ENSAIO: Entre a ética de princípios e a ética de resultados

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Ensaio

Entre a Ética de Princípios e a Ética de Resultados: as técnicas controversas do Jornalismo Investigativo Bianca Frazão


A proposta deste trabalho consiste em introduzir brevemente uma discussão, sob o ponto de vista ético e deontológico, acerca do uso de algumas técnicas polémicas utilizadas na recolha de informações no âmbito do Jornalismo Investigativo. Como se sabe, na área da investigação jornalística, é por vezes usado o recurso a técnicas de pesquisa e de recolha de informação cuja legitimidade ética é discutível e suscita controvérsia. Estas técnicas são variadas: elas estendem-se desde o uso de câmaras escondidas, microfones ocultos, escutas telefónicas, cópia ou furto de documentos confidenciais, até à simples ocultação pelo jornalista da sua identidade ou ao uso de uma identidade falsa. Para este propósito, a minha exposição percorrerá três momentos diferenciados. Em primeiro lugar, procurarei situar a questão de um modo mais teórico, abordando, em

geral, a

articulação

entre

a

ética

e

a

prática

jornalística. Em segundo lugar, tendo em conta o carácter controverso das técnicas jornalísticas de recolha de informação que mencionei, procurarei fazer um breve enquadramento do que dizem alguns dispositivos deontológicos acerca de tais técnicas, problematizando igualmente o seu conteúdo. Por fim, em terceiro lugar, tentarei trazer o pensamento de alguns jornalistas sobre a questão, evocando, igualmente, alguns exemplos práticos do uso dessas técnicas polémicas.

Entre a Ética dos Princípios e a dos Resultados Um dos dilemas éticos e deontológicos mais importantes levantados a respeito do exercício profissional dos jornalistas coincide, no fundo, com aquele que é porventura o dilema fundamental que sempre atravessou o pensamento ético: refiro-me ao confronto entre uma “ética de princípios” e uma “ética de consequências” ou de “resultados”. Ao longo dos tempos, é manifesto o contraste entre um pensamento ético baseado na justificativa da acção pelos seus fins – a chamada ética

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teleológica – e um pensamento ético baseado na justificativa da acção em função dos princípios que a regem, independentemente dos resultados que uma tal acção venha a gerar – a chamada ética de princípios ou deontológica. Em relação ao tipo de pensamento ético a que poderemos chamar, em geral, de “consequencialismo”, são as consequências que resultam de uma acção que determinam exclusivamente o valor dessa mesma acção. Como escreve Pedro Galvão, no seu artigo para o Dicionário On-Line de Filosofia Moral e Política do Instituto de Filosofia da Linguagem, da Universidade Nova de Lisboa: “O consequencialismo é a perspectiva normativa segundo a qual as consequências das nossas opções constituem o único padrão fundamental da ética”1.

Assim,

se

considerarmos

uma

ética

jornalística

assente

numa

perspectiva consequencialista, esta partirá do princípio de que será o resultado de um trabalho de investigação que determinará, de um modo decisivo, o carácter aceitável e justo dos métodos empregados na investigação realizada. Como

nenhum

informações

método

podem,

é

em

único geral,

e ser

insubstituível,

e

obtidas

processos

por

como

as

mesmas

diversos,

a

investigação jornalística deverá sempre diferenciar métodos mais ou menos aceitáveis, de acordo com os códigos de ética e deontológicos, estatutos e declarações

de

independentemente possíveis

ou

não

princípios da de

que

regem

necessidade serem

da

a

profissão.

diferenciação

utilizados,

uma

entre

No

entanto,

os

métodos

perspectiva

da

ética

consequencialista avaliará sempre a investigação do jornalista em função do resultado que através dela é alcançado. Por outras palavras, como refere o jornalista e cientista político Bernardo Kucinski acerca da ética consequencial: “O critério para saber qual a conduta correcta são as consequências dessa conduta”2. E é precisamente a este carácter decisivo que as consequências assumem para a avaliação da acção que se opõe um segundo tipo de 1

Cf. Pedro Galvão, “Consequencialismo”, in http://www.ifl.pt/main/Portals/0/dic/consequencialismo.pdf

Cf. Bernardo Kucinski, “O jornalismo além fronteira: notas sobre a ética do jornalismo embutido”, in http://www.reporterbrasil.com.br/documentos/jornalismo_alem_fornteira.pdf

