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População negra e educação superior
POPULAÇÃO NEGRA E A EDUCAÇÃO SUPERIOR
Rodrigo Pereira - UFBA Doutor em Educação. Docente da faculdade de Educação da UFBA
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Historicamente, a Universidade Brasileira foi um projeto das elites econômicas. Ao longo do tempo várias foram as formas de impedir que os filhos da classe trabalhadora tivessem garantido o acesso à própria educação superior, reservandolhes, não por opção, e como limite, o ensino técnico-profissional para o trabalho simples e estranhado. No contexto pós constituição o que assistimos, por um lado, foi a consolidação no texto legal da educação como um direito mas, por outro, a fraca regulamentação do ensino privado e, mais adiante, com a Lei de Diretrizes e Bases, uma diversificação das IES jamais vista na história. Naquele tempo o governo Fernando Henrique Cardoso rompe com o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e, na prática, mantém as universidades, mesmo que sucateadas, como instituições de pesquisa, portanto, sustentadas pelo tripé, e autoriza instituições de ensino, sem compromisso com
a pesquisa e a extensão, instituições de serviços orientadas pelo lucro e pouco comprometidas, salvo raras exceções, com uma educação de qualidade. Essa estratégia do governo FHC, em conjunto com os chamados tubarões do ensino, serviu para assimilar parte significativa da demanda por acesso à educação superior que, mesmo as instituições não sendo públicas, tiverem facilidades governamentais para se popularizem e romperem as barreiras das capitais, regiões metropolitanas e, por fim, serem interiorizadas, com um elemento atrativo, o baixo custo. Esse processo foi acompanhado de variadas iniciativas do governo federal a partir de expressivas transferências de verbas públicas para iniciativa privada das quais, a mais expressiva, é o FIES que, na realidade, viabilizou o processo de financeirização da educação superior na qual a fusão dos grupos Kroton e Anhanguera é uma das maiores expressões. Porque estamos resgatando esse histórico: por considerar que os movimentos acima, embora tenham de fato democratizado o acesso de parcelas mais vulneráveis da população, foram feitos a partir de interesses privadosmercantis que não tem compromisso na oferta de uma educação de qualidade, sugerindo que aos pobres pode-se oferecer uma educação também pobre. Felizmente, como nos ensinou Gramsci, todos nós podemos ser filósofos, basta que tenhamos condições de acesso ao conhecimento para tornarmo-nos e, o povo negro e pobre têm superado as inúmeras barreiras cotidianas impostas pelas próprias instituições demonstrando que nossa resistência também se materializa em ótimos desempenhos
acadêmicos, o que não se resume apenas em boa notas, mas também em capacidade de lutar pela qualidade, se organizar em coletivos de bolsistas e pressionar por condições de permanência nestas instituições. Quando falamos de parcelas vulneráveis, de pobres, não estamos falando no abstrato, a classe trabalhadora nesse país tem cor e tem gênero, e não podemos abstrair que as estratégias do capital, com suas peculiaridades brasileiras, estão sustentadas nos pilares racistas e machistas que ainda teimam em perdurar-se. Portanto, à população negra foi reservada a instituição privada, de baixo custo e qualidade duvidosa. Só que agora com a licença estatal de cobrar-lhes mérito, porque afinal, já lhes foram dadas as oportunidades... Ocorre que a população negra não se contentou com medidas paliativas do Estado e com o processo de democratização do acesso apenas pela via privada. O movimento negro, em conjunto com outros movimentos sociais, foi além. Era preciso mudar as estruturas das universidades públicas brasileiras, para que os pretos e pobres ocupassem aquele espaço. E foi no âmbito da reestruturação das IFES que o debate de cotas étnico-raciais para ingresso na educação superior se impôs como uma reivindicação central do movimento. Assim, a aprovação da Lei nº 12.711/2012 que reserva 50% cotas para estudantes de escolas públicas nas universidades e institutos federais combinando critérios econômicos e étnicoraciais, é a materialização de uma política de ação afirmativa que sempre ocupou parte das reivindicações do movimento negro e do conjunto de movimentos sociais progressistas. Esse instrumento foi essencial para mudar a composição
daquelas instituições, garantindo que parcelas da sociedade, historicamente excluídas, ocupassem um espaço que é seu por direito. As políticas de ações afirmativas não pararam por ai, garantido o acesso foi necessário viabilizar as condições de permanência dessa população que, após mais de 500 anos, agora ingressava na universidade, contudo, dado histórico de segregação e inequidade, não tinha condições de se manter nela. Nesse contexto, as políticas de permanência, no âmbito do Plano Nacional de Assistência Estudantil foram essenciais para assegurar o direito à educação superior, sobretudo, dos negros e pobres. Contudo, as políticas de ação afirmativa ainda encontram entraves e limitações. Entraves estes que comprometem parte da conquista, incluindo aí fraudes nos processos, contradições das comissões de heteroidentificação, falta de compreensão sobre a própria lei – a exemplo da desinformação em torno do direito de concorrer, concomitante, às vagas de cotas e em ampla concorrência, entre outros. Por seu turno, as limitações tem haver com as dimensões do racismo estrutural em uma sociedade capitalista, que se materializa em diversas estratégias, a exemplo do racismo institucional e, no campo da produção do conhecimento, no epistemicídio e invisibilização de formulações teóricas, autoras e autores negros. Elemento que causa um distanciamento de parcela dos estudantes que entraram nas instituições de educação superior públicas, mas que não se sentem representados em um espaço que não entende suas culturas, anseios, temáticas, realidade econômica e social, ancestralidades. Um espaço-
