O DISCU RSO SEM MÉTODO um jornal a serviço da dúvida.
acesso e permanência
mar/abr/mai
Lucas Souza. p.8
Essa pauta não toca muito os alunos do curso de Filosofia. Grande parte está na segunda graduação. Outra parte vem dos extratos superiores das classes sociais. Todavia faço um apelo para que não sejam apáticos a ela.
nº
7
mulheres na filosofia? faça as contas Sally Haslanger. p.14
Bricolagem I X eminente professorx de filosofia descobre-se mortal como Sócrates
odiscursosemmetodo.wordpress.com
publicação dos estudantes de Filosofia da FFLCH/USP
André Braga. p.24
editorial. 2
afinal, quem decide? Editorial Este é o primeiro Discurso Sem Método a não publicar um texto que lhe foi enviado. Já no superficial do fato é algo que se apresenta como um problema para um jornal que se põe “a serviço da dúvida”, que pretende retratar as “tensões dos corredores do curso” e que se quer feito por todos os alunos da Filosofia. Não apenas por essa aparente ou real contradição (o que será decidido a seguir) poder ser usada pela retórica de alguns interesses específicos, porém especialmente pela definição do espírito dessa publicação, queremos abrir o debate ocorrido internamente a todos. Debates que, com efeito, não ocorreram em um conciliábulo. O grupo de e-mails que é responsável pela produção do jornal é aberto a qualquer aluno. Se você entrar agora mesmo, verá todo esse histórico. É bem verdade que falar em “debates ocorridos internamente”, em um grupo “aberto” para você “entrar” põem um dentro e um fora que complicam a situação das pretensões do jornal enunciadas no primeiro parágrafo. Além disso, sabemos que nem todos terão paciência de ler cada um dos muitos e-mails através dos quais vamos coletivamente editorando o jornal, e por isso, repetimos, a questão de como lidar com uma não-publicação (censura?) vai aqui exposta. Não há regras a priori. Já foi discutido, em abstrato, o que fazer caso um texto claramente ofensivo nos fosse remetido. Ocorre que uma ofensa nem sempre é clara e distinta. Este jornal está se fazendo a cada edição, a cada decisão, da maneira mais democrática possível: com a colaboração de quem quiser (autores dos textos, diagramadores, revisores, basta participar). O Discurso via de regra (para não dizer sempre) publica todos os escritos enviados. Tratemos da exceção, o primeiro texto não publicado.
O artigo “O Homem Sofre?” chamou a atenção porque se fazia o pedido de que fosse publicado anonimamente — por receio de represálias morais. Antes,
editorial. 3 textos sem um chamativo do tipo foram publicados com pseudônimo sem que a questão tivesse surgido: poemas, crônicas, basta acessar as edições antigas para vê-los. Além do pedido, o caráter político do texto o pôs ainda mais em evidência. Com tal sobrecarga de atenção, o artigo iniciou um debate — sobre os suas limitações no trato do tema – a questão de gênero –, os preconceitos que reafirmaria mesmo sem intenção, etc. Era um texto ofensivo? Quem decide? Era um texto a serviço da dúvida, que expunha tensões dos corredores? Quem decide? Publica-se anonimamente um texto “político”? O que é um texto político? Quem decide? Seria publicada uma resposta na mesma edição? Isso configura um privilégio de quem “está dentro”? Quem decide? Para cada uma dessas questões, impôs-se o dissenso. Com a emergência da greve de 2013, o debate foi suspenso em favor de uma edição voltada às questões da paralisação. Enfim, seu autor teve notícia da discussão, e optou por sair do anonimato e a participar da conversa. Acabou por decidir não publicar o texto, que seria endereçado a outro jornal, o qual deve ser distribuído nos corredores em breve. Quer dizer: não se decidiu nada. Pontualmente, a questão foi “resolvida” pelo autor. Resta, no entanto, aberto todo o debate, que diz respeito não somente ao “interior” do jornal (que rigorosamente nem deveria existir), ou seja, aos diretamente envolvidos com a editoração – mas a todos. É a todos nós que o debate diz respeito. Que tipo de jornal os estudantes de filosofia queremos? Repita-se ainda uma vez: o Discurso deve aceitar textos anônimos? Os participantes do grupo de e-mails, que possuem acesso prévio, podem responder a um artigo na mesma edição? O que pode impedir a publicação de um texto neste jornal? A comissão havia discutido sobre não publicar textos ofensivos. Mas qual o critério? Vocês podem enviar comentários sobre as perguntas para o e-mail do CAF (uspcaf@gmail.com) ou pelo grupo de e-mails do jornal (entre pelo link http://bit.ly/ jornaldafilosofia). É claro, você também pode levantar outras questões sobre a identidade do jornal e seu processo de produção. Para breve, será chamada uma reunião/assembleia para que possamos, juntos, responder a essas questões e decidir os rumos do jornal. Afinal, quem decide? Todos nós. Mas e os textos publicados, gente? Nesta primeira edição do ano a coluna do CAF apresenta alguns dados para entendermos a crise orçamentária em que se encontra a USP após quatro anos de gestão Rodas. Em seguida publicamos a comunicação apresentada por aluno do curso na semana da calourada sobre acesso e permanência. Depois da repercussão dos rolezinhos no começo do ano, a proibição do funk voltou a ser tema de discussão, porém qual seria o papel oculto do estado em relação a essa proibição. Dan-
do continuidade a um debate que vem crescendo no curso desde o fim do ano passado, dois textos acerca da posição das mulheres no contexto político e universitário estão nesta edição. O transporte nosso de cada dia nos dá hoje duas crônicas. Recebemos dois textos que dialogam com o contexto político nacional. O primeiro indaga se, diante dos inúmeros protestos contra a copa, não seria o caso de compreender que a própria organização da copa atingiu/interferiu diretamente na luta e nas conquistas de movimentos sociais? O segundo questiona se algumas das jurisprudências dos últimos meses não inviabilizariam as mobilizações coletivas, contribuindo assim para o policiamento ideológico e a totalização do estado de exceção. Terminamos esta edição com uma resenha sobre o filme “A caça”, um texto com bibliografia em língua aeroacadêmica e três contos enviados por colegas do curso. Apresentamos ainda o heroico Sofista Prateado, traduzido diretamente do original na página 30. E finalizamos com a já conhecida seção de poesias. Boa leitura.
