cinco euros, ma s pode da r 600 mil!”, recebe como resposta. Entretanto diz qualquer coisa ao vendedor e afasta-se. Percebo que lhe deve ter dado a entender que lhe vai comprar as taludas pois Valdemar dobra-as entre os dedos e já não apregoa. Pa rece ca nta r, a gora. Ta lvez trautear seja a designação mais correcta. Poucos minutos volvidos, lá regressa o senhor com o mesmo ar hesitante. “Dê-me as duas, se faz favor.” “O sorteio é segunda-feira”, atira Valdemar como que adivinhando que o cliente não será um jogador assíduo. A nota de dez euros parece selar o negócio. Mas o comprador dá três passos e volta atrás. Parece continuar pouco seguro. “Tome, cinco euros para si”. “Muito obrigado, que Deus o ilumine e lhe dê muita sorte”. É assim sempre. Quando recebe u ma e smola a g radec e pronta mente. O passo seguinte é retirar a esmola da caixa. Prefere guardar no bolso. Mais tarde, à conversa com Valdemar percebo o porquê do ritual. “Já me roubaram a caixa algumas vezes. Por isso há dias em que não me vêem com ela. Tenho de arranjar outra.” Mas isso não o demove. Nem à sua fé. “Nunca ando sozinho”, afirma enquanto coloca a mão ao bolso da camisa. De lá sai um crucifixo do tamanho da palma da sua mão. “Tenho uma grande companhia, não sei se me está a entender”, confidencia-me quase num sussurro. À sua companhia vão clientes de todos os dias, que o tratam por “tu” e o brindam com muitas brincadeiras. Entrando na paródia Valdemar atira com um ar aprovador: “você está mais magro”, recebendo logo do outro

lado: “oh! Isso és tu que estas a ver mal”. Por entre brincadeiras Va ldema r não esquece o seu ofício: “Compre-me a lotaria. Esta é a última. Depois de a vender vou-me embora”. “Essa não. Dá-me uma das mais baratas”. “Toma. Essa moeda é de um ou de dois euros? ”, pergunta o cliente. “Esta é de dois”, atira sem qualquer tipo de hesitação. “Mas compre-me esta para eu me ir embora. Olhe que é o 69.” “Epa! Agora fizeste-me pensar. Dá cá isso. Eu deixei agora os 69 e entrei há dias nos 70, pode ser que tenha sorte”, afirma em tom justif icativo. Pagando a cautela testa mais uma vez as capacidades do vendedor: “Dáme dez euros, anda. Eu dei-te uma nota de 20.” “Não. Esta nota é de 10”. “Ora deixa cá ver”, pede o cliente enquanto troca a nota de dez por uma de vinte. “Então? É ou não de 20?” “Esta é, a que me deu antes era de dez”, diz selando a conversa com uma risada. Os “testes” não param. Entrando no centro comercial para beber um galão e comer um pão “com dente s” – sem nad a dent ro, leia-se –, tem direito a ma is um teste aos seus sentidos. Faz tudo sozinho, pede apenas que lhe ponham o açúcar no galão. A D. Conceição, talvez por ver o cliente de todos os dias acompa nhado por um “sobrinho” brinca com o senhor Valdemar: “Já tem açúcar, pode beber! ” Desconfiado tenta confirmar a informação através do olfacto, como se de vinho se tratasse. Em alerta, talvez pelo tom de voz que vem do outro lado do balcão, opta por colocar os lábios ao copo, soltando um sorriso de quem caiu em mais uma armadilha. As pessoas que estão no café riem-se com ele. Percebe-se que é uma pessoa da casa, e bastante querido de todos.

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“Seja ceguinho…” Não tendo troco de 10€, e prestando-se a sair em busca, D. Conceição é interrompida por Valdemar. “Eu tenho aqui dez euros”. Começa a tirar moedas dos bolsos até fazer a soma daquilo que precisa. “Estão aí dez euros Valdemar?” pergunta piscando o olho aos que assistem. “Seja ceguinho se não estão aí dez euros!”. A gargalhada é geral, e isso deixa Valdemar com um sorriso de dever cumprido. A certa altura acompanhando Valdemar até à sua paragem de todos os dias – e ouvindo os seus lamentos por este ser mais um dia de greve –, partilhei um pensamento com o meu companheiro de braço: “sinto que podia fechar os olhos e deixar-me guiar por si”. “Não tenha dúvidas. Pode fechar que eu guio-o onde quer que seja” – interrompe para me fazer parar antes de uma passadeira. “Agora ainda não pode passar”. “Este sinal já está avariado há uma data de tempo, devia apitar para os cegos se orientarem, mas não o faz há muito”. É realmente impressionante a facilidade com que este invisual se orienta na cidade. Ainda que o percurso que faz seja igual todos os dias, são seis as passadeiras que Valdemar tem de atravessar para ir do posto de trabalho até à paragem. Enquanto esperamos o autocarro que levará Valdemar a Antanhol, onde vive com uma irmã e o cunhado, este homem conta-me um pouco mais da sua vida. Fala-me principalmente da sua fé. Das suas rezas. Conta-me que “há rezas para tudo, mas têm de ser feitas no momento certo. E eu sei-as todas. Todos os dias antes de dormir rezo um terço, pelas pessoas que me dão esmola.”

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Nesse momento surge um autocarro indicando o destino que Valdemar pretende seguir. “Pronto, tenho de ir”, atira em jeito de despedida. Ao entrar no autocarro mais um laivo de boa disposição: “adeus, gostei de o ver”.

O engraxador de palavras José Manuel dos Santos, ou apenas “Zé Engraxador”, é um homem de 57 anos que, hoje em dia, pouco mais faz do que puxar o lustro às palavras. As mãos com que lida com o trabalho surgem escurecidas. Sinal do tempo de exposição à graxa. Ou se quisermos, a garantia da experiência de toda uma vida do ofício. Debaixo do bigode grisalho, e amarelado pelo tabaco, as palavras saem com a fluência de um rio de comportas abertas. E o sorriso, de dentição incompleta, não pede autorização para aparecer. Segundo faz questão de me dar logo a perceber, é a única pessoa em Coimbra que ainda se dedica exclusivamente à profissão de engraxador. Mas lamenta. Não gosta de ver a sua profissão de sempre a morrer. “A juventude não se quer agarrar a um ofício destes. Ninguém vai querer sujar as mãos com as pomadas, para limpar os sapatos dos outros”. Para exercer a sua profissão tem um pequeno quiosque, aberto de segunda a sábado, na Praça da República. E ali permanece incógnito. Quase invisível para os que passam. “Já faço parte da paisagem. Estou aqui neste mesmo sítio vai para 30 anos.” Quer tenha muitos, poucos, ou nenhuns clientes, é muito difícil ver este homem desanimado. Vai-se metendo com caras que vê todos os dias passarlhe diante da porta, e com quem

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tem dialectos, códigos e sinais que mais ninguém percebe. A conversa é, de facto, a sua maior companhia, e é assim que gosta de passar o tempo. Clientes? “ A crise também chega ao engraxador! Antes era capaz de ter uns cem por semana! Agora, se tiver 15 já fico satisfeito.” Hoje ainda não teve nenhum, mas não perde a esperança: “isto pode acontecer não ter nenhum de manhã, e depois à tarde aparecem-me aqui uns quatro ou cinco.”