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pensamento

ético,

contraposto

ao

consequencialismo:

para

este,

independentemente dos resultados, há princípios éticos e deontológicos que não podem nunca ser justificadamente desrespeitados. Baseada na noção de Kant de “imperativo categórico”, ou seja, de um dever absolutamente válido, independentemente dos resultados a que o seu cumprimento conduz, esta perspectiva de uma “ética de princípios” é importante para a abordagem da deontologia jornalística na medida em que estipula princípios que devem ser incondicionalmente respeitados, independentemente do que se poderá seguir da sua observância. Nesta perspectiva, a deontologia dos jornalistas deverá precisamente começar por delimitar aquelas regras básicas de conduta cuja violação não poderá deixar de ser inaceitável, por melhores que sejam as razões e por mais válidos que sejam os fins que com tal violação pretenderá alcançar. O efeito que as duas perspectivas do pensamento ético têm sobre a reflexão deontológica no âmbito do jornalismo torna-se, então, claro. Por um lado, uma perspectiva consequencialista tende a encaminhar a deontologia jornalística a uma reflexão prioritária acerca dos fins sobre os quais a comunicação social tem responsabilidade. Nesse sentido, o dever de informar o público, por exemplo, pode configurar como um dever cujo cumprimento poderá justificar o desrespeito por outros deveres, compreendidos como deveres subordináveis ao primeiro e relativizáveis diante dele. Por outro lado, uma perspectiva deontológica sobre a conduta ética dos jornalistas exigirá uma reflexão prioritária não tanto sobre os fins da comunicação social, mas sobre aqueles limites que, independentemente do acerto e da nobreza dos seus fins, ela não pode, de um modo eticamente aceitável, desrespeitar.

Fronteiras difusas No que tange à regulação da utilização de técnicas como as câmaras escondidas, microfones ocultos, escutas telefónicas e uso de identidade falsa por parte dos jornalistas durante as investigações, não há resposta incisiva e bem definida numa variedade de dispositivos deontológicos. Em seu livro 4


Jornalismo e Verdade, Daniel Cornu apresenta a questão a que denomina “recusa dos métodos desleais” como um tópico presente na maioria dos códigos deontológicos dos países democráticos. Entretanto, a forma como estes documentos tratam a questão não é uniforme. E é possível encontrar em diferentes

códigos

deontológicos

a

expressão

de

diversas

tendências

relativamente ao pensamento ético que lhes está subjacente. Assim,

a

Declaração

de

Bordéus,

da

Federação

Internacional

dos

Jornalistas, a Carta dos Jornalistas Franceses e o Pressekodex alemão, por exemplo, são unânimes em excluir a utilização de “métodos desleais” no apuramento das informações. O que quer dizer que, de acordo com estes códigos deontológicos, é inaceitável, de uma forma incondicional, o uso destes meios desleais. A proibição do uso destes métodos não está subordinada a nenhuma finalidade nem pode ser relativizada pela referência a qualquer uma das suas hipotéticas consequências. Pelo contrário, ela é sempre incorrecta, de acordo com o estipulado por estes códigos, por uma questão de princípio, isto é, a já referida ética de princípios ou ética deontológica. No entanto, se é possível encontrar, presente em determinados códigos deontológicos,

uma

tendência

para

estabelecer

princípios

absolutos,

cuja

violação nunca poderia ocorrer, independentemente das circunstâncias que concretamente a caracterizam como eticamente justificável, é possível também descobrir, implícito em outros códigos deontológicos, um modo de pensar diferente. Neste sentido, se abordarmos o código de conduta do Sindicato Nacional dos Jornalistas da Grã-Bretanha, por exemplo, verificaremos que este refere que o recurso a tais métodos só é justificado por “razões de incontestável interesse público”. O mesmo passa-se em relação aos códigos brasileiro e português. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros afirma que o profissional não pode divulgar informações “obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração”3. De maneira 3

