Cortesia Marco Pedrosa
Eugenio Scalfari
d a
un certain regard sobre Michaël Borremans
e s b o ç o
jornalismo económico, a fusão das palavras e dos números
p r i m e i r o
dos livros ao cinema
o
entrevista a Lídia Jorge e José Mário Branco
é
aqui dentro
j o r n a l i s m o
Marco Pedrosa
o h i s t ó r i a
“jornalista é uma pessoa que diz às pessoas o que se passa com elas”
(Pรกgina deixada propositadamente em branco)
instituto de estudos
02
c ader nosdejor nalismo
jornalísticos colégio de s. jerónimo e-mail: iejfl@ci.uc.pt
n02
fev
09
www.uc.pt/iej imprensa da universidade de coimbra rua da ilha 3001-451 coimbra e-mail: imprensauc@ci.uc.pt www.uc.pt/imprensa_uc
cadernosdejornalismo.uc.pt
Reportagens As mães dos filhos que nunca crescem . 2 A escola é um mundo à parte,
a escola é parte de tudo . 10
Percursos Colorir vidas . 15 Pontapés no destino . 16 A Ferreirinha de Fernando Pó . 18
Entrevistas Possivelmente os escritores são pessoas
com um traço histérico . 20
E improvavelmente ser feliz... 30
Best of Jornalismo Económico
A fusão das palavras e dos números . 36
Por falar em [ Adaptações ] Um Homem no Espaço!
“Vou embrenhar-me” em mim . 46
O Pintor do Espaço
Expiação . 48
L a n ç a - s e n o Va z i o ! , 19 6 0 . O sonho de voar é uma
Esta história não é para fracos . 49
das mais antigas fantasias da Humanidade. Com o
Un certain regard
s e u S a l t o n o Va z i o , Y v e s Klein apropria-se desse
Simplesmente estranha .
sonho, dando -nos simul-
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Um murro no estômago .
taneamente um retrato do seu universo ar tístico.
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O indecifrável mundo de
Imagem colhida de uma
foto de Harr y Shunk.
Reportagens
Michaël Borremans .
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Repor tagem
Cármen, Maria José, Ana, Maria João ou Rosa. São mães especiais, de filhos especiais. Deram à luz mas nunca cortaram o cordão umbilical. Temem mais o passar do tempo de que qualquer outra pessoa. Para elas envelhecer e morrer significa deixar um filho ao abandono. “Rotinas” e “descompensar” são palavras constantes quando falam dos filhos. Estão habituadas a correr entre o trabalho, as consultas médicas e a hora da medicação. A cumprir as estranhas exigências de crianças que não conseguem perceber como é que o mundo funciona. A lidar com os olhares reprovadores daqueles que ao presenciarem uma birra sem motivo destas crianças confundem autismo com falta de educação. São muitas vezes, na boca dos que desconhecem a estória, “mães que não souberam dar educação aos filhos”. São as mães dos meninos
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As mães dos f ilhos que nunca crescem que não têm afectos. São as mães que nunca são olhadas nos olhos pelos filhos. São mulheres cansadas a quem o sonho da maternidade trouxe amor mas também um fardo pesado. Têm depressões e esgotamentos, úlceras no estômago e prematuros cabelos brancos. Muitas delas são pai e mãe ao mesmo tempo, porque o pai foi embora juntamente com o desmoronar do sonho de uma família “normal”. Já não choram. Algumas nunca choraram. Porque “não houve tempo para isso”. São mães de autistas. Mães que nunca acabam de dar os filhos à luz, porque eles nunca deixam de depender delas para continuar vivos. Sem falarem, sem noção do perigo, sem estabelecerem relações sociais e, muitas vezes, recusando-se a comer, são assim os filhos autistas. Que nunca crescem. texto: Martha Mendes
Filho, quem dá conselho Ao meu coração angustiado? Filho, porque não respondes? Filho, porque te escondes Do peito que te aleitou?
Jacopone da Todi In: Donna de Paradiso
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Gabriel, Afonso Pedro, João ou Miguel. São os filhos especiais destas mães especiais. Como diz Gabriel, no seu modo atrapalhado de falar, são “aupistas”. São bebés, crianças e jovens que nunca interiorizaram as regras do mundo porque estas não lhes dizem nada. “Imagine que o seu filho nunca passava dos dois anos por mais que o tempo passasse por ele”. É este o drama de Cármen Cristino, 35 anos, que confessa só ter sido uma “mãe normal” até o Gabriel fazer dois anos. “Porque é como se eles ficassem parados nesta fase. Crescem, mas continuam sem saber apertar os atacadores, vestirse para a escola, temer uma estrada movimentada, estar num sítio público sem incomodar os outros”, explica Cármen. Morena, bonita, jovem, teve o filho cedo. Foi mãe aos dezanove anos. Agora, dezasseis anos depois, caminha pela maternidade com o mesmo passo inseguro do início. O tempo não lhe trouxe paz. Pelo contrário. Gabriel acabou por ter um retrocesso muito superior aos frágeis progressos que teve com o início do acompanhamento médico. Só hoje, 14 anos depois do diagnóstico, Gabriel consegue apertar os botões da camisa sem a ajuda da mãe. Mas no início “os médicos garantiam que ele era um autista com muito espaço de progressão”, recorda. Maria José, 53 anos, lembra o tempo em que ia buscar o filho Afonso, actualmente com 17, ao infantário. Fala e conta como lhe doía o facto de o filho não a olhar nos olhos, por mais que ela brincasse com ele. “Ele sabia que eu tinha chegado, mas não vinha ter comigo, nem sequer olhava para mim”, diz com um à-vontade que impressiona. “Aliás, ele não olhava para ninguém. E ainda hoje não olha”. Os carinhos também ficavam sem resposta. Afonso recebe os abraços da mãe de braços colados ao corpo e aceita os seus beijos como se não os sentisse na pele. Nem no coração. Maria João, 37 anos, é mãe de João, oito anos. Aos dois deixou de falar. Foi a fase de maior isolamento da criança. “Ele queria era fazer puzzles, ler livros e estar ao computador, pouco mais”, conta a mãe. Hoje está “melhor”, mas a recusa em alinhar nas brincadeiras das outras crianças, que não entende, ainda se mantém: “jogar à bola no recreio nem pensar e as brincadeiras dos empurrões e das rasteiras, para ele, é uma doença”, conta Maria João que sorri orgulhosa enquanto acrescenta: “ele acha que os outros meninos é que não funcionam bem, não ele”. E aí, João isola-se. Seis anos depois do filho se ter calado para o mundo os médicos ainda não sabem definir com rigor o espectro autista que o atinge. Uns apontam para a Perturbação de Asperger, um grau “mais suave” de autismo, que permite ao doente alguma interacção social e um desenvolvimento mais consistente da fala. É neste diagnóstico que Maria João acredita. Ou quer acreditar. O Miguel é gémeo do Tiago. Ambos estiveram seis meses e meio (27 semanas) na barriga de Rosa. Depois nasceram prematuros. Miguel tinha apenas 900 gramas quando viu a luz pela primeira vez. Mas para Rosa, 37 anos, “é como se ele ainda não tivesse saído daqui”, explica melancólica, enquanto acaricia a própria barriga. Aos 3 anos e meio Miguel quase não fala, não brinca e é “extremamente inexpressivo”. Para comer é um problema: “tudo lhe faz confusão no prato; ao jantar come um fio de esparguete e dá a refeição por terminada”. Relações de afecto só mesmo com a mãe e o irmão, que conheceu ainda antes de viver fora de Rosa. Miguel e Tiago partilham tudo, mesmo não partilhando a Perturbação Autística.
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Tiago é uma criança saudável. “Ao contrário do irmão fala pelos cotovelos”, conta Rosa, enquanto acaricia o cabelo encarapinhado. Alta, mulata e de rosto redondo, Rosa tem um olhar vago, e um discurso reticente. A notícia chegou-lhe recentemente e ainda está emocionalmente instável. Os gestos comprovam-no: não pára de fazer tremer as pernas, gesticula sem parar, levanta a voz sem motivo e engole as últimas sílabas das palavras. Falta-lhe chorar. Desde que foi mãe ainda não saiu do hospital. A filha mais velha, Patrícia, tem 11 anos e nasceu com uma alergia ao sol. Depois as crianças prematuras. Agora o Miguel. Fechado em si mesmo. Falta-lhe chorar. “Ainda nem para isso tive tempo”, confessa apática. Quando a notícia chega “Revela, evidentemente, comportamentos autistas”. Foi com esta frase que o Dr. Miguel Palha diagnosticou o Afonso. Maria José nunca mais se esqueceu das palavras que lhe ecoam na cabeça até hoje. “Tão poucas palavras para matar o sonho, não é?”, pergunta em tom de resposta. A mãe confessa que desde cedo reparou que havia alguma coisa de errado com o filho. Dois anos depois de Afonso nascer, Maria José já comentava com o pediatra que achava que a criança tinha problemas. “Mas o autismo nunca me passou pela cabeça”, lembra. “Eram as birras constantes, os choros demasiado sentidos e pouco normais num bebé que é cuidado, o isolamento, a recusa em se alimentar” os principais sintomas que iam semeando dúvidas em relação à saúde de Afonso. Foi no infantário, quando o menino passou da sala dos dois para a dos três anos, que a educadora chamou Maria José à escola para lhe dizer que o Afonso não se comportava como as outras crianças. Nesse dia a mãe decidiu avançar para o processo clínico de despiste que durou quase um ano. “Eu também já andava desconfiada, mas nestas coisas as mães são cegas, não querem ver, adiam o mais possível a verdade”, desculpa-se Maria José. Foi-lhe mais fácil perceber que o filho tinha um problema. Depois de uma fase inicial de desenvolvimento normal, aos dois anos João deixou de falar por completo. “Ao início não procurei ajuda porque não queria acreditar que ele fosse autista”, conta. A negação. “Ainda hoje me custa a acreditar”. Quando os médicos levantaram a possibilidade de Autismo, Maria leu muitas páginas sobre o tema. Os sintomas. As possibilidades de evolução. Os tratamentos. “Mas eu olhava para o meu filho e achava que nada daquilo condizia com ele. Ou queria enganar-me, não sei…”. “Nunca questionou porque é que aquilo lhe estava a acontecer a si, Maria João?”. A resposta sai-lhe pronta: “Não. E nunca senti revolta. Lidei bem com a situação porque sempre acreditei que ele ia ser capaz de ultrapassar as barreiras”. Cármen não encarou os problemas do filho da mesma forma. “Caiu-me o mundo aos pés”, recorda. “Eu tinha pouco mais de 20 anos”. Primeiro foi diagnosticado ao Gabriel um síndrome de epilepsia grave. Ele tinha 11 meses. Nesta altura as previsões não podiam ser piores: “disseram-me que ele nunca ia conseguir andar e que ia ficar com um descontrolo motor total”. No entanto, olhando para trás, Cármen considera que “reagiu bem” à notícia. “Tinha consciência de que se tratava de uma situação muito grave, mas parecia que estava anestesiada”, recorda.
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Já com 18 meses, Gabriel começou a revelar os sintomas mais típicos de autismo: não respondia aos estímulos, não estabelecia contacto visual com ninguém, não desenvolvia a linguagem. Pouco depois dos dois anos, a médica que seguia a criança disse à mãe que ele era autista. “Depois do choque da epilepsia este diagnóstico foi só mais um”, afirma Cármen. Guiomar Oliveira, médica pediatra do Núcleo de Autismo do Hospital Pediátrico de Coimbra, garante que a maioria das mães “consegue fazer uma aceitação rápida, se o diagnóstico for precoce e correctamente transmitido”. A especialista, que já desempenhou por várias vezes ao longo da vida o papel de portadora desta notícia dolorosa, aponta os médicos como os principais responsáveis pela forma como os pais reagem à notícia do autismo. “A dúvida e a incoerência entre os profissionais de saúde são mais nefastos para os pais do que a verdade de um diagnóstico dado atempada e correctamente”, garante a pediatra. Na verdade, confessa Cármen, “na altura não há tempo para revoltas nem para crises, é tudo tão rápido, os problemas são tantos que nós só podemos reagir”, conta esta super-mulher dos tempos modernos. Aos 35 anos tem no seu historial um divórcio, outro casamento, e dois filhos, um deles autista grave. Muitas estórias tristes na memória e duas úlceras nervosas no estômago. “Não há tempo para fraquezas”, sublinha. Para não deixar dúvidas. Os momentos mais difíceis Cármen é, apesar dos problemas que carrega, uma mulher de aspecto muito fresco. De tez, cabelo e olhos escuros, é dona de uma fisionomia exótica que remete quem a observa para o ideal da mulher latina. O nome com que se apresenta faz aumentar a dúvida sobre a sua nacionalidade. Mas Cármen é “Portuguesinha da Silva”, garante sorrindo. Magra, elegante e vistosa é o tipo de mulher para quem os homens olham. E dificilmente quem a vê passar na rua imagina que Cármen já viveu tanto. E tão duro. “No início, até eu me habituar era muito difícil estar em público com o Gabriel”, recorda a mãe que nunca saía de casa sozinha com o filho porque temia ter de enfrentar alguma situação que não fosse capaz de controlar. “Passei grandes vergonhas com ele”, começa. E assim as memórias lhe vão voltando. Recorda situações em que foi ofendida por pessoas na rua. “Se fosse o meu já estava com dois tabefes em cima”, ouvia em tom provocador, de outras mulheres. Irmãs na maternidade, mas madrastas entre si. Lembra, ainda abalada, uma noite em que foi expulsa de uma farmácia de serviço com os dois filhos pelas mãos. O Gabriel não queria entrar na farmácia mas era noite e Cármen não o queria deixar sozinho na rua. Estava cansada, tinha passado o dia todo no hospital com os filhos. Levou-o à força lá para dentro. A criança começou a descompensar. Os berros a plenos pulmões de Gabriel ouviam-se fora do estabelecimento. Os clientes todos a olhar para eles. Os farmacêuticos muito incomodados. Até que uma toma a dianteira: “Faça o favor de sair, o seu filho está a incomodar as pessoas”, disse-lhe. “Foi a única vez na vida que me lembro de ter ficado sem resposta”, recorda Cármen. “Só consegui sair, envergonhada, cheia de raiva e vontade de chorar, e dirigir-me a outra farmácia”. As lágrimas contidas nesse dia querem libertar-se agora. Mas Cármen não deixa: “são momentos dramáticos, mas melhores dias virão”. E os seus olhos engolem a água.
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Maria José sempre evitou expor o filho. “Não gosto da exposição da deficiência perante os outros, mexe muito comigo os ares de falsa benevolência que as pessoas fazem perante estas situações”, assume. E por isso sempre protegeu Afonso. Durante muito tempo não convidava ninguém para ir lá a casa porque não queria que o vissem escondido atrás dos cortinados ou a entrar nas divisões de costas, a andar para trás. “Não sei porquê… Talvez no fundo me custe a assunção de que o meu filho é diferente”, confessa. Dos momentos mais duros elege aqueles em que o filho dá entrada no hospital com as mãos cortadas e cheias de sangue porque, descompensado, esmurra mesas, portas e janelas até as partir. Recorda quando quiseram expulsar o Afonso da escola porque num ataque de angústia a criança fez um traumatismo craniano a uma auxiliar. João Paulo Amaral é professor do ensino especial há 15 anos. Trabalha com crianças com Trissomia 21 e Perturbações do Espectro Autista. Tal como a auxiliar que Afonso agrediu, também João Paulo tem experiências desconcertantes para contar. Algumas vitórias, algumas derrotas. Já conseguiu fazer com que um miúdo autista com graves distúrbios alimentares comesse pão, levando-o a visitar uma padaria. Já foi abraçado e agredido. Já teve de ajudar um aluno na higiene íntima porque nas rotinas da criança autista “era sempre assim”. Tanto tempo ao serviço de crianças especiais habilitam-no a reconhecer que “as mães têm realmente um papel muito mais evidente no desenvolvimento dos filhos com deficiências e até o empenhamento delas é diferente”. Quanto aos pais, “também se preocupam mas não se envolvem tanto”. “É qualquer coisa que ainda não compreendi mas que é muito real e que tenho verificado de forma muito clara ao longo destes anos”, explica. Rui Paixão, psicólogo clínico e professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, afirma que é inegável o maior envolvimento das mães com os filhos autistas, mas o especialista garante que o que está aqui em causa não são os papéis da mãe ou do pai. São as funções que cada um desempenha. “A função paternal é mais uma função da diferenciação, distância, autoridade, regra, ordem. A função da imposição. A materna é uma função transformadora, contentora. De proximidade e de elaboração”, conclui. Para Maria João as festas de aniversário da família eram um pesadelo. “O João não suporta ouvir cantar os parabéns”, explica. Sai da sala. Refugia-se longe. Dentro de si. Mas Maria não se dá por vencida. Há muito tempo que ninguém canta os parabéns naquela família. Põem os bolos e salgadinhos na mesa, cumprimentam o aniversariante, sorriem uns para os outros, cúmplices e começa a festa. Sem a melodia do “Parabéns a Você”, mas com muito amor e muita união. “Temos de nos saber adaptar, a vida continua”. E assim o João já não foge. Maria José lembra-se de desistir de vez de ir almoçar fora porque “para o Afonso era uma tortura e para quem lá estava também”. Ele não parava quieto. Atirava os talheres às pessoas que o olhavam mais fixamente e partia a loiça. No início, conta, também tinha medo de sair à rua com o filho. “Ele atirava-se para o chão a berrar por tudo e por nada… e depois para o levantar era um tormento”. Mas o maior tormento era ver o filho ser alvo dos olhares e comentários dos transeuntes. “Tenho uma vertente muito protectora e talvez isso até seja mau para o Afonso…”.
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A chegar a meio da casa dos cinquenta Maria José, com uma depressão diagnosticada há meia dúzia de anos, faz a barba ao filho de 17. Veste-o, calça-o, penteia-o. Teme ser protectora demais. “O pai já reage de outra forma… A senhora acredita que ele não conhece a nossa associação [APPDA – Setúbal, associação de que Maria José é presidente]? Nunca cá entrou. Já esteve no andar, mas ficou à porta, não quis entrar”. Maria José, no entanto, vai lá todos os dias. “Mas eu sou mãe”, conclui. Está explicado? Os outros filhos e a relação com os irmãos Apesar de garantir que quando se recebe o diagnóstico final “não há tempo para fraquezas”, a verdade é que Cármen não é mulher para fraquezas. Independentemente do diagnóstico. Trabalha numa empresa de informática e garante que conciliar o trabalho com as necessidades do filho “provoca um desgaste terrível”. O ar cansado com que o diz fala por si. Quatro anos depois da chegada de Gabriel decidiu engravidar outra vez. “Sabia que as possibilidades de a criança nascer autista eram maiores do que na maior parte dos casos, mas não queria ficar só com aquele filho”, conta com uma frontalidade que lhe vinca o carácter. Mas o seu desejo de ser mãe outra vez não era só egoísmo seu: “Também queria dar um irmão ao Gabriel, alguém que um dia mais tarde olhe por ele, que o vá ver, que assegure que ele está bem”. O “irmão” acabou por sair irmã. Tem 12 anos e os olhos expressivos da mãe. É a Isabel. Agora os dois irmãos “já têm uma relação estável” mas Cármen ainda se lembra de quando tinha de deitar a pequena Isabel num lugar alto onde o Gabriel não pudesse chegar. “Ele batia-lhe muito, apertava-a, mordia-a e a irmã andava sempre a chorar; quando ela começou a andar ele passava a vida a empurrá-la”, conta. A mãe acredita que havia aqui uma certa dose de ciúmes: “porque o meu filho era completamente obcecado por mim, recusava-se a ficar com outra pessoa”. O psicólogo Rui Paixão explica a violência enquanto sintoma de Autismo: “a agressividade funciona nos sujeitos autistas como um resultado da angústia, é a angústia transformada; face às dificuldades que o autista tem em se relacionar com os outros, o outro é sempre uma fonte de angústia”. O que Cármen chama obsessão, o psicólogo classifica como “uma exigência absoluta de permanência e constância que diz respeito aos objectos mas também, e de forma ainda mais acentuada, às pessoas”. Isabel cresceu à pressa, ao som da batida acelerada dos problemas e das exigências estranhas do irmão. Mas esta é mesmo uma família sem espaço para traumas e Isabel está cá para prová-lo. De sorriso rasgado fala constantemente no “mano” e, “quando o Gabriel deixa”, adora brincar com ele na Playstation. Cármen acha que Isabel “percebe que tem alguma obrigação para com o irmão, compreende que um dia vai ter de olhar por ele” e hoje é, segundo a mãe, “uma menina muito diferente e especial”. Mas não é só ela: “os irmãos dos autistas têm mesmo de ser diferentes das outras crianças, é um crescimento que tem a ver com tudo menos com a normalidade”, garante Cármen. Apesar de não existirem estudos científicos nesta área, Rui Paixão parece concordar: “acredito que se o fenómeno dos irmãos dos autistas fosse estudado encontraríamos aí muita coisa, eventualmente uma
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tendência para a hipermaturidade porque pode haver a necessidade destas crianças assumirem por vezes o papel de pais dos irmãos”. Para o Gabriel a irmã funciona “como uma ponte entre ele e as outras pessoas”. É comum ouvi-lo responder, quando está numa crise de isolamento e não quer falar, “não sei, pergunta à Isabel”. Ele sabe que se não quiser responder, não faz mal. A irmã responde por ele. Rosa é uma mulher alta, muito mais alta do que a média das mulheres portuguesas. Trigueira, de olhos cor-de-mel, indicia à primeira vista uma origem cabo-verdiana que mais tarde confirma. Aos 37 anos tem três filhos: A Patrícia e os gémeos falsos Miguel e Tiago. A relação entre os três irmãos é complicada. Se por um lado Miguel “não liga à irmã”, por outro tem “quase uma obsessão” pelo irmão. Isto gera desconforto entre os três. A Patrícia tem ciúmes do Tiago porque o Miguel só lhe liga a ele. O Tiago, muito mais desenvolvido que o Miguel, prefere brincar com a irmã. Mas esta rejeita-o, ciumenta. A Rosa resta gerir estas tensões. Lá em casa é uma confusão. Entre as alergias da Patrícia, o autismo do Miguel e a normalidade do Tiago, Rosa confessa que é o problema do “pequenito” que mais a perturba: “a minha filha tem uma doença que é do corpo, há sintomas físicos, há tratamentos; o Miguel tem uma coisa que não consigo perceber como é que pode ser…”. Confusa e ainda abalada por mais esta rasteira da vida, a mãe confessa que às vezes é injusta com os outros filhos, por causa do Miguel. Depois vem o sentimento de culpa. A ideia de que está a falhar como mãe. “Mas ele é especial, é tão estranho, tão instável…”, conclui em jeito de desculpa. De autodesculpa. “Ainda ontem estava a dizer a alguém que às vezes até me esqueço que aquele filho existe”. A frase é de Maria José, a falar sobre o filho mais velho, João, de 20 anos. Maria José é professora de Matemática e Ciências do ensino básico. Depois de detectarem que Afonso era autista, Maria José passou 8 anos a trabalhar com casos de defi ciência, nos apoios educativos da escola onde lecciona. É uma mulher bem-disposta e alegre, mas aos 53 anos parece ter 60. “Os últimos 17 anos têm-me gasto”, constata a rir. É uma senhora elegante. Unhas pintadas de cor suave, saltos altos, tailleur cinzento, cabelo loiro com toque recente de cabeleireira. O leve sotaque denuncia a origem alentejana. “Houve uma altura em que eu me sentia culpada e preocupada com a hipótese do João se sentir posto de lado”, confessa Maria José, “mas hoje acho que ele é um miúdo equilibrado, que acabou por se refugiar nos seus interesses, fazendo deles um escape”. O maior deles todos é a música, interesse que ambos os irmãos partilham. Agora. Porque “no início o Afonso não ligava nenhuma ao irmão”. Hoje em dia a relação dos dois é boa e, em parte, Maria José acredita que isso se deve “ao facto de o João nunca ter sido sobrecarregado com o irmão”. A mãe sempre evitou deixar o filho mais velho a tomar conta do Afonso ou obrigá-lo a ceder às extravagâncias do irmão autista. “Porque preciso que o João goste dele”, confessa envergonhada. No entanto, Maria José concorda que é inevitável que os irmãos sofram na pele o facto de terem um autista em casa. João, por exemplo, não pôde vir estudar para Coimbra, um sonho antigo. Como é de Setúbal, a mãe exigiu-lhe que ficasse em Lisboa. “Para mim era impensável ter o João longe”, confessa a mãe, “porque se ele estiver por perto vai conhecendo o irmão, não se distancia; a questão da distância aflige-me”.
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Maria José mantém um discurso incoerente. Se por um lado assegura não querer que o futuro do Afonso passe pelo João, por outro lado garante que precisa que o filho mais velho esteja por perto: “para conhecer os hábitos dele, as manias, as rotinas, para saber reagir e não ter medo”. E isso não é a pensar no futuro? “Para ele não ter medo, só isso”, insiste. Um testemunho em livro Ana Martins tem 44 anos e um filho autista prestes a fazer 19. O Pedro. Agora está ruiva, mas nasceu morena. Tem um rosto expressivo, uns olhos sorridentes e uma voz suave e confiante. É baixinha e dona de um sentido de humor sagaz. Escreve, é decoradora, tem parcerias com designers e já foi cozinheira. Mas neste momento a sua principal fonte de rendimento são os guiões que escreve para a NBP (Nicolau Breyner Produções). Acualmente está a escrever a nova série de “Casos da Vida”, da TVI. O primeiro episódio é sobre dois gémeos. Um deles autista. Como não podia deixar de ser. Ana tinha 25 anos e era casada há pouco tempo quando engravidou. O Pedro foi um filho “planeado e muito desejado”. Quando ele fez um ano e meio Ana pediu o divórcio. O marido “não estava para ter um deficiente em casa”. Quando Ana pediu o divórcio, a família virou-lhe as costas. “Já bem lhes bastava uma criança autista, quanto mais uma criança autista filha de uma divorciada sozinha”. O irmão foi a única pessoa que a apoiou. É mais ou menos esta estória que Ana conta no seu livro “Autista, quem…? Eu?”. A estória da sua vida. A estória do Pedro. Um jovem alto, de franja e cabelo preto, óculos de massa coloridos e ar simpático. Toca-nos o rosto com a ponta dos dedos, como se tivesse medo de estragar alguma coisa. Pergunta constantemente à mãe se ela gosta dele. Irrita-se quando os senhores passam à frente das senhoras e reclama: “Não sabes que as senhoras estão primeiro?”. Cavalheiro, educado, complexo, carinhoso mas às vezes violento. Não suporta barulho. É um adepto ferrenho do Sporting e adora fotografias e carros. É o Pedro. O “Pedrocas”, como lhe chama a mãe. Ana confessa que saber que o filho era autista acabou por se revelar “um alívio”. O autismo do Pedro começou a dar sinais logo aos oito meses de gravidez, mas nessa altura os médicos não sabiam do que se tratava, apenas que o bebé teria problemas. Tal como Maria José, Ana também se lembra com clareza da forma como esta notícia lhe foi dada. “Um feto com anomalia mas viável”. Mais forte do que a dor foi o choque face à insensibilidade dos médicos. “Porque aos oito meses, aos olhos de uma família inteira, já não se trata de um feto, tem nome, é um elemento do clã Martins, é o Pedro!”, explica revoltada. Ana recorda este momento, em que ainda estava grávida, como o mais doloroso de todos: “eu não sabia o que queria dizer ‘feto com anomalia’, podia ser uma criança sem cérebro e ainda assim amei-o incondicionalmente”. Esse dia mudou a vida da futura mãe. “Antes eu era uma menina linda e sem preocupações da Avenida de Roma”. E agora? “Agora sou uma mulher, passaram 20 anos de muita dor e luta a solo”. Ana não sabe dizer se é uma pessoa melhor do que era antes do Pedro, mas tem a certeza de que hoje está muito mais atenta ao que se passa ao seu redor. Neste momento Ana Martins está a passar por uma fase difícil. Há cerca de um ano o Pedro começou a ter descargas de agressividade.