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Afirma não ter horários. Mas, por norma, aparece às nove da manhã e, dependendo do dia, fecha portas entre as 17 e as 19 horas. Fala comigo sentado na cadeira onde se sentam os clientes. Uma cadeira marcada pelos sinais do tempo. “Se reparar é uma cadeira de barbeiro, mas foi adaptada para servir um engraxador. Foi-me dada pelo meu antigo patrão.” Bom pretexto para contar uma história que deve ser repetida a todos aqueles que procuram este engraxador,

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com o intuito de saber ma is sobre uma prof issão cada vez mais rara. Começou a trabalhar com treze anos numa sapataria que funcionava a vinte passos, do local onde hoje se encontra. Depois, quando o patrão decidiu fechar portas, abriu o caminho para Zézito – assim era carinhosamente tratado – iniciar o seu próprio negócio. A forma de iniciar o antigo pupilo no ofício foi dar-lhe a cadeira onde ainda hoje senta os clientes.

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A partir daí foi ver o Zé Engraxador ganhar nome e prestigio entre aqueles que gostam de ver os sapatos sempre a brilhar. Outra coisa que deve ao antigo patrão é um ensinamento que nunca mais esqueceu: “uns sapatos podem ser muito velhos, mas se andarem bem engraxados ninguém repara”. Quando está a puxar o lustro a um par de sapatos é isto que vai na cabeça de um homem que não se imagina numa outra profissão. “Sempre


gostei de fazer isto. Quando era miúdo adorava estar a ver um sapateiro a recuperar um sapato. Acho que sempre tive vocação para esta profissão.” Os clientes que o procuram são, quase sempre, de longa data. Contudo, “de vez em quando lá aparece um estudante que precisa dos sapatos engraxados para ir a uma cerimónia.” Essa é mais uma razão pela qual não acredita no futuro da profissão. “Agora estas gerações só querem

sapatilhas e chinelos. E mesmo os que têm sapatos não se importam de andar com eles todos sujos. Metem-nos debaixo da cama e nem se lembram deles”. Entre desabafos sempre marcados pela boa disposição, o engraxador lá confessa que lhe “custa ver passar um par de sapatos todos sujos”, mas conforma-se: “não há nada a fazer. São poucos os que ligam a isso.” Está na hora de fechar. Hoje não teve nenhum cliente. “Este tempo de chuva também não

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aju d a”, r e f e r e c on f or m a do. “Cá pa ra m im f u i eu que não lhe trouxe sorte”, brinco. “Nada disso ! Já lhe disse que há dias assim. Amanhã há-de ser melhor.” Enquanto fecha o quiosque conta-me que “há rituais que fazem um homem, e eu vou para o meu agora”, atira sorridente. Percebo do que fala. Durante as horas que passámos à conversa falou-me de um hábito que cumpre sempre que pode. Ir beber “um fino ou dois, até chegar a hora para apanhar o

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6”, que o leva a Santa Clara, onde mora. Enquanto espera que o sinal dos peões f ique verde, apoia-se na muleta de inox improvisada por um amigo. É essa que o ajuda na sua locomoção dif icultada por uma doença que o afectou quando tinha apenas três meses. “Não se esqueça de depois de acabar isso vir aqui pagar um caneco ao amigo”, exclama em jeito de despedida, soltando mais uma agradável gargalhada.

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O homem que se faz invisível Na rua da Sofia há uma banca que chama a atenção de quem passa. Por entre bonés, chapéus de senhora, guarda-chuvas, cintos, bolsas, cachecóis, e outras “quinquilharias”, um letreiro a vermelho se destaca: “Plastifico documentos a calor e aotoculante”. Por detrás da banca, quase camuflado pelos seus artigos está Raul Simões Cacho, de 73 anos de idade. Enfiado num chapéu igual aos que se encontram expostos, este homem parece querer ser invisível. E ali está. Há 50 anos no mesmo local, o Sr. Raul plastifica documentos ao calor, ao frio, à chuva. Actualmente, diz-me, “há poucos documentos para encartar”. “Hoje já arranjei um, se aparecerem mais dois é a minha sorte”. “Quando vim para cá era à bicha, nem via os carros passar, com tanta gente para plastificar cartões.” “Sabe, fui o primeiro a começar com este negócio aqui em Coimbra, depois outros meteram os olhos em mim e começaram a abrir por aí, mas

Associação CAIS CAIS é o nome de uma associação de solidariedade social sem fins lucrativos, que tem como missão contribuir para melhorar as condições de vida de pessoas sem lar, ou que são social ou economicamente vulneráveis. Fundada em 1994, os principais objectivos desta associação consistem em divulgar problemáticas como a pobreza e a exclusão social, e valorizar os beneficiários do sistema social enquanto elementos activos, implementando estratégias de intervenção adequadas às

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isto agora está muito fraco. Há poucos cartões para plastificar”. Permanecendo algum tempo ao lado do “sobrinho do Carne Assada”, como diz ser conhecido por muitos, apercebo-me que é um homem um pouco conformado com a vida que tem. Durante o tempo em que estou com ele não vejo nenhum cliente que se aproxime para plastificar um documento. Poucos são também aqueles que mostram vontade de comprar um qualquer artigo dos que se encontram expostos. E Raul pouco faz para mudar isso. Mantém-se quase incógnito por detrás de tantos adereços, sendo muito poucos os transeuntes que notam a sua presença. Apesar de trabalhar de segundafeira a domingo, diz que durante os dias da semana faz muito pouco dinheiro. “Ao sábado e ao domingo é que me safo melhor, vendo brinquedos no parque Manuel Braga, e aí corre melhor. De vez em quando aparece uma excursão e ganham-se umas coroas”. Actualmente o seu dia inicia-se bem cedo. Por volta das sete horas

necessidades das populações a que se dirigem. A revista com o nome da associação foi o primeiro projecto desta, tendo sido idealizada para ser vendida na rua por pessoas desfavorecidas, tentando constituir um primeiro passo para o início da vida activa. O conceito desta associação não é novo. A inspiração para a revista veio da publicação inglesa The Big Issue, criada em 1991, que tem os mesmos objectivos que a sua congénere portuguesa. Em termos editoriais a revista privilegia as temáticas sociais, culturais e científi-

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da manhã começa a montar a sua banca feita de madeira desgastada pelo tempo. “Tenho tanta freguesia que às vezes até me dá aqui o sono”, ironiza. Confrontando-o com o facto de estar num local onde passam por dia largas centenas de pessoas, o Sr. Raul queixa-se de que as pessoas não lhe passam cartão … literalmente: “Passa aqui muita gente, mas não querem nada comigo, não devem ter cartões para plastificar”. Questiono-o se faz algo para chamar a atenção das pessoas, e a resposta, vem num tom de total resignação: “não vale a pena”. “As pessoas passam aqui e nem me perguntam o que estou aqui a fazer”. “Mas faz alguma coisa para que as pessoas o vejam, e falem consigo? A mim parece-me que tem demasiadas coisas à sua frente, e as pessoas assim não se apercebem que está aqui”, digolhe eu tentando incitar alguma reacção. “Se as pessoas quiserem comprar, compram, tanto faz se anuncio ou não. E além disso se eu me chegar para trás consigo espreitar aqui pelos lados, não preciso de ver mais do que isto”, responde-me de pronto.

cas, sendo que o principal objectivo é o de despertar na opinião pública uma maior consciência para as formas de exclusão – como indica o subtítulo da publicação: “Desperta consciências”. Em Coimbra os centros de distribuição da revista são a Casa Abrigo Padre Américo e a Associação Integrar, e há dois vendedores acreditados.