Cf. “Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros”, in

5


similar dispõe o Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses, quando afirma: “O jornalista deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja. A identificação como jornalista é a regra e outros processos só podem justificarse por razões de incontestável interesse público”4. Vemos, então, que, tanto no caso

do

código

deontológico

dos

jornalistas

brasileiros

como

no

dos

jornalistas portugueses, o princípio fundamental estipulado – a proibição do uso de métodos desleais de recolha de informação – é imediatamente relativizado, através da introdução da referência a uma excepção que evoca o valor mais alto de um “incontestável interesse público”. Dessa forma, nota-se que, ao abrirem a ressalva à utilização de tais “ métodos desleais”, os códigos deontológicos transitam de uma esfera da ética de princípios para a da

ética

consequencialista,

uma

vez

que

admitem

que

o

“incontestável

interesse público” se constitua como a manifestação de um bem de tal forma grande que compensará e justificará o “mal” produzido pelo incumprimento, por parte do jornalista, dos meios leais para a recolha de informação. Ou seja, o que será decisivo não é o facto de a acção ser ou não correcta, mas sim a análise das consequências do acto, representadas, neste caso, pela satisfação do interesse público “incontestável”.

Problemas fundamentais Se alguns códigos, a exemplo do referido caso brasileiro e também português, dispõem acerca da utilização de métodos desleais de acordo com uma ética de consequências, isso não impede que problemas éticos sejam levantados, uma vez que a aceitação da utilização de tais métodos, em caso de interesse público incontestável, irá por si só problematizar a questão. Um dos principais problemas a ser levantado será certamente o de como definir e caracterizar este interesse público relevante e incontestável, isto é, decidir http://www.fenaj.org.br/federacao/cometica/codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.pdf 4

Sara Pina, A Deontologia dos Jornalistas Portugueses, Coimbra, Minerva, 2000, 2ªed., p. 159.

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quais situações podem realmente invocar tal interesse e justificar de forma sustentável que a regra da não utilização de métodos desleais seja quebrada. A natureza deste problema ético e deontológico vai remeter ao cerne de uma das principais correntes presentes no pensamento da ética consequencialista, a saber: o utilitarismo. De acordo com esta corrente, o que justifica a acção será a produção de uma maior quantidade de bem a um maior número de pessoas. Isto é, justifica-se o sacrifício de um bem mais restrito e individual em prol de um benefício mais geral e abrangente. Trazendo a reflexão para a esfera jornalística, o problema coloca-se em saber quem poderá definir de forma objectiva quais situações estarão ao abrigo de um interesse público incontestável, identificando, nessa medida, qual informação poderá reverter como um bem maior ao ser tornada pública, em detrimento de um possível dano causado a terceiros e da forma desleal com que foi apurada. Em carácter de exemplo, imaginemos as seguintes situações: para obter informações acerca de um episódio grave de corrupção no governo de um país, seria necessário que um jornalista, tendo oportunidade para tal, violasse a correspondência privada de um governante suspeito. Para tal governante, a devassa de sua vida privada corresponderia a um grave dando contra a sua pessoa. Ou, em outra situação, se para conseguir reunir mais informações a respeito de uma determinada fraude, o jornalista realizasse uma escuta telefónica e ocultasse a sua identidade profissional, fazendo-se passar por outra pessoa, mostrando-se, inclusivamente, interessado em participar do esquema corrupto, a fim de ganhar a confiança dos fraudadores. Diante de tais

situações, o

problema

que

se

coloca

é

o

de

quem

e, talvez,

principalmente em nome do quê – está habilitado a decidir se o bem que se obtém com tal modo de recolha de informação pode compensar os princípios éticos e legais infringidos. Os códigos deontológicos que mencionamos procuram escapar a este problema evocando um “interesse público incontestável” como justificativa para uma hipotética violação dos meios leais de recolha de informação por parte dos jornalistas. A evocação do “interesse público incontestável” procura fazer a 7


alusão a uma certa objectividade nos critérios que devem presidir à decisão de uma violação justificada. Não é por qualquer razão que um jornalista pode usar de métodos menos próprios, mas só quando o “interesse público” for evidente

e

“incontestável”.