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Como a mãe é a pessoa mais próxima dele, era ela a vítima. Durante alguns meses foi alvo de agressões violentas por parte do filho. Agora o Pedro está a viver num lar e vem a casa aos fins-de-semana, que passa com a mãe. “Chegou uma altura em que tive de escolher e escolhi-me a mim”, confessa sem hipocrisia. Mas a escolha não foi pacífica. Ultimamente tem de pintar o cabelo todas as semanas. Com apenas 44 anos, vê-se ficar grisalha de sexta a sexta, atormentada por uma dor maior do que todas as que já sentiu. “Sinto que estou a fazer luto em vida do meu pequeno filho Pedro”, descreve. No seu livro diz que “viver com o autismo é uma fonte constante de sobressalto e criatividade” e conta a estória de Ricardo, uma criança autista de 7 anos que morreu depois de se atirar do 9.º andar da casa dos pais. “E a mãe do Ricardo ainda teve de ir responder a tribunal pela morte do filho”, recorda Ana, dorida. Talvez por ter vivido esta estória de perto – conhecia a criança e os pais – hoje vive atormentada com medo que aconteça o mesmo ao Pedro. Tem sinos de vento espalhados por toda a casa para saber quando está uma janela aberta e trancas em cada uma das janelas. “Tenho um medo insano de que aconteça um acidente, vivo com esse pânico irracional debaixo da pele”, confessa. Aos “pais de meninos diferentes” chama “os que atravessaram a porta da dor”, mas recusa ser vítima. E aqui o discurso sai-lhe duro. “Só há duas forma de lidar com isto: ou cruzamos os braços e temos muita peninha de nós próprios e então choramos a vida toda por causa da puta da porta que tivemos de atravessar; ou sorrimos para a vida, depois de chorar tudo, arregaçamos as mangas e lutamos”. Das duas hipóteses, Ana não hesita em escolher a segunda. Que futuro? Maria João prefere não pensar no futuro. “Não imagino; não quero, nem consigo imaginar o João daqui a 20, 30 anos”, assume. Maria é uma cozinheira sorridente, acessível e simpática. Tem o cabelo comprido e castanho claro e uns olhos redondos e expressivos que brilham mais quando fala do filho. “Para mim o João é tudo”, diz-lhe a voz, confirmam os olhos. Prefere viver um dia de cada vez e esperar que a vida venha ter consigo. “Não sou capaz de pensar mais além do que hoje, acho que isso não ia ser bom nem para ele, nem para mim”. Quando questionada sobre o futuro, Maria José faz um silêncio prolongado antes de responder. Depois abre-se e fala do seu sonho. “O Respiro”. Uma quinta onde os autistas possam ficar quando os pais já não andarem por cá. Um lugar onde haja espaço e tempo para as rotinas que eles precisam para estabilizar. Um centro de segurança, tranquilidade e qualidade de vida, com actividades lúdicas e respeito pelas necessidades de cada uma destas pessoas. Porquê Respiro? “Porque para nós um lugar assim seria um balão de oxigénio, uma nova vida”. Foi a pensar neste projecto que Maria José ingressou na APPDA de Setúbal a que hoje preside. A professora conta que já está “naquela fase” em que precisa que o filho crie alguma independência em relação a ela. “Que cresça mais um bocadinho”. Maria José já não pede mais. Só mais um bocadinho. No entanto, confessa, não sabe como vai reagir quando chegar o dia de deixar Afonso numa instituição e voltar para casa sem ele. Mas sobre isso prefere não pensar muito. Para que o Respiro não lhe tire o ar e “porque a dada altura esta é mesmo a única solução… Estou
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a ficar velha, cada vez demoro mais tempo a prepará-lo para sair de casa, cada vez me dói mais o corpo”. E a alma, acrescentam os olhos, brilhantes de emoção. Cármen também prefere não pensar muito sobre o futuro de Gabriel. Tal como Maria José sonha com “um espaço que possa vir a ser a solução um dia, daqui a uns anos; um sítio onde ele possa ficar bem”. Recorda o pânico que foi ter sido operada e não ter ninguém nem nenhum sítio onde deixar o filho enquanto esteve no hospital e depois, no pós-operatório, quando não podia cuidar dele. “E isto é uma situação que só vai piorar com os anos”, reconhece. Quanto ao Gabriel não alimenta ilusões: “não acredito que ele possa algum dia ter uma vida independente, um emprego ou uma família”. Mas é difícil prever: “isto é uma carta fechada, nós nunca sabemos; ele hoje está bem, mas amanhã pode não estar; eles são tudo menos típicos, não dá para prever”. Para Cármen importante mesmo é que o Gabriel esteja feliz. “E se ele não piorar para mim já é muito bom”, conclui. Rui Paixão acredita que é muito difícil aos pais aceitarem a institucionalização dos filhos “porque isso é a assunção completa da incapacidade, da culpabilidade, até da violência da morte”. O psicólogo reconhece que o medo do futuro pode abalar de forma profunda a estabilidade emocional dos pais: “há um fantasma que nunca mais os vai abandonar depois do diagnóstico: quando eu morrer como é que a criança vai ficar? Quem é que vai tomar conta dela?” Rosa ainda não consegue pensar no futuro e muitos menos no tempo que virá para a levar para longe do filho. Enquanto olha para o seu bebé calado e ausente, horas a fio a brincar com uma folha seca na rua, ou a girar um CD no chão de casa, é-lhe impossível imaginar o que vai ser do Miguel. As outras mães, que já lidam com o autismo há muito tempo garantem que é normal. Ainda agora recebeu a notícia. “E no início uma pessoa pensa em tudo menos no fim, é tortura a mais”. A primeira vez que Rosa sentiu que havia alguma coisa de errado com o Miguel ele era “muito bebé”. Ela tinha o filho ao colo e “ele não se adaptava a mim, não se colava a mim, como o Tiago ou a Patrícia quando era pequenina; eu pegava-o ao colo mas parecia que ele não se dava ao meu colo, ficava só ali dependurado em mim”. Era o primeiro sintoma do que vai ser a relação deles por toda a vida. Se ela o largar ele cai, porque não se sabe agarrar sozinho. Mas um abraço nunca será mais do que dois braços que o apertam. Ele nunca se dará por inteiro ao colo da mãe. E sem saber, nunca mais vai poder sair de lá.
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Autismo: O que é? Quantos são? Guiomar Oliveira, médica pediatra do Núcleo de Autismo do Hospital Pediátrico de Coimbra explica a Perturbação Autista como “uma manifestação clínica de uma doença que afecta a função do cérebro”. E especifica que as suas principais características são “a a lteração na capacidade de interagir com os outros e de perceber as regras sociais, dificuldade em comunicar e comportamentos repetitivos com focos de interesse muito restritos e, por vezes, sem importância para a sobrevivência social”. A mesma especialista, autora de um estudo sobre os números do aut ismo em Por t ug a l, g a ra nte que quando se tratam de casos de autismo sem causa conhecida, mesmo após investigação médica alargada, a probabilidade de ocorrer Perturbação Autística nos irmãos é de 5 a 10%. De acordo com o DSM-IV Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, a taxa média de Perturbação Autística em estudos epidemiológicos é de cinco casos em 10 000 indivíduos, tendo sido relatadas taxas que variam entre 2 e 20 casos por 10 000 indivíduos. O estudo do Hospital Pediátrico de Coimbra apurou que em Portugal na sce um autista em cada mil habita ntes. Seg undo dados do DSM-IV esta perturbação é quatro a cinco vezes mais elevada nos homens que nas mulheres.
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A escola é um mundo à parte a escola é parte de tudo Soa o toque. É a liberdade que aí vem. A sair das salas aos tropeções. Correm, gritam, brincam, descobrem-se. É assim em quase todas as escolas do país, porque a escola é um lugar de (re)conhecimento e descoberta. Um lugar onde sempre houve barulho e energia. Mas, a escola está hoje a ficar mais silenciosa. O tempo de liberdade em que o “feriado” era aproveitado da maneira que se quisesse já lá vai. Longínquo. Agora, é a sala de aula que manda, como sempre mandou. Mas, hoje, manda mais. E há quem duvide se manda melhor. O tempo também anda a mudar (n)as escolas. Professores e alunos lutam contra a falta dele. Seguem-se novos caminhos que geram sobretudo dúvidas. E a escola cá está. Sem certezas. Cheia de histórias que se escrevem sem pontos finais. texto: Catarina Pinto
Olhos no infinito. É tempo de pousar o olhar sobre o passado. Naquela altura, os olhos dos miúdos brilhavam. Juntos, descobriam coisas. E, às vezes, quando saía da sala de aula, “vinha iluminada por dentro, era quase uma epifania este sentimento de ter dado uma aula bestial”. O sentimento ainda existe. Soledade Santos, 50 anos, ainda gosta de ser “construtora de futuros”. Ainda gosta de ser professora. Porém, as aulas em que as ideias pareciam fervilhar e as descobertas eram constantes parecem estar a desaparecer da sua vida. Aquilo que era o seu maior desafio está agora a tornar-se no seu maior problema: “Eu estou a fazer parte de uma coisa que odeio, porque eu odeio o futuro que está a ser construído”, revela. Soledade é professora de Português no Externato Cooperativo da Benedita, no distrito de Alcobaça. Quando se licenciou em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a sua intenção já era ser professora. De alguma maneira, era o desafio que a interessava. Porque é um desafio contribuir para a formação dos jovens. Ajudá-los a descobrirem-se a eles e ao mundo. Descobrir o mundo com eles também. Com apenas 19 anos, enquanto ainda estudava na Faculdade, decidiu concorrer aos miniconcursos, que na altura eram bastante informais. Foi assim que chegou às salas de aula. Começou numa escola de artistas em Lisboa e os seus alunos eram mais velhos do que ela. Isso não pareceu assustá-la e, como preparou bem a aula, estava relativamente segura. “Lembro-me que vim de lá fascinada porque eu via aquelas pessoas todas a prestarem atenção ao que eu dizia e esse fascínio nunca desapareceu”, conta. Voltando ao presente, percebe-se que Soledade já não se revê no rumo que a maioria das escolas portuguesas está a tomar. A liberdade que outrora parecia existir está a ser roubada lentamente. Ou talvez até depressa demais. “Não me revejo minimamente no sistema [de ensino] e sinto grandes dificuldades em suportar muito do que sou coagida a fazer e quando a primeira coisa que nos roubam é o tempo para pensar e reflectir muito difícil se torna subverter o sistema por dentro”, afirma. Apesar do tema da educação já ter feito correr rios de tinta nos últimos meses, Soledade acredita que ainda há uma ideia que os professores não estão a conseguir fazer chegar à opinião pública. A ideia de que “a escola que estava construída foi desmantelada e
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as coisas estão presas por linhas, está tudo muito difícil de manter e controlar e os objectivos pretendidos [pelo Ministério da Educação] são meramente cosméticos”. O “desmantelamento” da escola Em Janeiro deste ano, o Ministério da Educação publicou em Diário da República os mecanismos que devem ser implementados para a realização da avaliação do desempenho dos professores. Os parâmetros e as condições começam desde logo a gerar polémica. A avaliação de cada professor fica a cargo da direcção executiva da escola e de cada coordenador do departamento curricular. O processo de avaliação está divido por várias fases, tais como o preenchimento de fichas de auto-avaliação por parte do docente e do avaliador, entrevista ao avaliado e reuniões para decidir classificações. A excessiva burocracia que o processo parece envolver, o facto de nunca ter sido testado e a ambiguidade de determinados parâmetros (como por exemplo aquilo a que se chama “disponibilidade” ou “criação de climas favoráveis à aprendizagem”) levam os docentes a iniciar uma luta que desde aí parece não ter fim. Os professores portugueses saíram à rua num número nunca antes visto. Foram 100 mil a encher as ruas de Lisboa, no dia 8 de Março. As formas de luta têm vindo a multiplicar-se: espaço nos meios de comunicação social, apresentação de queixas ao Provedor de Justiça, providências cautelares e processos em tribunal. Em meados de Abril, os sindicatos conseguem finalmente “um entendimento” com o ministério na questão da avaliação e fica decidido que, neste ano lectivo que termina, são tidos em conta apenas quatro parâmetros (ficha de auto-avaliação, assiduidade, participação em acções de formação e cumprimento do serviço que for distribuído), aplicados da mesma forma em todas as escolas. Ainda assim a avaliação está longe de ser a única razão que trouxe os professores para a rua. A alteração do Estatuto da Carreira Docente, publicada em Janeiro, trouxe consigo a divisão da carreira em professor e professor titular. O objectivo do ministério é criar um corpo docente altamente qualificado, com mais experiência e formação. Porém, a forma como se processa o concurso para professor titular e os parâmetros que são tidos em conta não satisfazem os docentes. No centro da polémica está o facto de o concurso só ter em conta a experiência profissional recente do professor, avaliando apenas o
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trabalho feito entre os anos lectivos de 1999/2000 e 2005/2006 inclusive. Por sua vez, o lema da escola inclusiva também não reúne consensos. Alunos com necessidades educativas especiais estão a ser integrados em turmas regulares, onde as aulas são dadas por professores que, na maioria das vezes, não têm formação específica na área do ensino especial. As alterações efectuadas ao Estatuto do Aluno, no início deste ano, vieram colocar mais água na fervura. Embora o ministério entenda que o novo estatuto vem reforçar a autoridade do docente, a verdade é que os professores pensam exactamente o contrário. A transferência de escola passou a ser a medida sancionatória mais grave. A suspensão do aluno passa a ser um processo mais moroso. E, assim, a burocracia é mais uma vez criticada. Para além disto, na visão de Soledade, “os currículos actuais são desesperantes, as humanidades estão em queda, e o ensino artístico está a desaparecer”. E são estas algumas das razões que a levam a acreditar que a escola que conhecíamos está a ser desmantelada. “Eu diria que eles [equipa ministerial] destruíram para lá daquilo que vai ser possível reparar tão cedo, vamos levar muito tempo a erguer o que quer que seja deste caos”, diz. A união é relativa? O caos. Foi essa a razão da união e ao mesmo tempo o ambiente em que foi feita. Os professores uniram-se. Mas a pergunta impõe-se: até que ponto esta união retrata a classe profissional e o caminho que ela pretende seguir? Conceição Pupo, 53 anos, é professora de Filosofia e Psicologia na Escola Secundária Infanta Dona Maria, em Coimbra. No dia 8 de Março, esteve na manifestação porque, tal como Soledade, entende que algumas mudanças que o governo pretende não são viáveis. No entanto, a docente chama a atenção para um paradoxo: a classe uniu-se, mas não é unida. “Estivemos 100 mil em Lisboa mas não somos unidos. Na manifestação foi uma coisa, mas agora dentro das escolas vai haver imensos problemas”, afirma. Soledade Santos também fala numa “união relativa”, uma vez que as proveniências de cada professor são muito diversas. Os lugares de onde vieram são diferentes. O trabalho que fazem todos os dias, embora tenha os seus pontos comuns, também é distinto. Nem sempre chegam a cada aluno da mesma maneira. Nem poderia ser de outra forma. Porque ser professor implica criação. Uma criação que, tendo em conta a heterogeneidade de alunos e docentes, será sempre muito pessoal. “Um professor em dias diferentes, com turmas diferentes, é diferente”, confessa Conceição Pupo. A maneira como vêem e consciencializam o rumo que a escola está a tomar também é diferente. Ainda assim, parece existir algum tipo de união. Porque a união, de facto, esteve nas ruas. A união de um sentimento, talvez. Um sentimento de que se está a caminhar para sítios menos bons. Como chegaram aqui e como ficam? Foram vários e diferentes os caminhos que os trouxeram até aqui. À escola. Como em quase tudo na vida, uns fizeram o caminho com a certeza de quem vai chegar ao sítio que quer. Outros nem sequer sabiam que estavam já a seguir um caminho, uma direcção.
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Simplesmente, foram andando. E chegaram a este presente em que agora estão. “Um acidente de percurso”. É assim que Conceição Pupo define a sua ida para o curso de Filosofia na Universidade de Coimbra. Quando ainda andava no secundário, trocou a área de Ciências por Humanidades. E a Filosofia acaba por surgir assim, como um “deslumbramento”. No início da faculdade, não pensava muito no futuro. Mas, quando o fim do curso chegou, percebeu que a única hipótese que tinha era seguir para o ensino. “Só descobri que gostava de ser professora quando comecei a sê-lo”, diz. O gosto pela profissão está muito ligado à experiência que teve no primeiro ano em que deu aulas. Foi na Escola Secundária Jaime Cortesão, em Coimbra, e a diversidade da população escolar que lá encontrou interessou-a. O curso de Filosof ia, na altura, não tinha a vertente de ramo educacional. Por isso, como aconteceu com muitos professores da sua geração, o primeiro contacto com o ensino foi feito recorrendo sobretudo à intuição. No segundo ano de trabalho, aprendeu a solidão. Saiu de casa dos pais, rumo ao Algarve. Em Olhão, encontrou alunos diferentes. Muitos eram filhos de pescadores. “A educação que traziam de casa era diferente, e havia por parte dos pais uma grande esperança num futuro melhor para os seus filhos”, recorda. Como os alunos vinham de um extracto social mais baixo, teve que se empenhar mais na forma como chegava até eles. “Foi extremamente interessante e enriqueceu-me imenso, aprendi muito nesse ano como professora”, afirma. A verdade é que a mudança anda sempre por ali. A acompanhar o professor. Cada ano, é um novo desafio, com novas escolas, novas caras, novas personalidades, novos encontros. A mudança nem sempre é fácil. Chega a ser penosa. Mas, ao mesmo tempo, essa mudança acaba por construir aquilo que o professor é: uma pessoa de muitos lugares. Até chegar à Escola Secundária Infanta Dona Maria, Conceição passou por nove escolas. Quase todas na zona de Coimbra. Na altura, não lhe agradou. “Na época queixei-me, mas enriqueceu-me imenso porque contactei com pessoas muito diferentes”, diz. O percurso feito por várias escolas não deixa de ser um caminho pela busca da estabilidade. É a força das circunstâncias que leva muitos professores a percorrer o país. No entanto, chega uma altura em que é preciso parar. E Conceição Pupo parou. Agora que já passaram 29 anos desde que começou a leccionar, agora que já passou a época em que saltitava de escola em escola, agora que o tempo de constante mudança parece estar longe, acaba por se ver confrontada com um novo tipo de instabilidade. Agora, defronta-se com um novo tipo de escola. Na habitual comparação que se faz com o passado, a palavra “relativo” vem à baila. Para esta docente, tudo é demasiado relativo. Acredita que a indisciplina tem aumentado e que a relação aluno-professor se tem vindo a deteriorar. Mas, tudo depende dos alunos, das escolas, das zonas. Por isso, não consegue precisar se é ou não mais difícil ser professora hoje. Pelo menos em relação aos alunos. Já no que toca à tutela, as coisas mudam de figura. E é aqui que, lentamente, vem surgindo um sentimento de revolta. “Há momentos em que me apetece dar um pontapé nisto tudo e se não fosse a questão económica, se calhar, até deixava de ser professora”, confessa.
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Há dias assim… Há dias assim. Em que os professores se apercebem que não querem fazer parte deste caminho. Pelo menos do modo como ele é feito. Conceição acredita que, em relação à tutela, é mais difícil ser professor hoje. As guerras complicadas que existem entre sindicatos, professores e equipa ministerial e os conflitos que o sistema de avaliação poderá criar nas escolas levam-na a dizer isso. Antonieta Pinto, 44 anos, também tem dias assim. Dias de algum desalento. Em que sente que não se revê no rumo que a escola está a tomar. Actualmente, é professora de História na Escola EB 2/3 de São Miguel, na Guarda, onde reside. Para além de ser professora, Antonieta diz que também se vê obrigada a ser burocrata. E parte do seu desalento vem daqui. Vem da quantidade de papéis que agora se vê obrigada a preencher. O desalento vem do tempo, e da falta dele também. Quando um aluno tem dificuldades, a docente sabe que tem que o acompanhar de diversas maneiras. As reuniões e os papéis são algumas delas. “O processo do aluno fica todo muito direitinho, mas estamos a esquecer que em vez de estarmos todas aquelas horas a preencher papelada, devíamos estar a inventar formas de trabalhar com o aluno de outra maneira”, diz. Esta é a principal angústia de Antonieta. A falta de tempo para se dedicar àquilo que considera essencial: o aluno. E o aluno, segundo ela, está diferente. As turmas estão diferentes. Hoje, “as pessoas não sabem pensar, não sabem ler, não sabem escrever e assim ninguém pode ser bom em lado nenhum”, desabafa. Comparando com o passado, acaba por admitir que os seus testes são cada vez mais fáceis. E mesmo assim esbarra na incompreensão dos alunos. “Quando num teste peço para relacionarem os elementos de duas colunas através de setas, eles dizem que não estão a perceber e perguntam como se faz, e isto é sinal de que não se sabe ler”, diz Antonieta. Este cenário e o facto de ser cada vez mais difícil reprovar um aluno, porque implica burocracia e há menos exigência, levam esta professora a dizer que “o sucesso existe, mas não é real”. “Estamos a formar gente que não é capaz e isso é angustiante”, afirma. Soledade Santos também tem a mesma opinião. Ainda que entenda que a reprovação não tenha servido para melhorar as coisas, a docente diz que o ministério não quer que os alunos reprovem porque custam caro ao estado. “Qual sucesso?”, pergunta. Logo a seguir responde prontamente: “Sucesso estatístico”. Por sua vez, a missão que o professor parece ter hoje em dia também contribui para aumentar a inquietação de Antonieta. “Ninguém consegue. É uma missão que ultrapassa tudo, porque estamos com a missão de formar a pessoa na totalidade e há uma demissão das outras partes, como a família, que tem cada vez menos tempo para os filhos”, diz. Clara Miraldo, 54 anos, é professora de Ciências da Natureza na Escola EB 2/3 Silva Gaio, em Coimbra, e também ela refere este papel multifacetado que o professor agora tem que assumir: “nós somos educadores, psicólogos, assistentes sociais, pais e mães, pois ser passador de aprendizagens não chega”. Antonieta não planeou chegar a este ponto. Não planeou sequer ser professora. Quando escolheu História, escolheu por gosto. O que mais ambicionava era ficar a estudar eternamente, seguindo a via de investigação. Depois, deparou-se com a realidade. Porque no ramo de investigação a abertura era quase nula. “O ensino acabava por
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ser uma porta entre as poucas que estavam abertas naquela altura”, relembra. E, embora não fosse aquilo que inicialmente tinha pensado, o ensino também não a repugnava. Concorreu. Ficou. Acabou por gostar. Com o seu percurso ficou a conhecer Portugal e as suas gentes. Trancoso. Pataias e Souto da Carpalhosa (zona de Alcobaça e Leiria). Penacova. Avis. Alcoutim. Celorico da Beira. Belmonte (distrito de Castelo Branco). E Guarda. A ideia de estar desocupada e sem emprego, afligia-a mais do que qualquer outra coisa. Por isso concorria a nível nacional, habilitando-se a ficar “num canto qualquer”, como ela mesma diz. Assim, andou a conhecer o país. Com todas as agruras que isso possa ter implicado. Com a agrura principal de não saber muito bem o que andava a fazer. Porque não tinha qualquer preparação específica para ser professora. Porque se deparou com aquela multidão toda a olhar para ela à espera de qualquer coisa. Simplesmente, foi aprendendo com a prática. Ser professor também pode implicar esta característica nómada. “Era estar sempre com o coração nas mãos, porque, até efectivar, nunca sabia onde ia estar no próximo ano, nem sequer sabia se tinha trabalho”, recorda. Ao menos, acredita que serviu para se transformar numa pessoa mais aberta. Vencer o cansaço do mesmo lugar Gabriela Silva, 31 anos, também tem contactado com mundos diferentes. Mas sem sair do mesmo sítio. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante de estudos Ingleses e Portugueses, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Tirando o ano de estágio em que leccionou numa escola oficial (Escola Secundária de Vilela), Gabriela conhece apenas as realidades que passam pela Escola Profissional Raul Dória, no Porto, já que trabalha lá desde que se licenciou. Ser professora não era de todo a sua intenção. Seguiu aquele curso porque gostava de Literatura e não pensou muito no futuro profissional, até porque “as coisas na altura não estavam assim tão mal”, explica. Choque. Foi isso que sentiu quando deu aulas pela primeira vez na escola em que agora está. Porque os alunos que ali encontrou eram completamente diferentes dos da escola estatal. “Na Raul Dória, comecei a dar aulas de Inglês a alunos de 12.º ano, mas era como se estivesse a trabalhar com alunos do 5.º”, revela Gabriela. Muitos dos alunos que chegam às escolas profissionais são alunos que procuram um ensino mais técnico. Alguns foram aconselhados a seguir este caminho, porque os seus resultados nas escolas oficiais não eram muito bons e o ensino lá praticado é mais teórico. Assim, na escola profissional, o que se pretende é “o ensino ao ritmo do aluno”, explica a docente. Cada disciplina tem um número de módulos que cada aluno tem que fazer durante os três anos do curso (neste caso, são cursos profissionais que dão equivalência ao secundário). No entanto, há dificuldades em pôr em prática o sistema, porque “os alunos não estão habituados a este tipo de ensino e não têm autonomia nenhuma”, afirma Gabriela. Alunos desinteressados. Barulhentos. Insubordinados. Com muitas dificuldades. E com pouca vontade de trabalhar. É este o cenário da escola que Gabriela descreve. E não conseguir ensiná-los é o seu problema.
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A exigência em relação aos alunos é praticamente inexistente. A maioria das escolas profissionais vive dos fundos da União Europeia, que apenas são concedidos se as turmas tiverem o número mínimo de 25 alunos. “Para não perdermos os fundos, no fim, temos que passar a maior parte dos alunos, mesmo que não tenham trabalhado o suficiente”, revela Gabriela. A docente conta que, a partir de meados de Abril, o coordenador de cada curso começa a insistir com os professores no sentido de levarem mais alunos a concluir, de modo a que a turma possa abrir novamente no ano seguinte. Mais uma vez, é o sucesso estatístico que parece levar a sua avante. Gabriela não gosta de ser professora. Nesta escola, nunca gostou, aliás. Todos os anos, parte à procura de alternativas. Mas sem sorte. Vai ficando. E tentando. Porque mesmo nestas escolas, há excepções. E um ou outro aluno podem fazer valer a pena uma aula. Tentar o ensino lá fora A falta de hipóteses de emprego leva muitos jovens da geração de Gabriela a partir ao encontro do desconhecido. Do mundo fora de Portugal. Cláudia Guedes, 28 anos, licenciou-se também em Línguas e Literaturas Modernas, variante de estudos Ingleses e Portugueses, na FLUP. Ser professora também não era o seu ímpeto. O que queria era continuar a estudar. Para sempre. No 3.º ano, acabou por escolher o ramo educacional porque era mais fácil construir um futuro profissional. “Sempre gostei do ambiente de uma escola e como a minha mãe também é professora, a ideia não me desagradou, mas ainda hoje não faço disso a minha paixão, porque gosto de fazer sempre muitas coisas”, conta. Depois do estágio, a falta de emprego em Portugal, o desejo de voltar a Itália (onde havia estado enquanto estudante do programa Erasmus) e conhecer uma realidade educativa diferente levaram-na a concorrer ao programa de intercâmbio Comenius. Durante um ano, esteve em Mandura, no “tacão” italiano. Lá, tinha a função de “assistente linguística”. Ou seja, dava aulas apenas uma vez por semana às turmas de Inglês de outros professores. Quando ali chegou, deparou-se com um ensino do Inglês muito diferente do que é praticado no nosso país. Em certos aspectos bastante pior. Como em Itália traduzem a maior parte das coisas, a aprendizagem quotidiana da língua inglesa não é assim tão fácil. Perante uma forma de ensinar demasiado mecanizada e cingida ao manual, Cláudia procurou aproximar os alunos da língua e da cultura, através, por exemplo, de um clube de cinema, onde podiam ver filmes na língua original. A experiência por terras italianas serviu também para Cláudia perceber que, afinal, o ensino português não é assim tão mau. Em Itália, “não puxam pelo aluno e o Inglês que se ensina é demasiado básico”, afirma. Hoje, dá aulas de Inglês a alunos do 1.º ciclo no ATL Centro Social e Paroquial do Santíssimo Sacramento, na Boavista (Porto). Ao início, tinha dificuldade em controlá-los, porque “não sou muito de berros”, diz. Por força das circunstâncias, teve que mudar. Mas isso não parece realizá-la. Na verdade, preferia estar a dar aulas ao secundário, porque é “uma experiência mais completa”, confessa. Há uma troca maior de conhecimento entre aluno e professor que na primária nem sempre é possível.
