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A UNILAB e a perspectiva afrocentrada do curso de pedagogia

Geranilde Costa e Silva - unilab Doutora em Educação. Docente da UNILAB. Participou da mesa-redonda “Universidade, Carreira Docente e Racismo”, organizada pela SESUNILA em novembro de 2018.

AUniversidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira – UNILAB, foi criada em 2010 por meio da Lei Federal nº 12.289, sendo uma instituição de ensino superior que tem sua gênese fincada em princípios básicos, que são, primeiro contribuir para a formação, difusão e aprimoramento de profissionais que atuam, especialmente, região do Maciço de Baturité, no Ceará, e do Recôncavo Baiano Adotando, portanto, uma participação significativa na região, ao desenvolver o projeto de formação mão-de-obra, nas áreas de Bacharelado em Humanidades, Formação de Professores, Tecnologias Sustentáveis, Saúde, dentre outras, por meio de uma educação antirracista de base africana e afro-brasileira. E segundo, o da cooperação internacional

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solidária envolvendo Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, além de Timor Leste, na Ásia. Cabe destacar a presença na UNILAB de estudantes oriundos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe. Redenção, no Ceará, foi escolhida para sediar a UNILAB devido ao papel histórico-político que desenvolveu frente ao fim do tráfico negreiro, sendo reconhecida como a primeira cidade do país, na época Vila do Acarape, a promover a abolição da escravatura negra, cinco anos antes da sua oficialização no Brasil. Contraditoriamente, são muitos os relatos de africanos/as e/ou negros/as, incluindo discentes e docentes, que revelam ser vítimas de racismo e/ou presenciar práticas racistas na cidade. A dissertação de mestrado da pesquisadora redencionista Joanna Farias, “Cadê o preto que estava aqui? Presença e alocação de escravizados em vila de Acarape e Baturité (1870-1884)”, demonstra que se um lado as sociedades abolicionistas locais se empenharam em promover a libertação negra em 1883, não se pode dizer o mesmo quanto à inclusão do/a negro/a como sujeito/a pleno/a de direito. Uma evidência histórica dessa exclusão é o fato de somente no século seguinte as autoridades locais fincarem na cidade elementos que rememorassem tal feito, como o Monumento Negra Nua (fig.1). O monumento, localizado na entrada de Redenção, traz uma mulher negra cativa nua, em posição de agradecimento aos seus “donos” pela liberdade, distorcendo e/ou negando a luta de negros e negras pela liberdade. Além de colocar a mulher negra em uma situação

de desrespeito, uma vez que associa sua imagem aos prazeres sexuais. Outro exemplo é o Museu Senzala Negro Liberto, criado em 2003, que permite, segundo o dono do espaço, conhecer como se dava as relações entre os/as negros/as e seus/suas donos/as (fig. 2 e 3).

Figura 1. Monumento Negra Nua, do artista plástico cearense Eduardo Pampola

Figura 2. Entrada do Museu Senzala Negro Liberto.

Em outras palavras, o tema da abolição da escravatura negra é romantizado e colonizado, tendo como consequência, primeiro, a ilusão da inexistência do racismo em Redenção, e segundo, um desconhecimento histórico sobre a presença negra na cidade, que é fruto da ausência dessas questões na educação básica, bem como no ensino superior. Por sua vez, a presença de estudantes e docentes negros/as na região, em função da UNILAB, tem revelado o racismo por meio de denúncia desses/as, seja como vítima e/ou como observador/a. O estudante guineense Mustafa Bari, do curso de Pedagogia, revela que:

Ao conversar com uma pessoa do Ceará, ela às vezes te faz cada pergunta que você nunca poderia imaginar que uma pessoa desse mundo ia perguntar. Indagações do tipo: “- Vocês vieram para o Brasil de cavalos?”; “-Vocês moravam com leões?” ou ainda: “-Foi aqui que vocês começaram a vestir roupas?”... enfim, é cada tipo de pergunta que me deixou muito assustado, cheguei até a pensar: Como dizer que o Brasil é um país muito mais avançado que Bissau se as pessoas tem esse pensamento sobre África? Isso é Racismo, preconceito e discriminação e são práticas tão vivas no Brasil que às vezes dá até medo de continuar a morar aqui.

Outro estudante guineense, do curso de Sociologia, mostra o racismo dentro da própria universidade:

Em maio de 2014 cheguei ao Brasil, no estado Ceará. Nos primeiros meses tive dificuldades para me adaptar a essa nova realidade sem falar das divisões dentro da sala, ou seja, africanos/as de um lado e brasileiros/ as do outro, o que evidenciava manifestação do racismo dentro de uma universidade pública que pretende ser de integração luso afro-brasileira.