No

entanto,

um

tal

interesse

público

pode

caracterizar-se precisamente pelo seu carácter contestável, pelo menos por parte daqueles ou daquelas que sofrem a violação de seus direitos em seu nome. E se o “interesse público” se caracteriza pelo facto de o seu conteúdo ser variadas vezes, em maior ou menor dimensão, controverso, o problema em que desemboca esta questão é o de saber até que ponto deve recair sobre o jornalista a decisão sobre o que constitui ou não constitui matéria de um “incontestável

interesse

público”,

capaz,

nessa

medida,

de

justificar

o

desrespeito, pela sua parte, de algumas normas de conduta. Por outras palavras, o problema consistirá em saber até que ponto é eticamente aceitável que um código deontológico atribua a alguém que se deve reger pelas suas normas profissionais a decisão sobre se se verifica uma situação na qual estas normas podem deixar de ser observadas. E, se se alegar que este código define esta situação como a situação da evidência de um “interesse público incontestável”, não deixando grande margem para arbitrariedades, o problema será o de saber até que ponto é que deverá caber ao jornalista, ou seja, à parte que hipoteticamente viola os procedimentos normais, a decisão sobre o conteúdo concreto do “interesse público” que justifica a violação. Tal dilema abre o questionamento a respeito de uma certa ligeireza no trato desta questão por parte de alguns códigos deontológicos, uma vez que tais dispositivos

são

resultados

de

discussões

internas

à

classe

jornalística,

emanando, dessa forma, do interior da profissão, e tendo como um de seus objectivos o de procurar dar garantias de que o jornalista não cometerá abusos ou desvios na realização de seu trabalho, o que reverte a favor da própria credibilidade do trabalho jornalístico. No mais das vezes, os códigos deontológicos não trazem explicitadas quais seriam as razões de interesse público a serem consideradas, o que leva a

que

cada

redacção, cada

órgão

de 8

comunicação, em

seus

próprios


estatutos e políticas editoriais, trace suas normas de conduta no que lhe diz respeito.

Desta

forma,

os

entendimentos

irão

sempre

divergir

de

forma

substancial e não são definidos claramente nem os limites e contornos deste “interesse público incontestável” nem os procedimentos padrões a serem seguidos. A decisão de como proceder fica, dessa maneira, relegada a um entendimento ético muito próprio de cada um.

Opiniões e condutas diversas O jornalista Leandro Fortes pergunta, no livro Jornalismo Investigativo, “até

onde

é

permitido

ao

repórter

dissimular

atitudes,

usar

gravadores

escondidos, microcâmeras, passar-se por outra pessoa, adotar outra identidade e, de fato, violar as leis?”5. E aborda a questão sob dois aspectos. Por um lado, o aspecto relacionado com os jornalistas a quem denomina de “puristas” e “legalistas”, que são aqueles que decidem não utilizar, de todo, tais técnicas. Por outro lado, o grupo de profissionais que optam por relativizar a questão. Para o autor, a discussão acerca do tema toca directamente a rotina e a cultura do jornalismo investigativo brasileiro, uma vez que as técnicas tidas como desleais são correntemente utilizadas nas redacções daquele país, além de contarem com o aval das chefias: “É claro, quando resultam em furos e prémios, não em processos judiciais e tragédias, como foi o caso de Tim Lopes, da Tv Globo”6. Leandro Fortes aponta para a necessidade de o discurso acerca desta questão não rotular os jornalistas como “sacrossantos” ou “demónios”, já que a não observância de algumas destas regras está no centro

de

grandes

reportagens

de

relevo

para

a

sociedade.

E

cita

a

reportagem realizada sobre a fraude num órgão de assistência do governo federal, a LBA – antiga Legião Brasileira de Assistência –, presidida, em 1991, pela então primeira-dama Rosane Collor. A fraude, desvendada pelo jornalista Mário Rosa, consistia no desvio de verbas públicas para entidades beneficentes falsas, de propriedade da família de solteira de Rosane Collor, os Malta. Mário Rosa, ao se aproximar da família para cobrir o assunto, apresentou-se como 5 6

Leandro Fortes, Jornalismo Investigativo, São Paulo, Editora Contexto, 2007, 1ªed., p. 53. Ibid., p. 54.