Santa Casa da Misericórdia Remonta ao século XV o nascimento da instituição que hoje é conhecida como

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“O tempo está a arrefecer, com sorte vem aí trovoada na parte da tarde, e pode ser que venda uns guarda-chuvas.” A verdade é que a impressão que dá é que a esperança deste homem se reduz a ficar “à espera que chova”. Pela sua forma de estar, este personagem encarna tudo o que se pode associar a um grupo a que se poderia chamar os “Vencidos da Vida”. Obviamente que muito diferente do grupo homónimo que contava com nomes como Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, ou Guerra Junqueiro. Desde logo teria de ser diferente porque o senhor Raul não sabe ler. “Tenho pena porque gostava muito de saber ler, mas apenas sei escrever o meu nome”. Escreve o seu nome a muito custo. Numa das capas que serve para plastificar os documentos, aparecem, timidamente, algumas letras, que se arrastam e se percebe que formam o nome de Raul Simões Cacho. As iniciais de cada nome que é seu são feitas como se pertencessem a uma criança que aprendeu agora a escrever; contudo, as letras seguintes mais facilmente se confundiriam com simples rabiscos.

Santa Casa da Misericórdia. A iniciativa partiu da r a i n h a D . L e o n o r, p o r volta do longínquo ano de 1498, quando foi fundada a primeira misericórdia portuguesa. Desde sempre um dos principais objectivos da instituição passou pela “protecção dos enjeitados”. Por volta do ano de 1783, devido às dificuldades financeiras causadas, em parte, pelo número crescente de beneficiados das instituições, a Mesa da Misericórdia e os Hospitais Reais de Enfermos e Expostos solicitaram à Rainha D. Maria I a instituição da lotaria.


Hoje Raul está inquieto. “Tenho de ir fazer um telefonema e o rapaz da sopa dos pobres não aparece para ficar a tomar conta da banca”. “Sabe que isto não se pode deixar assim de qualquer maneira. Às vezes passam aí alguns indivíduos com electricidade nas mãos, e depois o prejuízo é meu”. Mais tarde do que esperaria o vendedor de quinquilharia – é assim que aparece na sua licença concedida pela câmara municipal – lá aparece o Rui, um rapaz que um pouco contra a sua vontade, lá f ica a tomar conta da banca. Raul sai quase a correr, e regressa da mesma forma, pouco mais de três minutos depois, já aliviado. O telefonema era para um armazém no Porto onde quer ir buscar “v ira-ventos, que se vendem muito bem para as crianças”. “Estou a ver que hoje não corre bem. Ainda por cima é a feira dos sete, passa aqui muito menos gente porque vão todos para lá. Mas quando não é isso são as lojas dos chineses, que nos tiram a clientela toda. A lei parece que está feita para eles”, queixa-se atirando umas migalhas de pão para

Desde então, os jogos que têm a chancela da Santa Casa da Misericórdia têm contribuído para melhorar a vida dos mais necessitados.

A imagem de marca da Misericórdia “Já foram mais de cinquenta, mas agora, atirando um número por cima, diria que não são mais de dez os vendedores de lotaria de Coimbra”. A afirmação é de Altino Maurício, gerente da Casa da Sorte de Coimbra. A verdade é que

o ar. “Gosto de ver os pombos a voarem para o chão, e além disso também precisam de comer, os coitadinhos”, diz-me em tom justificativo, mudando de assunto. Mas também há dias que correm melhor. Num dia cinzento decido ir fazer mais uma visita ao senhor Raul. “Então bom dia. Como está a correr o negócio hoje ? ” “Ainda não fiz nem um tostão”, responde com a r desiludido. “Mas hoje deve chover, pode ser que consiga vender uns guardachuvas”, respondo na tentativa de encorajar o vendedor. “Espero bem que tenha razão”, continua no mesmo tom. A chuva parece teimar em não ajudar Raul. Contudo, entretanto, aparece um cliente para plastificar um documento. E aqui descortino a principal diferença para com os outros fantasmas. Praticamente não há diálogo entre o vendedor e o cliente. Com o documento na mão Raul começa de imediato a trabalhar, e cerca de três minutos depois o serviço já se encontra pronto. Enquanto prepara o cartão para a operação, liga a máquina, que precisa de estar à temperatura

os cauteleiros – vendedores ambulantes de lotaria – são cada vez menos. Na opinião de Altino esta diminuição do número de vendedores deve-se ao aparecimento, em massa, de estabelecimentos de venda. Mas para este homem, que é o gerente de um dos maiores estabelecimentos de venda de lotaria, era preferível haver mais vendedores, do que postos de venda fixos. “Esses vendedores são a imagem de marca dos jogos da [Santa casa da] Misericórdia. São uma tradição, e tem toda a lógica que continuem a aparecer. Até

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de 110º centígrados para funcionar. O calor que emana do aparelho contrasta com a frieza da relação cliente/comerciante. Um mútuo “obrigado” sela a relação que nunca existiu. E cada um segue à sua vida. Pouco tempo depois uma senhora aproximase com o intuito de usufruir do que está anunciado no cartaz de letras vermelhas. Mais uma vez o diálogo quase não existe. Decido eu meter conversa com a senhora. Percebo que não é a primeira vez que utiliza os serviços do senhor Raul. “Quando preciso venho cá. Gosto muito do trabalho deste senhor, é muito perfeitinho. E está aqui mesmo a jeito. Eu sou funcionária judicial e dou aqui um salto. É muito rápido, e não conheço ninguém que faça o trabalho assim [a calor]. Dura muito mais tempo”. A conversa é curta. Dura o tempo da plastificação. No f inal, para Raul são mais 4,5€ ganhos. “Esta senhora já aqui tem vindo mais vezes, sabe que eu trabalho bem”, orgulha-se.

E outro. As pingas grossas obrigam muitos mais a abrigarem-se debaixo da mesma varanda que abriga Raul. Alguns resistem a comprar guarda-chuvas. “Espero que seja passageira! ”, atira um transeunte. “Espero que dure mu ito tempo ! ”, de ve pensa r Raul, para consigo. Uma senhora cansa-se da espera: “a como é o chapéu?”. “Quatro euros”, responde o vendedor agarrando um vermelho. “Dê-me antes um preto, se faz favor”. Assim é.

Já chove. Não passa muito tempo até aparecer o primeiro desprevenido na banca do vendedor.

A chuva abranda. Foram quatro os chapéus-de-chuva vendidos num espaço de vinte minutos. A ssim fosse todos os d ia s, e quiçá o senhor Raul fosse diferente. Ou talvez não. “Hoje está a correr melhor. Pode ser que seja um bom dia”, digo-lhe para o animar. “Era a única coisa que queria. Devia fazer vinte e quatro contos para poder ir ao Porto buscar material tão bonito que lá está num armazém”, responde lamentando-se, mais uma vez. “Vai ver que consegue, tem de acreditar”. “Oh! Crença na vida só vou ter quando morrer, quando estiver dentro do caixão”.

porque, tenho poucas dúvidas em relação a isso, esses vendedores vendem mais lotaria do que os estabelecimentos. Eles têm clientes fixos, que compram sempre os mesmos números. E além disso muita gente compra a lotaria porque sente que está a ajudar pessoas mais necessitadas. Afinal, foi com esse objectivo que foram criados estes jogos”. Apesar disto, Altino admite que são cada vez menos os que mostram interesse em entrar no negócio. Contudo, ressalva que “de vez em quando ainda entram ve n d e d o re s . So b re t u d o

senhores mais velhos que, chegados à reforma, não gostam de estar parados e vêem aqui uma oportunidade para passar o tempo e ganhar mais algum dinheiro.” Quando aparecem novos candidatos, “é feito um estudo, relativamente aos antecedentes do candidato, para verificar se é uma pessoa de confiança. Afinal este é um trabalho de grande responsabilidade”. Em termos de lucros para o vendedor, “dependendo da quantidade vendida”, ganham entre oito e dez por cento do que vendem.

