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Uma mulher negra nas encruzilhadas da vida acadêmica
Ângela Maria de Souza - SESUNILA Doutora em antropologia, docente do ILAACH. Participou da mesa-redonda “Universidade, Carreira Docente e Racismo”, organizada pela SESUNILA em novembro de 2018.
Os desafios da vida acadêmica vão muito além de nossa rotina de trabalho, nossa produção acadêmica, atividades administrativas, publicações, lattes atualizado, avaliações e tudo mais. Se você é uma Mulher Negra, além de todos estes desafios, temos que enfrentar ainda as relações perpassadas por práticas machistas e racistas que fazem parte de nosso cotidiano. Desafios que causam danos, dores, doenças, na grande maioria das vezes vividas e sentidas em silêncio e na mais absoluta solidão. Ser uma Mulher Negra é vivenciar uma solidão cotidiana no espaço acadêmico, muitas vezes gerado pela “surdez” e pela “cegueira” de nossos(as) colegas. Trago estas reflexões para discutirmos nesta mesa, intitulada “Universidade, Carreira Docente e Racismo” e gostaria de começar minha fala exatamente pela discussão sobre o racismo. E saliento que não há e não pode haver neutralidade ou passividade diante do racismo. Todas(os) somos responsáveis. Quero fazer referência a Fanon quando 27
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ele nos diz que “O problema negro não se limita ao dos negros que vivem entre os brancos, mas sim ao dos negros explorados, escravizados, humilhados por uma sociedade capitalista, colonialista, apenas acidentalmente branca.” Quero ressaltar aqui que a universidade, a academia é este lugar em que poucos “negros vivem entre brancos”. Somos uma minoria num espaço de produção intelectual, num espaço de poder. Contraditoriamente, vivemos num país de maioria negra, a maioria que Fanon coloca como negros “ explorados, escravizados, humilhados por uma sociedade capitalista, colonialista”. Este é o negro que faz parte, em grande peso dos temas e “objetos” de estudo de nossos(as) colegas brancos(as). Viver este paradoxo faz parte da existência de nossa vivência nos espaços acadêmicos. Ao mesmo tempo, em que nossos colegas brancos(as), na sua grande maioria, não querem refletir sobre esta contradição, ou, quando refletem, é como se não fizessem parte dela, analisam este contexto como se fossem seres que estão além desta contradição, como se não fossem, eles mesmos, geradores desta situação. É como se estivessem refletindo sobre a vivência de pessoas negras, vistas nestes contextos, como menos humanos, ou não tão humanos quanto um(a) acadêmico(a) branco. Ser uma Mulher Negra na academia, é viver nestes dois mundos, o que nos gera uma grande tensão, especialmente quando viemos das periferias pobres onde estão a grande maioria da população negra brasileira. As pessoas brancas precisam refletir sobre os lugares que ocupam na estrutura racista de nossa sociedade, ou melhor, pensar (e agir) sobre qual é a sua responsabilidade para modificarmos esta estrutura.
Mesmo tendo consciência de nossa condição enquanto cidadãs(ãos) negras(os), o confronto com o racismo nos torna negras(os) a partir de uma lógica construída pela perspectiva escravocrata-colonialista. Levanto esta questão porque este “tornar-se negro” é resultado de um enfrentamento do racismo. Muitos de nós nos confrontamos com o significado de sermos negros(as) quando nos deparamos com o racismo, quando sofremos em nossos corpos e mentes seus impactos. E nos atinge psicologicamente de forma contundente, como Fanon nos mostra. E isso se acirra em sociedades construídas numa lógica de branqueamento, como a brasileira. Quero localizar a universidade como um dos principais espaços em que o branqueamento e a branquitude estão materializados. E quero citar três momentos em que vivenciei estas experiências na Universidade enquanto docente, Mulher e Negra. Sou uma Mulher, Negra, da periferia e um das primeiras da família a entrar na universidade como estudante e a única docente numa universidade pública. Desde que coloquei meus pés, pela primeira vez neste espaço, me deparo com o racismo, seja enquanto estudante, pesquisadora, docente ou gestora, o que já somam mais de 30 anos. E poderia aqui relatar inúmeras situações por mim vivenciadas, mas quero me ater a alguns exemplos mais recentes. Atuando na docência, fui participar de uma reunião na sala de uma colega que trabalha com direitos humanos para discutirmos questões de trabalho e, tal foi minha surpresa, quando me deparo com um quadro de um navio negreiro emoldurado na parede em frente a sua mesa de trabalho. Aquela imagem me aterrorizou. Me perguntava, sem conseguir falar, como alguém usa um quadro de um