9


jornalista, porém mentiu a propósito do motivo da investigação, ao dizer que a matéria tratava da problemática da seca na região. Outro jornalista, Ricardo Noblat, também aborda o assunto no livro A arte de fazer um jornal diário e lança o questionamento: “Porque sou jornalista e porque vivemos em uma democracia estou liberado para valer-me de qualquer recurso que assegure à sociedade o direito de tudo saber? Posso roubar documentos, mentir, gravar sem autorização, violar leis? Onde está escrito que disponho de tais prerrogativas? Quem me deu imunidade para rasgar códigos que regulam o comportamento das demais pessoas?7” A jornalista norte-americana Janet Malcolm, autora do livro O Jornalista e o Assassino, faz uma crítica feroz a determinados métodos de investigação jornalística e à componente ética quando refere: “ Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas. (…) Os jornalistas justificam a própria traição de várias maneiras. (…) Os mais pomposos falam de liberdade de expressão e do “direito do público de saber”; os menos talentosos falam sobre a Arte; os mais decentes murmuram algo sobre ganhar a vida”8. Felipe Pena, no livro Teoria do Jornalismo, declara que é difícil obter as respostas

adequadas

quanto

aos

métodos

utilizados

nas

reportagens

investigativas e afirma: “Com relação às escutas e câmeras escondidas, a lei realmente precisa ser observada, mas não há como negar que determinadas reportagens que utilizaram esses recursos prestam, de fato, um serviço público9”. O jornalista cita ainda alguns exemplos desses trabalhos que reverteram de forma positiva para a sociedade: o caso da Favela Naval, em Diadema, São Paulo, em que policiais, filmados clandestinamente por um cinegrafista amador, costumavam espancar os habitantes do local; o caso de Ricardo Noblat, A arte de fazer um jornal diário, São Paulo, Editora Contexto, 2008, 7ªed., p. 24. Janet Malcolm, O Jornalista e o Assassino, São Paulo, Companhia das Letras, 1990 (apud Ricardo Noblat, A arte de fazer um jornal diário, São Paulo, Editora Contexto, 2008, p. 24). 9 Felipe Pena, Teoria do Jornalismo, São Paulo, Editora Contexto, 2005, 1ªed., p. 204. 7 8

10


policiais britânicos denunciados por práticas de racismo, após serem filmados secretamente por um repórter da BBC que trabalhava disfarçado e, por fim, o caso da clínica Santa Genoveva, no Rio de Janeiro, que recebia financiamento público, e na qual os idosos eram maltratados, havendo, inclusivamente, pacientes mortos cadastrados como vivos. A denúncia foi feita após imagens feitas por um repórter por meio de câmara escondida. Outra questão levantada quando se discute tais métodos utilizados na investigação jornalística é a questão da própria segurança do profissional que pode vir a ser ameaçada. O caso mais emblemático dos últimos tempos no jornalismo brasileiro é o de Tim Lopes. Em 2002, o jornalista da Rede Globo foi assassinado enquanto fazia uma matéria – acerca da exploração sexual de menores por traficantes em bailes funks cariocas – usando uma microcâmara escondida. A este respeito, o jornalista Ricardo Noblat questiona o modo de produção das notícias, especialmente em televisão, em que o espectáculo e o puro relato dos factos interpenetram-se e confundem os limites entre o que “interessa ao público” e o que é de “interesse público”. Para Noblat, a forma de documentar a reportagem – por meio da câmara oculta – foi uma opção arriscada e irresponsável de Tim Lopes e da sua chefia.

Jornalismo disfarçado Outra técnica que alguns jornalistas lançam mão em reportagens investigativas é o disfarce, a mudança de identidade, a infiltração no ambiente, realidade ou local que será tema da matéria. Neste quesito, um dos nomes mais célebres é o de Günter Wallraff. O jornalista alemão acumula papéis e identidades falsas que desempenhou ao longo de quarenta anos de carreira. Os mais conhecidos são o papel de jornalista do jornal sensacionalista e líder de

vendas

na

Alemanha,

Bild,

e

o

de

imigrante

turco,

Ali

Sinirlioglu,

desempenhado por dois anos. Após quatro meses na redacção do Bild, a reportagem tomou corpo no livro Fábrica de Mentiras, em que Günter Wallraff desvenda os mecanismos de manipulação das notícias realizados diariamente 11


no jornal: “O Bild manipula. Mas não pára aí. Muitos dos que fornecem informações ao Bild levam em consideração o fato de o jornal manipular, torcer, desfigurar e falsificar a realidade. A coisa funciona como os degraus de uma escada: o repórter torce os fatos à sua maneira, o chefe de redação explora o que já foi deturpado e, finalmente, a redação central coloca sua pitada de tempero”10. Em Cabeça de Turco, o jornalista, que vivenciou a realidade dos imigrantes empregados nas empresas de metalurgia, usinas nucleares