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Fátima Fonseca, 28 anos, foi colega de curso de Cláudia e, tal como ela, também lecciona Inglês a alunos de 1.º ciclo, no seu caso, no Colégio Casa-Mãe, em Baltar (Paredes). É uma escola privada que acolhe crianças desde os dois anos e as acompanha até ao secundário. O lema da escola é mesmo “do berço à universidade”. Fátima diz que neste tipo de escolas “os alunos são mais protegidos e mais controlados”. No fundo, há uma política, uma linha rígida que deve ser respeitada por todos. E os alunos não têm grande margem de manobra, nem mesmo para insubordinações e mau comportamento, “porque estão constantemente a ser vigiados”, diz. Quando em 2003, depois de ter terminado o curso, as hipóteses de emprego escasseavam, Fátima apostou também no estrangeiro. Através do programa Comenius, partiu para Macerata (Itália). Ficou durante um ano. E logo depois rumou à Hungria, onde arranjou emprego numa escola estatal, através de uma amiga. “Esta [última] experiência serviu para eu ver que o sistema de ensino de países do leste até é mais eficaz, em certos aspectos, que o de Portugal”, revela. Por sua vez, a aprendizagem de línguas estrangeiras era muito importante para os alunos húngaros, por causa do turismo, e assim Fátima deparou-se com uma vontade de aprender que nem sempre encontrou nos alunos portugueses. Para quem já esteve do lado de dentro e do lado de fora, as comparações e os saudosismos são inevitáveis. Mesmo da parte dos alunos. Pedro Terreiro, 18 anos, é aluno do 12.º ano na Escola Infanta Dona Maria, em Coimbra. Até chegar ali, no 10.º ano, vivia com os pais em Bruxelas, na Bélgica. Das aulas na sua antiga escola, recorda as mesas em roda onde alunos e professores falavam. “Era assim que davam as matérias”, diz. Quando chegou a Portugal, a integração não foi fácil e se há uma escola da qual tem saudades é a outra. A que ficou lá na Bélgica. Mudam-se os tempos, mudam-se as escolas Saudades à parte e falando em mudanças, Pedro chama a atenção: “Temos que reparar que são os tempos que mudam, não é apenas a escola”. Mas, a verdade é que o tempo e a escola andam sempre de mãos dadas. O tempo e a sociedade fizeram a escola de hoje. Uma escola que não agrada à maioria dos professores. Uma escola que, ainda assim, “é parte de nós e a seguir aos pais é a nossa maior inf luência”, diz Pedro. Maria Baptista, 17 anos, colega de Pedro, ao olhar para trás, diz: “cresci imenso como pessoa nos últimos três anos e a escola também ajudou, por isso vou ter saudades”. Assim, a escola é um lugar onde se constrói o futuro, como Soledade diz. E o futuro da escola e de quem lá anda não lhe agrada a ela e a muitos outros professores. Não neste momento. “Este ministério até teve algumas ideias interessantes: aquilo que presidiu à escola a tempo inteiro foi originalmente interessante, mas hoje é a coisa mais demolidora que existe”, diz Soledade. Concordou com as aulas de substituição no 2.º e 3.º ciclos e com o aumento de actividades extracurriculares. No entanto, “isto veio destruir estruturas importantes que tinham a ver com a colaboração de associações de pais, misericórdias, e sociedade civil e agora é como ter miúdos num campo de concentração”, explica. No secundário, por exemplo, não concorda com as aulas de substituição porque acredita que “crescer implica ensaiar a nossa autonomia e não devíamos fechar os alunos em espaços onde são constantemente vigiados por adultos”.
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A falta de liberdade também não agrada aos alunos. Joana Souto, 13 anos, está no 7.º ano e frequenta a Escola Secundária José Falcão em Coimbra. A aluna sente a falta do convívio com os colegas. “A escola é grande, mas é quase só salas, e com as aulas de substituição nem podemos estar uns com os outros”, diz. A escola dos nossos tempos é uma escola a tempo inteiro e para todos. Tudo vai desaguar à escola. Tudo está demasiado centrado nas salas de aula. Aulas de 90 minutos. Aulas de substituição para todos os anos. Alunos com necessidades educativas especiais estão integrados em turmas regulares. E os professores têm que se desdobrar em vários para atender a diferentes ritmos de aprendizagem. E Soledade, por exemplo, faz isso. Mas diz que chega a uma altura em que não é possível. Antonieta Pinto, por sua vez, diz que a “escola inclusiva é profundamente desumana já que não é possível acompanhar todos os casos, porque não há espaço, nem tempo”. Por sua vez, o caminho nas escolas parece, cada vez mais, estar a ser imposto. O que mais assusta Soledade Santos é o “pensamento único” que se tenta implementar. “O modelo de avaliação, por exemplo, define um perfil do professor executante, que não questiona, que não intervém, que se limita a executar instruções e assim não é possível porque eu não trabalho com tijolos, trabalho com pessoas em formação e isso exige criatividade”, desabafa. A missão de continuar na escola Está visto que o sentimento de alegria em relação à escola está mais esbatido. Sobretudo quando falamos dos professores. Há dias de profundo desalento, como alguns deles dizem. Mas eles acabam por ficar. Não só por razões económicas, mas porque acreditam que ainda têm um trabalho a fazer. Às vezes, “gostaria de fugir, de virar as costas a tudo isto, à escola que é hoje um espaço de afrontamento, de desesperança e de sofrimento, mas por várias razões não posso”, diz Soledade. Não pode. Porque ainda é possível fazer alguma coisa, subvertendo o sistema. Sendo a “areiazinha na engrenagem”, como ela diz. Dar a conhecer um poema aos alunos. Encontrar a margem de liberdade dentro deste sistema de modo a construir um futuro melhor. É isto que a faz ficar. As ideias e a capacidade de relacionar as coisas para perceber o mundo são as razões que levam Antonieta Pinto a permanecer no ensino. E, claro, o gosto pela História também contribui. “Há escolas a funcionar muito bem” Mesmo que o cenário seja descrito com pessimismo, ainda é possível encontrar visões da escola de alguma esperança. Carlos Barreira é docente da licenciatura de Ciências da Educação ( CE ), na Faculdade de Psicologia e CE da Universidade de Coimbra. No início do ano passado, integrou uma equipa de Avaliação Externa das escolas, juntamente com dois inspectores do Ministério da Educação. Visitou sete escolas da zona centro e alguns relatórios da avaliação já saíram. As avaliações externas das escolas são feitas, quando a escola se candidata, através de entrevistas a vários painéis (desde membros do conselhos executivo, professores, funcionários, até aos alunos), visitas às instalações das escolas e observação de algumas aulas. Como alguns dos relatórios ainda não foram divulgados, Carlos Barreira não pode referir as classificações exactas. Mas, mostra-se surpreendido pela positiva, já que encontrou “escolas que funcionam
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muito bem”. O docente diz que “há escolas que sabem para onde querem ir, definem os seus objectivos e trabalham em função deles, e isso reflecte-se nos resultados”. O facto da liderança da escola ser forte e reconhecida também pareceu ter reflexo no aproveitamento dos alunos. Daquilo que viu e, tendo em conta a conjuntura actual, Carlos Barreira chama a atenção para o facto da legislação estar constantemente a mudar e de isso não ajudar as escolas a funcionarem melhor. Antes pelo contrário. “É preciso deixá-las respirar”, diz. Assim, é preciso deixar a escola respirar. Porque a escola é um mundo à parte, “com as suas fricções e especificidades, e não é fácil chegar a um modelo único de escola ideal”, diz Antonieta. Mas, ao mesmo tempo, a escola faz parte de tudo, segundo Soledade Santos, porque a escola não é nem pode ser um lugar isolado. Por isso, “é a sociedade inteira que vai ter de perceber para onde quer ir”, alerta a docente.
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“Madre” Teresa Granado
Colorir vidas
Anoitecia quando chegou à estação de Saint-Brieuc. Sozinha, desceu do comboio e respirou os primeiros pedacinhos de desconhecido. Não estava ali para uma simples descoberta de um lugar novo, nem um simples encontro com uma qualquer estação do mundo. Era um encontro com ela mesma, uma tentativa de chegar a si, ao seu verdadeiro destino, à sua verdadeira essência. Era também um encontro com uma ‘estação’ da vida. Nessa estação da Bretanha francesa, sentada em cima das suas duas malas, Teresa estava sentada em cima do mundo que levou consigo, e esperava. A noite, às vezes, tem o condão de tornar tudo menos definido. E Teresa estava ansiosa, não só porque esperava alguém que tardava em aparecer mas também porque esperava um encontro com o diferente, com uma nova forma de vida. Nessa altura, tinha decidido “cortar com tudo” e seguir o caminho da vida religiosa. Um caminho que nem sempre é fácil, mas sobretudo um caminho que nem sempre é compreendido. Parece ser sempre uma escolha incompreensível, como se qualquer das explicações dadas contribuísse ainda mais para a perplexidade alheia. Talvez aconteça porque o mundo religioso continua a ser uma facada, que rompe com tudo, e cria um mundo próprio, que é, ao mesmo tempo, tão presente e tão distante. Teresa Granado foi tentar esse mundo à parte, no Noviciado das Franciscanas Missionárias de Maria, em França. “Fui para fora de Portugal para cortar com tudo e ver se era aquela a minha vocação, ver se conseguia deixar a minha vida normal”, conta. Para trás, ficou uma vida que, segundo Teresa, era demasiado limitada e não a satisfazia. Os rostos por detrás de umas grades, um velhinho pedinte com barbas muito brancas ou os doentes de um qualquer hospital interessavam Teresa. Desde muito nova que gostava dos outros. Simplesmente, gostava de os ajudar, de ouvir as suas histórias, de tratar as suas feridas e, sobretudo, de lhes dar um pouco de si. Era, assim, uma espécie de troca. Uma troca de gentes. A educação para a solidariedade e para a partilha vem dos seus tempos de infância, passados na Covilhã. “Tenho a melhor das recordações desse tempo”, diz Teresa. O pai era médico e a mãe trabalhava em casa. Viveu um daqueles ambientes familiares quase perfeitos, onde reinava a harmonia: as brincadeiras com os irmãos (duas raparigas e três rapazes), os passeios com o pai, as férias divididas entre a Figueira da Foz e a Serra da Estrela. A educação para ajudar os outros era constante na sua vida. Todos os natais, Teresa e os seus irmãos tinham que dar um dos seus presentes a outra criança. “A nossa mãe incutiu muito a noção de ajuda ao outro e foi uma noção dada a todos os filhos, e cada um absorveu à sua maneira”, diz a sua irmã Fernanda Granado. Esta educação de grande responsabilidade e de liberdade ao mesmo tempo foi, na opinião de Fernanda, essencial nas opções futuras de Teresa. No caminho entre a escola e a sua casa, Teresa via todos os dias as mesmas janelas de uma prisão e os mesmos rostos por detrás. Não entendia porque estavam ali, achava os seus rostos tristes e decidiu
falar com eles, contar-lhes histórias e cantar. Os pais acabaram por descobrir e, a partir daí, só ia à prisão se fosse acompanhada, mas “já não era a mesma coisa”, diz, porque já não era uma visita “livre”. Ela tinha uma ânsia de liberdade. Talvez ganha com a infância mas também, e sobretudo, com as missões que realizou no estrangeiro: França, Itália, Paquistão e Macau. Partiu em busca de si própria. Em França, no noviciado, deu asas à imaginação, para voar. Pintava, cozia, lavava, tratava das galinhas, fazia poesia e criava. Ali, “exigiam muito de nós, mas essa exigência transformava-nos”, afirma. Tornavam-se mais sensíveis ao outro, à cultura, ao belo, tinham “outro olhar sobre o mundo já conhecido”, diz Teresa. Ao partir, deixou uma vida. Uma vida em Coimbra, onde tirou o curso de Serviço Social, uma vida dividida entre a ajuda aos outros e o percurso normal de uma jovem estudante: as festas, os namorados, os bailes. Mas, Teresa deixou também para trás a incompreensão. “O meu pai não aceitou e esteve muito tempo sem falar com a filha”, diz Fernanda. De Roma partiu para Karachi, no Paquistão. Aí, Teresa sentia-se “nada”. A transição foi abrupta. Dos sinos, da harmonia e da beleza de Itália passou para um lugar colorido de cinzento. Os saris e as limusinas de algumas jovens contrastavam com a cor da água dos esgotos, onde algumas pessoas se lavavam. Seguindo o seu caminho, chegou a Macau, onde esteve durante seis anos. Ali, reencontrou‑se com rostos por detrás de grades e a sua missão foi humanizar a prisão. Teresa tem hoje um bocadinho de todos esses sítios e das pessoas que conheceu dentro de si. Após dez anos de missões no estrangeiro, voltou a Coimbra para dirigir o Instituto Superior de Serviço Social (actual Instituto Superior Miguel Torga). No entanto, as regras da sua ordem religiosa estavam, cada vez mais, a impor limites à sua liberdade, por isso, renunciou. Saiu e partiu para fora cá dentro. Sentia-se perdida, sentia-se novamente à espera do desconhecido, como naquela estação da Bretanha Francesa. Acabou por se encontrar num mundo criado por ela própria: a Comunidade Juvenil São Francisco de Assis, em Coimbra, que acolhe crianças em situações de risco. No escritório da comunidade, a sua voz de menina aquece o ambiente. Ecos de vozes estridentes entram no ar como flechas e Teresa conta a sua história em pedaços, entre os sucessivos telefonemas que recebe e a atenção exigida pelas crianças, que irrompem constantemente pela sala. “Ela construiu um mundo ali”, diz Olinda Pinto, apoiante de lar na comunidade. Muitas vezes, em momentos de maior dificuldade financeira, encontra-a muito quieta, de olhos fechados, a pensar. Mas, Dulce Silva, que viveu durante 15 anos na comunidade, diz que quando não havia dinheiro “a madre ia para o estrangeiro e conseguia sempre”. No seu mundo, no seu caminho, aqui e ali, Teresa pintou vidas. Oferecia cores aos outros, ao mesmo tempo que se desenhava a si própria. Mas, ao dedicar essas cores aos outros, escolheu um caminho que, interior e exteriormente, nunca será pacífico. texto: Catarina Pinto
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Pontapés no destino O T0 não tem tecto, mas tem chão. Não tem cama, mas tem colchão. Tem manta que cobre do frio, mas não tem ventoinha que afaste o calor. Tem relógio que desperta. Que marca 10h da manhã. Que marca meia-noite. Tem rádio que toca. Rádio que acompanha. O T0 tem sempre lugar para mais um. Não tem paredes, janelas ou portas. Tem pessoas que dormem. Tem pessoas que olham e passam. “O T0”. É assim que Hernâni Diniz, 50 anos, chama ao espaço que ocupa no edifício entre os departamentos de Química e de Física da Universidade de Coimbra. Dorme na rua há 10 meses. Tornou-se sem-abrigo depois de uma “rasteira” que a vida lhe passou. Num drible, foi ao chão. Preferiu a rua a morar “por favor”. Disseram-lhe que ali havia “sempre mais um cobertor, um colchão…”. Cedeu às circunstâncias. “É temporário”, pensou. Mas não foi. Já dura há quase um ano. “Custa”, “é lixado”, “dói”, confessa Hernâni. Quando fala da sua vida traça o mapa de um terreno irregular, de picos altos, rodeados por areia movediça. Momentos de êxito cedem lugar à “decadência”. “Hoje estou outra vez cá em baixo, mas brevemente espero dar um pontapé nesta vida”. Sair do banco de suplentes e voltar a entrar em jogo, é isso que Hernâni Diniz procura. Dar a volta ao resultado. Vencer novamente. Para trás ficam outros campeonatos. Homem de muitos amores e de um só casamento, que durou 7 anos, Hernâni recorda essa fase com a saudade de quem viu duas crianças crescerem. Saudade de lhes corrigir os trabalhos de casa. Saudade de os deixar ir jogar futebol com os amigos. Uma saudade que fica eternizada nas fotografias que carrega consigo: meninos de caneta na mão e mapa-mundo como pano de fundo. Meninos que agora já são homens feitos. Nessa altura, Hernâni também era ele próprio um jovem. Casou com 19 anos. “Ainda andava em busca da minha identidade”, lembra Hernâni. “Andei um bocado perdido, enamorado por outro lados e não percebi a mulher que tinha. Era a verdura da idade”, justifica. Hernâni errava o caminho e desviou-se ainda mais, quando depois de uma “noite bem bebida” de S. João ele e um colega assaltaram uma ourivesaria. Ambos foram presos. “Cometi um erro. A prisão foi um mal necessário”, admite. Viu nascerem, aos seus pés, fossos abissais, que o separavam do resto do mundo, da vida que levara. Sentiu-se comprimido, circunscrito na liberdade, envolto em altas muralhas. E as maiores não eram as de cimento. “Fui desprezado por todos. Ninguém da minha família me foi visitar”, desabafa. Apesar da solidão, Hernâni decidiu aproveitar aquele tempo para concluir o 9.º ano, aprender a jogar xadrez, desporto que diz “não ser para todos”, e ocupar-se com outras actividades como a encadernação ou a alfaiataria. A mão cheia de anos a que fora condenado abriu-se mais cedo do que o esperado. Saiu antes dos 5 anos, por “bom comportamento”. Trouxe dentro de si memórias de “cadeiras pelo ar”, porque “na cadeia existe um código de ética”, quem comete determinados crimes “tem uma série de reclusos à perna”. Mas trouxe também boas memórias de prazeres fugazes, que o faziam suportar melhor a lassidão dos dias. Cartas, postais e bilhetinhos que trocava com raparigas, achadas
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Nas ruas de um sem-abrigo
em anúncios de jornais. “Algumas até foram visitar-me”, lembra. E trouxe não só na memória, mas também debaixo do braço um prémio literário. “Uma bofetada àquela sociedade fechada”, afirma Hernâni. Porque a escrita era, tal como agora, o refúgio para todos os silêncios e amarguras. Saiu, assim, de cabeça erguida e “cheio de garra. Uma garra que eu nunca tinha sentido”. Começou a trabalhar por conta própria em construção civil, mas 7 anos depois, “a quantidade de trabalho começou a baixar. Tinha demasiadas dores de cabeça com tudo e fartei-me”. Decidiu sair de Portugal. Rumou, então, para Espanha. Valência, Múrcia, Bilbau, Salamanca, Galiza, Santander, San Sebastián, Pamplona… durante 11 meses. A trabalhar ora em construção civil, ora em agricultura. Preferiu o norte ao sul. “A água do Mediterrâneo está sempre morna, gosto mais do frio do Atlântico”. E quanto ao povo, diz que “os espanhóis são mais quentes e os bascos mais temperados, mas bons amigos”. Porém, Espanha foi para Hernâni somente uma ponte. Um descanso na viagem. Porque o que ele desejava era o que vinha a seguir e estava ali mesmo ao lado: França. Entra num TGV e chega a Bordéus de mochila às costas. Ele e um amigo espanhol. Sem planos, dinheiro ou conhecidos. Nenhum deles sabia em francês mais do que “bonjour” ou “bonsoir”. Era ainda tempo das vindimas. “Agosto ou Setembro”, não se lembra ao certo, mas recorda-se bem do primeiro dia em que dormiu “no portal de uma igreja, dentro de um saco cama”. Ficou por ali durante 4 dias. Pediu dinheiro com um boné. Pediu às portas para comer. Viu a barba crescer até os traços da cara se sumirem. Sentiu o “corpo sujo e cheio de comichão”. Num Domingo, acorda no mesmo relento que o velara nos dias já passados, e as “lágrimas caiam-me pela cara. De raiva. Desespero. Chamo àquilo um delírio”. Levantou-se, arrumou a mochila, olhou para a cruz da igreja e disse: “aqui não fico. Hoje vou para todo o lado. Para qualquer lado, mas aqui não fico nem mais um dia”. Foi. Andou durante cinco quilómetros. Perdido nas ruas, largando o olhar nas vitrinas, tropeçando em quem encontrava. Até que a certa altura, “uns espanhóis disseram-me que numa rua à frente encontraria uns portugueses que me poderiam ajudar”. “Adelante!”. Encontrou. “Eu só quero trabalhar”, disse-lhes. Conseguiu. Casa e trabalho. Assinou contrato com uma empresa francesa de construção civil. “Recebia 1 200 euros por mês e morava em casa do casal português que me ajudou”. O trabalho corria de feição. Aos poucos começou a aprender francês. “Já andava com o Le Figaro debaixo do braço”. Mas “tinha saudades. Ouvia canções de Coimbra, à noite. Baixinho. E escrevia para acalmar o pensamento”. No entanto, Hernâni não pensava em voltar para Portugal, queria estabilizar, e ali, na “cidade de casas baixinhas”, assim se recorda de Bordéus, tinha a oportunidade de fazer “uma boa vida”. Mas o destino colocou-o fora de jogo. Hernâni teve um ataque de epilepsia, enquanto trabalhava. “Há 5 anos que estava bem, que nada me acontecia…”. Foi despedido. Deixou França. “A custo”. “Não foi fácil abandonar aquilo que eu estava a construir”. Passou por Espanha. Andou durante 4 meses à
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deriva como um barco que perdeu o norte. Regressou a Portugal. Trazia atravessada na garganta aquela situação, aquela “frustração”. E questionava-se: “não tenho direito a ser feliz?”. Voltou sem vontade. Porque os sonhos e as possibilidades, julgava ele, tinham ficado em França. E o ressentimento crescia. A desilusão. Veio para Coimbra. “Perdi a casa que tinha em Santa Clara. O irmão que me era mais próximo estava desempregado. O resto da família estava fechada nos seus condomínios riquíssimos e sem quererem saber de ninguém”. Mais uma vez estava só e sem tecto. Um amigo abriu-lhe as portas de casa e por lá ficou durante dois meses. Trabalhou “aqui e além”, numa empresa de construção civil. Certo dia, numa casa a uns passos abaixo da Sé Velha, na alta de Coimbra, Hernâni “já tinha caiado as paredes, andado em cima de andaimes e estava a assentar azulejos na casa de banho. Já não faltava muito para o dia acabar, tenho um ataque de epilepsia”. Novamente a doença a atropelar-lhe a esperança. “Não me despediram de imediato”, mas propuseram-lhe que de 6 euros à hora passasse a ganhar 3. “Ainda me restava um pouco de dignidade. Não aceitei”. Ficou, novamente, sem trabalho. A revolta aumentou, tal como a impotência contra uma doença traiçoeira, que se manifestava sem aviso. Sem hora, nem modos. “Foram situações deste género que me fizeram ir parar à rua”, diz num tom grave sumido, misto de raiva e dor. “Sempre encarei esta situação como passageira”. A rua representava o fundo das escadas. O grau zero. Era o ponto de partida para outro país ou simplesmente o espaço de espera até “arranjar o ordenado mínimo”. Todavia, assim não aconteceu. “Fiquei na expectativa, de braços cruzados, na indecisão. Acomodei-me”, admite. Os dias passaram. “Tristes” e “rotineiros” na sua maioria. Cheios de inércia e vazios de sentido. Quase sempre iguais. “Levanto-me às 9h/10h e, quando há moedas no bolso, vou tomar um café ao Instituto de Justiça e Paz”. Depois desce a Couraça e almoça “na cozinha dos pobres”. “À tarde vou, quase sempre, à Casa Municipal da Cultura”. Local de “refúgio”, onde se sente mais próximo da vida que corre à sua frente, onde encontra “sossego”. “Escrevo. Vejo um filme…”. Às vezes, “faço um trabalho aqui ou ali”. Mas o momento do dia “que mais gosto é quando adormeço e durmo bem. Quando me desligo do mundo, que actualmente pouco me interessa”. Liga a RFM e espera pelas 22h para ouvir o programa Oceano Pacífico. “A música transporta-me para outros estados, para outros sítios”. E deixa-se embalar,
devagar, desenhando passos de dança interiormente até cair num “sono leve”. “Há muitos que têm medo de dormir sozinhos na rua. Eu não, durmo descansado”. No início é que “custava mais. Houve alturas em que eles [os companheiros que dormem no mesmo local que Hernâni] já estavam a dormir e eu levantava-me, fumava um cigarro, andava às voltas a pensar em tanto e em nada…”. Também pelas 22h, aparece um grupo de voluntários, que “trazem café e bolinhos”, mas “só ficam 2 minutos, pouco mais que isso”. Até à meia-noite Hernâni fica por ali na conversa ou simplesmente a ouvir música, de olhar preso na Coimbra que adormece horizonte fora. Por entre as árvores que brotam do Jardim Botânico, vê a ponte pedonal “Pedro e Inês” brilhante, fulgurante de cor e luz, o Mondego a servir de espelho e, mais ao longe, a Ponte Europa, de mastros imponentes no ar. “Posso não ter nada, mas este é um sítio que exerce um certo fascínio. Tenho uma vista privilegiada sobre Coimbra. É uma imagem que vai deixar saudades”, confessa Hernâni, agora a um passo de deixar a rua. “Já tratei do rendimento mínimo. Daqui a um mês e pouco espero já ter quarto e duche”. Para trás vai ficar aquele espaço aparentemente abandonado, ao qual os estudantes chamam de “Químicas”, rodeado por um edifício imponente e frio, de paredes ‘graffitadas’ nos sítios mais recônditos, com lagos sem água, a não ser a das chuvas, e jardins sem flores, a não ser as que crescem selvagens. Em funcionamento está apenas a cantina, que de um lado serve comida, e à distância de um olhar pelo vidro da janela serve, em jeito de salada fria, três colchões semeados no cimento do edifício. “Acho natural que as pessoas olhem para ali. Eu também olharia… Da academia pouco tenho a dizer. Sempre me dei bem com os estudantes, só critico a sobranceria de certas pessoas…”. Dentro das duas malas que o acompanham vai guardar as dificuldades e “as saudades” daquele local, “mas sem vontade de lá voltar”. E vai cultivar os sonhos, que sobreviveram às intempéries. “Escrever um livro. Um livro sobre a família. Um livro cujo título está há mais de 15 anos na cabeça. Quando tiver espaço e paz”. De resto, quer apenas um esquisso da vida que já teve e “brincar com os netos”. Ser avô. Da discriminação, dos erros, da revolta, das lágrimas passadas, dos locais e das pessoas que conheceu guarda um ensinamento que cabe dentro de uma frase: “até num monte de lixo pode crescer uma flor. Li isto algures e diz quase tudo”.
texto: Raquel Carvalho
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A Ferreirinha de Fernando Pó Maria Leonor Freitas é uma morena na casa dos cinquenta. De cabelo curto, pele dourada e maquilhada, veste um fato de ganga tingida, com apliques de brilhantes e imitações de pele de crocodilo, que faria as delícias de uma cantora de country americano. Tem um falar tranquilo mas firme. Bastam uns minutos para perceber que é uma mulher de pulso. Por dentro do blazer à Dolly Parton veste uma camisola da cor do líquido que a faz levantar todos os dias: bordeaux. Quem vem de Lisboa em direcção a sul entra na 25 de Abril e segue pela A12 até à saída de Palmela. Já na nacional, segue em direcção a Águas de Moura até encontrar uma placa onde se lê “Fernando Pó”. Dentro da vila, ao fundo da rua principal Manuel João de Freitas está a casa vinícola Ermelinda Freitas. Estávamos em 1997 quando Leonor fez este percurso pela última vez. Deixou o Ministério da Saúde, em Lisboa, onde trabalhava como assistente social, e tomou as rédeas das vinhas. Vinha para f icar. Em dez anos transformou a pequena adega dos anos 20 naquela que é actualmente uma das maiores produtoras de vinhos das Terras do Sado. Manuel João de Freitas, pai de Leonor, e filho do homem que dá nome à rua principal da vila Fernando Pó, tinha acabado de falecer de forma inesperada. Ainda abalada pela perda do homem “mais admirável que conheceu”, Maria Leonor deixa a capital fria, urbana e agitada, e retorna às raízes: ao mosto, às caves, às parras, ao cheiro a vinho.