Frente a essas questões, tendo plena consciência da necessidade de construir uma educação não racista é que o curso de Pedagogia decidiu pelo afrocentrismo, enquanto referencial teórico-metodológico para desenvolver a formação de pedagogos/as não racistas.

A proposta curricular afrocentrada do curso de pedagogia da UNILAB

Fundamentar o Projeto Político Pedagógico do curso de Pedagogia no afro-centrismo é apontar para a criação de uma educação antirracista, que propõe práticas pedagógicas voltadas à uma educação ética entre negros/as e não-negros/ as, em especial aqueles e aquelas que se reconhecem como brancos/as. Essa educação tem por ética o pensamento do psiquiatra negro Frantz Fanon, quem defendia que às pessoas negras está o direito de poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir, ao mesmo tempo que em levaria o grupo de brancos/as reconhecer “a manutenção do status quo, isto é, a conservação dos privilégios que o grupo branco obtém – mesmo quando na condição de pobreza – é devido ao racismo estrutural”. 42

Uma proposta pedagógica afrocentrada deve “partir em primeiro lugar dos conhecimentos em educação elaborados ao menos nos países da integração UNILAB em África”. Significa, ainda, priorizar “os conhecimentos em educação pertinentes ao universo diaspórico negro, com ênfase no Brasil” e “contemplar os saberes ditos ‘clássicos ou universais’ elaborados pelo pensamento educacional europeu”. Nesse sentido, os princípios norteadores do projeto político-pedagógico do curso são: • a construção de uma educação antirracista pautada no escopo decolonial, que se disponha a romper com os pensamentos gravados nas mentes e corpos por gerações, de modo a reconhecer o pensamento dos povos originários e de diáspora forçada como epistemologias legítimas para a cultura dos povos colonizados; • o reconhecimento do lugar histórico e socialmente atribuído ao ser negro – dar-se conta de que o racismo é algo estrutural e que dessa forma determina o lugar social, econômico e psicológico de negros/as e brancos/as; • a compreensão do/a negro/a como participe de uma história e cultura brasileira marcada pelas africanidades; • a desconstrução da falácia da democracia racial que supõe uma igualdade racial, em que negros e brancos, tem direitos e oportunidades equivalentes. • • a valorização da ancestralidade; o território como lugar de saber que dão espaço para a vida e seus significados à história de um grupo, que permitem que um coletivo se diferencie dos demais. 43

•a tradição oral - reconhecendo e valorizando o conhecimento que é produzido e repassado por meio da oralidade, seja da fala ou dos sons manifestados pelos elementos da natureza ou pelos instrumentos musicais ou não; • o reconhecimento do corpo como fonte espiritual e racional de saberes; • o respeito à religiosidade como fonte de sabedoria. Por meio da religiosidade compreende-se o valor e o significado de cada elemento e de cada ser presente na Terra; • a circularidade, princípio oriundo da compreensão de religiosidade: eu sou por meio do outro, isto é, tudo que atinge a mim também atinge ao outro; • o ubuntu, guiando os valores civilizatórios de base africana e afro-diaspóricos numa abordagem atualizada, ligada à vida cotidiana, que busque fazer uma ciência que dê conta do hoje... do agora! Não se trata, pois de um pensamento focado ou ligado ao passado ou a um tempo perdido... ou ainda algo voltado apenas ao campo da contemplação, portanto, sem exigência ou possibilidade de ação. Ao adotar-se o ubuntu como base epistêmica, o curso assenta-se nos (a) valores civilizatórios de base africana e afrodiaspóricos; (b) nos temas de interesses da população afro-brasileira e africana, e, (c) nas questões específicas ao campo da formação do/a pedagogo/a. Por conseguinte, as ações do curso se voltam a uma produção acadêmica que permite a estudantes brasileiros/as e africanos/as pensar, discutir e propor alternativas para os problemas educacionais tendo como referência também seus lugares de origem. 44