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Levantados do chão Retratos do envelhecimento activo em Portugal

texto: Pedro Crisóstomo

São verdadeiras obras de vida, ponteiros de sabedoria, como cordas gastas e entrecruzadas. São gente de um país grisalho numa Europa grisalha que dá rosto aos números de uma população a viver mais anos com saúde e autonomia. Rostos de um país que caminha para o aumento da esperança média de vida, mas também para o adiamento da idade da reforma. Rostos de um país que é hoje o sétimo mais velho do mundo e que numa década pode chegar ao número cinco na contagem dos cabelos brancos. Rostos de um país de idosos em que a população com mais de 60 anos representa um quinto da sociedade e que até 2050 deverá aumentar para um terço. De um Portugal Atlântico e interior, povoado e despovoado, urbano e rural. Dos que foram à universidade e dos que fizeram a escola comercial. Dos que saíram de casa para trabalhar aos 12 anos e dos que juntaram 18 de descontos ao Estado. Dos que nunca tiveram um dia de desemprego e dos que tiveram de sair para o procurarem. Dos que vão à igreja e dos que não passam sem o café da tarde. Dos que dormem a sesta e dos que se levantam de manhã para a ginástica. Gente com rostos que se levantam do chão. Num “país feito de bocados” que nem a idade consegue unir. Maria Mendes Costa: pauzinho de cima a baixo, menina

de mochila às costas, o cabelo branco (risco à direita), fiozinho de trança (de criança), camisa esbatida, cintura fina, calças de ganga, botas castanhas. Os olhos habitam o sorriso dos lábios finos, com um brilhozinho nos olhos, é que hoje fez um amigo. Como fizera na véspera, de véspera ou até de quem já esqueceu o nome. Mas hoje fez um amigo e sempre ali a imagem da menina de mochila às costas na fila das cantinas. Haverá sempre alguém com quem possa conversar ao jantar. Hoje, foi carapau com batatas cozidas e salada, depois de uma sopa quente bem servida. O andar é ligeiro, desenvolto, rápido, sincopado, tão ágil que ultrapassaria – se competisse – o ponteiro dos segundos de um relógio apressado. Esse fora o desafio, como tantos, de outrora. Agora, tem tempo para se dar a si. Para os livros, para as aulas, para o teatro, para a ginástica, para a missa, para o jornal. Diz que é uma dinossaura, cuja idade não revela. “Sou uma dinossaura”. Se tem mais de 70 anos? “Oh, os dinossauros têm tanta idade”. Mais de 80? “Ai, têm muito mais… Os dinossauros têm muita idade”. Dinossauros como ela: os avós que aos setenta e tal se vão da lei da força dilatando; a senhora que teve a mãe até aos 89 anos e que hoje é também ela o corpo que nunca pára; a professora a chegar

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aos 90 que ainda tem cabeça para ensinar o português e a matemática; o lojista de 78 anos cujo império comercial é sinónimo de trabalhar de segunda a sexta-feira. São o Portugal de agora – “um país feito de bocados que nada consegue unir”, assim caracterizou um dia o historiador José Mattoso – e os sinais estão aí, contando os desafios que vêm de fora. Há 20 anos, as Nações Unidas proclamaram o primeiro de Outubro como o Dia Internacional do Envelhecimento. Desde então, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu o envelhecimento activo como proposta doutrinária – quanto mais activas física e mentalmente as pessoas forem durante a vida em geral, maior probabilidade têm de, no seu envelhecimento, se manterem activas desse ponto de vista, mesmo quando já se tenham tornado portadoras de algumas doenças. Actualmente, o tema é, a par com as alterações climáticas, a grande preocupação do século. E à proposta da OMS, os governos do mundo desenvolvido acrescentaram uma dimensão ideológica. Face às tendências de diminuição da população europeia, os chefes de Estado e de governo de uma União que, em 2005, era ainda a Vinte e Cinco assumiram o envelhecimento como um dos mais importantes desafios que a Europa teria de enfrentar: a

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sustentabilidade ameaçada dos sistemas de Segurança Social, o aumento da dependência dos idosos face a terceiros ou a resposta do sector da saúde. Maria Mendes Costa, a dinossaura em corpo de menina, parece ser o rosto desse modelo de envelhecimento activo que as projecções demográficas não mostram nos números e nos gráficos. Ali está, reformada, de mochila às costas, na fila das cantinas da universidade, em Coimbra, onde se formou em 1955 no mesmo dia que o marido. Deverá estar entre os 75 e os 80 anos. O aspecto magro da face e das mãos dá-lhe um ar frágil, compensado pela precisão das palavras enquanto conta estórias de alguém cujo tempo é uma jóia preciosa que controla nas horas e nos minutos. Foi professora de Física e Química durante 18 anos. Está por vezes “esquecida” – “Não contei? Pensava que já tinha contado” – mas tem o mapa das suas actividades diárias bem esquematizado. Quatro manhãs são para a ginástica. Se houver conferências, aulas abertas, colóquios, debates, tertúlias ou teatro, é apontar a data, a hora e o local. Se forem à tarde, é a mesma coisa. Depois, é a missa: “à segunda, quarta, quinta e domingo; à terça não”. Quanto às manhãs, explica numa expressão que torna o sorriso largo e os olhos miudinhos, só por culpa do “desgraçado” do Diário de Coimbra é que falha

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algumas “actividades”. “Aquele distribuidor faz perder a paciência: no outro dia, era meio-dia e meia ainda não tinha vindo”. Se chegasse a tempo do pequenoalmoço, Maria Mendes Costa aproveitaria o dobro. A primeira coisa que vê é a agenda. “Vêm aulas interessantes e depois… perder assim as coisas”. Quando era professora em Santa Clara já contestava esta dança. Não há muito, veio à universidade “um professor estrangeiro e não fui por causa daquele desgraçado”. Mágoa que não disfarça: “Fiquei triste”. Em sabendo, tinha pegado na mochila, arrastado caneta e papel e lá estaria misturada entre alunos e professores atenta às palavras do orador para no fim colocar o dedo no ar a interpelar a mesa. Indo “a estas coisas”, gosta mais quando come chocolate. “Estou mais alerta e o cérebro trabalha melhor”. Já aconteceu estar com dúvidas, querer perguntar e não saber como colocar a questão. Aconselha a comprar daquele que tem mais cacau, que “com chocolate a pessoa fica mais segura de si”. Ainda teve ideia de se inscrever num curso de estudos feministas, mas era “muito caro”. Para se redimir, assiste a algumas aulas de Filosofia, na Faculdade de Letras. Faz tudo como se fosse aluna de verdade. Não deixa de o ser; a única diferença está em que não faz os exames. De resto, vai às aulas, tira apontamentos, desce as escadas da faculdade para fazer fotocópias, consulta bibliografia. Passa horas nas livrarias, indo às prateleiras, como aprendera a fazer enquanto viveu nos Estados Unidos. Um destes dias, disseram-lhe “que era a melhor freguesa de uma Bertrand” da cidade. A paixão pelos livros vemlhe do pai, homem do Direito – ido para Leiria – onde, a 70 quilómetros, calculara ser mais