Expediente desta edição Alex Pantoja Arnaldo Pagano André Braga Caio Sarack Dimitrius Sacute Valentim Duanne Ribeiro (diagramação) Gabriel Bichir Gabriela Perini Bortoletto Inauê Taiguara (edição) Leandro Lemuria Lucas Paolo Lucas Souza Maria Lívia Goes Mariana Luppi (revisão) Monica Marques Pedro Côrtes Loureiro Thiago Fonseca Uirá Gamero
Agradecimentos a Johannes Gutenberg; à Comunicação Social da FFLCH;
imagem da capa: Emílio Goeldi
sumário. 4
Índice agenda e notas calendário..........................................................5 coluna do CAF o rombo do rodas............................................6 universidade e política
do tempo histórico........................................23 Caio Sarack conto Bricolagem I - X eminente professorx de filosofia descobre-se mortal como Sócrates...................................24 André Braga
acesso e permanência.....................................8 Lucas Souza recording eye.................................................26 Arnaldo Pagano sociedade consequência do dia.....................................28 o papel oculto do Estado Y.K. em relação ao funk........................................10 Gabriela Perini Bortoletto quadrinhos porque é preciso lembrar? memória, sofista prateado, em “Gorgias”...................30 identidade e reconhecimento........................12 Thiago Fonseca Monica Marques poesia.............................................................34 sociedade/tradução Fôrmas mulheres na filosofia? Pedro Côrtes Loureiro faça as contas, de Sally Haslanger...............14 Mariana Luppi e Maria Lívia Goes Poesia Uirá Gamero sociedade Anotação do Aluno de Poesia por que protestar contra a adoniranmunch Copa do Mundo de 2014?.............................16 Aquele piano tem uma senhora Dimitrius Sacute Valentim Duanne Ribeiro domínio de fato..............................................19 rodapé............................................................36 Lucas Paolo CAF em 1994 crônica estação Sé do metrô.....................................20 Alex Pantoja a crise do transporte na Omniversidade de São Paulo.......................21 Leandro Lemuria resenha a caça.............................................................22 Gabriel Bichir aeroacadêmico a nudez castigada do sujeito masculino: lancinho
leia as edições anteriores e o Manual do Calouro e da Caloura: issuu.com/caf_usp assista ao vídeos produzidos pelo CAF: http://bit.ly/canalCAF
calendário
agenda e notas. 5
- 10 de agosto. Prazo máximo para o envio de textos à próxima edição do DSM (ago/set).
aconteceu e você não viu
acadêmico:
Atividade sobre mulheres na Filosofia
Abril
com a professora do departamento de Filosofia Silvana Ramos, a mestra em Filosofia e funcionária do departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Rosely de Fátima Silva e as licenciandas em Filosofia Mônica Marques e Mariana Luppi.
jornal:
14 a 19 - Semana Santa. Não haverá aula. 21 - Tiradentes. Não haverá aula. 26 – Marcha da Maconha: “Cultivar a liberdade para não colher a guerra”; Maio 01 -Dia do Trabalho. Não haverá aula. Encontro Nacional dxs Atingidxs por Megaeventos e Megaprojetos (BH); 02 e 03 - Recesso. Não haverá aula. 15 – Grande ato convocado pelo Comitê Popular da Copa Junho 12 - Jogo do Brasil (Abertura da Copa do Mundo 2014). Não haverá aula. 15 - Dia (Inter)Nacional de Luta contra a Copa, Megaeventos e Megaprojetos. 17- Jogo do Brasil. Não haverá aula. 19 - Jogo da Copa do Mundo em São Paulo (Corpus Christi). Não haverá aula.
http://bit.ly/atividademulheresnafilosofia
Debates das chapas ao DCE-Livre 2014 Parte 1 e 2: http://bit.ly/DCE2014-1 http://bit.ly/DCE2014-2 20 e 21 - Recesso. Não haverá aula. 23 - Jogo do Brasil. Não haverá aula. 24 a 02 de julho - PERÍODO DE MATRÍCULA DOS ALUNOS para o 2º semestre (1ª Interação). ATENÇÃO: o aluno deverá inscrever-se em, pelo menos, uma das interações, mas de preferência na primeira, para participar da seleção das disciplinas/turmas de seuPeríodo Ideal (1ª Consolidação), e dar às Unidades noção mais precisa da demanda por vagas. 26 - Jogo da Copa do Mundo em São Paulo. Não haverá aula. Julho 01 – Jogo do Brasil. Não haverá aula. 07 e 08 - 1ª consolidação das matrículas.