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Leonor Freitas
Leonor, que gesticula enquanto fala chamando a atenção para o vermelho fogo das unhas, não gosta de falar de si. Prefere falar do líquido de Baco. O vinho, que vê nascer, crescer e que prepara para depois lançar no mundo, “como um filho”. Há apenas dois assuntos que lhe põem um mesmo e único brilho nos olhos enquanto fala e agita as mãos. Os filhos, João e Joana, e o vinho que, graças a si, carrega hoje o rótulo da Casa Ermelinda Freitas. Os trabalhadores reconhecem-lhe o pulso de ferro à frente da gestão do negócio. Admiram-na e têm-lhe grande respeito. “Não só por aquilo que conseguiu, num curto período, mas pela forma como trata os empregados”. Fala-lhes de igual para igual, conhece-os a todos pelo nome, “entra pela mesma porta que eles” e dá logo pela ausência quando algum falta. Quem trabalha naquela casa, ou brincou no meio das vinhas com a menina Maria Leonor, ainda pequenina, ou andou ao colo da Dra. Leonor Freitas, já adulta. Quando falta alguém “na linha” – a linha de engarrafamento e rotulamento do vinho – Leonor desce do escritório até à adega e substitui o trabalhador ausente. “Sem problemas”, garante Ilda, na linha há mais de dez anos. “Ela foi criada aqui”, explica, “e isso faz muita diferença”, conclui. A mãe de Leonor, Ermelinda Freitas, que empresta o nome à casa e a algumas garrafas, corrobora Ilda. Relembra, saudosa, os Domingos em que a filha lhe aparecia com o fato domingueiro todo sujo, de ter ido brincar para o meio das vinhas. “Era muito ladina”, descreve
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Ermelinda, que recorda: “só andava bem atrás do pai, pelas vinhas, a comer uvas, metida no meio da produção”. Ermelinda nunca teve grandes dúvidas de que a filha ia acabar por ficar à frente do negócio. “Ela sempre foi muito resolvida”, assegura a mãe. Todos reconhecem na “patroa” grande humanidade, muita força e persistência. Mas também todos concordam que se “percebe logo quando a doutora chega maldisposta; ela tem um bocadinho de mau-feitio”, descrevem a medo, não vá o mau-feitio virar-se contra eles. Voz próxima da família vai mais longe: “quando ela se zanga a casa vem abaixo”. Na terra nem todos vêem com bons olhos o facto de uma casa tão recente ter vindo “roubar” mercado a casas tão antigas como a de José Maria da Fonseca, com mais de 150 anos de história. “Ainda por cima, uma casa de mulheres”, comentam entre dentes. Leonor recorda, com um certo brilho de vitória nos olhos, a primeira vez que sentiu na pele que o seu sexo não era uma mais-valia no sector. Foi no primeiro encontro de produtores da região. “Tinha acabado de chegar ao negócio”, conta a Ferreirinha lá do sítio, que na altura contava 38 anos. Leonor lembra-se perfeitamente da forma como o orador se dirigia aos convidados como “meus senhores e minha senhora”. A produtora, que garante que aquele encontro foi dos momentos mais desconfortáveis da sua vida, não tem dúvidas: “O que ele estava a dizer era que eu não era bem vinda ali”.
Os outros produtores tinham mesmo motivos para tanta desconfiança. Apesar da personalidade vincada, “que às vezes assusta”, não há como negar que Leonor Freitas é uma mulher de trabalho. Competente como poucas. Há dez anos o vinho vendia-se a granel, hoje as bebidas são todas engarrafadas. A casa produz moscatel, faz um dos melhores brancos do país (ranking 2007) e soma cerca de dois milhões de litros de vinho por ano. Talvez os produtores tivessem percebido, logo naquele primeiro encontro, a alma de homem por detrás da morena sedutora. Quando a família Freitas vai jantar fora, o empregado escusa de trazer a carta de vinhos. Já saem de casa com a bebida escolhida. Vinho, claro. “Qualquer um, desde que seja nosso”. Um amigo de família descobriu de que massa Leonor é feita num destes jantares. Sentaram-se todos à mesa e pediram um branco da casa Ermelinda Freitas para acompanhar o peixe assado, que não tardava a chegar. O empregado serve primeiro o senhor, Arménio Campos, marido de Leonor, que prova o vinho e reticente dá o copo à mulher para a avaliação final. Leonor foi peremptória: “pode servir, está óptimo, como sempre”, assegurou com o seu sorriso de mulher que só mesmo entre os produtores da região é que atrapalha. O vinho estava azedo. “Alguma rolha mal colocada, às vezes acontece”. Mas estava “óptimo como sempre” e toda a gente à mesa bebeu o vinho estragado. O líquido nos copos era sangue do sangue dela. E Maria Leonor Freitas é uma mãe-galinha. Defende os filhos com unhas e dentes. texto: Martha Mendes
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Possivelmente os escritores
são pessoas com um traço histérico Entrevista: Lídia Jorge
Mulher até à ponta dos cabelos, de olhos verdes, grandes e profundos. A escritora Lídia Jorge responde sobre a sua vida e obra num apartamento lisboeta, cheio de luz, arte, f lores e livros. De figura elegante, é uma mulher simples e simpática, que olha nos olhos e veste com descrição. Reflecte sobre as perguntas que lhe são feitas à medida que responde. Como se estivesse a aprender a andar. Cruza as mãos sobre o regaço, numa tranquilidade que inspira, enquanto fala numa voz que não nega o sotaque das raízes algarvias, que assume com orgulho. Lá fora a cidade acontece. Os condutores buzinam, os pneus chiam em travagens bruscas, as pessoas passam umas pelas outras apressadas, como é normal no coração da grande Lisboa. Cá dentro, uma das maiores escritoras portuguesas contemporâneas senta-se à minha frente e entrega-se. Cita Freud, que associava a criação de personagens à histeria. Refere o tempo que passou em África e fala de si, da infância, da escrita, do ensino e dos afectos. Lamenta “a falta de coragem” que não lhe permitiu escrever tudo o que queria. Ouço tudo, escavo até ao fundo, procuro saber mais, até que também a mim me falta a coragem. A pergunta fica por fazer: “De que dores é feita a sua estória para sentir na pele que há mulheres que precisam que gritem por elas?”. Não me arrependo. Demo-nos demais. A sala cheira a fruta e a flores. O cheiro a carinho sai das fotografias a preto e branco dos familiares, expostas em mil molduras. Mulher até à ponta dos cabelos, bonita e inteligente, aos 61 anos Lídia Jorge faz literatura até a conversar. texto: Martha Mendes
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Entrevistas
Acabou de lançar o primeiro livro para a infância, “O Grande Voo do Pardal”. Porque é que só agora começou a escrever para crianças? Porque é muito difícil e é necessário ter uma predisposição. Escreve-se para crianças quando se tem algumas respostas fundamentais na vida que têm a ver com a ligação afectiva e de carinho entre o adulto que se é e a criança que existe. Para isso é necessário ir buscar a criança que se foi. E é preciso ter algum tempo disponível na nossa vida para escutarmos esse ser infantil que ficou. E só agora é que eu consegui escrever uma estória assim. Então escrever para crianças requer maturidade. Sim, requer maturidade. Mas também requer uma ligação sábia com dois universos: o da maturidade e o da infância que ali ficou, que tem todos os dados para crescer mas que ainda está no início da vida. Nasceu em Boliqueime: quais as principais memórias que guarda da sua infância? As memórias fundamentais são da terra e da família. Da terra guardo a relação com os animais, como eles existiam na altura. Eram verdadeiros animais domésticos no sentido em que ajudavam a viver. Eu ainda assisti a essa relação pragmática com os animais. As pessoas sentiam nos animais os seus prolongamentos, os seus companheiros. Guardo uma relação com os animais muito forte dessa época, bem como com a natureza. Esperar por que a natureza tivesse o seu tempo, esperar pelo verão e depois pelo Outono. Esperávamos pelo verão para haver tomates, esperávamos pelo Inverno para haver repolho, esperávamos pela primavera para haver ervilhas, favas. Havia uma relação do tempo inclusive com a gastronomia. E o tempo era lento. Eu guardo essa… Nostalgia? Não é nostalgia, não sou nada nostálgica, mas guardo essa recordação, uma lembrança muito forte de como isso fazia um risco na alma das pessoas, de como isso modelava a alma de cada um. Assim como modelava a ideia de que a natureza era lenta e era preciso ser trabalhada para dar fruto. E havia uma espera. Esse compasso de espera não é nada desta geração: nós hoje queremos tudo, no momento, já e cronometrado. A nossa esperança e a nossa expectativa, ela própria, é hoje cronometrada. Nesse tempo não era assim. Havia entre o homem e o acontecimento aquilo a que se chamava a divina providência, uma mistura do acaso com uma relação com a magia, com a superstição. Havia uma relação com a metafísica. E isto tornava os homens carentes de sinais que não tinham a ver com a sua força. E essa era a cultura rural. Hoje, a cultura urbana é uma cultura de responsabilização do outro. Responsabilizamo-nos, responsabilizamos o outro, o Governo, o Estado, etc., e se nos acontece alguma coisa queremos encontrar um culpado objectivo e cívico, na altura. Numa cultura rural não é assim. O responsável é algo difuso, uma força superior perante a qual os homens ficam pequenos, amesquinham-se naturalmente, dobram o joelho. A cultura do campo é uma cultura heróica porque é a cultura da valentia daquele que tem de dialogar com a divindade. Adoptou o Algarve como cenário no seu livro “O Vento Assobiando nas Gruas”. É ligada ao sítio onde nasceu? Sente-se algarvia? Sou muitíssimo ligada. Foi um local de aprendizagem muito forte e um local de referência e de comparação; mas além disso foi, e continua a ser, uma das zonas do país onde as tensões entre o passado, o presente e a mudança, os interesses e a cultura dos interesses, são mais visíveis. Como um mapa claro de todas as tenções humanas. É um sítio onde se aprende tanto! Onde a vida humana e a mudança moderna está tão aberta, tão clara, que é um local absolutamente ficcional. Não preciso de dar muitos passos lá em baixo para que a matéria ficcional me entre pela janela da vida. Lembra-se o que é que queria ser quando era criança? Sim, lembro-me (risos). Eu fui tendo as expectativas que via à minha volta. Um dos meus primeiros sonhos foi ser cabeleireira. Gostava muito de arranjar os cabelos das minhas amigas, mexer na cabeça delas, enfeitá-las. E o meu sonho quando tinha aí sete, oito anos era (risos) ter um salão. Imaginava ter um salão com muita gente e eu a cortar cabelos (risos). Era uma espécie de noção de poder que eu queria ter e de modificação sobre os outros. Depois, a certa altura apaixonei-me pelos professores e queria ser professora. Mas aos dez anos eu escrevi um texto onde dizia que queria ser como a Safo. Aos dez? Aos onze, acho que já tinha onze anos. Queria ser como a Safo aos onze anos...? Bem, eu não sabia o que é que significava na sua totalidade! Sabia apenas que tinha sido uma grande poetisa da antiguidade. Tinha visto numa revista a imagem idealizada da Safo: ela agarrada a uma rocha, na ilha de Lesbus. E eu era uma criança, só sabia que a Safo era poetiza – como na altura se dizia “grande poetiza de Lesbus” – e eu queria ser como ela (sorriso), desconhecendo completamente todas as implicações (risos) eróticas. Isso foi muito marcante na minha vida. Nessa altura já queria publicar livros. Foi daí que veio a escolha pelo curso de Filologia Românica? Foi, sem dúvida. Tinha 15 anos quando tive de fazer a escolha. Era melhor aluna nas disciplinas de Matemática, Física, Geografia, Ciências Naturais. Gostava imenso das Ciências da Vida e da Geografia, da parte da cosmografia, gostava muito. Mas havia uma matéria
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que eu fazia por gosto e sem esforço. Ler. Ler e escrever. E quando pensei que podia ir para um curso que toda a vida me permitiria ler e escrever não hesitei. Apesar destas serem, na altura, as minhas notas mais baixas. Os professores até ficaram um bocado surpreendidos com a minha escolha. Falemos então da sua escrita. Os seus romances são, por vezes, comparados com a literatura sul-americana. Revê-se nestas comparações? Não propriamente. Acho que são abordagens superficiais que têm sobretudo em conta os meus dois primeiros romances, “O Dia dos Prodígios” e “O Cais das Merendas”, que são próximos da atitude sul-americana de narrar o ficcional. Muito preenchido, com muito detalhe e com mágica lá dentro. Mas devo dizer que essa associação tem a ver apenas com o facto de eu ser uma escritora profusa. Acho que tenho uma outra vivência. Tenho uma atitude ontológica e política e uma crença e um desejo de ser testemunha da realidade que não me faz ser tão pós-moderna assim. O que pensa da literatura portuguesa contemporânea? Somos poucos a escrever em Portugal. Para aquilo que se espera de nós somos poucos. São muitos os que tentam, mas escritores que se entreguem a isto seriamente não são muitos. Mas estamos bem representados. Representamos bem o país e temos uma cultura com uma grande dignidade e, sobretudo, não somos mais uns. Somos muito próprios, muito específicos. Eu diria que o melhor é quando não nos parecemos com ninguém. Naturalmente que todos temos as raízes das leituras que fazemos, mas acho que há escritores em Portugal que são muito individualizados e que são, de facto, os melhores. Hoje temos alguns nomes muito importantes. Basta só dizer, a título de exemplo, que actualmente o nosso prémio Nobel da Literatura é o prémio Nobel mais destacado no mundo inteiro. Isto significa alguma coisa. Os portugueses estão melhor representados na literatura do que no futebol. Qual foi o último bom livro que leu? O último bom livro que li… Deixe-me ver… Para ser sincera, porque vale a pena sermos sinceros (sorriso), recentemente foi o livro do Rodrigo Guedes de Carvalho, o último, “O Canário”. Gostei bastante. Ele aposta com seriedade num tipo de narrativa, entrega-se bastante bem. Foi um livro, dentro dos livros dos escritores mais jovens, que me deu muita alegria por ver que existe uma sequência de autores que se interessam, de facto, por aquilo que é a literatura e que a estão a fazer como deve ser. Disse-me há pouco que a imagem do professor lhe surgiu, muito cedo, como um sonho. Mas também começou a escrever desde muito jovem. Como profissão acabou por escolher o ensino. Não conseguia viver só da escrita ou ser professora foi mesmo uma opção consciente? Ser escritor não se oferecia no meu tempo como uma profissão. Aliás, até há muito pouco tempo essa profissão não existia nem sequer em termos de impostos. Ainda não existe! É uma profissão fluida e se calhar convém ser assim porque talvez nem seja uma profissão, se calhar é uma outra coisa, é uma ocupação, uma outra natureza, não sei. Mas a certa altura eu podia ter ficado só a escrever. Só que não fui suficientemente corajosa. Tive receio da minha vida vir a depender, depois, da publicação. Receava que essa dependência tivesse consequências na sua criatividade? Sim. Não há nada mais triste do que ter de escrever romances alimentícios. Se fosse para um núcleo restrito, só para eu sobreviver ou só para o marido sobreviver… Mas não. Eu tinha dois filhos! Pequeninos. Muito pequeninos. E eles estavam a meu cargo. Tive de fazer essa escolha. Sei que escrevi metade do que queria escrever, talvez um terço do que queria escrever. Lamento isso, percebe? E sobretudo lamento não existirem várias vidas (risos) porque assim eu poderia… Gastei parte muito importante da minha vida a fazer alguma coisa que também gostava de fazer, portanto não foi um sacrifício assim tão grande. Mas, de facto, perdi bastante daquilo que deveria ter feito que era ter-me entregue à escrita de forma mais forte. E o que desejo a todas as jovens que queiram escrever é que tenham mais coragem do que eu tive na altura. Um escritor ensina os alunos a “ler” melhor? Há uma maior capacidade de um professor-escritor para ganhar os alunos para a literatura? Há de tudo. Há os escritores que fazem odiar a literatura, que não têm a chama. Têm o gosto da literatura mas para o passar é preciso amar muito as pessoas que estão à nossa frente e ter paciência e um grande respeito por elas. Sobretudo, ter o dom da paciência. E nem todos os escritores têm esse dom. Estão centrados, o que é muito justo, na sua própria obra. Há outros que de facto têm essa capacidade e então são óptimos professores, são aqueles professores de quem os alunos dizem que são inesquecíveis. Por exemplo, os alunos de Literatura do Vergílio Ferreira dizem que as aulas dele eram inesquecíveis. Foi precisamente Vergílio Ferreira que aconselhou o seu romance “O Dia dos Prodígios” para publicação. Como é que ele chegou à obra? Eu não conhecia o Vergílio, foi um acaso extraordinário na minha vida. Eu dava aulas no liceu Dona Leonor e conheci a mulher dele, a Regina Kasprzykowky. Eu tinha um livro escrito e apresentei-o na editora, as publicações Europa-América, e lá ficaram muito admirados. Eu fazia traduções para esta editora e uma vez em vez de levar apenas a tradução levei também o meu original e disse “têm aqui, leiam”. Leram e passado pouco tempo telefonaram-me a dizer que estavam muitíssimo surpreendidos com o livro e perguntaram-me se havia algum escritor que o pudesse ler. Eu não o conhecia, mas falei com a Regina que levou o livro às mãos do Vergílio. E depois foi um idílio.
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Guarda boas memórias dele? Ah sim, guardo! Muito boas memórias. Aprendi imenso e sobretudo tive uma relação de afecto fortíssima e de grande admiração por ele. O Vergílio gostava da literatura acima de tudo. Era um homem que tinha uma certa amargura na relação com os outros. Era mesmo descrente nas relações humanas, porém, gostava tanto, tanto, de textos de literatura que com ele entrava-se para um outro nível, um nível sério. Quer dizer, deontologicamente, verdadeiramente, ele era um escritor. Para além de ser um grande escritor era alguém que deu tudo pela literatura e a gente sentia isso quando se sentava diante dele.
“Conheço bem a minha própria estória para não me colocar do lado das mulheres e defender a sua autonomia” A temática da mulher está presente em muitas das suas obras. A sua escrita é feminista? (Silêncio) não, é feminina. Não é feminista porque não quero roubar um adjectivo tão importante a um grupo de pessoas que, de facto, foram e são feministas, defendem os direitos da mulher através da literatura. Eu defendo os direitos da mulher. Luto pelos direitos das mulheres do ponto de vista cívico, do ponto de vista legal. Na literatura as personagens femininas têm muita força, assumem um grande papel, mas quando escrevo não escrevo expressamente na defesa da figura feminina. Não consigo fazer isso. A figura feminina dentro dos meus livros é sempre apenas uma parte do diálogo. Gosto é de colocar os grupos humanos, os homens, as mulheres, as crianças, os velhos, possivelmente outros seres, até os irracionais, em diálogo, como se fosse uma espécie de criação, o pequeno sexto dia do meu pequeno génesis. E não posso escrever uma linha pensando “esta é uma defesa só para as mulheres”. Não consigo! Elas têm de estar sempre em companhia. Na companhia da globalidade. Isto do ponto de vista da escrita. Fora da escrita, naturalmente, as mulheres estão ainda em muitas culturas subjugadas. E na nossa as coisas estão a mudar, mas mesmo assim a mulher portuguesa ainda é muito subdesenvolvida, portanto quando é necessário falar mais alto por elas eu estou completamente envolvida. Conheço bem a estória da minha mãe, das minhas tias, da minha avó e a minha própria estória, para não me colocar do lado destas mulheres e defender a sua autonomia. Quando deu a cara pelo “sim” na discussão da despenalização do aborto estávamos a viver uma situação em que a mulher portuguesa precisava de figuras fortes que falassem por ela? Claro. Estou contente por ter sido assim, e orgulhosa porque o país modernizou-se. Foi dos dias mais tensos da minha vida, o dia daquela votação. Pode parecer estranho às pessoas que estão do outro lado que isso seja assim, mas de facto antropologicamente, sociologicamente, é um passo imenso para a sociedade portuguesa. Foi um dia histórico para nós, o dia 11 de Fevereiro de 2007 (sorriso). Na “Costa dos Murmúrios” conta a guerra através de um olhar feminino – a esposa de um oficial do exército português. Porquê esta opção? Quis escrever sobre a guerra. Aquela guerra. E o que aprendi com ela. Mas o único olhar que eu tinha, real, era o meu, portanto esse livro não é autobiográfico mas o olhar é autobiográfico. Foi o olhar que eu colhi. Um olhar de impotência, que é o olhar da espia que entra na casa da guerra. A personagem Evita tem em comum comigo ser essa espia que entra, não tem voz, não sabe dizer nada, não pode dizer nada, só escuta o relato e apercebe-se, porque não está no centro das operações. Como é que os jovens, que em geral são impulsivos e generosos e gostam de arte e gostam de se empolgar com movimentos bons, são arrastados para causas que são contra a história e contra o direito internacional? Porquê? Como é que se chega lá? Porque é que boas pessoas se envolvem em causas más? Pensar sobre isto através das personagens foi muito importante para mim. Eva Lopo poderia chamar-se Lídia Jorge? (Silêncio) Em parte, acho que sim. Eva Lopo aparece como uma personagem contra-corrente em relação aos preconceitos da época – é uma mulher que fuma, tem uma sexualidade assumida – e a Lídia Jorge parece rever-se nessa personagem… Sim. Sim. Corresponde a um tipo de personagem, um tipo de mulher que havia na altura, jovem, que representava aquilo que hoje olhamos para trás e rimo-nos quando percebemos (risos) que significava transgressão (risos). Havia, de facto, um grupo vasto de raparigas que tinham uma cultura universitária, que se assumiam e não queriam mais ser como as mães e que tiveram muitas dificuldades. Foi uma geração com grandes dificuldades de relacionamento com os homens, com os companheiros. Foram as primeiras mulheres que se assumiram independentes, que se quiseram divorciar, não aguentaram ser batidas, ser humilhadas. Não aguentaram ficar na obscuridade. Quiseram dizer “eu” de viva voz, escreveram coisas, começaram a ler e a escrever as suas próprias vidas (sorriso). Fomos as primeiras, de facto. As nossas mães, muitas delas, já nos tinham encaminhado para a libertação, a afirmação, e para a autonomia mas ainda ficaram submetidas a determinados tabus.
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E como é que as mães lidavam com esse rompimento por parte das filhas? Com dificuldade! Porque queriam e ao mesmo tempo tinham medo do que iria acontecer às filhas. A relação mães/filhas dessa altura foi um bocado complicada, por isso mesmo. Porque elas queriam e honravam-se das filhas, pensavam “elas vão fazer o que eu não fiz”. Mas ao mesmo tempo tinham medo porque transgressão podia significar castigo, podia significar humilhação, não ser feliz. Começava-se, na altura, a falar em famílias perturbadas; hoje nós falamos nas famílias desestruturadas e disfuncionais como alguma coisa já codificada, mas na altura não era assim. Na altura falava-se na “rapariga divorciada”. Eu ainda fui estigmatizada por isso. Era uma “rapariga divorciada”. Era um rótulo. Havia raparigas da minha idade que na altura não queriam falar comigo só porque me divorciei. Compreende? Isto é estranhíssimo! Hoje olhamos para trás e pensamos como é que era possível?! Mas era possível! E isto há trinta anos… Ontem, percebe? No entanto, dos poucos livros que a Lídia dedica, individualmente dedica um livro à sua mãe e outro à sua avó. Foram presenças fortes na sua vida? Sim, foram. A minha avó ensinou-me o rigor, o dever e o sentido do respeito pelo outro. A minha avó tinha esse sentido do rigor. A minha mãe teve o sentido da modernidade. Eu não fiz nada, acho que não fiz nada, queria ter feito outras coisas, fiz pouco, mas o que fiz devo ao cruzamento desses dois pilares. A minha avó, mais inteligente, era muito inteligente, não era propriamente analfabeta mas não tinha ido à escola, era auto-didacta, tinha aprendido sozinha. Tinha um sentido absolutamente extraordinário do rigor das contas, do trabalho. Até no respeito que ela tinha pelos animais impressionava. Nunca vi ninguém cuidar dos animais como ela cuidava. Parecia sentir a dor dos animais. Levantava-se de noite para tratar da mula, do cão. Era uma pessoa com um respeito pelos outros seres, uma coisa extraordinária. Muito inteligente, com uma capacidade de expressão extraordinária. As pessoas até tinham receio do olhar dela porque ela encontrava a palavra adequada e a sentença certa para a situação. A minha mãe não tinha a profundidade da minha avó, mas tinha um espírito muito mais aberto. Na minha aldeia fui a primeira miúda a ir estudar depois da quarta classe. As pessoas não iam estudar depois da quarta classe. As meninas passavam para a costura, e coisas do género, e depois casavam. A minha mãe recusou-me esse destino e separou-se de mim quando eu tinha dez anos para me deixar estudar. E confiou em mim. Ela confiou em mim, percebe? Deu-me confiança. Deu-me muito pouco dinheiro, na altura não tínhamos muito dinheiro mas ela deu-me o que tinha. Pô-lo na minha mão, deu-mo para eu me gerir e, sobretudo, separou-se da única filha quando já não tinha marido. Foi um sacrifício enorme que ela fez em nome do meu futuro, pensando “a minha filha há-de ter um curso e há-de ter uma profissão para se bastar a si própria”. Ela nem sequer conhecia a palavra “autónoma” mas utilizava palavras que significavam isso. Então eu não sou eu. Sou o empurrão dessas duas mulheres. E quando elas partiram como é que lidou com isso? Como é que lida com a morte das pessoas que lhe são queridas? A minha mãe está aí, saudável, e é um encanto de pessoa. É uma mulher que vive sozinha no alto de um monte, numa casa muito grande que gere sozinha. Ela tem noção de que está acompanhada com os seus objectos e com as plantas que vê crescer todos os dias. É um exemplo. A minha avó morreu já com noventa anos e foi muito difícil aceitar que ela não estivesse cá. Sente a morte como algo anti-natura? Sim, a nossa vida é de facto para dizer a todo e a cada instante que a morte não tem sentido. Nós vivemos a dizer “a morte não tem sentido”. Aceitamo-la mas não tem sentido. E é por isso que estamos as duas aqui sentadas. Quanto mais vivemos mais achamos que a morte não tem sentido. Espera conseguir vir a ser uma presença tão importante na vida dos seus filhos como a sua mãe e avó foram na sua? Não tenho essa ambição. Era ter uma ambição muito, muito, grande. Os meus filhos tiveram já a sorte de ter uma relação mais moderna do que a minha com múltiplas instituições, com outros países. Têm uma experiência tão diversificada! Tão intensa! Tiveram professores fantásticos, pessoas amigas mais velhas. Com certeza que a minha figura não é tão determinante na vida dos meus filhos como a minha avó e a minha mãe foram na minha, porque elas foram únicas. Qual é a sua relação com Deus? (Silêncio) Zango-me com ele. Quer dizer, com essa imagem (risos). Não é pacífica. Se não existe pergunto porque é que aparece este fantasma a dizer “eu existo, eu existo”! Se não existe porquê este fantasma na nossa vida? Joga ao gato e ao rato connosco. Depois há uma coisa que não entendo. Se existe e na nossa concepção tem uma ordem, deverá haver uma ordem, há momentos de desordem na história que não consigo compreender. Como pode deixar que tantos inflijam tantos sacrifícios a tantos. Se olhamos para uma criança com fome, e é das coisas mais trágicas ver uma criança com fome… é a coisa mais triste que pode existir, porque a criança fica com o olhar parado e estende a mão…. Eu pergunto qual a razão disto. Um lado da terra esbanja tanto, tanto, como eu esbanjo – o meu caixote do lixo tem, por dia, comida para três crianças que, no entanto, não pode chegar às crianças que estão do outro lado. Que deus será este que deixa à face da terra o mundo organizar-se, como a Agustina Bessa Luís dizia, como um balde de lixo entornado? Porque é que se entorna um balde de lixo sobre a terra? Deus não quer intervir no plano histórico? Quer ser supra-histórico? Quer ficar metafisicamente, para além da física? Se é assim então sou uma mulher revoltada. Não aceito a natureza. E a única resposta que tenho é que se não entendo isto só há uma coisa que sei: é que ao menos podemos ser irmãos. E se somos irmãos, ao menos, devemos procurar essa ligação de igualdade e semelhança com os outros porque entretanto o resto a gente não sabe. Porque eu, pelo menos, ponho estas dúvidas todas.
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E com a Igreja? (Silêncio) Com a igreja é muito complexo. Eu retiro a igreja do mundo e acho que este fica pior. A igreja, historicamente, e actualmente ainda é, continua a ser, um local que prega passividade. Mas eu considero que é uma fonte de injustiça. Apesar de pregar a justiça tem sido historicamente, e continua a ser, uma fonte de injustiça porque cala sempre a vítima, está sempre ao lado do algoz. De uma maneira geral, pregando o contrário, remetendo para a justiça celeste, fora da terra, extra-terrestre, convida a que a justiça não se faça neste mundo. No caso do aborto, por exemplo. No caso do aborto pode ter uma atitude de compreensão mas é para perdoar o pecado. A igreja é Mãe para perdoar o pecado, mas não é Mãe para evitar a injustiça em relação às mulheres. Não é suficientemente clarividente para ver que há uma injustiça biológica entre o homem e a mulher.