e

minas

de

carvão,

denunciou

a

exploração

de

mão-de-obra

estrangeira e o desrespeito e descriminação perante à condição humana: “O barulho estrondoso das perfuratrizes ecoa nos estreitos dutos metálicos, ensurdece-nos completamente. Protetor de ouvidos? Nunca ouvimos falar nisso…os olhos ardem, o nariz escorre, todos começam a escarrar. É o inferno! (…) Os joelhos estão ensanguentados; as calças, esfarrapadas; as luvas de trabalho, despedaçadas. (…) Já fez treze, catorze, quinze horas que estamos aqui dentro, batendo com estas ferramentas pesadas e engolindo todo este pó”11. Quando questionado, em 2008, a propósito da ética de seu trabalho, aquando da conferência intitulada “El periodista incómodo”, em Guadalajara,

México,

Wallraff

declarou:

“Hay

que

enmascararse

para

desenmascarar a la sociedad. Hay que engañar y fingir para averiguar la verdad”12. Em Portugal, a jornalista Céu Neves passou três semanas na Holanda disfarçada de emigrante portuguesa, a fim de investigar a realidade da exploração laboral que seus compatriotas vivem naquele país. Submetida às regras de uma agência de empregos temporários, a jornalista denunciou as péssimas

condições

de

trabalho,

remuneração,

alojamento

e

saúde

experimentadas pelos portugueses que se aventuram em terras holandesas. Pela reportagem chamada “Portugueses alimentam a nova escravatura na Europa”,

a

jornalista

ganhou

o

prémio

“Pela

Diversidade,

contra

Günter Wallraff, Fábrica de Mentiras, trad. Carmen Fischer , São Paulo, Globo, 1990, 2ªed., p. 122. Günter Wallraff, Cabeça de Turco, trad. Nicolino Simone Neto, São Paulo, Globo, 2004, 14ªed., p. 153. 12 Cf. Edgar Corona, “El periodismo como disfraz”, in http://gaceta.udg.mx/Hemeroteca/paginas/554/G554_O2%204.pdf 10 11

12

a


Discriminação” por parte da Comissão Europeia. Quando indagada pela revista JJ – Jornalismo & Jornalistas – a respeito da regra presente no Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses que estipula a identificação do jornalista como tal quando em exercício da actividade, Céu Neves admite que vestir a pele de emigrante foi a melhor maneira de descobrir e retratar a realidade de exploração laboral vivida pelos portugueses na Holanda13. É de referir que o “jornalismo encoberto” remonta aos fins do século XIX.

Segundo

Géraldine

Muhlmann,

no

livro

Une

histoire

journalisme, Nellie Bly foi a maior representante das «

politique

du

stunt girls », como

ficaram conhecidas uma série de repórteres femininas que se infiltravam em instituições

públicas

e

privadas

para

desvendar

o

mistério

sobre

seu

funcionamento e denunciar abusos e maus-tratos. No auge da Yellow Press e o início das grandes tiragens, Nellie Bly foi contratada pelo New York World, de Joseph Pulitzer. A jornalista publicou inúmeras reportagens utilizando disfarces: fez-se empregada doméstica para avaliar o tratamento dado pelas agências de emprego; de mãe solteira para investigar o tráfico de bebés; e de doente mental para avaliar um hospício. Este modo de fazer jornalismo, conforme Muhlmann, representou os primeiros passos do movimento dos muckrakers

uma

vertente

mais

séria

de

investigação

e

denúncia

de

corrupção no mundo dos negócios e da política, na primeira década do século XX, nos EUA – e o posterior jornalismo investigativo.

Conclusão Em vista do que foi problematizado no âmbito da ética e deontologia jornalística, pode-se afirmar que alguns códigos deontológicos lançam mão de uma “ética de resultados” ao abordarem a questão da utilização das técnicas controversas de recolha de informação em investigação jornalística. Ao mesmo tempo que são dispositivos normativos, que têm por fim auto-regular a profissão, alguns códigos, como vimos, não são suficientemente claros no que Cf. Clube dos Jornalistas http://www.clubedejornalistas.pt/uploads/jj33/jj33_12.pdf

13

13


tange à utilização dos métodos mencionados, uma vez que permitem o seu uso em caso daquilo a que chamam “interesse público incontestável”. Neste sentido, de um interesse público incontestável adviria um bem que iria sobrepor-se às regras desrespeitadas, o que configuraria, segundo a análise teórica empreendida ao longo deste trabalho, uma ética consequencialista. É preciso considerar que o jornalista não está acima do cumprimento de determinadas

normas

e

princípios.