www.dontkeepwalking.de
08 – ENCERRAMENTO DAS AULAS. 09 – Jogo da Copa do Mundo em São Paulo (semifinal). Feriado Estadual. 10 a 15 – 2ª e última interação de matrícula. 13 – Jogo da Copa do Mundo (final) - domingo. 14 - INÍCIO DO PERÍODO PARA REALIZAÇÃO DA RECUPERAÇÃO. Agosto 04 – Início das aulas
coluna do CAF. 6
o rombo do rodas No final do ano passado, depois de uma greve estudantil que não atingiu seus objetivos, parecia que a gestão do então reitor Rodas havia sido bem sucedida. Pouco antes do final do ano, havia ele anunciado, por exemplo, a contratação de cerca de 500 docentes, aumento das bolsas de auxílio conforme a inflação, a internacionalização da USP a passos largos, etc. A USP estava voando, para quem defendia a reitoria. No início deste ano nos deparamos com a seguinte notícia: a USP está com um rombo de mais de um bilhão de reais. Algumas pessoas ficaram espantadas, outras não. Neste espaço do jornal, reservado à gestão do CAF, decidimos explicar alguns pontos desta crise orçamentária, sua origem e suas consequências. Comecemos com a questão, de onde vem o dinheiro da USP? A principal fonte de renda da USP é o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), o qual é recolhido pelo governo do estado. Do total arrecadado, a USP possui um repasse de 5,029%. Em 2013, foram repassados cerca de 6 bilhões de reais à USP. O dinheiro que não é gasto fica em uma poupança. Em janeiro de 2010, quando Rodas assumiu, a USP contava com 2 bilhões em caixa, conforme boletim da Adusp1. O que ocorreu de lá pra cá para falarmos em crise orçamentária? Haveria mesmo crise, uma vez que se espera que este ano sejam repassados 6 bilhões, como em 2013. Este dinheiro não resolverá a situação? Segundo a grande mídia não, pois a folha de pagamentos da USP consome mais de 98% de sua receita, forçando a Universidade a captar recursos externos. Qual a solução propagandeada por quem crê nisso? Enfrentar, por exemplo, a “iniquidade das pensões integrais de seus aposentados”2, como disse o editorial da Folha. Ao alardear disparates deste tipo, a imprensa desvia o foco da verdadeira causa do rombo: uma gestão autoritária e centralizadora alinhada a um projeto privatizante de univer-
1 http://bit.ly/aduspXfolha 2 http://bit.ly/folha-sanearaUSP
sidade. Pois bem, o que fez Jõao Grandino com o dinheiro? A principal propaganda da gestão Rodas foi a da internacionalização da USP. A principal preocupação foi de colocar a USP nos principais rankings internacionais e, para tanto, aumentar os intercâmbios e tudo quanto fosse critério de avaliação. O resto tornou-se secundário. Entre os principais investimentos deste projeto está a construção de três sedes internacionais – em Londres, Boston e Cingapura. Para construí-los gastou-se cerca de meio bilhão, provindos de “recursos externos” – porém aqui, como de resto, não estava claro de onde viriam os recursos para a manutenção de tais sedes que ninguém sabe ao certo que funções exerceriam3. Vale dizer que hoje, ao se constatar o rombo em que a Universidade se encontra, as três sedes internacionais estão fechadas. O caso da EACH, ou USP Leste, é outro exemplo da administração Rodas. A EACH já foi construída (2005) sobre um terreno contaminado. Ocorre que em 2011 cerca de 800 caminhões levaram terra para a EACH para que outros edifícios fossem levantados. No entanto, esta terra também estava contaminada – inclusive com elementos mais nocivos. Ou seja, alguém que precisaria pagar para se livrar desta terra contaminada, na verdade recebeu para se livrar dela. Quando as primeiras denúncias contra o diretor da Unidade, Boeri, começaram a aparecer, o Conselho Universitário (Co.) fez vista grossa até quando pôde. Há uma investigação do MPE, pois suspeita-se que esse crime ambiental teve motivações pecuniárias4 – Rodas também é citado. Podemos aqui também considerar os terrenos que a USP tem comprado em locais com alta especulação imobiliária. Terrenos no centro, na Berrini, na Consolação. Todos prédios para a execução de funções administrativas. Lembremos que a comunidade uspiana não é consultada em momento algum sobre as prioridades de gastos.
3 http://bit.ly/USPouveninguem 4 http://bit.ly/MPExBoueri
participe do jornal! Envie artigos, traduções, contos, crônicas, poesia, manifestos, comentários; ajude na edição; colabore com a diagramação. A produção do jornal é aberta a todos os alunos da Filosofia, com discussões presenciais e online.
coluna do CAF. 7 Em verdade, o orçamento anual da USP é votado ad referendum. Integrantes do Co. aprovam um orçamento gigantesco sem detalhar como o dinheiro será gasto. Segundo representante de docentes não titulares, no Co. realizado no final de 2012 foi apresentado o orçamento de 2013. Neste Co., diz tal representante, foi exposto o rombo que hoje estamos enfrentando – com uma pequena correção, pois esperava-se um déficit de 700 mi, e não de 1 bi. Apenas 15 pessoas foram contrárias a aprovar este orçamento assim: representantes estudantis, do funcionariado e de docentes não titulares. Eis aqui uma mostra de que a hegemonia de certos grupos políticos nas instâncias decisórias também é responsável pela crise orçamentária. Podemos falar também, por exemplo da iluminação, uma pauta recorrentemente reivindicada. Antes do assassinato do estudante da FEA em 2011, estudantes já reivindicavam mais iluminação no campus. Porém, foi só após este evento que a reitoria disse que tomaria providências – é claro que jamais consultou a comunidade. Porém, passados dois anos da morte do rapaz, a instalação desta nova iluminação ainda não havia se concretizado5. Ora, a quem interessa que se demore tanto, e que fiscalização é essa que deixa as pessoas que andam no campus às escuras? Na matéria indicada acima, vemos que o edital foi cancelado três vezes pelo TCE por “indícios de favorecimento”. No final das contas, a empresa que havia sido apontada como favorecida, venceu o quarto edital e, às pressas, instalou a iluminação que hoje temos, a qual continua insuficiente, pois ao invés de iluminar onde era escuro, optou-se por trocar a iluminação onde já havia – e por ironia, alguns destes pontos deixaram de ser iluminados. Por exemplo, nos arredores do portão 3 há uma crise de assaltos há anos, mas lá continua sem iluminação, pois as obras demoram para concluir e, enquanto isso, as poucas luzes anteriores são mantidas desligadas. Sobre a folha de pagamento comprometer grande parte do orçamento, podemos citar o crescimento exponencial do número do funcionariado terceirizado durante os últimos quatro anos. Além de receberem salários bem baixos, ainda correm o risco de no final do contrato da empresa com a USP, ficarem sem seus salários, pois é recorrente o caso de empresas decretarem falência meses antes do fim do
5 http://bit.ly/vejailuminacao
contrato. A USP paga o valor acordado às empresas e estas não repassam os salários devidos. Ainda em relação à folha de pagamento. Ao final de 2011, o Reitor, por portaria, decidiu dar um bônus de final de ano a docentes e todas as outras pessoas que trabalham na USP por não terem feito greve naquele ano6 – se estimarmos que quem se empregou através de concursos somam cerca de 15 mil pessoas e docentes, 5 mil, então só nessa situação cerca de 70 milhões foram gastos. Outro item digno de comentário é que a USP concedeu a docentes – mesmo sem reivindicarem isto! – e a outras pessoas funcionárias um vale-alimentação de 24 reais por dia. Mas este dinheiro não é depositado na forma de salário e sim em um cartão que deve ser recarregado em shoppings ou grandes redes de alimentação. É interessante citar que ao anunciar este benefício, a reitoria omitiu no boletim oficial, a informação de que 20% deste dinheiro seria revertido a fins de “custeio do benefício” – o que somam R$4,807. Ora, em apenas um dia, a USP está liberando R$ 105.600 para “custeio do benefício” à operadora, se considerarmos o corpo de 22 mil pessoas a quem o benefício se estendeu. A tudo isto podemos somar as pequenas ações perdulárias. A compra de dois tapetes de 40 mil reais cada. A construção de uma tenda gigantesca, próximo a raia, e que será utilizada menos de um ano. Enfim, quanto menos dinheiro em caixa a USP tiver, mais a mercê das agências de fomento e de empresas ela estará – por exemplo, instalações da USP são utilizadas no fim de semana para que sejam ministrados cursos pagos. O próprio Hospital Universitário sofre com esta crise orçamentária. Por outro lado, este dinheiro todo vai para algum lugar. O destino exato é a grande questão. Bolsas estão sendo cortadas, o investimento em permanência também está estagnado. É realmente interessante uma matéria do Estadão: o Governador se irritou, no início do ano passado, com os 7 bilhões parados em 3 universidades estaduais8. Ele queria que esse dinheiro fosse gasto. Bem, no que toca a USP, esse dinheiro foi gasto, assim como outro que ainda nem entrou.