O encontro com Áf rica : “ ia iniciar uma vida que pensava que era para sempre” Tinha 37 anos quando partiu para África. O que é que a levou para lá? Nessa altura eu era casada com um militar e portanto ia fazer aquilo que as raparigas jovens fazem (risos): ia procurar ter uma vida seminormal, ao lado do marido. Porque ele era de carreira e portanto seria sempre, não era uma pessoa que fizesse apenas uma comissão, iria fazer toda a vida. E eu ia iniciar uma vida que pensava que era para sempre. Depois não foi. Porque é que regressou a Portugal? Porque o trabalho do meu marido tinha terminado e portanto a situação tinha de ser esclarecida. Não havia mais nada a fazer lá. Antes de escrever “A Costa dos Murmúrios” disse que a história da Guerra Colonial ainda estava por escrever. Agora, já se escreveu? Não. Ainda não se escreveu, ainda está em plena construção. A geração que a interpretou precisa de alcançar aquela idade em que a recordação e o sonho se transformam numa única nebulosa para se atingir esse grau de totalidade. E precisamos, ainda, de alguém com mão de artista, que chegando a esse desprendimento face à História, consiga fazer essa proeza. Mas já há suficientes livros para se poder dizer que a crónica desse tempo está feita.
“Em miniatura , cada livro acaba por ser o percurso de uma vida” Como é que é o seu processo criativo? É disciplinada a escrever? Determina quantas páginas tem de escrever por dia? Eu sou a desordem (risos). Sou a desordem completa (risos). Então não é disciplinada a escrever? Não, mas uma coisa é ser regular, outra é ser disciplinado. O facto de eu não escrever todos os dias não quer dizer que não seja disciplinada. E o que é isso da “escrita disciplinada”? Pois, também não sei. Sei que gosto de ter tempo diante de mim. Se sei que tenho coisas para fazer que me vão interromper não consigo concentrar-me. Prefiro logo fazer tudo para ficar com tempo pelo menos antes de dormir. Poder pensar que até dormir não vou ter mais nada para fazer e, sobretudo, gosto de imaginar que tenho três, quatro, cinco dias pela frente. Aí sou capaz de estar muitos dias a escrever. Muitos. Neste último romance estive 71 dias, lá em baixo, no Algarve, assim, seguidinhos, não fui à praia, estive ali sempre a escrever. Não sou disciplinada por isso? Sou disciplinada. Tanto é que consegui isso e quando terminei, terminei, portanto houve uma disciplina. Não sou é regular. Não sou muito mundana mas sou de muito convívio. Gosto muito das pessoas, de me encontrar com elas. Tenho muitos amigos e gosto muito da vida. Então tenho dificuldade em fechar as portas às pessoas, negar encontros. E a certa altura falta-me o tempo, e faltando-me o tempo a única coisa que posso fazer depois é grandes ausências em que tranco tudo e não estou. Faço uma ausência total. Escreve à mão ou a computador? Faço um misto. Tomo notas e escrevo frases e algumas páginas à mão, mas claro que escrevo depois no computador, imediatamente.
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Quando começa a escrever sabe exactamente os caminhos da estória ou vai deixando que estes se trilhem? Quando começo a escrever tenho a ilusão de que sei os caminhos. À medida que vou caminhando sei que é uma miragem (risos). Um bocadinho como os projectos de vida? Exactamente! Tal e qual! Aliás eu acho que, em miniatura, cada livro acaba por ser o percurso de uma vida. Fazemos um projecto, começamos a caminhá-lo, depois há um desperdício, pomos de lado e há outra coisa maravilhosa que são os novos encontros, que não estavam previstos e que aparecem e, em geral, nos encaminham noutras direcções. E o final já não tem a ver com o início. Vive os seus livros? Sofre a fazê-los? São duros? São exigentes, não são duros. São de uma exigência às vezes de esgotamento. Esgota e muitas vezes esgota precisamente quando a pessoa mais entusiasmada está. E é bom isso acontecer. É uma exigência sem martírio, um trabalho sem martírio… nem sei como é que lhe hei-de explicar. Com prazer, com um sentido de plenitude, pelo menos. Um livro vive em si mesmo ou depende do que lhe vem de fora – a leitura? Depende muito da leitura. Não acredito que um escritor se faça escritor sem ter passado pela adolescência. Sobretudo pela adolescência, na infância todos começamos mas depois muitos deixam de ler, mas a adolescência é o grande momento em que se escolhe gostar-se dos livros ou não se gostar. É aí que nos separamos em grandes famílias humanas, os que lêem, os que não lêem, os que entendem o que é essa coisa da poesia, que gostam de uma página bem escrita porque encontrar uma página bem escrita é tão emocionante quanto encontrar uma pessoa interessante. É na adolescência que essa distinção se faz e eu li muito na adolescência e li muito na juventude e continuo a ler pela vida fora. Há momentos de intensa leitura, outros momentos em que escrevo sobretudo. Por exemplo, houve um livro aqui há uns anos que se chamava “O Meu Nome é Vermelho” de um escritor que ninguém sabia em Portugal quem era, o Pamuk. Li-o e pensei “este livro é tão maravilhoso, tão maravilhoso, que este homem vai ter o prémio Nobel em breve”. Isto foi em 2002, há 5 anos. Sei isto porque o meu livro, “O Vale da Paixão”, entrou numa short list internacional para um grande prémio que dão na Irlanda. E quando vi que aquele livro estava na lista sabia que o meu não podia ganhar porque estava lá aquele. E a verdade é que foi aquele mesmo aquele livro que ganhou. Era impossível não ganhar – só se o júri estivesse doido – e felizmente ele foi prémio Nobel e agora está a ser publicado aqui. É curioso, não é? Não o publicavam porque era grande e enfim… Estas coisas dos editores. Mas por mais que eu leia esse livro nunca posso escrever uma obra como aquela. Porquê? Porque é outra cultura, é outro mundo. Eu seria a coisa mais falsa se quisesse responder àquele livro. É um universo que eu admiro profundamente mas não tenho resposta para ele. E, no entanto, há outros autores que leio actualmente e tenho resposta para eles. Quer dizer, vou seguindo-os, sou do seu mundo, estou dialogando com eles. Há, realmente, livros que têm eco na minha maneira de escrever. Quando está a escrever pensa sobre o impacto que as suas obras podem ter sobre as pessoas? (Silêncio) Não. Pode aparecer no subconsciente, ou assim à distância, a pergunta “o que será que vai acontecer?”, mas não está lá. Não é ingrediente da organização e da estrutura de fazer um livro, esse visitante estranho. Enquanto se escreve essa visita não tem cabimento, não é chamada (sorriso).
“Antes de serem de papel , [as personagens] são seres da alma” A palavra, isto é, a linguagem é uma arma? Pode-se lutar através dela? Acredita no poder da caneta para mudar o mundo? A linguagem é uma arma e o domínio dela é a arma mais poderosa que temos. Sobretudo quando imaginamos que a linguagem dirime as questões do direito. As sociedades são tão mais violentas quanto menos plasticidade no diálogo e na utilização da linguagem existir, para conjugar as várias pessoas, os vários pronomes que designam as várias identidades dos seres. Acredito que grande parte da violência entre as pessoas advém de elas não terem os instrumentos para dirimirem verbalmente aquilo que desejam e por isso recorrem a outros actos. A educação cívica e ontológica, da pessoa, passa por ter o maior número de instrumentos verbais possível para expressar os desejos, as inquietações, o direito que lhe assiste, as obrigações que quer explicitar, o direito ao trabalho, à defesa, à incriminação. Matérias que provém do domínio da linguagem. A grande cidadania está aí. A escrita é uma forma poderosa porque inscreve em pedra, torna pesado, aquilo que são esses pensamentos e direitos.
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Sobre o seu livro “Combateremos a Sombra” disse que apesar de nunca ter feito psicanálise teve um psicanalista a bater-lhe à porta de forma tão insistente que acabou por deixá-lo entrar. São as personagens que vêm ter consigo? Algumas até parece! (risos) Naturalmente que é um jogo. A gente sabe que não há fantasmas que venham bater à porta, nenhuma musa, nem nenhuns seres fantásticos, vêm bater-nos à porta. São ilusões nossas. De tal forma, vivemos estas ideias fixas, que elas acabam por ficar materializadas na nossa cabeça. Por algum motivo Freud associou muito a ficção e a criação de personagens na literatura à histeria. A histeria faz isso. É uma doença cujo um dos aspectos consiste, precisamente, em criar figuras múltiplas que têm como que consistência própria. Acho isto muito interessante. Possivelmente os escritores, quer os dramaturgos, os ficcionistas, os romancistas, contistas, novelistas, seremos pessoas com um traço histérico porque de facto temos essa capacidade de nos desmultiplicarmos em figuras várias que acabam por ter como que uma espécie de realidade, realidade material. Tenho vários exemplos com personagens. Por exemplo, este último [Osvaldo Campos] desse último livro, ainda vive muito forte na minha vida. Passam três, quatro dias que não penso nele e depois quando ele volta é como se tivesse saudades! Digo-lhe “olá, como estás? olha eu estou ainda aqui!”. Ele está tão visível na minha cabeça! E é curioso… Apesar da fotografia da capa apontar para o Osvaldo Campos eu sei que o Osvaldo Campos é outro. É alguma coisa que sonho com cores, as cores naturais, mas são todas esbatidas como se fosse uma penumbra persistente mas com uma certa nitidez de desenho. É tão forte, tão forte, que é uma coisa habitada. É um habitante. Diz que “nem sempre é fácil encontrar personagens que dêm um ser”. Como é que se dá conteúdo, humanidade, àquilo a que Roland Barthes chamava seres de papel? Precisamente… Ele diz que as personagens são seres de papel. E desmistifica o preconceito romântico de que a personagem existia por si. Hoje isto até é ridículo de dizer, sabemos que todos são “seres de papel”. Mas antes de serem de papel, eles são seres da alma. Só passam ao papel porque estão na nossa cabeça. Por isso, antes de mais são seres da alma de quem escreve e seres da alma de quem lê. O papel é um veículo e nada ali está. É o papel fotográfico onde está impresso aquilo que pré-existe, a figura fotografada que se oferece à imagem da pessoa que se observa. Mas quem existe é a figura que foi fotografada, e a pessoa que depois mira a fotografia. O resto é um intermédio. Inspira-se em pessoas reais, suas conhecidas, para chegar às suas pessoas de papel? Não, nunca me inspiro em pessoas que conheço. Uso-as apenas para lhes roubar gestos ou feições, pensamentos ou frases. Mas estes detalhes são sempre e apenas enfeites das personagens, nada mais. A personagem tem uma personalidade própria, levanta-se do leito das palavras, o que significa que em termos concretos nasce do nada verbalizado. Em “Combateremos a Sombra” a estória circula à volta de um psicanalista, “Osvaldo de Campos” e dos seus pacientes. Assusta-a a fragilidade do equilíbrio humano? Sim, assusta-me. O equilíbrio é geralmente tecido entre vários desequilíbrios. Somos seres absolutamente periclitantes e frágeis. A normalidade é uma ficção. E não é bem assustar-me… Dá-me é uma dimensão de modéstia que aplico aos outros.
“O mal é sempre mais apelativo do que o bem” Sobre Osvaldo Campos, disse que é uma figura que ama por tudo, sobretudo pelo seu desajeitamento, pela sua vocação para a perda e para o fracasso. Mas a Lídia é uma vencedora… Quem lhe disse isso (sorriso)? É uma vencedora. Os prémios que ganhou falam por si. (Risos) Não me sinto como tal. Sinto-me uma pessoa com alegria, que é diferente. Sinto que tenho alegria, talvez porque não vivo só a minha vida. Quando alguém vence sinto-me feliz. Gosto de ver sucesso nas coisas. Não preciso de ter uma casa demasiado bela porque vou a casas com grande beleza. Sempre fui assim. Lembro-me muito bem de haver uma farmácia perto das avenidas novas que depois de arranjada ficou com umas madeiras lindas, muito lindas. Eu nessa altura estava ali a trabalhar perto e passava muitas vezes para ver a farmácia e as pessoas perguntavam-me “mas porque é que vais tantas vezes ver a farmácia?” e eu respondia “porque a farmácia está tão bonita!” e as pessoas diziam “mas não é tua…”. Mas eu passava à mesma, porque era muito bonita e não precisava de ser minha. Outra pessoa talvez diga que esta é a alegria dos tolos, daqueles que estão contentes quando encontram uma coisa que é boa, independentemente de ser sua ou não. Mas ao mesmo tempo isso dá-me alegria porque tenho a sensação de que assim também todo o mundo é meu e eu sou de todo o mundo e todo o mundo é meu.
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A Inquirer publicou, no fim da década de 90, que “Portugal pode contar entre os seus cidadãos três dos principais romancistas actuais. O Nobel José Saramago é um, e o modernista António Lobo Antunes é outro. Lídia Jorge deverá também ser incluída. Ela escreve com uma esplêndida economia de palavras e uma beleza premente”. Subscreve esta apreciação? (Risos. Silêncio) Bem, fico muito honrada, sim. Sinto-me muito feliz, lembro-me disso, até já tive isso na mão, mas veja bem que agora já nem tenho. Ainda no outro dia me pediram uma “citação bombástica” e eu lembrava-me vagamente dessa, mas nem sequer a tinha. Mas agora vou-lha pedir! (risos). Sinto-me muito honrada. Mas não tenho mais nada para dizer sobre isso. Há o risco dos prémios modificarem a escrita? Não. Nada, absolutamente. Não se passa a escrever para os prémios? Nada! É impossível. Pobre da pessoa que pensa nos prémios. Fica maníaca! Quando a pessoa pensa que pode ter um prémio, não o tem. E outras vezes não pensa e tem! Aconteceu-me agora com este prémio da Sociedade Portuguesa de Autores. Foi dos prémios que mais alegria me deu porque estava longe de imaginar que pudesse tê-lo. Foi tão extraordinário, tão bom. E o que o prémio me veio dizer foi que essas pessoas gostaram do livro; que é um livro duro. Tem esperança mas não ali, dentro daquelas páginas. É preciso re-lê-lo a partir dali porque é um livro duro. É talvez o livro mais português que escrevi e mais ancorado no mundo actual que a gente está a atravessar. Talvez o meu livro mais político. E é também dos raros livros em que conta um estória contemporânea. Porquê? A actualidade não tem bons ingredientes literários? É actual para si que está aqui agora. Mas, por exemplo, “A Costa dos Murmúrios” é muito actual. E se vir bem os meus livros marcam tempos da minha vida. Saem de um determinado momento. Talvez o livro que paira um pouco mais fora disso, mais atemporal, seja “O Vale da Paixão”. É uma saga familiar especial, que é rápida, mas que vai de uma ponta à outra do tempo. Esta última obra é realmente a que tem a actualidade mais presente. Talvez porque o presente próximo é tão ficcional. Estamos a viver, no mundo de hoje, um momento tão ficcional! Então em Portugal é ficcionalíssimo o que está acontecendo! E no mundo que descrevo, da injustiça, estamos a viver um momento único, porque durante muitos anos sabíamos que era assim mas os indícios não eram tão claros. Basta dizer isto: quando comecei a escrever este livro fui falar com umas pessoas, muito simpáticas, da PJ e perguntei-lhes “eu tenho isto. É uma loucura?”. Eles disseram que estava tudo certo menos que não havia memória de se fazer tráfico de droga nos navios. O ano passado fui lá contar-lhes o que tinha resolvido e foi muito curioso, porque eles disseram-me “sabe uma coisa? Nós encontrámos agora precisamente o que a senhora inventou no livro”. Uma escrita Orwelliana, então… Exacto! Porque o ficcionista é muito malandro. Ele é malvado (risos). Nós não descobrimos só os mecanismos da compaixão e da bondade porque esses são lineares, as circunstâncias podem mudar mas são lineares. As circunstâncias do mal são infinitas, mas nós temos a capacidade de as adivinhar se nos colocarmos na lógica do mal. Colocarmo-nos na lógica do mal é fácil. O mal é atraente. Percebe-se perfeitamente o que está por detrás dele. O mal é sempre mais apelativo do que o bem.
“Quando não há esperança podemos fazer tudo porque estamos livres” Em 2001, o El País publicou que a sua escrita “está sempre determinada a preservar o passado, talvez nostalgicamente, mas também a conquistar o futuro”. Concorda com esta ideia? Os jornalistas vivem sob a ansiedade do relato do presente e sempre que um livro remete para a memória, juntam-lhe esse adjectivo “nostálgico”. No que me diz respeito, nada de mais enganador. Só escrevo do passado aquele que dele ainda oferece matéria de presente. Aliás, podemos escrever sobre os Gregos de Acibíades, ou mesmo sobre Adão e Eva, que a modernidade está na interpretação, não está na História em si. Mas não me importo muito com esses detalhes, deixo passar. Uma pessoa não pode estar sempre a explicar tudo. Devemos deixar alguma margem para os erros dos outros. O erro funciona como uma interpretação actualizada. Não tenho de corrigir ninguém. Ainda por cima, a primeira afirmação está contrabalançada com a avaliação de que escrevo para conquistar o futuro. Qual o livro que mais a marcou escrever até hoje? (Silêncio) Sem dúvida, “O Dia dos Prodígios”. Foi o que mais me marcou. Porquê? Porque foi o primeiro e eu não sabia… Estava completamente inocente de todas as relações de público, não sabia se iria alguma vez ser publicado. Foi um livro puro, puríssimo, que escrevi só para não me esquecer como tinha sido o país numa altura em que eu julgava que ia ser muito rápida a mudança.
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E imaginava, nessa altura, o tanto que esse livro ia mudar a sua vida? Não, de modo algum. Julgava que era mais um daqueles que eu escrevia para a gaveta. Só isso. Quais são os seus sonhos? (Silêncio) Os reais? Os reais e os impraticáveis. O meu maior sonho pessoal, e é deste que posso falar, é ainda escrever muitos livros. É uma mulher realizada? Sou. Há algum líder partidário que pudesse dar uma personagem literariamente interessante? Vários. Vários. (Risos) Nós temos muitos. Tais como? Uma das figuras que mais me atrai é o Mário Soares. É das figuras que mais e melhor pode dar bons traços literários. Pela personalidade ou pelo político que é? Mais do que pelo político. Pelo político que foi, pela sua qualidade de líder e pela forma como teve de contornar o país. Mas acima de tudo como figura pessoal. Mas aí não quero dizer mais nada. “A Costa dos Murmúrios” foi adaptado ao cinema por Margarida Cardoso. Viu o filme? Vi, claro. O que é que falta ao filme que está no livro? (Silêncio) Só lhe respondo se depois me fizer a pergunta ao contrário. Combinado. Falta-lhe sangue. E o que é está no filme que falta ao livro? A beleza de um rosto, da Eva, que está no ecrã e não aparece no meu livro. Um dos seus lemas, “roubado” à inscrição que o pintor Caravaggio tinha na sua faca de bolso, é “onde não há esperança, não há medo”. Porquê? (Silêncio) “Onde não há esperança não há medo”. Pois é. (Silêncio) Porquê? É uma frase tão rica… A ideia é esta: é que faz-se depender a ousadia da esperança. Pode-se ter ousadia mesmo quando não há esperança. É possível ter ousadia a partir do pouco que se tem, mesmo quando não há esperança do resto; pensar só tenho estes talentos na minha mão, não tenho esperança de mais, mas tenho estes e com estes vou fazer o que posso. Faço o que posso com o que tenho. E às vezes aquilo que podemos é mais do que imaginámos. É verdade. E até pode ser menos do que imaginámos, mas não importa. Quando não há esperança podemos fazer tudo porque estamos livres. Se o nosso horizonte de expectativa é muito grande ou incomensurável ficamos numa ansiedade que limita a nossa acção. E é bom libertarmo-nos. Assim libertamo-nos do medo. Não temos medo, não temos nada para provar, não temos de fazer coincidir a meta com o nosso poder. Porque o nosso poder não tem uma meta. Nunca gostei de competir, nem sequer a jogar à corda. Assim que começavam a contar as voltas da corda para ver quem ganhava eu perdia logo. Porque não quero isso, não gosto dessa competição. Talvez seja por isso que diz que não corre o risco dos prémios modificarem a sua escrita… Exactamente! Porque não trabalho para isso! Se vierem são bem vindos, se não vieram também não sofro com isso. E qual é o seu maior medo? Deixar de ser pessoa inteira diante dos meus filhos.
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E improvavelmente ser feliz...
Entrevista: José Mário Branco
As palavras jorram sem esforço através da voz, que já deu corpo a muitas canções, uma voz grave e ligeiramente rouca, que acaba as frases baixinho. Em momentos de maior intensidade, José Mário Branco constrói desenhos no ar com as mãos e com os braços, dando espaço ao silêncio. E quando fala daqueles que lhe são queridos e dos que sofrem transforma-se numa ternura espontânea. Como se se sentisse muito pequeno perto de tudo em que acredita. Uma ternura quase tão evidente quanto os sorrisos das crianças das fotografias, espalhadas pela sala que nos acolhe. Envolto no fumo de cigarrilhas, José Mário Branco balança o corpo para trás e para a frente, enquanto recorda os tempos em que a vida era a “preto e branco”, critica o “sistema” e explica porque não consegue ser feliz. Homem de olhar profundo e de sobrancelhas quase tão desalinhadas quanto o seu próprio espírito, fala ainda daquilo que o alimenta: a música, elemento de partida para tudo o que é e faz. Optimista quanto ao futuro, o “cantautor” está, neste momento, a tirar o curso de Linguística e concentra todos os esforços no seu “filho” mais novo, o jornal “Mudar de Vida”. Mais sereno e radical do que nunca, José Mário Branco emana vontade. texto: Raquel Carvalho
Regressou agora aos bancos da faculdade…Como é que tem sido o contacto com as gerações mais jovens? É óptimo. Ajuda-me a perceber em que estado está a juventude estudantil, e a perceber as grandes diferenças e semelhanças que há entre a situação que eu vivi na minha juventude e a situação de agora. Quando era jovem, este país estava debaixo de uma ditadura. Em 1961, tinha eu 19 anos, desencadeou-se uma Guerra Colonial e a própria condição de estudante levantava logo problemas de enfrentamento com a ditadura. Com essa idade fui preso pela Pide alegadamente por ser do Partido Comunista, o que era verdade, na altura, mas o crime era andar a promover a organização de associações nos liceus. A própria sociedade no dia-a-dia obrigava-nos a opções, ou sim ou não. Eu costumo dizer que a vida era a preto e branco, e não havia muitos espaços para cinzentos. Colocado perante uma situação concreta, tinhas que baixar a cabeça ou então arriscar. Nas mais pequenas coisas. As utopias na altura eram a libertação das mentes, a libertação desse regime opressor… Essas utopias já foram concretizadas? Não. Acho que o povo que esteve nas ruas a tomar conta da vida com uma grande alegria e energia, no período de 1974/75, foi completamente enganado pelos políticos de serviço. Essa forma nova, que na altura apareceu, de tratar a vida, foi sendo oprimida até transformarem isto neste pântano em que está. Não há uma verdadeira democracia, porque a democracia não pode ser a gente ir de quatro em quatro anos meter um voto numa urna, nuns senhores que assim que estão no poleiro fazem o contrário do que prometeram. Isso é uma aldrabice! E as campanhas eleitorais são pura e simples campanhas publicitárias. O povo não tem qualquer controlo democrático sobre o sistema político. É uma democracia formal, falsa, que serve para que haja uma classe privilegiada a dominar um conjunto da população. É assim que olha para o espectro político nacional actualmente? O sistema parlamentar já mostrou demais que não resolve o problema das pessoas, que é um puro disfarce para tudo continuar como está e a piorar. Os partidos que governam representam interesses económicos e sociais muito concretos das classes dominantes. Aqueles que se dizem de esquerda no parlamento comportam-se como bombeiros desse horror todo, incutindo nas pessoas que através daquela mentira é possível mudar a sociedade. Comportam-se como comissões de melhoramentos do capitalismo. Passam a vida a dizer aos patrões para não serem tão mauzinhos, para não explorarem tanto os pobrezinhos dos trabalhadores. Fazem um discurso que é meio moralizante, que está subjacente a esse reformismo todo, em vez de ajudarem a mobilizar as forças sociais para transformarem a sociedade. Dizem que o Sócrates é incompetente e não tem coragem. Ele está naquele lugar porque é muito competente, se não, não estava ali. Ele está a administrar os
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interesses da grande burguesia de Portugal e do imperialismo que anda cá metido. Não é corajoso? É corajosíssimo. Toma medidas que ofendem a saúde, a educação, o bem-estar dos velhinhos, das crianças, os direitos sociais mais elementares, que comprometem o futuro dos trabalhadores nas suas pensões, que comprometem as gerações futuras. Falta de coragem? Por amor de Deus! Um dia destes vai pôr-nos com contadores para contarmos o oxigénio que respiramos. Privatiza a atmosfera, não tarda nada. Dizer que o Sócrates não é corajoso é estar a mentir às pessoas. Ele está lá, porque tem essa coragem. Foi membro fundador do Bloco de Esquerda (BE), que inicialmente se afirmou como contrapoder. Ainda se identifica com o partido? Não. Eu afastei-me do BE, quando o Bloco começou a ser uma esquerda do sistema. Começou a ser uma força política para ganhar eleições e está nesse caminho inexorável. O BE está já na esfera do poder. Não quero ter nada a ver com isso, eu estou contra esse poder, quero derrubá-lo! Faço parte de uma área da esquerda radical, que quer mudar radicalmente a sociedade e não quer recompor o capitalismo. Portanto, tinha que me afastar. No último comício do BE, em que tive oportunidade de intervir, eu disse, para surpresa de muitos, “já estive em vários partidos e nunca saí de nenhum, os partidos é que foram saindo de mim”. Eu não saí do BE, o BE é que foi saindo de mim. Não tem nada a ver com aquele projecto de esquerda que saiu de mim. Não tem nada a ver com aquele projecto em que eu acreditei ao início e que tentei ajudar a crescer, a andar. Rompeu com a Igreja; depois, com o Partido Comunista; mais tarde, com o Maoísmo e, recentemente, afastou-se do BE… Ficou desiludido com todos eles? A gente mete-se nas coisas à procura de algo, tendo por base uns princípios humanistas muito gerais, como acreditar na humanidade, na liberdade, na igualdade, na justiça social, na solidariedade, no amor... Metemo-nos nas coisas com esta bagagem, à procura de levá-las à prática. E sucessivamente vamos vendo que essas coisas que têm à partida um discurso muito interessante, depois pervertem-se, estragam‑se. É uma espécie de entropia. Eu só tenho duas hipóteses: vender-me ao sistema e esquecer-me desses tais princípios, já deu o que tinha a dar, “trata da tua vidinha, instala-te, saca o que puderes”; ou mantenho esses princípios, que são alicerces na minha vida e que eu acho que são alicerces do que há de bom na humanidade. Por isso, tenho que estar permanentemente em ruptura com esses projectos que se estragam. Continua a acreditar na humanidade num mundo onde proliferam guerras e medos? Sim, sim. Acho que vamos ser capazes de dar a volta a isso. Vai demorar e vai sofrer-se muito. Não sei como nem quando, mas vamos ser capazes. E a história do Cristo permanece. Olho para ela como uma história exemplar, uma história lindíssima, de um tipo que na sua época veio ser revolucionário à sua maneira, denunciando o que estava mal e chamando a atenção para coisas comezinhas, que eu todos os dias verifico com os meus netos. “Se não fordes como estas crianças não entrareis no reino dos céus”, o que é que Ele queria dizer? É que nós temos que recuperar essas qualidades de infância: bondade, sinceridade, transparência total, inocência… se queremos estar aqui para o melhor, todos juntos. Consegue ser feliz no mundo actual? Não. Não posso ser feliz. Não tenho hipótese… Por isso, no fim dos anos 70, fiz uma canção em que digo: “e improvavelmente ser feliz…”. Quem tiver princípios e com fundo não pode ser feliz. Perguntam-me muitas vezes o que é ser de esquerda… a minha definição está um bocadinho ligada a essa cena do cristianismo… Claro que ser de esquerda para uma pessoa que é explorada numa fábrica, que mal consegue sobreviver, é uma coisa imediata, essa pessoa está a sofrer e quer acabar com o sofrimento; para uma pessoa que é de esquerda por motivos éticos e filosóficos, e não propriamente porque lhe falta o essencial para viver, que é o meu caso, eu acho que ser de esquerda é não suportar o sofrimento da humanidade. E tirar daí todas as consequências para a sua vida pessoal. Se isto é insuportável, então o que é que eu vou fazer? Isto é ser de esquerda. Parado não vou conseguir ficar, isto é horrível. Não posso estar bem.