navio negreiro como objeto de decoração? O que a autoriza a fazer isso, ser uma mulher branca? Será que ela, trabalhando com direitos humanos não consegue perceber a violência ali presente? Será que ela percebia o significado daquele ato? O que ela, além de branca, com sobrenome de descendência europeia, que no sul possui um forte simbolismo ligado a uma política de branqueamento, pretendia com aquele quadro tão perverso? Eu não consegui verbalizar minha angustia e perplexidade. Durante muito tempo fiquei com aquela cena em minha mente. Hoje percebo que aquele quadro estava dentro de um cenário de “normalidade” que exclui e violenta quem não é uma pessoa branca, ou seja, Eu. Esta violência é cotidiana e silenciosa. Se eu tivesse falado para ela sobre meu incômodo, será que ela entenderia? Ser uma mulher branca é ter privilégios sim e refletir sobre eles é determinante. O discurso não é suficiente, a prática precisa ser minimamente coerente com sua argumentação intelectual, tão rebuscada e sedutora, mas vazia. O segundo exemplo que trago foi uma situação que ocorreu no período em que fui Pró-Reitora de Extensão. Um “colega”, durante uma reunião da Comissão Superior de Extensão, depois de um longo discurso sobre uma das pautas da reunião, me questiona: “porque eu, homem branco, não posso ser pró-reitor de extensão”? Ao ouvi-lo o impacto foi grande. Mais uma vez fiquei perplexa. Mas, neste momento o que me assustou ainda mais foi o silêncio dos demais “colegas”. Cheguei a duvidar do que tinha acabado de ouvir, o que ocorre em muitos casos de racismo. Mas eu e mais um colega negro ouvimos a mesma frase sim. O que significa
Série Re-existindo, 2004. Artista Renata Felinto.
que somente duas pessoas negras tenham percebido o que estava acontecendo? Ali estava explícita a pouca importância dada a uma situação como esta, típico de muitos de nossos colegas que presenciam racismo e machismo em silêncio. Ali estava naturalizado o racismo e o machismo sem qualquer questionamento, alguns nem perceberam ou ignoraram. Ou seja, todos contribuíram com a atitude de nosso “colega”. Com certeza este homem branco não faria este questionamento a uma mulher branca, a um homem negro ou indígena e muito menos a um homem branco, mas, sentiu muita tranquilidade para questionar uma mulher negra. O que lhe deu esta tranquilidade? A resposta está no silêncio. Sua atitude foi legitimada pelo silêncio dos colegas ali presentes naquela reunião, em torno de umas 12 a 15 pessoas. Esta situação explicitou o incômodo que ele sentia em ter uma mulher negra naquele espaço. Ou seja, ele, como homem branco, explicitava seu racismo e machismo livremente, porque o incomodava o lugar que eu, mulher negra, ocupava na hierarquia acadêmica. Independente do lugar que ele ocupava, sua atitude estava aqui sendo respaldado por sua condição enquanto homem branco e também com sobrenome de origem europeia, que ele tanto sublinha quando se apresenta. Em outras palavras, um homem branco desfrutando de seus privilégios. Incômodo. Causamos incômodo por ocuparmos lugares/espaços, como a docência numa universidade pública. Exatamente porque estes espaços “são concebidos” para serem “ocupados” por pessoas brancas. E ao ocuparmos estes lugares sempre nos veem como “fora do lugar”, como se estes espaços não pudessem ser ocupados por pessoas
negras, especialmente as mulheres. E somos duplamente marcadas em nossos corpos de mulheres negras, pelo racismo e pelo machismo. Mas nossos corpos também são marcados por serem os lugares da pobreza, que é a terceira situação que aqui trago na fala de uma colega branca, que durante uma discussão sobre as questões de gênero na Universidade, reforçava em sua fala que por eu ser uma mulher negra, em mim também estava marcada a pobreza. Gênero, Raça e Classe marcam nossos espaços dentro da universidade. Ou seja, somos interseccionalmente vistas dentro das Universidades, mas isso não potencializa nossas lutas políticas no diálogo enquanto pessoas negras. Ao contrário, todos estes vetores que nos discriminam são usados como formas de opressão sempre que precisam, de forma velada ou explicitamente, como fez o homem branco. Estas três situações fizeram parte das minhas relações de trabalho com pessoas brancas, duas mulheres e um homem, colegas de universidade, todas com sobre nomes de descendência europeia. Estas três pessoas possuem um discurso de abertura para as discussões raciais, de gênero e classe mas, seus atos, suas ações reforçam opressões que, nós negras, lutamos arduamente para combater. Trabalhar com estas situações e modificá-las necessita empenho dos dois lados. Mas parece algo tão distante e, nestes casos, o silêncio é ensurdecedor. São situações que geraram muitas angústias, tristezas, dores, até porque as três situações que narrei ocorreram em espaços com a presença de outras pessoas, em sua grande maioria pessoas brancas, que em nada, ou muito pouco, se sentiram atingidas.