6 http://bit.ly/bonusantigreve 7 http://bit.ly/reitoriavale 8 http://bit.ly/uni7bilhoes
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universidade e política. 8
acesso e permanência Lucas Souza Para se falar em acesso e permanência na USP, é preciso partir de uma ressalva ou pressuposto. Esse pressuposto ou ressalva será compartilhado entre todos nós na medida em que o contato com a Filosofia imbuir em vocês o mínimo do pensamento crítico, qual seja: A Universidade de São Paulo é, para dizer o mínimo, elitista e racista.
como privilégios. Se estamos aqui hoje é porque, ao longo de nossa vida, fomos privilegiados. Não somos mais inteligentes nem mais capazes - como talvez alguns de vocês tendem a pensar (ou seus pais, para esse fim). Sendo assim, o primeiro gérmen do pensamento crítico logo converte o orgulho do mérito individual em vergonha de privilegiados.
O que significa partir dessa ressalva ou pressuposto, se quisermos pensar a questão nas respectivas chaves de acesso e permanência?
Talvez seja um clichê de cursinho popular dizer que o vestibular opera como um filtro socioeconômico - o que, não obstante, é verdade. Mas é mais que isso. Encontramos naquelas verdades - aquelas, sabe? - que só são expressas nas paredes brancas, através incisiva inscrição negra da linguagem do picho, que “a USP é antipreto, antipobre, antipática”. É essa força, esse magnetismo social invisível que atua aqui o tempo todo. Ele ajusta os polos de tal modo que aqueles vindos dos extratos superiores das classes sociais sejam atraídos pela Universidade e os que vem dos extratos inferiores sejam dela repelidos.
Para pensar na chave do acesso, questionemos os fatores que permeiam o ingresso de alguém em qualquer curso da USP, ou para o nosso propósito, no curso de Filosofia. A qual dos fatores podemos atribuir, por assim dizer, primazia? Estamos aqui hoje por conta de nosso esforço individual e inteligência? Ou estamos aqui pela forma como se organiza a nossa sociedade, isto é, de maneira extremamente desigual? Tendo a ir por esta última via. Aqueles que estão nos extratos superiores das classes sociais usufruem ao longo de sua vida de bens que deveriam ser socialmente compartilhados como direitos: moradia, alimentação, educação, cultura, lazer e assim por diante. Ou seja, na sociedade da desigualdade brutal usufruímos de tais bens
Um estudo veiculado com o título “Bairros de elite de SP dominam vagas na USP”1, ao fazer um recorte de 10 anos de Fuvest, dirá que: “(…) Apenas uma rua, a Bela Cintra, na região dos Jardins, conseguiu, no vestibular de 2004, emplacar mais moradores nos bancos uspianos do que a soma de 74 bairros periféricos da zona sul. A Bela Cintra, porém, é apenas o caso mais vistoso de um quadro de hiperconcentração da oportunidade de acesso ao ensino superior público nas mãos de uma pequena parcela da população”. Agora pensemos a questão na chave da permanência, e em como tal força atua, ajustada a visão do pensamento para esse aspecto.
Sabemos ainda que em geral essa pauta não toca muito os alunos do curso de Filosofia. Todavia faço um apelo para que não sejam apáticos a essa pauta. É preciso trair a classe
O aluno pobre, negro, periférico, encontrará uma série de dificuldades para permanecer na Universidade. E isso não ocorre porque ele não tenha direitos de acesso à educação previstos, mas porque a própria USP, em especial na figura da Superintendência de Assistência Social, atua como uma interditora violenta de direitos. O aluno que precisa morar no CRUSP ou que precisa de auxílio aluguel (este último um auxílio quase irrisório) por vezes não conseguirá ter seus direitos contemplados (mesmo após se submeter a um tratamento extremamente humilhante 1 http://goo.gl/vsq9xU
universidade e política. 9 e desumano junto às desassistentes sociais). Sua situação de risco por vezes não o permite engajar-se em lutas radicalizadas dentro da Universidades - lembremos por um momento que a moradia estudantil foi conquistada através de ocupações. Podemos abrir um parêntese e dizer que é fácil engajar-se em tais lutas com as costas quentes do pai endinheirado. É dessa maneira que esse aluno encontra-se extremamente oprimido e castrado na Universidade. O aluno que se insere nesse background sócio-histórico também é repelido no curso de Filosofia, na medida em que o curso requer o domínio de várias línguas para se ter acesso a bibliografia que abrange textos (sem tradução) em francês, alemão, inglês, etc. Não obstante, há o perfil de docente que permeia o estudo da Filosofia com mitos do suposto prodígio de uma inteligência superior (o mito romântico do gênio), quando na verdade se trata de um trabalho concreto que pode ser desenvolvido por qualquer um, desde que nos sejam apresentadas as ferramentas para realizar tal trabalho. É assim que os alunos oriundos de escolas públicas sofrem dentro do curso uma espécie de bullying acadêmico, pois nossa formação básica é defasada. Não custa lembrar que o ensino público nos níveis básico e médio foi destroçado pela Ditadura Militar, tese que uma professora nossa gosta de lembrar quando é convidada a falar sobre formação básica. Quem está acompanhando minimamente o centro acadêmico sabe que foi denunciado recentemente, através de um relato2 - publicado, inclusive, na Carta Maior3 -, a violência descalabrada sofrida por um aluno da Filosofia que teve o acesso aos seus direitos de permanência violentamente interditados. É nesse sentido que o CAF criou uma Comissão de Permanência para realizar a mediação entre a SAS/AMORCRUSP e os alunos que precisam dos auxílios de moradia, aluguel, transporte, alimentação, bolsa livros e assim por diante4. Lembramos que o dinheiro que vocês gastarão em xerox não será pouco: fica a sugestão para