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Cada cantiguinha que sai, estou lá inteiro Passando da política para as canções… Qual é o lugar da música no seu universo? É central… a música é como o oxigénio, é o que eu respiro. É o espaço onde eu naturalmente sublinho o que vejo, o que vi, o que sinto, o que converso… Vai parar tudo ali. É como um funil, as coisas vão parar àquele centro e depois um dia saem, não sei como... de várias formas. E tudo o resto vem atrás disso, ou seja, eu meto-me na política porque sou músico, não o inverso. A música é uma arte. E como toda a arte, pelo menos para a minha geração, a música está assente num tripé e um tripé tem essa característica, se falta uma perna cai, têm que estar os três pés: é uma ética, uma estética e uma técnica. A arte é o meu núcleo. A arte é sempre uma forma de intervenção? Não é uma forma de intervenção, a arte intervém pelo simples facto de existir. Quem se puser a cantar está sempre a intervir, cante o que cantar. O Marco Paulo é um cantor de intervenção. Salta para cima de um palco, faz um disco, passa na rádio, está a intervir, mesmo que ele ache que não está. A arte é uma forma de intervenção em si mesma, mesmo que seja produzida no isolamento, porque a obra artística só se realiza quando é recebida pelo público. Tudo é intervenção em arte. Nesse sentido, entende a poesia e a escrita em geral como uma forma de dar a beber ideais? Visões do mundo, propostas para os seres humanos, estados de espírito… A gente chama-lhe criação artística. Criação. A palavra tem laivos bíblicos, porque realmente a arte para quem acreditar em Deus é um acto de orgulho, de insubmissão, talvez, o pecado original contra o criador. É de repente o ser humano, que é um bichinho que anda aqui, que foi criado por uma entidade suprema, dizer: “não, não, eu sou o criador. Do nada vou criar qualquer coisa”. Há aqui um lado divino, que para quem acreditasse em Deus, quase seria um lado satânico. E tem realmente essas duas facetas. De repente, tens uma página em branco e, um tempo depois, está lá um poema… da Sophia (de Mello Breyner), com umas certas palavras, que dizem coisas, que se tornam importantes para os outros e que não existiam antes, pelo menos com aqueles significados, com aquela proposta ali… Porque isso é um apanágio da subjectividade da poesia, a forma como as palavras aparecem num poema é uma proposta em que tu vais encontrar o que fores capaz de encontrar. E cada pessoa vai interpretar essas palavras de forma diferente… Interpretá-las, senti-las… A música tem esse lado, é uma arte muito subjectiva. Normalmente, a nossa capacidade de conceptualizar a relação com o mundo tem muito a ver com o discurso, a palavra… A música é uma coisa mais difusa. Só alguns entendidos é que começaram a perceber que realmente um intervalo de quarta ascendente tem características especiais… Eu estou a começar a fazer uma relação entre a linguística e a música. É um aspecto que me interessa muito. Haverá uma gramática da música? A música será tão subjectiva como dizia Nietzsche ou ainda mais? Deve haver uma gramática, não é? A Marselhesa… “taratarateee”, quarta ascendente; a Internacional…“ tatereee”, quarta ascendente; o hino dos Estados Unidos “papara parapaaa”, quarta ascendente… porquê? Há aí um significado qualquer associado a esse intervalo de quarta ascendente, sol-fá ou ré-sol… Há um léxico, uma semântica, se calhar há uma sintaxe e uma morfologia… O discurso musical que é associado a um certo poema está a dizer a mesma coisa ou a música com que tu cantas está a dizer o contrário das palavras? Pode dizer o contrário, mas tu queres que diga o contrário? Porquê? Há dois discursos que se casam, um é o discurso musical e o outro é o poético. Não se pode casar uma música com um poema como se não houvesse discurso musical. O importante é só o corpo? Não é. Mesmo que tu não vejas, tu estás a dizer coisas com o discurso musical. A certa altura, o teatro entra na sua vida, isso influenciou-o musicalmente? O teatro está na minha vida desde pequenino, como espectador. Ia ver ao Teatro Experimental, no Porto. Quando fui para a universidade, participei no CITAC em Coimbra. Depois, em Paris, fundámos o Grupo Teatro Amador Português. Portanto, houve sempre esse contacto com o teatro. Já em Portugal, depois do 25 de Abril, entrei para a Comuna. O teatro marcou, desde o princípio, decisivamente, não só a minha vida, mas também a minha maneira de fazer canções, isto tem a ver com o que falávamos há pouco, da tensão entre discursos que dá uma coisa nova, que é a canção, mas também em relação ao que se chama de arranjos e orquestrações de disco… Quando estás a fazer uma orquestração ou um arranjo para uma cantiga, que vai ficar registada num disco, estás no fundo a fazer uma encenação sonora, tentas vencer um obstáculo, que é a mediatização. Em palco, com a viola na mão, a cantar para as pessoas, é um acto teatral também, porque comunicas directamente com alguém. O concerto é um diálogo. Mas quando gravas um disco, não tens qualquer controle sobre quem é que vai ouvir e em que condições é que o vai fazer. Não controlas nada. Estás a registar uma coisa para depois mandares à vida. Aí, a única safa é o teatro, é deixar de pensar em termos de arranjo e orquestração, e pensar em termos de encenação sonora, quase a sonoplastia. Desde as primeiras coisas que eu gravei há essa preocupação, de fazer aquele arranjo de forma a tentar ultrapassar o obstáculo da mediatização, para que quem quer que ouça, em quaisquer condições, receba no essencial aquilo que se pretende transmitir.
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A influência do teatro é bem visível no tema “FMI”, que apresentou pela primeira vez num espectáculo no Teatro Aberto (anos 80). Porque é que nunca mais voltou a apresentá-lo ao vivo? Depois disso, fi-lo muitas vezes em tournée, muitas vezes… nos cantos mais variados deste país. Até que chegou um momento em que eu disse: “Já não estou neste estado, já estou a fazer o FMI por fora, como quem põe um pastel numa montra…”. Deixei de o fazer. Sendo que daí para cá aquilo mantém-se em vigor para as gerações que vão aparecendo, ciclicamente encontro jovens, que dizem: “ouvi aquela coisa sua, é mesmo aquilo”. Eu já não estou naquele estado, no sentido em que já não estou naquele estado catártico, aquela reviravolta que eu dou na segunda parte do FMI, para ir ao essencial, “tem calma, olha para o que aconteceu, está aqui o alicerce em que tu podes pôr os pés”… Essa catarse está feita. De certa forma, agora, sou mais perigoso, porque não estou tão dilacerado, estou mais sereno, estando talvez por isso mais radical do que era antigamente, tanto na questão artística como na política. Há pouco referiu a importância de chegar ao público... Pensa nas pessoas quando faz uma música ou está a gravar um CD ? Não dessa forma explícita. Podes estar a criar uma obra de arte e, em geral, é um momento de super solidão, estás sozinho, absolutamente só contigo próprio. As coisas, sobre as quais trabalhas, vêm-te não se sabe de onde… Estás num máximo de solidão ali assim, mas o facto é que ao mesmo tempo tu és naquela circunstância um representante da humanidade inteira, porque a obra de arte é universalidade, é uma coisa que exprime a humanidade toda por aquele veiculo que é o criador. Isto é pensar no público? Não é bem… Quando estou a fazer a canção, não penso no público, mas de certa forma à minha pequena escala eu estou a representar a humanidade naquela circunstância. Está lá o público dos concertos, mas também está o outro todo, que nunca foi ouvir o José Mário Branco, nem sabem quem é, e estão os japoneses e os coreanos, os uruguaios, está a humanidade toda… e se calhar estão também os bichinhos, os planetas… umas coisas esquisitas… (ri-se). Ao representar a humanidade, representa-se a si próprio… Sente-se de alguma forma despido quando pensa na quantidade de pessoas que ouvem as suas músicas e que ficam a conhecê-lo através delas? Alguém dizia que a minha biografia podia estudar-se com os sete ou oito álbuns que eu fiz. Percebe-se o estado em que eu estou, o que é que eu tenho para dizer às pessoas naquela altura, porque é que enchi o saco até ali e tenho mesmo que fazer um disco… Isso não me preocupa. As minhas preocupações com o que está no disco cessam no momento em que ele sai. Eu diria, mesmo, no momento em que ele sai da minha mão. A partir daí, o problema é com quem o ouve. Não tenho qualquer controlo sobre isso. Por exemplo, farto-me de receber e-mail’s de malta mais nova a dizer: “Queria fazer uma versão da sua canção…”, a minha resposta é sempre: “Faça o que quiser. Isso não é meu. Pertence à humanidade. Por mim, esteja à vontade”. Filosoficamente, estou contra o direito de autor. Acho que a obra é uma coisa que a gente faz, que atira para o universo, não tem nada que estar a controlar. Só aceito direitos de autor, porque esta sociedade não dá meios de vida aos seus criadores artísticos e, portanto, é uma remuneração, indirectamente é uma forma da comunidade dizer: “é bestial que tu existas, continua a fazer as tuas cantigas, porque a malta quer”. Num estado em que a comunidade me dissesse isso directamente, “tu és importante aqui para a comunidade. Queremos que estejas aí descansado, vai fazer as tuas obras, pega lá ‘x’ por mês”, eu não queria direitos de autor para nada. Não faz sentido, porque a obra é uma coisa que se dá à humanidade. E cada coisinha que sai, cada cantiguinha que sai, estou lá inteiro, mas já não sou bem eu… É como os filhos a sair de casa, ganham a sua autonomia. É claro que eu estou muito atento à vida dos meus filhos, porque gosto muito deles… mas a vida é a vida deles, eles têm autonomia. Com as minhas canções é a mesma coisa. Por isso, sou ainda mais radicalmente contra o direito de autor póstumo. Quando eu desaparecer não há razão nenhuma – já combinei com os meus filhos – para o Pedro Branco ou o João Branco receberem direitos
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de autor das obras do pai. E se houver dinheiros a vir daí que sejam aplicados para coisas que sejam para todos. Por isso, a Manuela (de Freitas) e eu queremos fazer uma fundação com a nossa obra, uma coisa pequena, enfim, mas alguma é, para facilitar para quando a gente morrer que esses dinheiros sejam recolhidos para ajudar artistas, que estão a começar, gente que quer fazer coisas.
“Os passos foram def inindo o caminho” Actualmente, o jornal Mudar de Vida ocupa-lhe grande parte do tempo. Quais são os objectivos do projecto? Dar voz aos sem voz? O mais possível. Acabar com essa conversa: “eu cá não me meto em política”, porque a política de que falam essas pessoas é a política nojenta, mentirosa, aldrabinas… A nossa vida é política. Como diz Charles Montalembert, “Bem tentais não ocupar-vos de política, mas a política ocupa-se de vós”. A política é a gente sentir que somos uma comunidade e que temos qualquer coisa a fazer para acabar com o sofrimento, de forma a vivermos melhor. Este jornal quer ser um elo que ajude a ligar essas pequenas coisas e quer restituir a nobreza à política, porque a política não pode ser uma coisa que a gente delega nuns senhores. Este é um jornal que tem uma linha editorial crítica em relação ao sistema, ao capitalismo, ao imperialismo, à esquerda do sistema… É um jornal de opinião, de certa forma. Quem está a dar a notícia é alguém implicado no processo e por isso tem um ponto de vista, não só numa notícia em particular, mas também no que são as notícias. Depois, ao mesmo tempo, queremos que o jornal ajude as pessoas a perceber a realidade. As tertúlias que ambicionamos que existam nos sítios, em torno do jornal, é para isso. Claro que se isso for bem feito e tiver resultados, pode vir a desaguar em algo parecido com um movimento político, que não existe agora e que faz falta. Nós temos uma linha, mas vamos discuti-la com as pessoas. Com a letargia que existe e o medo de dizer o que se pensa, o jornal serve para as pessoas sentirem que há energias dispostas a fazer qualquer coisa. Esta sociedade atomiza as pessoas. Por isso, já é de alguma forma subversivo o simples facto de querermos juntar as pessoas e conversar um bocado. Existem outros projectos, nomeadamente a nível musical, em carteira? Vários. Há um projecto de espectáculo junto com o Fausto, para o ano que vem. Era para ser a três, mas o Sérgio (Godinho) não tem disponibilidade. Era o meu sonho, há vários anos, fazer um espectáculo com os três, mas como o Sérgio não pode, vamos avançar os dois. Estamos a ver se arranjamos dinheiro para o fazer. Há também o novo disco do Camané para eu dirigir, além de uma colaboração com os Gaiteiros de Lisboa, grupo de que fiz parte na origem. E há algum disco seu prestes a nascer? Neste momento não. São processos muito lentos, de acumulação. Por um lado, acumulação de repertório e, por outro, tipo panela de pressão, vai haver um momento qualquer em que a maneira natural de pôr as coisas cá para fora vai ser um novo disco, mas não sei quando. Isto tem também implicações financeiras. Porque os meus discos normalmente sou eu que os produzo, que financio… Porém, essa limitação não é absoluta, porque eu também posso fazer um disco só com a minha viola, se for o caso, depende. Um novo disco não sei quando. É cantor, compositor, actor, militante, cooperativista… O que é que ainda gostava de ser? Sei lá… Gostava de poder avançar na área que falei há pouco, da relação da música com a linguística. Gostava de adquirir conhecimentos da linguística e conhecimentos da música que me faltam, para poder abordar essa questão em relação à nossa cultura, com as músicas de Portugal, tanto de cariz rural como de cariz urbano. É um aspecto que ainda queria desenvolver… Enfim, vão sendo pequenas/grandes escolhas ao longo da vida, opções, paixões… Os passos foram definindo o caminho, as curvas, as subidas, as descidas… Como diz o poeta, “el camino se hace caminando”. Há uma coisa que permaneceu sempre igual, aqueles valores nucleares, isso manteve-se sempre igual. Depois, as erupções que eles vão tendo são variadas, no meu caso, multifacetadas: música, teatro, cinema, espectáculo, política, estudos…
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Entrevistas
Best Of Um lugar marcado para o melhor da investigação académica de alunos. A partir de relatórios de estágio, de trabalhos de seminário ou de outros que venham a surgir. Com tempo e espaço.
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Jornalismo Económico
A fusão das palavras e dos números Ana Rita Faria
“Mandaram-te para aqui não foi?”, perguntavam-me os jornalistas da secção de economia do Público nos primeiros dias do meu estágio de três meses no jornal. Respondia timidamente “não, fui eu que escolhi”, ao que olhavam para mim como se fosse um extraterrestre e, intrigados, escapava-lhes um “porquê?”, um “o que é que te deu?” ou comentários similares. A situação repercutiu-se no meio familiar, entre colegas de curso e amigos. Ninguém entendia por que é que eu tinha escolhido estagiar em economia, essa secção “amaldiçoada”. Mas, apesar da insegurança e inquietação que perduraram até ao último dia do estágio, consegui evitar que o receio de uma decisão tomada em fracções de minutos me intimidasse. Inclusive no primeiro dia. Tinha passado nem uma hora desde a chegada à secção. O Vítor Costa, editor de economia, solicitoume que fizesse um artigo para o online sobre o Merrill Lynch e a demissão do seu director executivo. Começaram os problemas: nunca tinha ouvido falar em “Merrill Lynch”, não fazia a mínima ideia do que fosse e muito menos do que se estava lá a passar. Até hoje não consigo perceber se aquilo foi uma espécie de teste – do estilo “vamos lá ver como ela se safa” – ou se ele realmente estava convicto que eu sabia o que era o “Merrill Lynch”. Talvez por vergonha ou pela vontade de não querer sair derrotada logo no primeiro “round”, assenti imediatamente, confiante de que, apenas pelo som do nome que ele me disse, haveria de conseguir descobrir sobre o que tinha de escrever. O Google deu uma ajuda e assim descobri que o Merrill Lynch era um banco de investimentos dos Estados Unidos que tinha registado grandes prejuízos devido à crise de subprime. E então voltaram os problemas, porque eu não sabia o que era o subprime, e por aí adiante. A situação repetiu-se um sem-número de vezes, obrigando-me a um intenso e rápido esforço de pesquisa suplementar, em que a cada parágrafo surgiam novos termos ou temas que tinha de descodificar e novas ideias que precisavam de ser desenvolvidas e integradas num contexto. Os episódios que acabei de contar podem fugir àquilo que se espera de uma introdução de um relatório de estágio, onde se enuncia o ângulo de abordagem do trabalho e os principais pontos que se vão focar. Mas, por muitas questões e problemas teóricos que se tenham levantado durante este primeiro contacto com a actividade profissional jornalística, um estágio vale sobretudo pelo que é: uma multiplicidade de experiências, dúvidas, erros e vitórias com as quais aprendemos e que nos fortalecem para seguir em frente.
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Relatório de estágio realizado na Secção de Economia do Público. Orientado por João Figueira e Vítor Costa.
1 - Três meses de “estórias” escritas a três mãos Comecei o meu estágio no Público no dia 29 de Outubro de 2007 e até final de Janeiro de 2008 escrevi mais de cem peças jornalísticas, entre reportagens, entrevistas, breves e outros tipos de artigos, para a secção de Economia do jornal diário, para o suplemento de Economia e para a página de Economia do sítio do Público na Internet, tendo ainda escrito para as secções do Mundo e Desporto. Saber que trabalho não me iria faltar foi, aliás, um dos motivos que me levou a optar por estagiar nessa editoria. Contando com 11 jornalistas em Lisboa (mais quatro no Porto), a Economia do Público é a única secção do jornal a ter uma página própria na Internet e a assegurar integralmente o seu conteúdo, ao passo que a restante informação do www.publico.pt é elaborada por uma direcção criada especificamente para o efeito. Ao mesmo tempo, tem a seu cargo um número variável de páginas do jornal diário e um suplemento de Economia, concebido enquanto publicação autónoma e completa, composta por secções variadas e englobando um editorial, entrevistas, reportagens, peças de aprofundamento e opinião. A possibilidade de trabalhar simultaneamente nestes três tipos de suporte (suplemento, jornal diário e online) configurou-se como uma oportunidade única, que me obrigou a alternar registos de escrita e métodos de trabalho, pondo em prática aquilo que aprendi durante o curso. Com trabalhos mais longos e que requerem mais investigação e contactos, o suplemento de Economia permite fugir à pressão do fecho e, assim, aprofundar mais os temas, abordar tendências e alargar os horizontes do leitor. Já a secção de economia do Público segue a linha tradicional típica de um jornal diário, debruçando-se essencialmente sobre eventos económicos. Finalmente, no online prevalece a lógica do imediatismo, de cobrir o máximo possível da realidade e de dar a notícia em primeira mão. Embora a minha preferência em termos de trabalho tenha recaído sobre o suplemento, o que apreciei acima de tudo foi a possibilidade de desenvolver em simultâneo três actividades, que me deram acesso a diferentes experiências e conhecimentos. E é esta oportunidade de fazer um trabalho diversificado, bem como a disponibilidade e o acompanhamento permanentes, que quero agradecer ao Público e a todos os jornalistas da secção de economia. Um agradecimento que é ainda maior para com o editor Vítor Costa, que logo no primeiro dia me pôs a trabalhar para o online e que ao terceiro dia me enviou em serviço externo para o Tribunal de Contas, e para com o editor do suplemento Luís Villalobos, que no final da primeira semana já me encomendava uma peça de página inteira para o suplemento.
2 - Uma ref lexão sobre as fragilidades do jornalismo económico “Alguém que conhece o preço de tudo e não conhece o valor de nada” (Harford, 2006: 174) é a definição de Oscar Wilde de um cínico, comummente aplicada aos economistas. E o que se poderia dizer dos jornalistas especializados em economia? Será que o seu interesse constante pelo mundo dos investimentos, da geração de empregos e dos números de facturação é acompanhado pela necessária contextua lização e, sobretudo, pelo cumprimento da missão jornalística de informar realmente o público? O Prémio Nobel de Economia, Gary Becker, numa entrevista ao jornal Expresso, em 2003, definia a economia como “uma ferramenta maravilhosa para compreender os problemas comuns, como a educação, a saúde, a discriminação e a família” (Martins, 2007:10). Curiosamente, esta perspectiva tem vindo a ser cada vez mais apanágio de economistas como Tim Harford e Steven D. Levitt que, nas obras O Economista Disfarçado e Freakonomics, utilizam a economia para explicar problemas quotidianos e a ordem mundial. Será que o mesmo tem sido feito no jornalismo económico? Segundo a jornalista brasileira da área de economia Suely Caldas, “terá sido por conservadorismo, preconceito, má fé ou mesmo pura preguiça que se difundiu um mito segundo o qual as páginas de economia dos jornais só interessam e são entendidas por circunspectos empresários, técnicos do governo ou profissionais do mercado financeiro. (…) O que para muitos pode parecer apenas um código cifrado, um emaranhado hermético de gráficos e números destinado apenas à leitura de iluminados especialistas, é de facto um guia de sobrevivência indispensável para a nossa vida quotidiana: é lá que estão as notícias sobre os juros e inflação, tarifas públicas e aluguer, golpes e trambiques, sobre o preço da carne e do feijão, o emprego perdido e o salário reduzido” (Caldas, 2003: 9). Sendo tudo isto verdade, não consigo deixar de questionar-me o porquê de a maioria das pessoas que conheço simplesmente “saltar” as páginas de economia dos jornais. Partindo do pressuposto de que todos nós – “profissionais, executivos, trabalhadores, jovens e velhos, homens e mulheres, de todas as raças e credos” (Caldas, 2003: 85) – estamos interessados em saber algo a respeito de dinheiro – “como produzir, consumir, poupar e investir dinheiro” (Caldas, idem) –, o problema está em saber se o jornalismo económico actual nos permite atingir esses objectivos. Será que a informação económica que nos chega através dos media nos dá instrumentos para tomarmos as melhores decisões ou, pelo contrário, limita-se a produzir informação em circuito fechado? E por que razão nos escapa, tantas vezes, o significado do que é escrito ou dito sobre assuntos de economia? Estas questões atingem o âmago do jornalismo económico e estão intrinsecamente ligadas à especialização e ao famoso dialecto da economia, o “economês”, tópicos sobre os quais me debruçarei melhor em seguida. Contudo, a minha aprendizagem ao longo do curso de jornalismo alertou-me também para outras questões que, sendo embora comuns à prática jornalística em geral, parecem agravar-se no caso do jornalismo especializado em economia. É o caso da relação dos profissionais da informação com as suas fontes, a sua excessiva dependência delas e os riscos de manipulação inerentes.
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2.1 - Jornalista “ dois em um”: generalista e especializado O jornalismo especializado em economia vive entre dois universos distintos e concebidos como opostos: o mundo dos números (que atestam realidades, denunciam situações e por vezes valem por si só) e o das palavras (que são sempre fruto de escolhas subjectivas, ainda que visando assegurar uma pretensa objectividade, e que são os alicerces para contar uma boa estória). Como destaca a jornalista do Expresso especializada em economia, Christiana Martins, “os números (…) não são a primeira lembrança quando alguém se deixa envolver pelo mundo jornalístico (…). A maleabilidade das palavras pode entrar em choque com a dureza dos números, com a frieza de adjectivos tais como produtivo, ou eficaz, ou com a obscuridade de substantivos como, por exemplo, mais-valias ou inflação, para não falar no terror de expressões como arrefecimento económico, deflação ou desemprego de longa duração” (Martins, 2007: 18). A necessidade de uma perspectiva ou abordagem económica (o que não é sinónimo exclusivo de números, visto que a economia não se pode reduzir a isso) fez com que tivesse de mudar a minha forma de ver a realidade. E essa mudança tornava-se ainda mais premente em relação àqueles temas que poderiam perfeitamente surgir em outras editorias do jornal mas que, uma vez escolhidos para o suplemento económico ou para as páginas de economia do Público, careciam de uma perspectiva diferente. Por exemplo, no caso do trabalho sobre os fundos controlados por governos, tive de dar essa abordagem económica logo na entrada, mas a verdade é que se trata de um tema que poderia perfeitamente estar incluído noutra secção, nomeadamente no Mundo. O mesmo se pode dizer de temas como a televisão de ecrãs planos, os sistemas de navegação por satélite, o comércio electrónico, o trabalho temporário ou a filantropia, que podem facilmente ser tratados em outras editorias para além da economia. Porém, escrever sobre eles para as páginas de economia de um jornal ou para um suplemento económico significa interiorizar formas de abordagem diversas, que desvendem tendências evolutivas, mudanças de estratégia, luta pela liderança do mercado, entre outras linhas de orientação. Embora este procedimento pareça fácil, acaba por não o ser na prática, devido à condição dúplice que o jornalista especializado enfrenta quando exerce a sua actividade profissional num órgão de comunicação generalista, como o Público. De facto, não se escreve da mesma maneira para o Diário Económico ou para o Jornal de Negócios como se escreve para as páginas de economia do Público ou para o seu suplemento de Economia. E é aqui que se forjam as potenciais debilidades do jornalismo especializado em qualquer área, como a economia. “Divididos entre assumirem-se como especialistas ou despirem-se desta condição para abordarem os temas como se os vissem pela primeira vez, dirigindo-se a um público generalista, estes jornalistas assumem uma posição dupla que transparece no discurso que produzem. (…) É a dificuldade e a neurose de serem diferentes e, simultaneamente, serem como todos os outros. Falar ao mais vasto público possível, sem perder a credibilidade junto do público especializado mais restrito. Esta é a dicotomia essencial do jornalista especializado numa determinada área” (Martins, 2007: 17). Na minha opinião, esta condição dupla em que o jornalista especializado se coloca conduz a um grande risco: acabar por fazer jornalismo para o público dito especializado – o que muitas vezes acaba por ser o mesmo que fazer jornalismo para as fontes – e abandonar a verdadeira missão que deve nortear o jornalista – informar os cidadãos e ajudar a formar a sua consciência cívica, essencial ao funcionamento pleno de um regime democrático livre. O jornalista de economia não tem de ser um especialista, até porque “em geral, o jornalista especializado, em qualquer área, está longe de ser um conhecedor profundo e com formação específica na sua área de especialização” (Martins, 2007: 16). O jornalista de economia tem, acima de tudo, de preservar no seu íntimo a condição de jornalista generalista, que escreve para o público comum e que deve fazer entender-se por este, pois é com ele que tem um compromisso, e não com as fontes, ou com o público especializado. Foi este espírito que tentei sempre incutir nos meus trabalhos, embora muitas vezes tal se tenha revelado uma tarefa árdua, sobretudo nas páginas de economia do jornal diário, onde o predomínio de artigos menores e mais circunscritos à actualidade mediática contrastava frequentemente com a necessidade de uma maior contextualização e explicitação de fenómenos e tendências económicas mais alargados. Exemplos desta situação foram os artigos que realizei sobre vários bancos mundiais afectados pela crise de subprime. Penso que, por várias vezes, me debrucei excessivamente sobre pormenores económicos, quando devia ter-me preocupado mais em explicar o que é esta crise, mesmo que tal significasse repetir-me todos os dias. Aliás, é precisamente esta noção de “escrever como se todos os leitores comprassem o jornal pela primeira vez na vida” (Livro de Estilo do Público, 2005: 48) que o jornalismo económico parece perder de vista com frequência. Ainda para mais quando os seus profissionais já dominam suficientemente a área de especialização em que escrevem, o que torna mais difícil colocarem-se no lugar do leitor. Todavia, apesar dos riscos e debilidades inerentes ao jornalismo especializado em economia (e talvez em qualquer outra área), tenho de reconhecer que teve para mim uma virtude fundamental: a possibilidade de adquirir conhecimentos numa área que, sendo embora espe-
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cífica, acaba por ser transversal a toda a vida e sociedade humanas. Com efeito, para além de adquirir experiência profissional, estava a aprender alguma coisa para além disso, um conhecimento mais profundo, uma maior cultura geral, que não se reduz aos acontecimentos imediatos que constituem a torrente informativa jornalística. Assim, e apesar de não ter tido a possibilidade de trabalhar um género jornalístico que adoro, a reportagem – as duas únicas peças que envolviam realmente reportagem e que me deram imenso prazer escrever foram sobre a Manufactura de Tapeçarias de Portalegre e a Efapel –, acabei por desenvolver um trabalho que me estimulava e que estava em consonância com a minha maneira de ser, de tentar sempre saber mais e descobrir novas coisas. Foi por isso que retirei uma grande satisfação ao fazer os artigos sobre o site de comércio electrónico Otto, os fundos soberanos de investimento a Philips, os sistemas de navegação por satélite, os interesses petrolíferos da Ásia em África ou a venda da Scottish & Newcastle à Carlsberg e Heineken, mesmo que não implicassem grandes contactos com fontes ou investidas “in loco”. Essa mesma satisfação senti também em relação às pequenas peças sobre temas diversos que realizei para a rubrica “Notas” em todas as edições do suplemento de Economia ou às nomeações e saídas de cargos empresariais desenvolvidas no “Trânsito”, coluna do suplemento que ficou sob minha responsabilidade a partir da primeira semana de estágio.