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fácil exercer a advocacia. É com os livros que faz amigos também. Quando vão na mochila, cuidado, não são para estragar. E outra coisa: o pai ensinara que a “caligrafia de uma pessoa diz muito sobre ela”. Algumas estórias têm pessoas dentro que parecem personagens desses livros que lê. Esta é uma: o orientador do doutoramento do marido, que conheceu em Inglaterra, era um judeu alemão que estivera alguns anos antes nos Estados Unidos a investigar num descampado. “Iam buscá-lo a ele e aos outros de manhã e levavam-nos a casa à noite, nem as famílias sabiam o que estavam a fazer”. Esses cientistas, conta, preparavam a primeira bomba nuclear que, em 1945, detonaria em Hiroshima. Rudolf Peierls – “a categoria do supervisor do meu marido”. Voltando aos livros, um autor que segue: Anselm Grün, padre beneditino alemão. Uma vez, soube que vinha a Portugal por um dia dar três conferências, em Fátima. “Ai, gostava tanto de ir, mas é só para padres”, pensou desolada. “Mas enchi-me de coragem e telefonei para Fátima; expliquei que era uma amante de Grün; fui muito diplomática, muito diplomática”. Foi, de resto, a única mulher entre os que escutavam. São estas “coisas” que partilha aos ziguezagues com uma energia desmedida. E hoje fez um amigo. Coração dado, cruzando tempos e pessoas. E tantas, tantas, que carrega nomes esquecidos na mochila azul. Esquecimentos destes – os défices de memória – são um denominador comum do processo de envelhecimento. Maria Mendes Costa não é excepção. “À medida que envelhecemos, vamos ter uma dificuldade cada vez maior na aquisição dos conhecimentos e na retenção de memórias relativamente a factos mais recentes. Aquela memória dos factos mais

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antigos e estruturados mantém-se mais tempo”, explica a neurologista Catarina Oliveira, docente na Faculdade de Medicina, em Coimbra, onde investiga sobre doenças associadas ao envelhecimento. “Se imaginarmos que, de repente, de um dia para o outro esquecemos tudo sobre nós, criamos uma extrema angústia e isso tem a ver com as grandes perturbações mentais”, acrescenta Margarida Pedroso de Lima, docente na mesma universidade, na área da Psicogerontologia – ciência que estuda o envelhecimento humano do ponto de vista da Psicologia. Não há uma idade a partir da qual podemos dizer que começamos a ficar velhos. “Envelhecer tem a ver com o acumular dos anos, simplesmente”, continua Pedroso de Lima. O que acontece, diz, é que a palavra é usada como um grande guarda-chuva, quando o que existe são construções sociais. Segundo definiu a OMS, a terceira idade tem início entre os 60 e os 65 anos. No caso português, considera Catarina Oliveira, que coordenou um estudo de perfil do envelhecimento da população portuguesa, divulgado em Março deste ano pelo Alto Comissário da Saúde [ver caixa], “para nós, o idoso está mais na faixa dos 70 anos”.

Aos setenta e a força que trazem nos braços Podiam viver em Coimbra, onde não se desfizeram da casa na qual construíram uma vida de muita força para pouco dinheiro. Ele como motorista dos bombeiros voluntários. Ela na distribuição de pão pela cidade. Cidade “pesada” que deixaram para outros. Vivem numa aldeia de Penacova, posta entre o Alva e o Mondego, “can-

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tinho” onde perdem as horas “aos bocaditos”. E muita força para pouco dinheiro. São, como tantos outros portugueses, gente que começou a trabalhar aos 11 e 12 anos e que seis décadas depois, na reforma, continua com o espírito em movimento, trabalhando para dar aos netos. Avós de netos que “não parecem ser netos deste tempo”: ele, Júlio, 75 anos; ela, Ermelinda, menos seis. Os avós Oliveira. Avós de um apelido que carrega as raízes e a força dos anos trabalhados “com dores de um lado e dores do outro”, as que hoje sentem. Árvores com o nome da família são 130, num terreno a uns cinco quilómetros de Friúmes – a aldeia. “Ainda vamos para cima das oliveiras”, conta Ermelinda com o entusiasmo de quem deixa as dores no colchão e se levanta às seis ou sete horas, porque é a fazer coisas – fazendo coisas – que se sentem verdadeiramente úteis. “Parece que é deus que nos dá força e coragem para continuar”, acredita esta mulher, que em pequena aprendeu a repartir com dois ou três uma sardinha que ia secando em cima de uma carqueja. Hoje, estão “um bocadinho melhor”, reconhece falando em frente ao marido, na sala da casa estreita de três andares que construíram na terra dele. “Fomos nós que a fomos construindo”. Júlio, da sua parte – como diz – trabalhou desde os 12 anos. “Nunca tive um dia de desemprego nem de doença”. Ma n u e l Vi l l a v e rd e C a b r a l , sociólogo e historiador, desde Novembro de 2009 coordenador do recente criado Instituto do Envelhecimento, na Universidade de Lisboa, parece conhecer o caso. “O que é grave no problema do envelhecimento é que a população portuguesa que hoje tem 70 anos começou a trabalhar com 12, reformou-se aos 60 com


50 anos de uma actividade profissional pouco enriquecedora e gratificante. Essa pessoa tem horizontes socioculturais limitados e – importante – no dia em que chega à reforma – os homens, sobretudo – não sabem o que fazer”. Júlio reformou-se há uma década. Está com 60 anos de Caixa. Não é de taberna nem de café. Sabe bem o que fazer. No lugar das memórias, é uma cabeça que guarda os pormenorezinhos todos, está tudo lá. As datas que falha são poucas. As que não sabe é porque, numa vida quase nos 76 anos, as coisas vão acontecendo, acontecendo e “pronto”. Diz a mulher, quase numa oração: “Ele tem a genica, aquela força de vontade”. Não seria de outra forma, ora 75 anos “é como o pardal, anda-se à vontade”, responde ele num riso prolongado que chama a atenção para a pele queimada do Sol. E continua: “Ninguém nos obriga a trabalhar, mas gosto. Gosto”. Regressam os dois à estória das oliveiras, essa que vai sendo também a da família, que vem ao fim-de-semana e assiste atenta ao que dizem: – Ainda subimos, é verdade – revive Ermelinda. – Uma vez, trazíamos três sacos num carro de mão. – O senhor sabe o que é? Um carro de mão, assim… – interrompe a mulher, que toma logo a vez do marido – Íamos no carro de mão, ele à frente a segurar os saquitos de azeitona por causa da ladeira. E isto tendo ele uma perna doente e reformada, depois de andar lá sobre os troncos e anéis a fazer cair as azeitonas. – Apanhadas por mim e pela minha mulher – repete Júlio. Pior é acartar os sacos de batatas. Dores de um lado, dores do outro. Mas batatas acartarão esquecendo o lamento, que

são para acompanhar a chanfana assada no forno da traseira da casa. “Se trabalho é porque gosto”, frisa Júlio mais uma vez. “Só não ando agarrado a um volante [de pesados], porque, primeiro, tenho 70 por cento de invalidez e, depois, só me deixaram a B e B1 [carta de ligeiros]”. Ermelinda não conduz há 30 anos (“ainda andei algum tempo a conduzir”), mas não vá ser preciso, tratou da renovação. As suas vidas são de uma organizada agitação de coisas para fazer (entre idas a Coimbra, onde mantêm a antiga casa, e a outra mais pequena num terreno próximo). Com a força que trazem nos braços, sentirem-se velhos? A resposta sai firme, resoluta: “Sinto… O peso dos 75 já os sinto bem nas costas”, assume Júlio. Continuar, continua a levantarse de madrugada. “Para cavar a terra”. Ou para aquelas estórias, as divertidas. Às vezes, ainda de noite, levanta-se para escrever no diário. Assim: “sulfato, morreu o Manel, a Maria, no mês tal tenho de pagar o seguro da casa, do carro, o selo”. Chega a estar “uma ou duas horas acordado” nisto, comenta a mulher. Dorme pouco, mas o esforço é recompensado na hora de maior calor. “Sonequinha à tarde” – confessa – “uma, duas horas ninguém me tira”. Voltando ao que foram, é Ermelinda quem fala agora: “Com nove anos de idade, tive que ir trabalhar descalça e com os farrapos que me davam para Coimbra, em Santo António dos Olivais. Era tão pequena que olhava para o monte em frente e pensava que era Paradela da Cortiça, onde eu nasci, e gritava a chamar a minha mãe”. As palavras correm num respirar emocionado que os olhos tentam conter. “Quando fiz a comunhão, andávamos descalças. O vestido foi feito de pano de lençol; a sola das sandálias de uma caixa de papelão daquele