uma nova pauta de luta, a Bolsa Xerox. Sabemos ainda que em geral essa pauta não toca muito os alunos do curso de Filosofia. Grande parte de vocês está na segunda graduação. Outra grande parte de vocês vem justamente dos extratos superiores das classes sociais, dos colégios particulares, dos cursos de idiomas e intercâmbios. Todavia faço um apelo para que não sejam apáticos a essa pauta. É preciso trair a classe. Assim, sejam antes uma classe média progressista que uma classe média apática e conservadora. Gostaria de terminar minha fala com duas citações. A primeira delas, uma crítica que o escritor Lima Barreto5 faz à Universidade Pública Brasileira, embora no contexto de seu advento e 2 http://wp.me/p4koaA-6 3 http://goo.gl/MdcH98 4 comissao.permanencia@bol.com.br 5 Peguei essas referências, descaradamente, do texto “Pensamento burocrático” do professor Pablo Ortellado, o qual li recentemente: http://goo.gl/YMIQFc
modernização há décadas atrás, penso que pertinente e atual: “O nosso ensino superior que é o mais desmoralizado dos nossos ramos de ensino, que se impregnou, com o tempo, de um espírito de serviçal da burguesia rica ou dos potentados políticos e administrativos, fazendo sábios e, agora, privilegiados, seus filhos e parentes – o nosso ensino superior com suas escolas e faculdades não é mais destinado a formar técnicos de certas determinadas profissões de que a sociedade tem ‘precisão’. Os seus estabelecimentos são verdadeiras oficinas de enobrecimento para dar títulos, pergaminhos – como o povo chama os seus diplomas, o que lhes vai a calhar – aos bem-nascidos ou pela fortuna ou pela posição dos pais. Armados com as tais cartas, os jovens doutores podem se encher de várias prosápias e afastar concorrentes mais capazes.”6 Lima Barreto segue a crítica dizendo: “O ensino primário, tem inúmeros defeitos, o secundário maiores, mas o superior, sendo o menos útil e o mais aparatoso, tem o defeito essencial de criar ignorantes com privilégios marcados em lei”7 E termina com (a parte mais icônica, me pareceu): “A maioria dos candidatos ao ‘doutorado’ é de meninos ricos ou parecidos, sem nenhum amor ao estudo, sem nenhuma vocação nem ambição intelectual. O que eles veem no curso não é o estudo sério das matérias, não sentem a atração misteriosa do saber, não se comprazem com a explicação que a ciência oferece da natureza; o que eles vêem é o título que lhes dá namoradas, consideração social, direito a altas posições e os diferencia do filho de ‘Seu’ Costa, contínuo de escritório do poderoso papai.”8 A segunda citação da qual eu gostaria de me valer, é a de um professor já aposentado do Departamento de Filosofia, Franklin Leopoldo e Silva, em um texto chamado “Universidade: a ideia e a história”9: (…) se não colocamos a própria universidade em questão, que sentido teria colocar em questão qualquer outra coisa a partir da universidade, isto é, a partir de uma certa inserção histórica e cultural que se expressa numa determinada maneira de investigar, de criticar, de conhecer e mesmo de propor condutas? Fica o objeto de reflexão. Será ele digno das altas paragens de nossas ideias filosóficas? 6 “As reformas e os ‘doutores’” Gazeta de notícias, 16 de janeiro de 1921 (este e os artigos seguintes de Lima Barreto foram recentemente publicados em Toda crônica (org. Beatriz Resende e Rachel Valença). Rio de Janeiro: Agir, 2004. 7 “A universidade”, Gazeta de notícias, 13 de março de 1920. 8 “A superstição do doutor” Gazeta de notícias, maio de 1918. 9 http://goo.gl/3LNHG0
sociedade. 10
o papel oculto do Estado em relação ao funk Gabriela Perini Bortoletto Houve recente aprovação na Câmara de Vereadores de São Paulo um projeto sobre a proibição de eventos com música funk em áreas públicas. Dois ex-policiais militares, Comandante Lopes e Coronel Camilo, propõem o projeto de lei (http://bit.ly/OY4tBG) e, segundo o texto do projeto, a prefeitura “organizará” esses eventos. Pretendem, como mágica, resolver a questão do barulho, também como do sexo, das drogas e do crime – aparentemente, o crime existe porque o funk existe. Hoje, 11 de dezembro, a lei precisa somente da sanção de Haddad e levanta polêmicas, principalmente pela reação da sociedade diante do estilo musical. Já faz parte do imaginário popular o conteúdo, para muitos, incômodo, carregado pelo funk. Na internet, há uma guerra entre não-funkeiros e funkeiros: os primeiros tentam desvalorizar a todo custo a produção musical dos segundos. Sem dúvidas, os funkeiros estão em profunda desvantagem quando o debate ganha amplas proporções. Existe uma sociedade insatisfeita com a imagem do funkeiro, pois não faltam exemplos de poluição sonora em transportes coletivos e até mesmo em zonas residenciais inteiras, promovidos por celulares ou bailes duradouros e resistentes ao nascer do sol. Há também a crítica feita às letras repetitivas que levam à conclusão depreciativa e precipitada sobre a inteligência de um funkeiro. Já numa perspectiva mais “sociológica”, pode-se questionar, principalmente, as apologias ao sexo, à violência e ao consumo. A apologia ao sexo torna a mulher em um objeto, sem o menor direito à privacidade, além de fragilizar a psicologia infantil, já desestabilizada pelo contexto de pobreza e medo. Quanto à violência, pode-se dizer que ela recebe a devida manutenção através da reafirmação do valor de se matar ou roubar e, assim, é criado o folclore de uma situação de guerra dentro da favela e fora dela, com as forças policiais. Sobre o consumismo, o funk ressalta a importância e os benefícios de se possuir carros, joias, roupas. Esse aspecto é especialmente importante: a canonização do consumo surge diante da necessidade de sucesso social, construído a partir da posse. Ou seja, há um ciclo. É importante consumir para obter sucesso porque o sucesso consiste em consumir – seja uma mulher ou