2.2 - Jornalismo em “economês”: a fórmula do desencanto Para a jornalista Pamela Hollie Kluge, o jornalismo económico é a área mais intimidante da actividade jornalística, onde os artigos nunca são tão claros ao leitor como o jornalista gostaria (Martins, 2007: 11). Essa falta de clareza decorre de um aspecto que é frequentemente criticado na área económica: o uso de uma linguagem particular, o “economês”. Com efeito, o recurso reiterado e constante a indicadores
de preços, de custos, de produção, de consumo ou de liquidez acaba muitas vezes por confundir o texto jornalístico e, consequentemente, o leitor. Ao pré-julgarem que o universo de termos e expressões económicas é já conhecido, muitos jornalistas e jornais pensam que não é necessário traduzi-los para o público. Porém, “(…) mais do que dominar um determinado vocabulário e relações a ele associadas, há que não se esquecer que se trata de jornalismo. Trata-se de descobrir, seleccionar e contar (…) o que as pessoas precisam e querem saber” (Martins, 2007: 20 e 21). Nem que para isso seja necessário pôr de lado a linguagem mais especializada e certamente mais correcta; nem que para isso seja necessário explicar o significado de palavras que já escrevemos milhares de vezes mas que o leitor pode ainda não saber o que querem dizer. O “economês” foi, provavelmente, a maior dificuldade que enfrentei no decurso do estágio em economia. E refiro-me aqui ao “economês” numa acepção lata, envolvendo não só o universo morfológico tipicamente económico, mas também uma série de conhecimentos específicos em economia que me faltavam e continuam a faltar. Essa carência revelou-se particularmente penosa quando tive de ir em serviços externos para o jornal diário. Enquanto os outros artigos que fiz para as páginas de economia do Público implicavam uma pesquisa intensa, a selecção da informação mais importante e sua reconstituição num todo coerente e completo em termos de conteúdo, os serviços externos deixavam-me por minha conta e risco e sem qualquer tipo de auxílio imediato para descodificar termos obscuros e/ou antecedentes ignorados. Foi o que aconteceu quando fui ao Fórum dos Embaixadores, onde o montante de dados divulgados por Basílio Horta me deixou extremamente confusa, sem certezas do que iria puxar para primeiro plano ou sequer escrever. Nestas situações foi preciosa a ajuda dos editores (quer o Vítor Costa, quer o editor do Porto, José Manuel Rocha) que, com a sua experiência e conhecimentos, me auxiliavam a pôr as ideias em ordem e me sugeriam o que era mais importante. Ainda assim, ficava frequentemente inquieta e até incerta se os dados que tinha recolhido estavam correctos. Por isso, neste caso como em outros, escrevi o texto da notícia e depois fui confrontá-lo com o que
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havia saído na agência Lusa sobre o tema. E, devo confessar, ainda bem que o fiz porque permitiu-me clarificar algumas ideias no texto e acrescentar outras que, simplesmente, me haviam escapado ou que não havia considerado importantes, visto que eram muitas vezes proferidas em “economês”. Na verdade, não é de estranhar que as fontes oficiais se pronunciem numa linguagem especificamente económica; o problema maior é quando os jornalistas não fazem a respectiva tradução para o público. Neste domínio, Michael Arkus e Graham Watts, da Universidade de Columbia, fornecem um rol de recomendações interessantes na Internet para tornar mais “comestíveis” as estórias de economia, tantas vezes consideradas secas e pouco entusiasmantes. Contudo, o mais curioso é que essas recomendações são tudo menos originais e parecem ecoar aquilo que aprendi com os professores de jornalismo ao longo de quatro anos: o “lead” deve ter acção, o jornalista deve criar um cenário capaz de inserir o leitor no artigo, transformando-o em testemunha do assunto relatado, deve ser fornecido ao leitor nos últimos parágrafos um enquadramento do tema. Quando em causa estiverem questões especialmente complexas, o jornalista de economia deve construir analogias que facilitem a compreensão do leitor e concretizá-las através da citação de exemplos. Mas, para além de ter de abandonar os vícios da linguagem especializada como defende Watts, o jornalismo de economia tem também de libertar-se de raízes mais entranhadas, ligadas aos seus “principais traços permanentes de ideologia”: “a escolha do capital e seu processo de acumulação – e não do homem – como objecto central de preocupação, o optimismo noticioso e o descaso com questões estruturais”. (Lene, 2005: 9). Uma opinião semelhante é partilhada pelo jornalista de economia brasileiro Aloysio Biondi, para quem “o jornalismo de economia seria semelhante ao policial, por ser fragmentado. Ele privilegiaria o momento de recorde e o momento de grande crise e depois não daria ao leitor/telespectador a devida contextualização” (Lene, 2005: 14). Embora concorde com as opiniões expressas e tenha observado essas tendências nas páginas de economia do jornal diário, confesso que o meu trabalho não foi particularmente afectado por esta “ideologia”, visto que foi desenvolvido maioritariamente no âmbito do suplemento de Economia. Logo, menos sujeito às pressões do tempo e aos ditames do agenda-setting e, por isso, facilitador de uma perspectiva de conjunto, do pano de fundo e da contextualização.
2.3 - Um jornalismo de e para as fontes ? Durante o meu estágio na secção de economia do Público, pude aperceber-me do alcance de uma realidade que tinha sido muito discutida no âmbito da licenciatura em Jornalismo: a relação dos jornalistas com as fontes de informação. Uma relação que tem implicações diversas consoante a direcção em que se estabelece: do jornalista para as fontes (quem o profissional escolhe ou a quem recorre para obter a informação) e das fontes para o jornalista (que tipo de informação interessa às fontes divulgar e as pressões que exercem para atingir os seus objectivos).
Jornalistas – Fontes “Uma leitura transversal das páginas de economia dos jornais da actualidade, pelo menos em grande parte das sociedades ocidentais, permite constatar, mesmo que através de um olhar empírico e não comprovado cientificamente, que a esmagadora maioria dos artigos concentra os seus focos de atenção nas fontes institucionais, nos governos, na classe empresarial, nos economistas. Na maior parte das vezes, a realidade económica é abordada pelo ângulo de percepção do poder instituído, afastando-se da realidade concreta das sociedades, do consumidor, do contribuinte, do desempregado, do pensionista” (Martins, 2007: 22). Por exemplo, numa peça sobre o trabalho temporário que escrevi juntamente com uma colega do Público, penso que teria sido mais interessante aprofundar o contexto social do tema, focando os trabalhadores, do que propriamente centrar todo o artigo na fusão de duas
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empresas de trabalho temporário – um facto que, remetendo para a actualidade noticiosa, poderia constituir-se como bom ponto de partida para o tema, mas não de chegada. Muitos poderiam dizer que, com outra abordagem, o tema deixava de ser de economia e passava a ser de sociedade. Todavia, a meu ver, é precisamente esta escassa proximidade com as pessoas comuns e os seus problemas quotidianos que justifica grande parte do desencanto do público para com as páginas de economia dos jornais. Mas à medida que o público comum ganha uma quase “aversão” à economia nos jornais, outro tipo de público, mais especializado, procura crescentemente a informação veiculada pelo jornalismo económico. As motivações, contudo, deixam de ser as mesmas. As páginas de economia dos jornais ou os suplementos dedicados à área interessam porque podem conter informação sobre empresas e grupos económicos detidos por esse “público”, ou então sobre a concorrência, ou ainda sobre o sector. E aqui não interessa que a informação esteja próxima do cidadão comum, mas sim dos interesses desses protagonistas, que emergem simultaneamente como parte do público especializado e como fontes de informação. Penso que é nesta dicotomia perigosa que o jornalismo económico resvala e onde enfrenta actualmente um dos seus maiores desafios. Com efeito, se olharmos para as fontes (em acepção lata) a que os jornalistas económicos mais recorrem, podemos destacar dois géneros diversos. Por um lado, temos “fontes” que vivem na sombra e que são um veículo fundamental de disseminação da informação económica à escala mundial. Refiro-me às agências noticiosas, como a Associated Press, a Agence France Press, a Reuters, a Lusa e a Bloomberg, especializada em economia. Sobretudo no caso dos jornais diários, é perceptível uma grande dependência dos profissionais relativamente à informação divulgada pelas agências noticiosas. A secção de economia do Público e sobretudo o online não eram excepção e, por isso, grande parte dos artigos que fiz envolveram o recurso a esta informação de agência, embora procurasse sempre que possível confrontar os dados aí recolhidos com o que tinha saído sobre o assunto nas páginas da Internet dos jornais económicos ou em sítios estrangeiros como o do Financial Times, da BBC , Wall Street Journal, entre outros. Essa dependência em relação às agências noticiosas, que atinge o centro nevrálgico do jornalismo moderno, suscitou já vários movimentos de reacção como, por exemplo, o do “jornalismo para o desenvolvimento” nos anos 70, que veio criticar o poder das agências noticiosas do mundo ocidental, acusando-as de controlar 80 por cento do fluxo mundial de informação. Embora esta questão seja digna de análise, penso que no caso concreto do jornalismo económico há um outro factor mais preocupante, ligado a uma das variáveis determinantes na construção da notícia apontadas por Nelson Traquina – a acção estratégica dos promotores de notícias e os recursos que possuem (Traquina, 2002). Essa acção surge pelas mãos de agências de comunicação e imagem ou de assessorias de imprensa a empresas e governos, de associações e sindicatos. O objectivo principal é um só: “‘vender’ determinadas informações aos jornais, fazendo-as chegar em forma de sugestão de pauta ou através de pequenas notas para colunas, que acabam despertando atenção para a informação e fazendo com que gere uma notícia” (Resende, 2003: 46). Estas fontes de informação, com os seus briefings e press releases que atulham os e-mails dos jornalistas, assumem um papel cada vez mais significativo no jornalismo económico actual. Não só cumprem um dos requisitos mais importantes para a constituição de uma notícia – a disponibilidade da informação (Traquina, 2002) – como souberam sofisticar e camuflar a sua acção de influência na agenda jornalística. “As fontes deixaram de ser pessoas que detinham informações. Passaram a ser instituições produtoras ostensivas dos conteúdos da actualidade. (…) Para o exercício deste papel, elas capacitaram-se profissionalmente, apropriando-se das habilidades técnicas jornalísticas” (Resende, 2003: 49) e adoptando, na distribuição da informação, os mesmos valores-notícia que os jornalista usam. Durante o estágio no Público, recebi vários e-mails de assessorias de imprensa e gabinetes de comunicação que correspondiam a este esquema de facilitar ao máximo a vida do jornalista. Os textos surgem em forma de notícia, com título, entrada, lead, declarações dos principais representantes da empresa ou grupo. Nas conferências de imprensa a que fui, esperava-me sempre à entrada um dossier completo sobre a empresa, onde “notícias” já construídas pareciam sugerir que não havia mais nada a dizer ou, pelo menos, não convinha. Afinal, essas fontes sabem que o tempo é um bem escasso para o jornalista actual e que este “adora notícia de investimento novo” (Resende, 2003: 46). Contudo, penso que a disponibilidade cada vez maior de manancial informativo proveniente de fontes interessadas na sua publicação pode ter um efeito perverso sobre o profissional da informação. “O jornalista é literalmente asfixiado, sente-se soterrado por uma avalanche de dados, de relatos, de processos (…) que o mobilizam, o ocupam, preenchem todo o seu tempo e, tal como os engodos, o distraem do essencial. Além do mais, isso encoraja a sua própria preguiça, pois já não tem que procurar a informação, esta vem ter com ele sem esforço” (Ramonet, 2003: 29). E essa preguiça pode mesmo levar o jornalista a reproduzir integralmente as informações, nomeadamente os press releases, divulgados pelas fontes. Uma conduta que não é seguida pelo Público, em consonância com o que diz o seu Livro de Estilo: os
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briefings e press releases, “como qualquer informação com características publicitárias ou de relações públicas, devem constituir apenas uma pista para um trabalho jornalístico independente” (Livro de Estilo do Público, 2005: 169). Mas, curiosamente, foi graças a uma dessas acções de reprodução literal de um press release que me surgiu a ideia para um artigo. Na página da Internet de um jornal de Coimbra, encontrei um texto sobre a empresa de materiais eléctricos Efapel que me chamou a atenção e que reproduzia um press release do grupo a que mais tarde tive acesso. Assim, a “notícia” no jornal acabou aqui por exercer o mesmo impacto que a informação das assessorias de imprensa deve ter, que é o de funcionar apenas como referencial a partir do qual o jornal desenvolve uma pauta e chega à verdadeira notícia ou tema. Com efeito, “uma fonte é quase sempre parte interessada – logo, parcial e incompleta – e o jornalista deve recusar o papel de mensageiro de notícias não confirmadas, boatos, ‘encomendas’ ou campanhas de intoxicação pública” (Livro de Estilo do Público, 2005: 31). Caso contrário, as notícias serão cada vez mais “influenciadas por acontecimentos planeados, produzidos e controlados por pessoas ou organizações” e estarão destinadas a reduzir-se ao “resultado de um esforço intencional das organizações – e as suas assessorias – no sentido de terem uma ou mais de suas acções levadas ao conhecimento do público, o que pode lhes trazer benefícios de imagem e ocupação de espaço em detrimento do concorrente” (Resende, 2003: 56).
Fontes – Jornalistas Uma questão que surgia frequentemente em conversas com os jornalistas de economia era: será que as dependências dos jornalistas são hoje mais fortes na área do jornalismo económico do que na área do jornalismo político? A verdade é que, na política, notícias favoráveis podem até granjear votos eleitorais mas, “no mundo dos negócios, os jornalistas financeiros são jogadores (…). Uma única estória negativa, verdadeira ou não, pode fazer cair o valor das acções de uma companhia em minutos. Uma notícia sobre uma eventual aquisição hostil faz imediatamente o valor das acções subir, acrescentando milhares de milhões de dólares aos accionistas da companhia” (Kurtz, 2000: XII). Mas será que isto significa que há realmente, como se ouve dizer, um processo de colocação de notícias no jornalismo económico, desenvolvido por agências de comunicação, em nome de empresas ou grupo políticos ligados a grupos económicos? Penso que seria imprudente e precipitado da minha parte tentar dar resposta afirmativa ou negativa a esta questão. A minha reduzida experiência na área do jornalismo económico não me permite afirmar se há ou não um efectivo e permanente controlo do trabalho jornalístico por parte destes profissionais, com quem os jornalistas contactam diariamente. Ainda assim, não me foi difícil distinguir, durante o meu estágio, uma série de tentativas de influência por parte das fontes de informação que atingiu várias escalas. Desde as manobras de auto-promoção durante almoços e pequenos-almoços oferecidos aos jornalistas, passando por pedidos de leitura prévia de artigos antes de serem publicados, até extremos de manipulação e quase ameaças veladas para impedir a saída de determinada informação. A primeira vez que me disseram para ir a um pequeno-almoço de uma empresa fiquei algo admirada. O meu pensamento imediato foi “espertos! Sabem que, se chamarem os jornalistas para uma conferência normal, talvez nem apareçam, por isso conquistam-nos pelo estômago!”. A verdade é que continuei a pensar assim até ao final do estágio, visto que nada me conseguiu fazer mudar de opinião. Com efeito, o primeiro pequeno-almoço a que fui, foi promovido pela Priberam e constituiu-se como pretexto para apresentar um novo produto da empresa e revelar resultados financeiros. O mesmo se repetiu num pequeno-almoço oferecido aos jornalistas pela Visa Europe ou num almoço da Grundig. Nestes eventos, os jornalistas pareciam obrigados a girar num círculo vicioso: as empresas divulgavam a informação que lhes interessava, os jornalistas faziam mais e mais perguntas e as fontes apenas respondiam o que lhes convinha. Tudo parecia encaixar-se assustadoramente na afirmação feita por Jorge Wemans, um dos fundadores do Público, o primeiro provedor do leitor deste jornal e antigo responsável pela área de economia: “Hoje sabe-se apenas aquilo que as fontes querem que se saiba” (Martins, 2007: 154). Não estou com esta crítica a querer dizer que os jornalistas devam deixar de comparecer nestas iniciativas; o que não deve acontecer é deixarem corromper o seu distanciamento e espírito crítico por uma boa garrafa de vinho, uma apetitosa refeição ou uma conversa interessante com o patrão da empresa ou o seu assessor, que, por acaso, estavam sentados ao seu lado no almoço ou pequeno-almoço, abrindo caminho a uma maior promiscuidade entre fontes e jornalistas. Para além disso, penso que a presença nestes eventos não deve trazer associado qualquer sentido de obrigatoriedade de publicar uma notícia sobre o assunto. Só a relevância e interesse público da informação divulgada pode justificar a sua publicação. Por decisão dos editores, o pequeno-almoço da Priberam não deu origem a nenhum artigo no jornal diário, pelo que fiz apenas uma peça para o online. Já no caso da Visa, saiu um pequeno artigo no jornal diário e no online, sendo que apenas a peça da Grundig mereceu um maior desenvolvimento. Curiosamente, preferia até que não me tivessem pedido para fazer este último artigo, pois ainda me recordava bem de uma declaração do director da Grundig Portugal horas antes, que me provocou um misto de estupefacção e indignação: “Contamos com o apoio dos senhores jornalistas para nos ajudarem a promover a marca Grundig”. Para além destas estratégias de promoção junto dos órgãos de comunicação social, deparei-me com situações mais delicadas em que, como refere a jornalista de economia Christiana Martins, “os objectivos dos profissionais de cada lado do gravador muitas vezes parecem tornar-se inconciliáveis: um, procura revelar o segredo e tornar pública a informação; o outro busca o elogio, a visibilidade e esconder
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o que contrarie estas metas” (Martins, 2007: 18). A primeira vez que vivi esta situação, ainda que parcialmente, foi quando entrevistei o presidente da agência de meios Havas Media, Fernando Cruz, para a rubrica “Hora H” do suplemento de Economia. Mesmo depois de explicar o propósito da entrevista (descobrir qual tinha sido o momento decisivo na vida profissional do empresário), o entrevistado tentou constantemente desviar a conversa para a empresa, os seus resultados, a sua posição de liderança no mercado nacional ou a sua história de sucesso. Ao contrário da entrevista ao presidente da IBM Portugal e à directora da Unilco- SEG , que respeitaram o intuito do trabalho, a direcção da Havas Media preferiu ignorá-lo e aproveitar o “tempo de antena” para publicitar a empresa. Uma situação com traços semelhantes desenrolou-se quando realizei um artigo para o suplemento de Economia sobre uma nova empresa de cheques-oferta, a Emotions, criada por um casal de franceses. O caso foi conturbado desde o início, porque não conseguimos uma entrevista com Florença Ricou que, até à data, tinha vindo a dar a cara pela projecto e sido inclusive entrevistada e fotografada por outros jornais. A proposta da Emotions foi entrevistarmos o marido, Johan, que tinha passado a ser o responsável pela empresa. Contudo, se a história começou mal, terminou ainda pior e creio que, se tivesse havido um outro artigo “de reserva” para esse suplemento, a peça não teria chegado a ser publicada. E tudo porque a empresa colocou uma série de restrições injustificadas em relação à informação divulgada, não revelando, por exemplo, o montante de capital investido no negócio – um dado que o editor Luís Villalobos considerava determinante, porque dava ao artigo uma perspectiva instrutiva, mostrando a um público interessado em criar um negócio próprio como poderia fazê-lo. A recusa da empresa motivou uma parcial reescrita do artigo pelo editor, puxando para primeiro plano a concorrência que a Emotions tem de enfrentar, referindo o facto de o casal não se deixar fotografar em conjunto e omitindo a maioria dos aspectos que o grupo considerava distintivos das empresas concorrentes. No domínio das tentativas de influências das fontes de informação no trabalho jornalístico, destacaria ainda o caso da Efapel, onde sugeriram delicadamente que eu escrevesse o artigo e depois o enviasse para “ver se haveria algum erro ou imprecisão”, conselho que rejeitei de imediato. Mas a mais grave de todas desenrolou-se quando fiz a reportagem sobre a Manufactura de Tapeçarias de Portalegre. No decurso da investigação sobre a empresa e a família Fino, reuni dados sobre um processo em tribunal contra a directora da Manufactura, Vera Fino, que fora acusada de crime de abuso de confiança fiscal no período em que estivera à frente de outra empresa da família, a Fino’s. O meu editor pediu-me para abordar esse assunto com a entrevistada e eu antevi logo que não iria ser uma tarefa fácil. Contudo, o problema maior foi que Vera Fino, talvez prevendo que eu pudesse vir a questioná-la sobre o processo, fez-se acompanhar pela sua advogada durante a entrevista. Assim sendo, mal toquei no assunto, o clima de boa-disposição desvaneceu-se e a advogada perfilou-se imediatamente em defesa da sua cliente, como se tivessem voltado à barra do tribunal. Fez-me “um pedido formal” para que não publicasse nada sobre aquele assunto, deixando no ar insinuações retaliadoras. Respondi-lhe que não deixaria de publicar a informação, que o processo era público e estava parcialmente disponível para consulta na Internet e que a única coisa que pretendia da entrevistada era saber qual havia sido o resultado do mesmo, visto que os meus contactos com o Supremo Tribunal de Justiça em nada tinham adiantado. Graças à sua recusa em falar, ficou nitidamente claro que o resultado do processo não tinha sido favorável a Vera Fino mas, ainda assim, preferi referir no artigo apenas o teor da acusação e a recusa em comentar o assunto. Contudo, se até agora me reportei sobretudo a acções de influência por parte das fontes de informação, não deixo de reconhecer que as editorias de economia dos jornais sofrem também outras formas de pressão, provenientes dos anunciantes e dos próprios gestores do órgão de comunicação. Houve apenas um caso com que me deparei neste domínio. O editor Vítor Costa pediu-me que fizesse um artigo sobre um novo programa da RTP2 , “Economia do mês”. Percebi de imediato que ele tinha recebido uma ordem vinda “de cima”, que não lhe agradava a ideia de fazer um artigo sobre aquilo e que certamente existiram certos tipos de interesses camuflados por detrás desta solicitação. Confesso que foi estranho fazer este artigo, pois implicou limitar-me a visionar o programa em DVD enviado à secção e destacar as declarações que me pareceram mais importantes. Finalmente, ao longo do estágio pude aperceber-me que estas formas de “pressão” que sofri certamente permanecem muito aquém das que são exercidas sobre os outros jornalistas da área de economia, que têm matérias específicas entre mãos como a macroeconomia, a banca, as telecomunicações, o emprego, etc. É sobretudo nestes domínios que se torna ainda mais premente a necessidade de “saber do que se fala quando se fala com alguém; (…) saber o que se esconde ou desvenda por trás dos números. Por trás de números abstractos estão situações objectivas, estão pessoas que os definem, os utilizam e até os instrumentalizam e estão também outras pessoas que são por estes mesmos números afectadas” (Martins, 2007: 20 e 21). Contudo, não é possível o jornalista aperceber-se disso se não tiver como suporte um sólido saber económico, que lhe permita enfrentar as tentativas de influências das fontes e reagir a elas. Com efeito, “a falta de formação específica [dos jornalistas] em questões associadas à economia e a dificuldade de estabelecer um diálogo com as fontes de informação baseado na igualdade de condições e conhecimentos, tornando possível a construção de uma relação marcada pela independência, determinam uma barreira à partida” (Martins, 2007: 18). Uma barreira que é tanto mais preocupante se atentarmos para o facto de que, em temas como a economia, a comunicação social emerge como o principal veículo de informação dos cidadãos comuns, o que deveria obrigar jornais e jornalistas especializados em economia a “explicar criticamente, questionar as afirmações económicas, conferir o que é consistente e denunciar a burla e a farsa e não apenas reproduzir o que as fontes dizem” (Lene, 2005: 15).