ambiente que foi preparado para atender um outro público, uma outra parcela da população que não a parte de sua maioria: negra e popular. Acredito ser nesse contexto que deva ser debatida a lei de cotas para ingresso no serviço público federal e sua efetiva implementação nas universidades e institutos federais. Estudos do IPEA demonstram que, ainda em 2014, os servidores públicos federais ativos, negros e negras, ocupavam cerca de 50% dos cargos de nível auxiliar, esse percentual diminuía para cerca de 30% nos cargos de nível intermediário e, não chegavam a 20% no nível superior, em um país cujo 50,7% da população se autodeclara negra ou parda. Pois bem, a lei 12990/2014 determina a reserva de 20% de vagas nos concursos no âmbito do serviço público. Além disso, o Supremo Tribunal Federal ao atestar a constitucionalidade da lei, em 2018, deixou nítida sua intenção e abrangência. No embargo declaratório de aplicabilidade da lei o órgão diz o seguinte: “a administração pública deve atentar para os seguintes parâmetros: (i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii) os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos
durante toda a carreira funcional do beneficiário da reserva de vagas”. De tal forma que, o que vem acontecendo na realidade das universidades públicas, é o observado no item iii que destacamos. Ou seja, ao fragmentar as vagas por cursos, departamentos e áreas específicas, por meio de vários editais ou da não aplicabilidade da lei em editais gerais que mantém a fragmentação, as instituições operam na lógica do racismo estrutural e, mais, fortalecem mecanismos de racismo institucional invisibilizando o povo negro em seu interior, assim como o distanciamento de uma parcela significativa dos estudantes que não se veem representados num corpo docente excessivamente branco que, muitas das vezes, se apega ao debate meritocrático, para não reconhecer suas próprias limitações de lidar com uma nova realidade na composição da instituição e, também, esconder seus racismos e preconceitos. Dados do último censo do INEP apontam que negros representam 1,4% do universo de professores do ensino superior, demostrando o quanto é necessário avançar para que, no mínimo, tenhamos plenas condições de aproximar o corpo docente ao percentual de negros em cada uma das regiões brasileiras. Contudo, essa luta não tem sido fácil. Mas experiências de aplicabilidade da lei tem sido construídas no âmbito da autonomia da Universidade mas também do olhar atento ao que diz a legislação. Há experiências como o sorteio das áreas que deverão ser reservadas as vagas destinadas ao concurso, e outras opções mais estruturadas como foi o caso da Universidade
Federal da Bahia que aprovou, em dezembro de 2018, a regulamentação da Lei. Na UFBA as vagas são reservadas no âmbito do edital geral (ex.: 100 vagas no total, 20 vagas reservadas). No primeiro momento verificam-se as áreas com mais de duas vagas e aplica-se a reserva. Não alcançando o número total de vagas à serem reservadas, após as aprovações dos candidatos e candidatas, elabora-se uma lista dos que optaram pela reserva, independente de sua área de conhecimento, para que eles ocupem as primeiras posições de sua área, até que se ocupem o número total de vagas reservadas, garantido assim, diferente da metodologia do sorteio, que a reserva seja aplicada independentemente da quantidade de vagas para uma área específica 2 e 3 , sempre resguardado o procedimento de heteroidentificação. Um avanço metodológico que pode servir de inspiração para outra IES a fim de implementação e aperfeiçoamento. A regulamentação da Lei na UFBA, é um avanço considerável se observada o quadro atual das IES públicas que ainda não desenvolveram estratégias para efetiva implementação da reserva de vagas, contudo, a lei garante um piso, não um teto. É relevante o debate para que a proporção de docentes nas IES seja equivalente à proporção desta população no conjunto da sociedade, respeitando as proporcionalidades regionais, assim, mantem-se o debate e a reivindicação para que avancemos nos concursos públicos para que alcancemos tais percentuais. Em seu último congresso o ANDES Sindicato Nacional aprovou a luta pela efetiva implementação da lei de cotas acompanhando, vias suas seções sindicais, os órgãos
deliberativos responsáveis por esta questão a fim de pressionar pela aplicabilidade da lei. É fundamental que nossa categoria possa compreender a importância e a dimensão estrutural dessa luta. Ao movimentarmos a estrutura racista incrustada na universidade, daremos também importante contribuição para movimentar um dos pilares da opressão e exploração de classe na sociedade. E essa é uma tarefa de todos nós pois, não basta não ser racista, é preciso que sejamos anti-racista.
2 Segundo os itens 10.1, 10.2 do edital MEC/UFBA 02/2018 para ingresso na carreira de magistério superior: “10.1 As áreas de conhecimento que possuam a partir de três vagas terão reserva automática para candidatos negros e as áreas de conhecimento que possuam a partir de cinco vagas terão reserva automática para candidatos com deficiência, de acordo com o § 1 o do Art. 1 o da Lei no 12.990/2014 e na forma do § 2 o do Art. 5 o da Lei no 8.112/1990, bem como na forma do § 1o do Art. 1o do Decreto no 9.508/2018” e continua: “10.2 Para as demais áreas de conhecimento, depois de aprovado, o candidato com deficiência ou negro melhor classificado em sua área de conhecimento, será reclassificado em lista única em ordem decrescente, independentemente da área de conhecimento, de acordo com a sua nota final (média aritmética das notas finais atribuídas pelos examinadores), elaborada com vistas a garantir que o número de vagas reservadas previsto em lei seja atendido”.
3 O Item 10.5 do mesmo edital deixa afirmado que: “10.5 Os candidatos com deficiência, bem como os candidatos negros, enquadrados no item 10.2 ocuparão a primeira vaga respectiva, ainda que esta seja a única e as suas classificações não lhes garantam a primeira posição, desde que tenham sido aprovados”
Ntozakhe II, Parktown, 2016. Artista Zanele Muholi.