um carro. Assim, legitima-se ainda mais as práticas violentas, como o roubo, uma vez que um morador de favela não tem condições de arcar com custos tão exorbitantes. O funk é visto, então, como um catalisador de situações agressivas e degenerativas, não só dentro da favela, mas em toda a sociedade, que em nada contribui para a possibilidade de um novo contexto social. A partir dessa perspectiva, surgem os debates. Há, claro, quem não tenha dúvidas sobre a solução e proponha o total controle e proibição de qualquer coisa similar ao funk. Mas os preconceitos se confundem e, mesmo algo inocente, torna-se um crime. Ser favelado ou negro já é motivo de ser controlado e criminalizado. Em resposta, há defesa do funk como legítima manifestação artística, sob alegação de que existe uma polarização do debate por parte da elite excludente de tudo proveniente da população pobre. A partir dessa defesa, pode surgir uma reformulação do conceito de cultura e a ideia da importância do Estado acolher os produtos da favela. Surgem até comparações históricas com o samba, por exemplo, ao lembrar o quanto esse gênero foi marginalizado e, hoje, é um ícone cultural graças a nomes como Chico Buarque - branco. Enfim, uma situação conflitante é criada, com soluções opostas. Ora se proíbe, ora se acolhe mesmo com os problemas levantados a respeito da poluição sonora, sexualização e consumismo. Aqui, proponho que o debate não deva ser esse. Assim como o samba e o rap, o funk é mais uma manifestação; uma representação. Assim como qualquer arte, filosofia ou ação política, é o reflexo de algo cujo núcleo é menos evidente. O funk é um pedido de socorro, pois ele não está isolado da sociedade. Pelo contrário, a sociedade o produz. É possível, portanto, encontrar os sintomas a partir desses reflexos e, então, encontrar a cura. Para a questão da poluição sonora, farei uma analogia com as pixações (com “x”, mesmo). De acordo com o texto “Inscrição e circulação: novas visibilidades e configurações do espaço público em São Paulo”, publi-
sociedade. 11 cação por vias pacíficas, e até mesmo “admiráveis” - como a “boa arte” -, a pessoa negra e pobre mal percebe essa possibilidade. Quanto à questão das apologias, lembro do samba. Bezerra da Silva gravou muitas canções que banalizavam as drogas, por exemplo. No entanto, as letras eram criadas pela população favelada, a pedido do próprio sambista, a fim de montar um cenário “multiperspectivo” do cotidiano marginal. Enquanto Caetano Veloso e Chico Buarque dispõem de amplo vocabulário, experiência e estudo para criarem grandes poesias, a população pobre dispõe somente de seu dia a dia. Logo, é nítido os temas que serão abordados pelos populares: drogas, conflitos com o tráfico, com a polícia, roubos, armas, etc. Então, parto para outra analogia: se uma criança de 12 anos comete um crime, não é nada absurdo afirmar que ela foi conduzida ao fato. O estilo de vida capitalista, pautado pelo consumo, interfere na vida da criança que assiste o ladrão vestindo Nike – e obtendo sucesso social. Se nesse contexto, então, os fatores que levaram ao crime estão muito além da mera “maldade” O funk é um pedido de socorro, pois ele não está isolado da socie- da criança, o funkeiro não pode ser dade. Pelo contrário, a sociedade o produz. É possível encontrar os diretamente responsabilizado por sua cultura. Afinal, ele também está inserisintomas a partir desses reflexos e, então, encontrar a cura do num contexto. Se o funk legitima o cado na revista Novos Estudos número 94 – disponível onconsumo, é porque o Estado falhou em line pela Scielo e pelo site da revista -, as pixações surgem levar a cultura liberta do consumo. Se o funk transforma a como um modo de expressão intencionalmente perigoso mulher em um objeto sexual, é porque o Estado falhou em e transgressor, através das intervenções em lugares altos, afirmar a dignidade da mulher. por exemplo, a partir de uma cidade espacialmente e socialmente segregada. A violência e as condições de vida da Por que não se pode exigir que a própria favela crie esses população pobre e marginal, aliadas à falta de circulação valores? Porque ela não tem capacidade. Como estudanna cidade, são canalizadas por meio do objetivo de criar tes de filosofia, os leitores estão cientes da dificuldade uma marca pessoal espalhada pelos lugares mais inaces- em apreender ideias não inseridas no cotidiano. Então, síveis possíveis. Ou seja, o mérito é proporcional à quan- o debate sobre o funk está longe de solucionar o próprio tidade de pixações espalhadas – como reflexo da falta de funk. Estão sendo tratadas as consequências e não as oricirculação urbana – e à quantidade de risco e transgressão gens do problema. Se o funk é cultural ou não; se deve envolvida – como reflexo do cotidiano violento. Ora, se ser abraçado pelo Estado ou não, são questões que suro pixador tem vontade de criar uma identificação pessoal gem pelo conteúdo das canções. Defendo que seria mais incômoda a muitos cidadãos, o funkeiro também tem essa efetivo evitar que essas questões apareçam ao invés de vontade. Quero dizer, ambos vivem sob opressão, desmo- as responder. No limite, o debate é o mesmo sobre a reralização, descaracterização pessoal e sofrimento cotidia- dução da maioridade penal, por exemplo. Não se deve no. Portanto, o funkeiro também está atrás de criar uma perguntar a função do Estado e da sociedade diante de identificação transgressora e incômoda, para canalizar a um menor criminoso. Antes, deve-se impedir que o meviolência sofrida. Enquanto a elite pode criar essa identifi- nor cometa o crime. A discussão deve estar na prevenção.
sociedade. 12
porque é preciso lembrar?