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Conclusão Quando escolhi estagiar no Público, sabia que isso iria implicar começar o estágio numa altura (final de Outubro) em que muitos dos meus colegas já tinham terminado os seus estágios, provavelmente já teriam começado a escrever o relatório de estágio e caminhavam a passo apressado para concluir a licenciatura. Durante os quatro meses de férias de Verão que acabei por ter, não foram poucas as vezes em que revi mentalmente a minha decisão e quase lamentei uma escolha que me estava a obrigar a longos momentos de inacção e a atrasar a conclusão de uma etapa da minha vida. Mas hoje, olhando para os três meses de estágio no Público, não me arrependo de ter escolhido o jornal e a secção de economia para dar os primeiros passos na actividade jornalística profissional. Foi realmente a melhor opção, por tudo o que aprendi e ainda porque me deram a possibilidade de prolongar essa aprendizagem por mais seis meses, oferecendo-me um contrato de trabalho. Não posso, pois, deixar de agradecer ao Público e aos seus jornalistas, nomeadamente da secção de economia. Porque, se sempre me mostrei empenhada, mais importante ainda foi a possibilidade que eles me deram de concretizar esse meu empenho. Não só me acolheram, como me deram trabalho para as mãos, sem medo da minha inexperiência, da minha “ignorância económica” e dos meus possíveis erros e falhanços. Ao confiarem em mim, permitiram-me a mais eficaz de todas as aprendizagens: aprender fazendo. Mas seria injusto canalizar em exclusivo os agradecimentos pelo saldo positivo do meu estágio para o Público e os seus jornalistas. Para além da experiência marcante que foi fazer parte d’A Cabra – Jornal Universitário de Coimbra, tenho consciência que, para o que hoje sou e sei, muito contribuíram os quatro anos da licenciatura em Jornalismo na Universidade de Coimbra. Isto apesar das lacunas que sempre apontei e discuti abertamente com os meus professores, a quem agradeço pelo esforço de ensinar a fazer jornalismo e, sobretudo, a pensar o jornalismo. E já agora deixo uma pequena sugestão: por que não incluir no programa curricular da licenciatura em Jornalismo disciplinas de formação em economia e outras áreas de especialização jornalística? Transmitir conhecimentos de base em história, sociologia, filosofia é importante, mas não será também fundamental dar aos alunos competências em economia, política, relações internacionais e justiça para que, quando saírem para o mercado de trabalho, estejam já minimamente capacitados para responder às exigências das diferentes áreas de jornalismo especializado? E quando falo deste tipo de disciplinas, não me refiro a cadeiras gerais de economia ou de política, mas a um programa curricular que foque os temas da actualidade noticiosa, os seus contextos e a sua inserção em perspectivas teóricas. Ou seja, do meu ponto de vista só fazem sentido disciplinas de economia ou política desde que aplicadas ao jornalismo, do mesmo modo que não faz sentido, num curso de Jornalismo, aprender uma língua estrangeira lendo e analisando literatura do país de origem (neste domínio, sempre considerei que as disciplinas de Inglês da licenciatura funcionavam impecavelmente, pelo que vi com pena a sua eliminação com o Processo de Bolonha). Com efeito, não posso deixar de reconhecer o quanto este tipo de formação em economia ou jornalismo económico me teria sido útil para o estágio que realizei. E quão mais precioso seria agora que vou voltar para o Público e para a secção de economia. Mas o importante mesmo é que nunca me falte a capacidade de aprender e que consiga seguir sempre o conselho que Juan Luís Cébrian dirigiu nas suas Cartas a um jovem jornalista: “Não deixes de te interrogar, de perguntar aos outros. Não tenhas vergonha de reconhecer a tua ignorância se tratas de acumular conhecimentos” (Cébrian, 2004: 23). Pelo menos isso está ao meu alcance. Bibliograf ia ARKUS, Michael (s.d.) “Writing tips”. Nova Iorque: Columbia University, em http://www2.gsb.columbia.edu/ipd/j_writingtips.html (acedido: Janeiro de 2008) CALDAS, Suely (2003) Jornalismo Económico. São Paulo: Editora Contexto CÉBRIAN, Juan Luís (2004), Cartas a um jovem jornalista. Lisboa: Editorial Bizâncio HARFORD, Tim (2006) O Economista Disfarçado. Lisboa: Editorial Presença KRUTZ, Howard (2000) The Fortune Tellers. Nova Iorque: The Free Press LENE, Hérica (2005) “A emergência do capitalismo cognitivo e as mudanças no jornalismo económico”, em http://bocc.ubi.pt/pag/lene-herica-emergencia-do-capitalismocognitivo.pdf (acedido: Janeiro de 2008) Livro de Estilo do Público (2005) MARTINS, Christiana (2007) 30 anos de jornalismo económico em Portugal (1974-2004). Lisboa: Livros Horizonte R AMONET, Ignacio (2003) A tirania da comunicação. Porto: Campo das Letras RESENDE, Lino Geraldo (2003) “Economia, valor notícia e assessorias de imprensa”, em http://bocc.ubi.pt/pag/resende-lino-economia-valor-noticia.pdf (acedido: Janeiro de 2008) TR AQUINA, Nelson (2002) Jornalismo. Quimera WATTS, Graham (s.d.) “It might be economics, but it’s still journalism”. Nova Iorque: Columbia University, em http://www2.gsb.columbia.edu/ipd/j_writingtips2. html (acedido: Janeiro de 2008)
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O Lado Selvagem
“Vou embrenhar-me” em mim Nascemos livres. Corpo singular com alma própria. Corpo que cresce e ganha novas formas. Alma que se molda, que se subverte, que se esconde dentro do corpo e corre pelo mundo. Alma que nos preenche e nos sufoca. Que grita por nós. Que nos faz ir. A correr. Mesmo quando cansados. Que nos faz fugir. Largar. Cortar barreiras. E Seguir, sem direcção. Numa viagem, cujo sentido não se vê de fora. Até aprendermos a cair. A Sós. Porque nos insurgirmos contra os incómodos da vida que predefiniram para nós. Não cabemos no perímetro de uma ampla e rica moradia. O nosso corpo não foi desenhado para os assentos dos carros de luxo. E o sol é demasiado arrasador para o deixarmos partir sem o vermos, sem ele nos comer a brancura da pele. Porque o quintal que nos alimenta tem vedações demasiado altas. Chris McCandless, jovem proveniente de um abastado bairro residencial de Washington D.C., achou-se assim. Demasiado cheio de coisas. Vazio por toda a opulência que se impunha à sua volta. E porque tudo ia num sentido que não era o seu, decidiu partir. A pé. À boleia. Doou todo o dinheiro que possuía na conta bancária. Queimou todos os dólares que levava no bolso. Despojando-se de tudo, em silêncio, até do próprio nome. De Christopher McCandless passou a Alexander Supertramp. Despindo-se do mundo dos objectos, deixou também para trás, sem aviso, a família e o futuro que haviam traçado para ele. Afastou-se da hipocrisia que o incomodava e procurou viver sem rede, durante 2 anos. Chris é o protagonista da história que deu origem ao livro O lado Selvagem do jornalista Jon Krakauer e ao filme, com o mesmo nome, realizado por Sean Penn. A história de uma viagem sem retorno. Nas primeiras páginas do livro aparece um mapa dos EUA , assinalando a viagem de Chris. Inscritas naquelas duas folhas de papel as coordenadas da sua curta vida, desenhada sem régua nem esquadro, somente com um compasso. O compasso do tempo e do pulsar da terra. As restantes páginas do livro sucedem-se como negativos fotográficos, alguns já meio queimados, a correr apressados pelo nosso imaginário. Neles estão registadas as paisagens observadas por Chris, as pessoas que o ajudaram a fazer o caminho, os pedaços de textos arrancados ao seu diário e as frases sublinhadas dos livros de Tolstói ou Thoreau, que carregava como bíblias sagradas. Mais ainda. Neles o autor não se abstém de contar parte da sua própria história e da história de outros que como Chris também procuraram viver à margem da sociedade e no seio da natureza. Esta obra não é, portanto, uma biografia imparcial. Em O Lado Selvagem encontramos um autor apaixonado, que revela uma profunda admiração pelo espírito que retrata, que o compreende à medida que repete cada um dos seus passos e que no fundo se vê nele reflectido. O desejo de aventura e a concepção da natureza como lugar de libertação e de resolução de conflitos unem autor e personagem. A obsessão de Jon Krakauer por esta história surgiu depois de ter escrito um artigo sobre Chris para a revista americana Outside. A partir desse momento, o jornalista encetou uma longa e profunda investigação, durante 3 anos. Falou com a família e amigos de Chris, foi a todos os sítios que o jovem frequentou antes e durante a viagem, recolheu depoimentos das pessoas que Chris conheceu na estrada, leu o diário e os mesmos livros que inspiraram o jovem. Entregou-se à pesquisa até perceber quem era realmente Chris McCandless.
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Esta paixão foi de imediato partilhada por Sean Penn, que da primeira vez que olhou para a capa do livro foi logo agarrado pelo título - Into the wild. Levou-o consigo e leu-o duas vezes seguidas. “A primeira vez pensando que estava a ler um livro, a segunda vez sonhando que estava a fazer um filme” , conta Sean Penn. Assim, a partir de uma vida fez-se um livro e de ambos resultou um filme. Este último também dividido em capítulos como se de uma obra literária se tratasse, mas com outros poderes mais imediatos: imagens e sons, que nos arrebatam desde o primeiro instante. De repente, vemos o negro da sala escura ser interrompido pelo branco cândido de um ecrã cheio de neve, conseguimos ouvir o bafo do vento e até o som dos passos de Chris a rasgarem o gelo. E como se os ruídos da natureza não bastassem, entra o dedilhar de uma guitarra e, mais além, a voz de Eddie Vedder, áspera como o caminho de Chris, a ecoar sobre os planos panorâmicos de longas montanhas cobertas de branco glacial. A cortar o céu uma ave solitária e na terra Chris, também ele só, a pisar a neve virgem do Alasca. Perante tal cenário, deixa de ser possível censurar Chris por desejar tudo aquilo. Por ter abandonado a família numa longa e cada vez mais dura angústia. Quase que se torna legítimo querer ficar só naquela imensidão. Porque aquele é um longe tão doce e cheio, que nos faz esquecer a crueldade da sua decisão. Imagens, sentimentos e sons surgem-nos, assim, em tão larga medida, que somos esmagados a cada movimento de câmara. Absorvidos. De espectador passamos a personagem e damos boleia a Chris, e aí também nós começamos a acreditar que seríamos capazes de ultrapassar as limitações do nosso corpo e os medos que ele esconde. Compreendemo‑lo até, através de elementos que nem vemos: as músicas de Eddie Vedder, cujas letras funcionam também como guião, e a voz off ora da irmã de Chris ora do próprio. Autênticas bengalas a apoiarem-nos no caminho. E acabamos juntos a acreditar, a sentir o medo, a liberdade e a alegria final: vivemos a grande aventura e agora chegámos à Última Fronteira (curiosamente o cognome oficial do Alasca). Sítio de encontro e de perda, de onde Chris levou uma suave e irónica certeza: “a felicidade só é verdadeira quando é partilhada” .
http://www.charlierose.com/shows/2007/09/21/1/a-discussion-about-the-film-into-the-wild Nota retirada do diário de Chris McCandless in KRAKAUER, Jon, O Lado Selvagem, Lisboa, Editorial Presença, 2002. p.178-179.
Raquel Carvalho
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Expiação Humanos: essa carne pensante que age, que mente, que cria, que corrompe, que transgride e que se arrepende. Alguns são vítimas, outros cúmplices, outros ladrões de sentimentos. Mentir para criar e satisfazer o desejo do domínio sobre o outro, construir histórias, separar vidas, domar o destino sem hesitações. Agir com perspicácia como quem anda num campo minado, criar para aniquilar o tédio do mundo, corromper para ser como os adultos e transgredir para alcançar a liberdade. Expiação (2001), do escritor inglês Ian McEwan, é mais que um livro, é mais que uma adaptação ao cinema, é uma colcha retalhada pelas possibilidades de ser e costurada pela trama das relações humanas. É através da percepção transversal de uma narrativa que suplanta os limites da transgressão dos sentimentos que podemos mergulhar no interior de uma humanidade desmascarada, sem princípios, nem formalidades. A particularidade de cada ser que surge na história, expressa nos rostos de cada personagem, incita à reflexão dos pensamentos, à interpretação das palavras e das falas, projectadas e imaginadas no interior da nossa própria consciência, como numa sessão psicanalítica, em que a experiência humana de se pôr no lugar do outro leva à descoberta da verdade sobre nós mesmos. É o novelo denso e complexo dos sentimentos que é desenrolado e exposto ao público para que ele veja até onde pode ir o fingimento e a fantasia nas relações pessoais. O livro revela-nos uma zona do pensamento inatingível pelo olhar, desnuda a alma das personagens, tornando-as mais vivas do que a própria imagem. O filme mostra a acção, o acto, a presença inegável dos sujeitos, que ganham vida e forma sem o nosso domínio… o leitor transforma-se em espectador e cede ao encanto da imagem, cede os seus pensamentos e a sua imaginação à realidade imagética que surge à sua frente. Estes dois suportes criam uma atmosfera maciça de sensações capaz de pôr o espectador em cena e de o tornar omnipresente e, ao mesmo tempo, instável, como um equilibrista que saltita sobre um fio condutor, concentrando-se em cada passo que movimenta a história. A versão inconsequente de uma realidade contada por uma criança de treze anos que conseguiu, com as suas fantasias e delírios pueris, separar para sempre a irmã mais velha, Cecília, do seu amado Robbie, quando o acusou injustamente de ter violado a prima Lola, envolve toda a família Tallis numa cumplicidade silenciosa e complexa que é esmiuçada pelo escritor e descortinada pelo realizador Joe Wright. O emaranhado de interpretações que as personagens fazem umas das outras, cada uma tentando compreender o significado das suas próprias acções e das acções do outro, gera não só uma tensão constante, como nos envolve na trama, transformando-nos num espírito que deambula por entre os pensamentos dos indivíduos e que mergulha, até ao mais recôndito esconderijo, nas entranhas dos seus sentimentos. Se no filme vemos, no livro sentimos e espiamos o interior de cada personagem, compreendendo a sua natureza. Para cada uma delas é reservada a dose certa de descrição e o traço assertivo da sua personalidade. O que podemos desvendar neste complexo mundo condensado por uma linha temporal e enquadrado num país em guerra são as fraquezas humanas, os sentimentos intensos, os desejos inconcebíveis, as paixões secretas e as culpas imperdoáveis. O que surge diante de nós é a essência da natureza humana, que impregna o nosso corpo com os odores da tragédia e a fatalidade de um destino incontornável.
Uliana Castro
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Esta história não é para fracos Está calor. Muito calor. O deserto texano emancipa-se das páginas de Este País Não é Para Velhos, e conspirando com a violência não tarda em criar desconforto. O deserto é quente, como o inferno, e talvez por isso não seja preciso percorrer muitas páginas até encontrarmos uma potencial marca de terror: o sangue. A ingenuidade de Moss fá-lo seguir um rasto de sangue fazendo lembrar Hansel e Gretel quando perseguem as migalhas na história dos Irmãos Grimm. Os irmãos aqui são outros, Ethan e Joel Cohen, e jogam com a história de Corman McCarthy. Ao encontrar uma mala com dois milhões de dólares, Moss (Josh Brolin) julga ter encontrado a sorte, mas acaba de assinar a própria sentença de morte. Ao ex-veterano de guerra, juntam-se um invencível serial-killer (Javier Bardem), e um inadaptado xerife (Tommy Lee Jones). Os tipos de personagem são banais e encontram-se em qualquer romance, mas a técnica narrativa, objectiva e concisa de Corman McCarthy, deixa qualquer leitor desejoso de ‘devorar’ uma página estando já faminto pelas seguintes. Na adaptação ao cinema os irmãos Cohen conseguem que haja uma simbiose perfeita entre a estética do audiovisual e a prosa de McCarthy. Os realizadores jogam com as sensações que o livro espoleta e conseguem transpô-las para o filme de forma fidelíssima. Apesar do filme Este País Não é Para Velhos ser uma adaptação, os elementos mais apaixonantes do livro encaixam na perfeição as idiossincrasias do universo ‘Coenesco’. A malta de Hollywood é louca, mas os irmãos Cohen ainda são mais e contagiam as personagens e os actores com essa insanidade que tem tanto de ousada como de genial. Tanto o filme como o livro captam os sentidos. O leitor/espectador transpira com o calor do deserto texano, vibra com a fuga de Moss, respeita a integridade moral do xerife Bell e tem medo de Cirghug. Cada tiro do serial killer é de uma frieza que ultrapassa as páginas ou ecrãs e arrepia pela desumanidade. As mortes de Cirghug são tão difíceis de engolir como o seu nome é de soletrar. O profeta da destruição assume uma imagem tenebrosa, à qual é impossível ficar indiferente.
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Cirghug segue Moss, mas aquela passa também a ser a ‘fuga’ do leitor/ espectador que a cada página e a cada frame torce pelo sucesso de Moss e amedronta-se perante a ferocidade do serial killer. Cirghug tem os seus próprios valores. Para este a morte tem um só sentido. O seu sentido. Mais do que o dinheiro, a vida humana ou a misericórdia Cirghug tem os seus próprios valores. A sua vontade é incorruptível e assume uma importância divina. Decide quem vive e quem morre. A forma como o autor e os realizadores jogam com as personagens ditam o sucesso da história. A riqueza da prosa de McCarthy tem o seu apogeu nos monólogos do xerife Bell. E é aí que falham os Cohen. A adaptação engole grande parte dos pensamentos do xerife, reduzindo o desempenho da personagem. O xerife Bell é um homem que começa a sentir-se fora do seu tempo, íntegro de mais para se adaptar à mudança que o país atravessa mas com um enorme sentido de humor. Muitos dos diálogos em que Bell mostrava esse lado espirituoso foram cortados na película. Como a conversa que tem com o assistente embalado pela putrefacção dos cadáveres que jazem no chão embebidos em sangue: Xerife temos aqui uma grande caldeirada Ao que Bell responde: Pois não falta o molho de tomate nem nada. A conversa reflecte as preciosidades do quotidiano que são retratadas no livro e no filme. Uma mentalidade bucólica que nos é apresentada como provinciana mas que contribuiu para o enriquecimento da obra. Outro dos aspectos intrigantes é a forma como as personagens encaram o destino. Como é possível as personagens não escaparem do cenário que se começa a desenhar apocalíptico? Porque é que o mal ganha ao bem? Porque é que a morte é estandarte de uma pseudo moralidade? Porque é que os bons não ganham no fim? São estas incógnitas e contradições que fazem de Este País Não É Para Velhos um grande filme. Num estilo cinematográfico de braços dados com o niilismo, os irmãos Cohen atingem uma profundidade intelectual que não se tem visto em Hollywood. Mereceram as quatro estatuetas douradas.
Rui Antunes
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Simplesmente estranha Preto, branco, tristeza. Em tudo há preto. Em tudo há branco. Em tudo há tristeza. É disto que é feita a obra Weight de Michaël Borremans, que passou pelo Centro de Artes Visuais de Coimbra. Há quadros espalhados pelos dois andares que compõem a exposição e, apesar de distantes, estão interligados pela temática que ilustram. No primeiro andar, os desenhos; no andar de baixo, uma projecção dos desenhos transformados em filme. Parece confuso e, de facto, é. Skirtsculpture, lápis sobre papel, data de 2005 e apresenta partes de uma saia às pregas que parecem esboços para algo que será feito em madeira. De longe, apenas sobressaem três desenhos da mesma saia em perspectivas diferentes. Mas, Borremans faz várias experimentações no mesmo papel: umas mais completas, outras mais incompletas à espera que os vultos desenhados que passeiam discretamente o papel, aperfeiçoem os esboços e terminem o que o mestre deixou por fazer. Tento organizar as palavras soltas, os números incompreensíveis, os desenhos meio acabados, os vultos quase imperceptíveis, mas sem sucesso, pois aquele papel sujo não tem organização possível. Ao descer as escadas, sob uma luz sombria, um quadro emoldurado passa um filme de, aproximadamente, dez minutos que mostra uma menina em movimentos giratórios e que tem vestida uma saia às pregas. Weight (2005) dá nome à exposição e impressiona pelo facto de não se conseguir ver as pernas da menina, pois dá a sensação de que a mesa lhas “cortou” e ela parece flutuar no meio dessa mesa. Com uma trança comprida mal entrelaçada, aquela criança permanece triste, serena, a rodar sobre o seu próprio eixo e sem quaisquer outros movimentos. Ela espera que algo a faça mexer e não faz nada para mudar isso. Talvez ela queira sair dali, mas há algo que a impede. O medo de fracassar? Não sei. Muitas vezes, a falta de coragem impede-nos de avançar e fazer novas conquistas, explorar novos caminhos. A cruz que tem ao pescoço contrasta com os leões desenhados na camisola cor-de-rosa: a paz e a ferocidade. A serenidade exterior esconde uma menina feroz que a qualquer momento pára de girar e diz “ - basta!” à sua inútil e ridícula função. Ora vista de trás, ora de frente, mais perto ou mais longe, a mulher que ilustra Storyboard (2007) aparece como se fizesse parte de uma banda desenhada. Mas, essa banda desenhada não obedece à ordem normal, não tem um seguimento lógico e os números escritos no canto de cada vinheta fazem-nos saltar de quadrícula em quadrícula, incompreensivelmente. No meio de todas as imagens que compõem o quadro, uma mancha negra chama a atenção. O negro da dor, do sofrimento, da solidão. A mulher está num cubículo a mexer em dois paus do comprimento dos seus dedos. Não se sabe o que faz ela ali, ou o que está a pensar. Talvez seja esta a imagem que o artista tem do Ser Humano: alguém que faz tudo de forma mecânica como um autómato que não questiona nada nem ninguém. O sofrimento e a apreensão são visíveis no rosto daquela mulher, enclausurada e observada a todo o momento e de todos os lados. Será este o mundo em que vivemos? Um mundo onde tudo é estandardizado, onde somos constantemente observados e onde imperam as ideias dos mais fortes sem que as possamos questionar? Estamos reflectidos nesta mulher alheada ao que se passa à sua volta, incapaz de sair da situação onde a colocaram, porque é assim que a querem e é assim que ela vai continuar, ou seja, resignada àquela vida medíocre controlada pelos mais poderosos. Ela tem vergonha de si própria, e em The Neck (2006), ela apenas deixa que lhe vejam a nuca e o pescoço. A imagem é tão interessante quanto enigmática. Este pormenor do corpo suscita no observador a curiosidade de saber que cara se esconde por detrás daquela pintura. E é em Storyboard que a vamos descobrir. Mas não só. Uma máquina antiga que faz tremer o chão projecta um filme de quatro minutos a um canto mais recolhido e escuro da sala de exposições. Sento-me e observo o que está a ser projectado na tela branca. É uma sequência de imagens de uma mulher em várias perspectivas; uma mulher triste, bastante concentrada a mexer nuns pauzinhos. Sim, é a mesma mulher de Storyboard e de The Neck. Uma mulher fechada dentro de uma caixa sem poder sair daquele mundinho. Talvez por isso, Borremans tenha dado o título The Box (2007) (em português, A Caixa) a este filme. Para além de estar numa caixa, ela parece estar dentro de um círculo recortado à medida da sua cintura que não a deixa mudar de posição. As imagens transmitem calma, mas são, ao mesmo tempo, perturbadoras, pois ninguém fica indiferente àquele tratamento miserável. Tudo nesta exposição é confuso demais e inquietante demais. Ela é, simplesmente, estranha. Catarina Ferreira
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Um murro no estômago Um pescoço aparentemente feminino mostra-se de costas numa pintura. The Neck. Delicado, elegante, feminino, sensual. Um pescoço alto que se adivinha continuar por detrás do cabelo até rasgar a tela. É este o primeiro impacto na exposição Weigth, de Michaël Borremans, que esteve no Centro de Artes Visuais ( CAV ) de Coimbra em 2008. Nesta mostra cinema, pintura e desenho caminham de mãos dadas. Um filme simula uma pintura. O retrato de um homem que não se mexe, apenas pestaneja, imóvel, constrangido pela figura a que se expõe, posando para um mestre que o obriga a envergar um chapéu ridículo. Inquietante. Um rosto inexpressivo e despersonalizado contra um fundo amarelo seco. Um filme que lança a semente de um quadro. Em Add and Remove (o filme) quatro prateleiras de madeira suportam miniaturas de árvores artificiais que uma mão doentia insiste em retirar das estantes, mudar de lugar, substituir, alinhar. Desalinhar. A mão, que permanece durante toda a filmagem neste exercício repetitivo, não se limita a retirar simplesmente a miniatura da estante. Precisa de arrancá-la daquele cenário como se estivesse a desenraizar a árvore da terra. Como quem rouba uma flor à raiz, pelo caule. Como quem tira uma vida. Imediatamente a seguir a este filme está um óleo sobre tela. Sunset. O filme transformado em quadro. Das pinceladas de Borremans saem as mesmas prateleiras e as mesmas árvores, mas desta vez naturais. Caminhando entre elas, procurando fugir do “sol que se põe”, estão pessoas. Uma transformação contraditória, esta: Se o filme é morte, o quadro é todo vida. Em The German o autor mantém a promiscuidade entre tela e ecrã. Mas aqui é o ecrã que parte da tela. O óleo sobre madeira mostra um homem que personifica a correcção. Cabelo impecavelmente penteado e fixo. Postura direita. Camisa apertada até ao último botão. Elemento surpresa: o homem de postura irrepreensível olha, como que encantado, para umas fichas de jogo vermelhas que faz movimentar entre as mãos. Todos temos segredos. Lados obscuros. No filme o vício é exposto. O homem de tinta ganha vida. Dentro de uma caixa preta de pequenas dimensões ele aparece projectado com o mesmo ar contido, a gravata apertada até ao limite da sobrevivência, manuseando cartas imaginárias entre os dedos. À sua frente uma plateia voyeurista – disposta como numa sala de cinema – observa, cruel, o declínio do protagonista. Weight, a obra que dá nome à exposição (ecrã LCD com moldura), mostra uma adolescente. Pálida e inexpressiva. Rosto de menina inocente emoldurado por uma trança grossa. Saia comprida de pregas; mãos, que não se mexem, cruzadas atrás das costas. A jovem gira sobre si mesma o filme todo, como um manequim de montra. As pernas são-lhe engolidas por uma placa preta sobre a qual a saia de pregas flutua. Da “skirtsculpture” fica a imagem da despersonalização. O ser vazio transformado em estrela de um espectáculo que não lhe diz nada. Já no fim da exposição, o filme The Box revela a dona do pescoço com que fantasiamos no início da mostra. Sim. É um pescoço feminino. Mas de menina. Outra jovem, feita adolescente à força, que repete mecanicamente o mesmo gesto. Num movimento compulsivo muda sistematicamente de lugar e de ordem dois cigarros colocados sobre uma mesa. Mais uma vez as várias perspectivas de um acontecimento: filmada de cima, de frente, de lado e, por fim, de costas, onde volta a revelar o enigmático pescoço sensual do início. Porque nunca há uma só verdade. Depois de visitar o andar de cima, onde se expõem desenhos (lápis e aguarela sobre cartão) que, de certa forma, explicam o que ficou para trás – e com isto o autor some e segue – o visitante sai. Cá fora precisa de respirar bem fundo, até sentir os pulmões rebentarem de tanto ar. Até se oxigenar. Depois começa a caminhar para longe daquela porta que quem trespassa sai diferente. Caminha devagar, dobrado sobre si mesmo. Ainda vai abalado e dorido do murro no estômago que levou de Michael Borremans.
Wei Martha Mendes
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O indecifrável mundo de Borremans Obra complexa de reinterpretação espacial, encerra manequins “apanhados” em gestos congelados e vazios, absorvidos em cuidadosas e obsessivas repetições de rituais misteriosos. Eis uma das infindáveis caracterizações de Weight, a mais recente obra em exposição de Michaël Borremans. Num triângulo entre pintura, desenho e cinema, unidos por um procedimento técnico, o autor reúne ambientes marcantes, nos quais a figura humana aparece associada a actividades tão banais quanto as que pratica no seu dia-a-dia. No entanto, este uso frequente de figuras ou objectos específicos são o resultado de uma personalidade que o autor belga tem vindo a desenvolver, ao longo da última década. A fotografia, que aparece como o suporte base de criação dos seus desenhos e pinturas, mais do que uma captação do real, é uma representação de instantes compactados num tempo. Combinando imagens díspares a cenários bizarros, numa palete de cores neutrais, quase frágeis, transversal a toda a obra, o autor parece sugerir a ideia de que o espectador vive um sonho recorrente de duplicidades antagónicas, onde o sono/vigília, a vida/morte, o animado/ inanimado são a constante que nos faz viajar entre o espectacular mundo de enigmas íntimos e desenhos “assombrados” por mensagens que nunca se traduzem concretas. É, aliás, no campo do desenho que encontramos uma espécie de mapa do microcosmo de Borremans. Em vários trabalhos as notas e diagramas reflectem o desenvolvimento de temas e ideias, onde a introdução do elemento palavra, em legendas longas e narrativas, demonstram que nem o autor as começa com um plano claro do que pretende criar. Em Weight a distorção da realidade é um paradigma. Está bem patente no uso de escalas exageradas na natureza e no elemento humano, bem como nos espaços arquitecturais que parecem desdenhar da lei da gravidade e da própria lógica do mundo. Nessa distorção, também a acção e o tempo parecem adoptar ritmos diferentes, insinuando um total desinteresse temporal perante a importância de um exercício. Mesmo os filmes desafiam a nossa competência analítica. Circulares e não representando nada em concreto, antes invocam uma atmosfera hipnótica entre a deambulação e o sonho, onde o progresso, o desenvolvimento narrativo, não existe. É apenas mais um convite à contemplação. A ausência de som, mais uma característica paradoxal na obra de Borremans, chama a atenção para um sentido que se recusa a materializar, um vazio que ao mesmo tempo não é oco, pelo imenso potencial de possibilidades de o interpretar. Evoca, por exemplo, um silêncio “podre” numa paz “podre”. Confunde mais ainda os sentimentos de quem olha e não sente vida, só seres aprisionados num estado de alma apático e nebuloso que, no entanto, não os consome, não os mastiga por dentro, aos poucos. Transporta antes para quem o vê a vontade de gritar, de acabar com aquele sossego incómodo, angustiante. É nessa mesma linha que se apresenta o lado figurativo. Abraçando a simplicidade, beleza e melancolia, é como se os quadros evocassem espaços densos e nos quisessem dizer algo que não compreendemos. Um rosto de criança, de olhos cerrados, decidido em pinceladas graves que lhe conferem a tridimensionalidade da “carne” e demonstram o aperfeiçoamento de uma técnica velazquiana, remete-nos para novos e incertos significados: a serenidade de um sono? Uma ausência de vida? É com uma intencionalidade quase implicante que o autor deixa que as imagens fiquem abertas a interpretações. Falam muitas línguas sem serem totalmente compreendidas. A capacidade de mutação de significados não aparece, aliás, associada a um suporte visual em particular. Pelo contrário, as infinitas possibilidades de caracterização destas obras contrastam com a bem marcada a frequente evocação de características de poder, manipulação e alienação do e pelo elemento humano em todos os suportes.
ight Un Certain Regard
Sara Simões
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C r é d i t o s
f o t o g r á f i c o s
Capa: © Marco Pedrosa Página 14: © Marco Pedrosa Página 17: © Raquel Carvalho Páginas 18/19 e 20/21: © Martha Mendes Páginas 31 e 33: © Luís Oliveira Páginas 38 a 41: © António Barros Página 45: © Universal Studios Página 49: © Tiago Pinhal Página 53: © Michaël Borremans. Cortesia Zeno X Gallery
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Un Certain Regard
(Pรกgina deixada propositadamente em branco)
j o r n a l i s m o
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p r i m e i r o
Marco Pedrosa
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h i s t ó r i a