É óbvio que estas são apenas três das inúmeras situações que eu poderia aqui relatar e que minhas/meus colegas negras(os) e indígenas vivenciam corriqueiramente. Em muitos casos, só temos consciência de que foi uma ato racista ou machista, ou os dois juntos, algum tempo depois. Por isso não é fácil reagir, até porque a reação pode gerar ainda mais agressões e ofensas. Sabemos da grande dificuldade que as pessoas, a maioria delas, têm, para compreender como funciona o racismo, como ele se embrenha nas estruturas de poder, e, ao mesmo tempo, nos atos mais corriqueiros e “banais”. Lutar contra a naturalização destes atos é uma guerra diária que nos causa insônia, sofrimento, angústia, distúrbios. Nossos corpos padecem. E esta é uma das perversidades do racismo. Conseguir trabalhar estas questões é determinante, mas, nada disso tem sentido se ficarmos falando somente entre pares. O racismo é um problema de toda a sociedade, não somente das pessoas negras e/ou indígenas. Mudar esta direção é determinante para refletir sobre nossas/suas práticas e gerar mudanças. Lelia Gonzalez, uma importante intelectual negra, bastante invisibilizada no espaço acadêmico, tensionou o movimento feminista ao expor seu racismo e tensionou o movimento negro ao expor seu machismo. Dois movimentos do qual faço parte e que muito me ensinaram nesta trajetória de vida. Mas quero acrescentar aos aprendizados que Lelia Gonzalez nos traz, que os sindicatos e as Universidades, como muitos outros espaços, precisam ser ainda mais tensionados a partir desta dupla/tripla perspectiva. Apesar de todo o discurso, não conseguimos visualizar mudanças contundentes, a não
ser aquelas resultados de lutas da própria população negra, como as Ações Afirmativas, por exemplo. O trabalho das pessoas negras, mulheres, indígenas é muito bem vindo para somar na luta, mas os cargos representativos, os espaços de poder e visibilidade são sempre, ou quase sempre, ocupados por pessoas brancas, principalmente os homens, é só analisarmos a gestão da grande maioria das nossas universidades. E quando uma pessoa negra ocupa um destes cargos, é sempre exceção, e, muito provavelmente, depois deste(a) não se sabe qual será o(a) próximo(a). Importante também citar que, enquanto mulheres negras, somos muito mais cobradas e punidas em nossos espaços de trabalho. Nossas ações e atitudes possuem significados muito distintos quando comparados a ações de homens e demais pessoas brancas. E isso é opressão. É muita opressão. Nós negras e negros somos sempre exceção num país de maioria negra e isso explicita o racismo em todos os espaços sociais e a universidade é um deles. No nosso caso, considero ainda mais grave, já que discutimos, teorizamos e sabemos muito bem quais as consequências de uma sociedade racista. Mas, ao contrário do que discursamos, não temos práticas que possibilitem mudanças consideráveis na estrutura social. A universidade continua reproduzindo práticas patriarcais e racistas. É necessário entender que o racismo não é um problema de pessoas negras, é um problema de toda a sociedade, assim como o machismo não é um problema somente das mulheres, e que discutir suas consequências não são suficientes se não tivermos ações concretas. Temos que
ser seres da ação, da prática. É necessário transgredir, como afirma Bell Hooks. Para finalizar, quero trazer um poema que para mim é muitíssimo importante, um poema que fala de Mulheres Negras mas que fala também das pessoas brancas nas relações com estas mulheres. Considero a poesia uma forma privilegiada para este debate, mas assim como em outros espaços, estas poesias, produzidas por Mulheres Negras, ainda são pouco conhecidas ou reconhecidas 1 . É o caso de uma das maiores escritoras que temos na atualidade, Conceição Evaristo, com seu poema Vozes-Mulheres, que trago ao lado. Quero aqui citá-la, para ressaltar que seu reconhecimento é parcial e tardio. Sua produção literária e sua trajetória de vida não se separam e são importantes instrumentos para refletirmos sobre as questões raciais e de gênero que tanto nos afetam. Trago este poema porque me vejo nele, assim como vejo todas as mulheres que lutaram e lutam para que eu estivesse neste espaço e escrevendo este texto.
1 Trabalhei com três destes poemas, de Conceição Evaristo, Shirley Campebell Barr e Victória Santa Cruz no artigo Diálogos Interseccionais: ancestralidade e poesia na resistência de mulheres Negras. In: GÓES, Luciano (org.) 130 anos de (des)Ilusão: a farsa abolicionista em perspectiva desde olhares marginalizados. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
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Vozes-Mulheres Conceição Evaristo
A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância O eco da vida-liberdade.