memória, identidade e reconhecimento Monica Marques De acordo com o censo de 2000 as mulheres ultrapassaram os homens em termos numéricos no que se refere à obtenção do diploma universitário (52,8%). No entanto, por trás dessa pretensa igualdade numérica há ainda um hiato. Analisando os dados verificamos divisão por gênero entre as carreiras. As mulheres se concentram em áreas consideradas menos prestigiadas (pior remuneradas) e ditas femininas: magistério e cuidado com a saúde (psicologia, fisioterapia, enfermagem etc). Outro dado relevante é a representação política. Ainda que tenhamos uma presidenta (que é frequentemente insultada de vadia e alvo de diversas especulações sobre sua orientação sexual) e mais da metade dos formandos em nível universitário sejam mulheres, a participação feminina nos órgãos deliberativos dos governos é ínfima: no Senado contamos com 13%, no Congresso apenas 8,77% há maior participação política da mulher no Afeganistão e no Iraque, países considerados machistas e com alta instabilidade política, que no Brasil. No ritmo de crescimento atual, a perspectiva para o alcance da paridade política entre homens e mulheres no Brasil é de aproximadamente 150 anos. A ausência das mulheres na política, nos cargos de chefia e na pesquisa acadêmica em algumas áreas remete a uma ideia naturalista com suposta base biológica/psicológica, hoje já parcialmente ultrapassada pela academia, mas ainda muito presente na cultura, de que as mulheres tendem à emoção e à sensibilidade ao passo que os homens tendem à racionalidade e à política (deliberação) de tal forma que as profissões/atividades sejam determinadas a partir desses dons inatos. São tantos os filósofos que estudamos que compartilham tal ideia que é inútil enumerar. Nosso curso ainda expressa essa oposição. Inscreveram-se para o vestibular 579 homens e 204 mulheres. Proporção que se mantém entre os matriculados. Por mais que isso não reflita o cenário nacional como um todo, é o que se verifica nas principais universidades do país (USP, UERJ, UEM, etc). As reflexões que se seguem procuram compreender as discrepâncias apresentadas até aqui.
*** A identidade seja ela individual ou coletiva é formada a partir da memória. Esta por sua vez é composta por personagens, acontecimentos e lugares que se dão na história. A identidade de cada um, i. e., a imagem de si, para si e para os outros 1, assim como a de um povo, se constrói, portanto, por meio da identificação com personagens, acontecimentos e locais significativos presentes na memória, determinando comportamentos e atitudes dos indivíduos. A memória, contudo, não é fato, mas uma interpretação dos fatos. A memória coletiva é o palco em que se disputa o que deverá ser lembrado e a maneira que será lembrado, atribuindo um valor positivo ou negativo a essa memória. A atribuição do valor, que normalmente atende aos interesses de classes dominantes, irá produzir a visão que se tem de determinados grupos, elevando alguns, estigmatizando outros ou simplesmente esquecendo-os. No caso nacional, pode-se dizer que o Brasil sofre de um duplo esquecimento. Se no âmbito mundial já são pouco conhecidas personagens da luta feminista ou da resistência negra, menos são as do território nacional. Lembramos mais de personagens estrangeiros que de nossos próprios. Isso certamente dificulta a construção de uma política nacional séria (se isso ainda for possível em algum lugar), pois cria um afastamento entre a política e os brasileiros, e ainda mais as brasileiras. Mas essa é uma outra discussão que precisa ainda ser feita. Podemos nos lembrar dos negros negativamente como um povo que se rendeu e contribui a sua própria escravização (isso de acordo com algumas interpretações) e que por isso merece o seu destino, ou positivamente como um povo resistente que se organizou em qui-
1 Segundo Pollak, a identidade é constituída pela “imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros.” p. 5
sociedade. 13 lombos, foi protagonista de diversos levantes e movimentos sociais (o movimento negro unificado, p. ex., não consta em nenhum material didático, tampouco é lembrado pelos meios de comunicação). Sabemos mais sobre Nelson Mandela e Martin Luther King, do que sobre Lélia González e Abdias do Nascimento. Podemos nos lembrar do povo indígena como um povo preguiçoso (o que foi retirado recentemente dos livros didáticos) ou como um povo que simplesmente se recusa a escravização. A imagem feminina é algo de ambíguo. Habitam simultaneamente várias imagens, que se sobrepõem umas sobre as outras, sendo algumas negativas e positivas ao mesmo tempo. Desde uma imagem estigmatizada da mulher como objeto sexual a ser exposto e manipulado, passando pela valorosa imagem da “boa mulher”, grande cozinheira, grande mãe, trabalhadeira, que é ao mesmo tempo desvalorizada “como mulher que só serve pra isso”, até a mulher poderosa e sedutora (ora, valorizada pelo seu “dom”, ora classificada como “impura”). Mas, curiosamente, nenhuma imagem se refere à mulher enquanto agente político ou como pensadora. Mas será que não existiram? Serão inaptas? Assim como apagaram a resistência racial, apagaram-se da história a maioria das mulheres que, contrariando as privações a que eram submetidas (privações essas que se desenvolvem em cadeia nos âmbitos econômico, político e social), produziram conhecimento ou agiram politicamente em eventos históricos. Mesmo agora em que a mulher tem a possibilidade se formar na universidade (o que vem avançando muito no Brasil desde a década de 70), a quase ausência de figuras políticas femininas positivas na memória coletiva alimenta a tradição que priva a mulher da participação política, de uma série de atividades e determinam comportamentos e atitudes, sem que para isso seja necessária uma proibição expressa. Por isso se faz necessário resgatar o passado e criar uma nova imagem que permita o reconhecimento da mulher como igual. Nesse sentido, montamos a exposição sobre as mulheres na filosofia a fim de desmistificar o pensamento filosófico como atividade essencialmente masculina. Não se trata, contudo, de mostrar
que a mulher tem o seu valor de acordo com a regra opressora, colocando uma imagem de feminina em disputa com uma masculina a fim de sobrepujá-la ou ainda masculinizar a imagem feminina, dando a mulher os mesmos poderes de dominação que atualmente pertencem ao homem (preferencialmente hétero e branco). Trata-se antes de transfigurar os valores a fim de abrir novas possibilidades de realização a ambos os sexos, assim como de outros grupos excluídos, desconstruindo e construindo imagens. Se a indeterminação é de todo impossível, uma vez que não se pode ignorar o tempo histórico, podemos, ao menos, tornar as determinações mais maleáveis. Referências: Mais Mulheres na política. Projeto mais direitos mais poder. Realização: Ibope / Instituto Patrícia Galvão. Pollak, Michael. Memória e Identidade Social (conferência) in: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. Westin, Ricardo. “Mulheres ainda buscam espaço na política”, Jornal do Senado, Edição de 5 de março de 2013, Cidadania.