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castanho; e, por cima, umas tiras de pano. Na igreja ainda tinha as sandálias; quando vim para fora, já não as tinha”. O ar pesado sustém segundos de tensão na sala onde, à mesa, abre as gavetas da memória. Mais uma abrirá, presa à revolta latente. Estava já casada. Vivia numa casinha no Beco do Fanado, no Terreiro da Erva, em Coimbra, “dividida com cortinas – o meu marido deve estar lembrado – que até parecia uma casinha de bonecas”. Recebeu, um dia, um postal com o nome dos dois para se apresentarem na assistência social. Era o tempo em que, para vestir, “ia fazendo velhonovo”. Vestiu fato domingueiro. “A senhora da assistência social mirou-me dos pés à cabeça”. A ajuda foi essa resposta do olhar. Ermelinda nunca mais quis nada com a assistência social. Júlio Oliveira está lembrado, sim. São estórias que não se esquecem jamais. Num resgate brusco, monologa ele a seguir as suas. Esta foi a seguir a 1957, depois de ter feito a tropa e entrado nos bombeiros: “Veio uma mobilização para Santa Margarida. Não tinha dinheiro. Já na altura havia crise. Levei 60 escudos no bolso. Andei lá 47 dias. Sabe como é que fazia para me barbear? Ia aos balneários, apanhava os restos de sabão e as lâminas que os outros deitavam fora e era assim”.

Volver à terra, precisamos de imigrantes Na Beira, subindo a Trancoso, é a mesma força que pouco deixa tombar. Na aldeia que já não tem portas onde bater, Palmira Varelas está quase sempre para além da porta de casa. Três horas bastarão para percorrer a vinha a direito, com 16 litros

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de sulfato às costas, boné brancoazul na cabeça, bolsa presa na cintura. De longe, é uma formiga de mochila carregada a caminho da escola. Sulfata, sulfata. Rega cada pé de videira sem deixar um para trás. Vai vendo onde não há pegadas para saber as que estão por cumprimentar. “As folhas são os pulmões da videira. As pedras os ossos da vinha”. Chamar sulfato ao que lhes põe “não é bem”. Mais bem dito: é mirra, um pó branco que se mistura com água, o mesmo que se deita à batateira e ao tomateiro. Palmira Varelas é o corpo que nunca pára. Setenta e seis anos e aquele carrego pela espinha cima a baixo, cima a baixo, a percorrer 1600 videiras. A mãe Domingas faria em 2010 cem anos. Morreu aos 89. De saúde, lúcida, lúcida, com o andar da bengala. Fazia renda e cantava. Se a genica de Palmira é de família? “Nunca vi aquela mulher parada. Trabalha, não tem necessidade daquilo e depois anda cansada”, aponta uma amiga, Maria Arminda Almeida, um ano mais velha. Se o diz é porque sabe. “Estou velhota”. Palmira: sempre na vinha, sempre na horta. Batatas, alhos, favas, ervilhas, tomates, morangos, maçãs, ameixas, peras, framboesas, cerejas. Até o Presidente da República provou das suas na última visita a Trancoso. É este um dos reinos maravilhosos de Miguel Torga. Escreve assim em Portugal: “Cônscio dessa força telúrica, o homem beirão tira dela todo o proveito possível”. Não é, pois, só genica de família. Há também ali “um mundo inteiro seu para sonhar e para se refugiar”, acentua o escritor. Sonhar, Palmira sonha. Refugiarse é na vinha. Se houver dia em que não enfia as botas de montanha, das duas uma: ou não está em Moreira de Rei – é aqui a sua terra – ou alguma coisa

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aconteceu. Sete da manhã e lá foi à vinha. Deixou o neto a dormir, “coitadinho”. “O Pantufa é o neto da Palmira”, dizia no café da aldeia, na véspera, uma prima de 89 anos. Neta, Palmira tem uma, mas está longe com a mãe. E ele, “coitadinho, está sempre a dormir”. Um cão de pêlo preto comprido e encaracolado, agora tosquiado e com frio. Um espectador da ficção nacional, à noite. Um companheiro para o café, de manhã e à tarde. O almoço é por volta do meiodia. A casa cheira a maçãs e lenha queimada. A seguir ao almoço, voltará à vinha. São vinte minutos/meia hora de caminho no ritmo que leva. Uma ida e um regresso de manhã, mais dois à tarde – quase duas horas de exercício a cada dia. A trabalhar o dia inteiro. Foi assim nos 32 anos em que este ve emigrada em Fra nç a. Havia enviuvado aos 27. Cabelo louro, olhos azuis, pele muito límpida. E uma filha de cinco anos nos braços. Seis anos depois, nesse f im de Janeiro de 1968, foi a salto para Paris. Por cinco contos, pagou a uma passadora. “Deixei a frogonete, tudo”. Atravessou uma vinha a pé, na raia, em Vilar Formoso, com mais cinco mulheres. Em Maio, tremeu com a “grande revolução dos estudantes”, altura em que o pouco francês que sabia a obrigava a falar em língua gestual. Foi aprendendo. Esteve na casa de uma marquesa, depois na de uma argentina. Quiseram levá-la para Itália. Até 2000, foi empregada de limpeza na casa de uma condessa belga. Vivia (dormia) num quarto no prédio dos patrões. “Passei muito, homem”. O resto é o que se sabe.

Quarenta anos volvidos, o melhor que Portugal pode fazer, entende Manuel Villaverde Cabral, é receber imigrantes. “Há 10 anos que entrámos em estagnação económica e não temos imigrantes; antes pelo contrário, estamos a ter emigrantes, o que é um factor de envelhecimento conhecido. Portugal teve sempre uma atitude muito pouco inteligente e clarividente a este respeito. Somos o sétimo país mais envelhecido do mundo e prevejo que daqui a 10 anos vamos estar dentro dos cinco primeiros”. Em contrapartida, perspectiva o sociólogo, as pessoas que vão ter 60 anos daqui a 40 “são pessoas com capital escolar, com uma informação e uma formação que lhes permite pensar que se comportarão de forma mais inteligente do que nos temos comportado até agora perante o fenómeno”. “Provavelmente”, adensa Catarina Oliveira, “vão ter mais autonomia, no sentido em que dominam muito melhor a tecnologia e sabem manusear muito bem um computador”. É o idoso “capaz de gerir todos os processos que temos actualmente”. Por enquanto, sentencia Palmira Varelas, “nós, morrendo, acabou, é um canudo”. Por isso, reza e canta a Maria: “Enquanto houver portugueses, tu serás o seu amor”, entoa com as 13 senhoras que vão nesse meio de Maio, mês de Maria, ao terço das oito da noite à igreja de Moreira de Rei. Se Maria Mendes Costa ali estivesse, rezaria. Em Coimbra, também é em actividades religiosas que procura ocupar o tempo, percorrendo os cantos à sua cidade de sempre. Enquanto aponta o dedo indicador para

cima, como se falasse ao céu, revela que algumas das actividades nas Irmãs do Sagrado Coração de Jesus são só para quem tem menos de 25 anos. Compreende que assim seja – “os Jesuítas apostam nos novos” –, mas é uma pena que lhe vai ficando cravada. Há dois, três anos, decidiu ir a Fátima a pé. Terminou a caminhada de carro, não que lhe doessem as pernas ou os pés. “Não, não foi por razões físicas”, atalha, passando a explicar: “Ia a caminhar. Não tinha promessa. Só queria ver como era. A certa altura, comecei a interrogar-me que sentido fazia ir a Fátima a pé. As pessoas adoram a nossa senhora de Fátima como se fosse deus, mas, para mim, nossa senhora é uma coisa e deus é outra”. Chegou ao santuário dando “a água, a fruta e o pão” aos peregrinos.