Como se pode imaginar, a execução desse PPC tem se revelado um grande desafio ao seu corpo docente, uma vez que todos/as, estudantes e docentes, tiveram uma formação escolar e/ou acadêmica sedimentada em uma educação eurocêntrica, tornando necessário o entendimento da nova lógica epistemológica, pedagógica e metodológica. Tal empreitada requer todo um esforço intelectual e didáticopedagógico de seus/suas docentes para que os/as estudantes brasileiros/as e africanos/as percebam a atualidade desses valores enquanto Estatuto Filosófico Africano. Trata-se de uma proposta de vida coletiva, EU-NÓS, alicerçada pelo respeito ao cosmo e tudo que nele há (seres vivos e não vivos). Daí a necessidade de se pensar o passado, o presente e futuro como instâncias interligadas de poder/fazer, pois no passado, foi possível ou se pôde fazer ... O presente é o tempo do agora... tempo do fazer e o futuro está sendo proposto no presente, no tempo do agora! Nesse sentido, a Filosofia Africana Ubuntu reafirma que temos responsabilidade individual (EU) e coletiva (NÓS) sobre a direção do mundo nas suas instâncias indissociáveis: passado-presente-futuro. O filósofo moçambicano José Castiano diz que esse modo ubuntuista de pensar a relação do ser humano no e com o Tempo determinando a relação Eu-Nós, é na verdade um tipo de narrativa com pretensão universalista. Contudo, se difere dos modelos eurocentristas de narrativas, uma vez que está assentada na Ética. Isto é, a valorização do Eu-Nós é uma atitude política para abordar os problemas que atingem a humanidade. Castiano afirma que é exatamente em função desse processo moderno de negação da 45

humanidade e capacidade intelectual das pessoas africanas, que as filosofias, as africanas se mostram como um clamor por reconhecimento da humanidade e que se armam em sua dimensão radicalmente política. Seja por resistir à negação política da humanidade e da capacidade filosófica dos povos africanos, seja porque para o pensamento tradicional africano, seja porque não é possível dissociar as dimensões da experiência humana, de modo que todas as questões são ao mesmo tempo epistemológicas, morais, políticas, estéticas, lógicas e ontológicas, uma vez que vê o mundo de mateira totalmente interligada. Por fim, o curso de Pedagogia busca formar pedagogos/ as negros/as e não-negros/as para atuarem de forma ética, política e pedagógica na Educação de seus lugares de origem, mirando as questões gerais e específicas pertinentes aos países da integração UNILAB. Frente à vivência desse projeto político-pedagógico, tenho particularmente experienciado dificuldades no campo da formação docente que vão desde a resistência de alunos/ as e/ou docentes em assumirem a existência e/ou a prática do racismo dentro e fora da escola à rejeição desses/as em refletir e abandonar referenciais eurocêntricos de ensinoaprendizagem que modulam corpo-mente para uma produção acadêmica racista. Dessa forma aponto como alternativa para o enfrentamento coletiva do racismo a promoção de atitudes que garantam a vida baseada no EU-NÓS, pois assim seremos capazes de construir instituições não racista que valorizem a diversidade ali presente. Sendo essa uma luta 46

a ser encampada não apenas pela universidade, como é o caso da UNILAB, mas por outras instituições, a exemplo dos sindicatos, que são historicamente instituições que por meio de processos formativos buscam levar os/as trabalhadores/ as a desmitificarem as condições aviltantes do mundo do trabalho. De modo que esses processos formativos sindicais também podem dar conta de tratar do racismo, sexismo, dentre outras mazelas.

BRASIL. UNILAB/MEC. Projeto Pedagógico Curricular do curso de Pedagogia, 2016. CARDOSO, L. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo: UNESP, 2014. CASTIANO, J. Filosofia Africana: da Sagacidade à Intersubjectivação com Veiga. Maputo: Educar, Universidade Pedagógica, 2015. CASTIANO, J. Referenciais da Filosofia Africana. Em busca da intersubjectivação. Maputo: Ndjira, 2010. FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. FARIAS, J. CADÊ O PRETO QUE ESTAVA AQUI? Presença e alocação de escravizados em vila de Acarape e Baturité (1870-1884). Dissertação de Mestrado. Redenção: UNILAB, 2018. MUNANGA, K. Kabengele Munanga, professor. In: Geledés: África e sua diáspora, 2017. SILVA, G. et. al. O desenvolvimento pessoal-intelectual – docente e discente – referencializado no conceito de desenvolvimento de Joseph Ki-Zerbo. In: SILVA, G. (org). Experiências em ensino, pesquisa e extensão na universidade: caminhos e perspectivas. Vol. 4. Fortaleza: Imprece, 2019. SILVA, G.et a.. No passado, no presente a Construção do futuro: estudantes guineenses da pedagogia da Unilab - Olhando Guiné-Bissau desde o Brasil. In: SILVA, G. et all. Ensino, Pesquisa e Extensão na UNILAB: caminhos e perspectivas. Vol. 2. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2017.

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