Dessa

forma,

uma

maior

clareza

e

objectividade no tratamento desta matéria – maior definição em relação aos critérios que justifiquem tais métodos – faz-se necessária por parte dos dispositivos deontológicos, uma vez que a seriedade e a credibilidade do trabalho jornalístico pode tornar-se frágil neste tipo de situação. É importante que limites sejam estabelecidos, pois tais práticas não se podem tornar correntes, devendo constituir a excepção e não a regra. Os profissionais também devem ter em atenção quais os reais motivos que movem a utilização desses meios, já que estes facilmente podem ser usados na tentativa de espectacularizar mais uma reportagem, na lógica do ganho de maior audiência e até mesmo do sensacionalismo, quando a mesma reportagem poderia ser feita

e

divulgada

de

outra

forma.

É

patente

que

grandes

reportagens

investigativas que se utilizaram desses meios contribuíram realmente para a denúncia de situações injustas, ilegais ou eticamente reprováveis, e para uma melhoria

de

condições

sociais

e

políticas,

desde

o

fortalecimento

da

democracia ao (re)estabelecimento de direitos humanos. No entanto, não é pelo facto de esses resultados positivos existirem – e são muitos – que se vai deixar de pensar os limites éticos que sempre devem permear a prática do jornalismo investigativo. Por mais que haja situações nas quais se torne justificado o uso excepcional de meios, recursos e expedientes menos próprios por parte do jornalista, importa ter a noção de que a excepção assim justificada não elimina a regra, e de que esta regra deve sempre consistir na observância dos princípios deontológicos estabelecidos.

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Bibliografia CORNU, Daniel, Jornalismo e Verdade, trad. Armando Pereira da Silva, Lisboa, Instituo Piaget, 1999.

FORTES, Leandro, Jornalismo Investigativo, São Paulo, Editora Contexto, 2007, 1ªed.

MUHLMANN, Géraldine, Une histoire politique du journalisme, Paris, Presses Universitaires de France, 2004, 1ª ed.

NOBLAT, Ricardo, A arte de fazer um jornal diário, São Paulo, Editora Contexto, 2008, 7ª ed.

PENA, Felipe, Teoria do Jornalismo, São Paulo, Editora Contexto, 2005, 1ªed.

PINA, Sara, A Deontologia dos Jornalistas Portugueses, Coimbra, Minerva, 2000, 2ªed.

RACHELS, James, Elementos de Filosofia Moral, trad. F.J. Azevedo Gonçalves, Lisboa, Gradiva, 2004, 1ªed.

WALLRAFF, Günter, Cabeça de Turco, trad. Nicolino Simone Neto, São Paulo, Globo, 2004, 14ªed.

_________________, Fábrica de Mentiras, trad. Carmen Fischer, São Paulo, Globo, 1990, 2ªed.

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Referências electrónicas

Pedro Galvão - “Consequencialismo” http://www.ifl.pt/main/Portals/0/dic/consequencialismo.pdf Acesso a 20 de Janeiro de 2010

Bernardo Kucinski - “O jornalismo além fronteira: notas sobre a ética do jornalismo embutido” http://www.reporterbrasil.com.br/documentos/jornalismo_alem_fornteira.pdf Acesso a 20 de Janeiro de 2010

“Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros” http://www.fenaj.org.br/federacao/cometica/codigo_de_etica_dos_jornalistas_bra sileiros.pdf Acesso a 20 de Janeiro de 2010

Edgar Corona - “El periodismo como disfraz” http://gaceta.udg.mx/Hemeroteca/paginas/554/G554_O2%204.pdf Acesso a 20 de Janeiro de 2010

Clube dos Jornalistas http://www.clubedejornalistas.pt/uploads/jj33/jj33_12.pdf Janeiro de 2010

16

Acesso

a

20

de


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