Aos noventa, descascando palavras O caminho de Idalina Santiago tem sido outro, aos 89 anos, mais feito em casa do que na estrada. Na noite anterior, antes de adormecer, já no quarto, seguia interessada um artigo de uma viagem de Gonçalo M. Tavares a Moscovo e S. Petersburgo. Tinha lido metade e eis que lhe surge uma dúvida colossal na construção de uma frase. Pega no lápis que tem o cuidado de pôr “no cabeceiro” para situações semelhantes (acontece não raras vezes, confessa) e, numa folha pautada, decompõe sintacticamente, uma a uma, as palavras da frase. «Foi em cadernos como o que traz agora que começou a escrever pequenos

textos que, depois, abandonava». “Quero dizer, leio e, sem querer, analiso”. Andou intrigada sem saber o que era aquele segundo «que» até meio da tarde do dia seguinte. Idalina Santiago ensinou durante 40 anos. Vinte em três escolas de Pataias, concelho de Alcobaça, outras duas décadas na Nazaré. Continua a ensinar, em Peniche, onde vive, a quem lhe bate à porta por afinidade. Ensina língua portuguesa, matemática, história ou outras matérias que tiver de aprender para ensinar. Enquanto as sobrinhas se prendem à televisão, vai ao corredor buscar os cadernos da escola, de 1931 e 1932, de quando andava nas terceira e quarta classes. As relíquias encerram cada uma sua estória. Nas páginas dos livros estão desenhos coloridos seus de quando era aluna da mãe: o açucareiro em estanho do lar, o chapéu do padrasto, a caixa métrica da escola, onde estavam guardados os sólidos, os pesos, a balança. E está lembrada de todos esses objectos? “De todos. Estou tão satisfeita de ter guardado isto”. Margarida Pedroso de Lima lembra que “se tivermos uma determinada actividade intelectual – se fizermos Sudoku ou exercícios semelhantes – é óptimo para prevenir o declínio da memória”. Idalina deixou, agora, de assinar o Jornal de Letras. As letras – não as da vida, mas as do jornal – parecem-lhe tão pequenas, ao contrário das outras, que os olhos cansam só de folhear. Mas a Visão ainda vem todas as semanas. Hoje, foi a sobrinha de 14 anos que lha trouxe. Poupou-lhe uma descida ao correio, no andar de

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baixo, que já de manhã saíra às compras, e ainda as vai descer e subir por uma vez para pedir uma bica cheia no café que dobra a esquina. É só atravessar a rua de seguida e andar uns passos que não chega a dois minutos. Bica: é cheia, pois, e com açúcar. Quando era nova era sem açúcar, mas foi só descobrir como era melhor assim e passou a deitálo sempre. O pão, ao lanche, trocou-o por pequenas tostas. Tomadas com leite achocolatado. De pacote. Mas deitado na chávena, como se bebe o chá. Quando é para ter a televisão ligada, é na SIC Notícias. Neste momento está na MTV, mudaram as sobrinhas de canal, mas se Idalina Santiago fosse mãe delas não as deixava estar assim a ver a pop com o volume tão alto. Quem passasse na rua do Sol e ali entrasse por uns segundos, diria que a tia ouve melhor do que as sobrinhas. Para elas, faz uma panela de sopa cheia todos os dias, mesmo quando, no Verão, vai à praia dois meses seguidos. Elas adoram a de nabiças, que leva arroz, umas vezes com cenoura, outras só com batata. Da cozinha à sala chega em cinco segundos. Quando o Parlamento ainda “eram tempos”, acompanhava tudo. Hoje, acompanha pela televisão e discute. O coração bate mais do lado esquerdo. Guarda um recorte do Diário de Lisboa dos anos 80 de uma notícia em que era relatado o célebre episódio em que Natália Correia proferiu o poema do “truca truca” ao deputado João Morgado. Isto foi já muito depois de começar a ler jornais, porque nos primeiros anos de casada empenhava-se mais nos romances.

Na literatura, venera José Saramago, de quem tem todos os livros. Jangada de Pedra foi o primeiro que leu; Caim já o arrumou no armário pesado da sala, ao lado dos outros. Do novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa, não faz conta de aprender. Pouco a incomoda: à hora que diz estas palavras já havia descoberto que o tal «que» do escritor se tratava de um sujeito subentendido.

Esquecer-se da idade da reforma Ideias: sempre teve muitas ideias. “Como em qualquer idade, pensamos em fazer coisas”. Porte alto e magro, é com uma voz calma e ponderada que Jorge Manuel Mendes descreve os dias de trabalho, aos 78 anos, na gerência do negócio que na sceu pela mão do pai e que ele fez crescer somando lojas na Praça do Comércio, em Coimbra. Só ali tem quatro. “Digo que a quinta é a do meu sobrinho”, também na praça. Entra às dez e sai à uma; volta às quatro e sai às sete. Atente telefonemas de clientes, reúne com fornecedores, confere papéis – está a par de tudo. Tem a ajuda do filho, Jorge como ele, já o pai se chamava assim e um sobrinho a mesma coisa. É o «Senhor Manuel», para evitar que tropecem no outro nome. Chega do lanche com tecidos nas mãos. Circula vertical entre os funcionários da loja – “todos de quarenta e poucos anos para baixo” – equipa dedicada e na qua l sente conf ia nç a. Seg ue para o escritório, onde se concentra a conferir papéis com

uma caneta preta e outra vermelha. “Avance com isto rápido”, apela devagar para um funcionário. “Veja-me aí o telefone”, pede a outra. Antigamente, entrava às oito horas. Agora, mesmo chegando mais tarde, trabalhar é uma necessidade. E é uma coisa curiosa, diz, “quando chegamos ao fim-desemana, esses dois dias tornam-se muito mais atractivos, porque precisamos de descansar ou queremos passear”. Comenta o sociólogo Manuel Villaverde Cabral a este propósito: “Nos países desenvolvidos, os idosos são um mercado fant á st ic o. No nosso, têm e st a c ond iç ão socia l acu mu lad a , reformas muito baixas, e nem sequer beneficiam do interesse que o mercado pudesse ter: são votados a uma espécie de esquecimento”. O senhor Manuel, o da loja, não se imagina a estar em casa frente à televisão. “Infelizmente, tive um período em que deixei de trabalhar por estar adoentado”. Logo que pôde, voltou à Praça Velha. Foi quando o pai faleceu que tomou a gerência da firma, com o irmão Júlio. “Ora, eu tinha 33 anos”, atira sem uma ponta de incerteza. E, pegando numa folha rosa por estrear, faz uma conta rápida para confirmar no papel quantos anos passaram até chegar a 2010. Impressionam os quatro segundos do raciocínio, quase de cabeça, só recorrendo à caneta para confirmar a conta. “Ora, 78, 33, cinco, quatro: o meu pai faleceu há 45 anos”. O dia em que se reformou oficialmente no papel não recorda. “Aconteceu até uma coisa engraçada. Andei a pagar o bilhete

inteiro dos comboios sem ter conhecimento de que já tinha desconto de reformado”. Nunca sentiu essa passagem formal, porque “na altura trabalhava a 100 por cento”, dez horas por dia. Conduz “perfeitamente”. Perdeu a carta, esquecido de que tinha uma data limite para renovar o título. Deixou passar o dia, uma carga de trabalhos que lhe valeu dois meses sem documentos. E um exame de condução. “Tive a sorte de fazer duas aulas para perder os vícios. Estou convencido de que reprovava se não as tivesse feito”. Se não lhe tivessem renovado a carta, não havia percorrido os 250 quilómetros ao volante até Trás-os-Montes no fim-de-semana anterior. Os hábitos do café da manhã e a seguir ao almoço mantém. “Quando era novito, era bastante frágil”, mas os anos dedicados ao desporto, sobretudo ao basquetebol, favoreceram imenso. Era um mau atleta, ajuíza em nome próprio, ma s uma dedicação enorme. Os grandes amigos de hoje são os da escola comercial e os do desporto. Mas também os que, ao passarem à porta da loja, batendo a chuva na calçada da Praça Velha, sobem o degrau da entrada para o cumprimentar. “Este”, o amigo Mário, “tem 92 anos. Ainda conduz e, no Verão, vai para o Algarve passar férias de carro sozinho”, resume o senhor Manuel. Agora, sentar-se para conversar assim do nada sobre uma vida? Responde o amigo Mário que não. Chove. Mesmo se estivesse bom tempo. E, agora, vai jantar. No fundo, aos 92, é como os outros: tem mais que fazer.

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O QUE É O ENVELHECIMENTO ACTIVO?

O PERFIL DO ENVELHECIMENTO

Para além das recomendações de actividade física e intelectual máxima ao longo da vida, propostas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o envelhecimento activo é também uma doutrina com uma dimensão ideológica e económica. Nas palavras do sociólogo Manuel Villaverde Cabral, “o facto de o envelhecimento activo surgir no momento em que os factores demográficos e económicos colocam sobre pressão a sustentabilidade do sistema de saúde e da segurança social” evidencia que a doutrina vem ideologicamente em apoio das propostas liberais de prolongamento da idade da reforma”. Na verdade, “quanto mais saudável e activa for a vida de uma pessoa, os custos económicos acabam sempre por ser reduzidos”, pela diminuição dos encargos de saúde ao Estado. Num olhar balançado entre as duas dimensões, Villaverde Cabral atira: “Fazer as pessoas levantar o rabo da cadeira, desligar a televisão e ir para a rua é claro que não se decreta por lei”.

Dados divulgados em Março de 2010 pelo Alto Comissariado da Saúde mostram que são poucas as pessoas com mais de 55 anos (apenas cerca de 1 por cento) que precisam do apoio de utensílios ou de terceiros para andarem em casa e na rua, ou para se vestirem, despirem, levantarem ou sentarem. Realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em colaboração com a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, o estudo traça o perfil do envelhecimento da população portuguesa centrando variáveis como a saúde física e mental e a autonomia dos indivíduos. Fazer compras, usar o telefone, gerir o dinheiro, tomar medicamentos, conduzir ou utilizar transportes públicos são tarefas já consideradas situações desfavoráveis para 20 por cento dos avaliados. No que toca à locomoção, os homens apresentam uma percentagem de situações menos desfavoráveis do que as mulheres: meio por cento para eles, contra dois por cento para elas. No entanto, comparando com os exemplos de autonomia instrumental (acima enumerados), são os homens que estão associados a uma percentagem maior de situações desfavoráveis. A diferença é superior a 30 por cento: 38 para eles, 7,7 para elas.

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O PROBLEMA DO ENVELHECIMENTO É TAMBÉM O DA SEGURANÇA SOCIAL O chanceler alemão Otto Bismarck foi, em 1889, o primeiro a definir um programa de segurança social para as pessoas idosas, estabelecendo os 70 anos como a idade da reforma. Só em 1916 é que esse tecto baixou para os 65. Para a psicóloga na área do envelhecimento Margarida Pedroso de Lima, “uma idade obrigatória de reforma é uma coisa estranha”, quando deveria “haver a possibilidade de alguém poder diminuir o tempo de trabalho ou até deixar de trabalhar”. As perspectivas, no entanto, são para que o aumento da esperança média de vida conduza ao adiamento da idade da reforma, dos actuais 65 para os 70 anos. Nas últimas décadas, a sustentabilidade do sistema de Segurança Social foi sendo ameaçada pelas tendências demográficas. Um estudo da Universidade Nova perspectiva que, em 2035, quem tiver 40 anos de carreira poderá ter de trabalhar mais 14 meses para além dos 65 anos, para receber a pensão na totalidade. Por outro lado, observa o responsável do Instituto do Envelhecimento, todos os Estados querem que façamos economias para além das reformas e isso, acredita, “em breve virá”, com a aplicação de um patamar no valor da reforma para todos os cidadãos. Junho de 2010 Reportagem

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á

muito que não via nuvens cor-de-rosa. O anunciar da trovoada em todo o seu esplendor enquanto o sol adormece. Cor-de-rosa é uma palavra estranha. As nuvens que vejo não são brancas, muito menos amarelas ou vermelhas (será que inventaram estas palavras mais cedo?) Metáforas e mais metáforas, descontextualizadas nesta esplanada entorpecida pelo frio cortante. Olho para o resto do teu abatanado e pergunto-me como vais hoje dormir, enquanto tu te ris apenas com os lábios. Sim, porque quando te ris mesmo eles fecham-se. Os teus olhos fecham-se, cúmplices desse espasmo genuíno que te leva a inclinar a cabeça para o céu e a soltares aquela gargalhada que vale por qualquer outro som. A noite cai, lenta na sua performance. O frio torna-se insuportável, já mal consigo sentir os dedos, já mal consigo acender o isqueiro. Olho para as nuvens cor de alguma coisa enquanto passo distraidamente a chávena escaldada de uma mão para a outra. Tu levantas-te para pagar, impenetrável, farta do vento, dos pombos, de tudo aquilo de que também eu estou farta e só tu sabes. Fugimos da rua com passadas largas, tentando confundir o ar gélido que nos conhece tão bem. Tu segues ao meu lado, irritada, mal dizendo tudo o que vai desde o inverno até aos trópicos. Eu ouço e nada digo. Tu continuas e não entendes a minha calma. Eu ouço e nada digo, rio-me também com os dentes cerrados, só para não dar parte fraca. Balbucio algo incompreensível para ti que abotoas furiosamente o casaco até cima. Eu noto e nada digo, guardo as palavras sussurradas para as muitas cartas que ainda não te escrevi, enquanto tu corres para chegar primeiro. Numa tentativa de mostrar que apenas te insurges contra o que realmente vale a pena.

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Crónica


s frias

漏 Pedro Israel

Eliana Neves

Cr贸nica

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Š Pedro Pardal 60

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Cartoon


Cartoon

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j o r n a l i s m o

o

p r i m e i r o

Pedro Cris贸stomo

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e s b o 莽 o

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h i s t 贸 r i a


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