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mulheres na filosofia? faça as contas
Sally Haslanger Mariana Luppi e Maria Lívia Goes Desde a renúncia de Colin MGinn de seu cargo na Universidade de Miami, que seguiu-se de denúncias de assédio sexual contra uma estudante, o debate sobre os obstáculos para as mulheres na filosofia renovou-se. O New York Times publicou uma série de artigos de filósofas sobre o assunto em 2013, e agora um grupo de mulheres do curso está buscando traduzi-los para o Discurso sem Método.
(texto original: http://bit.ly/womenphilosophy) Muitos de nós já tivemos a experiência de sentar em um avião e ser perguntado pela pessoa na cadeira ao lado: “O que você faz?”
“Eu penso em filósofos como homens velhos com barbas, e você definitivamente não é assim. Você é muito jovem e atraente para ser uma filósofa”. Parei de responder “sou filósofa”.
tradução. 15 Os melhores dados que temos sugerem que em 2011 o número de professores titulares/efetivos de 51 programas de graduação raqnueados pelo Leiter Report incluíam apenas 21.9% de mulheres. O Digest of Education Statistics relata que em 2003 a porcentagem de mulheres em (posição) cargo de professora pós-secundário em tempo integral foi de meros 16.6% de um total de aproximadamente 13 mil filósofos É um momento de incerteza: o que dizer? Há riscos em responder “eu estudo filosofia”, porque seu vizinho pode começar a expor longamente a própria filosofia ou recordar quão desagradáveis foram sua as experiências quando cursou introdução à filosofia. (“nós lemos uns artigos malucos sobre ser sequestrado e algemado a um famoso violinista para mantê-lo vivo”). Uma vez um amigo meu recebeu a resposta entusiasmada, “Oh, você é filósofo? Diga-me alguns de seus pensamentos. No entanto, quando eu tentei a resposta de “eu sou filósofa”, isso causou risos. Quando eu perguntei o porquê da risada, a resposta foi, “eu penso em filósofos como homens velhos com barbas, e você definitivamente não é assim. Você é muito jovem e atraente para ser uma filósofa”. Tenho certeza que ele pretendeu que isso fosse um elogio. Mas eu parei de responder “sou filósofa”. Apesar de a maioria dos filósofos atualmente não ser de homens com barbas, a maioria dos filósofos profissionais é de homens; de fato, homens brancos. Foi surpreendente para todos que a quantidade de mulheres se doutorando em filosofia é menor do que a maioria das ciências físicas 1. Ainda em 2010 a filosofia tinha menos mulheres doutoras do que em matemática, química e economia. Note-se, porém, que desses campos a filosofia foi o que mais mostrou progresso nos últimos cinco anos. A quantidade de mulheres filósofas com cargos nas faculdades é bem mais difícil de determinar. Embora por décadas o Comitê sobre a situação das mulheres da Associação Americana de Filósofos (APA) tenha pressionado a associação para colher dados demográficos, ela falhou em obtê-los. Nós dependemos principalmente de esforços individuais para fazer as contas. Os melhores dados que temos sugerem que em 2011 o número de professores titulares/efetivos de 51 programas de graduação ranqueados pelo Leiter Report - o ranking mais amplamente usado para departamentos de filosofia anglófonos - incluíam apenas 21.9% de mulheres. Isso é potencialmente enganador, no entanto, uma vez que o Digest of Education Statistics relata que em 2003 (dados mais recentes compilados pela filosofia) a porcentagem de mulheres em (posição) cargo de professora pós-secundário em tempo integral foi de meros 16.6% de um total de aproximadamente 13 mil filósofos, em um ano em que 27.1% dos
1 http://bit.ly/tabeladoutorados
doutorados foram femininos. Logo saberemos mais, pois a APA (thankfully) felizmente começou a coletar dados demográficos. O número de filósofos negros, especialmente mulheres negras é ainda mais espantoso. Os números de 2003, que contaram 16.6% de instrutoras de filosofia em tempo integral, não incluem nenhuma mulher negra. Aparentemente havia dados insuficientes para qualquer grupo racial além das mulheres brancas aparecer. O comitê da APA sobre a situação dos filósofos negros reporta que atualmente nos EUA existem 156 negros na filosofia, incluindo doutorandos e PhDs em filosofia em posições acadêmicas; isso inclui o total de 55 mulheres, 31 das quais tinham cargo efetivo ou titular. Assumindo que ainda há 13 mil instrutores de filosofia em tempo integral nos EUA, a representação de acadêmicos negros é possivelmente pior do que em qualquer outro campo da academia, incluindo não só física, mas engenharia também. Indesculpável. Com esses números, você não precisa de assédio sexual ou racial para dificultar às mulheres e às minorias de ter sucesso, porque a alienação, a solidão, preconceitos implícitos, tratamento estereotipado, microagressão e discriminação direta farão o trabalho. Mas em um universo de números tão pequenos, assédio e agressão são mais fáceis. “Maus atores” são um problema, mas um problema mais profundo é o contexto que dá poder aos “maus atores”. Mudanças precisam acontecer em múltiplos fronts para progredirmos. Falta para a filosofia a infraestrutura que outras disciplinas têm para realizar mudanças sistemáticas. Nós não temos o financiamento ou a influência de algo como a Fundação Nacional de Ciências. Nós temos uma pequena comunidade de ativistas feministas e antirracistas, e algumas importantes mudanças na governança da APA - como o apontamento de uma nova diretora executiva, Amy Ferrer, que não só tem forte experiência com administração não-lucrativa, como também é da área de estudos femininos. O caso McGinn é um ponto crítico, não só porque afastou alguém com grande poder e influência, mas porque seu caso e a resposta a ele demonstram que o persistente ativismo dos últimos 20 anos está se tornando institucionalizado. Nós estamos ganhando espaço agora. Nós não vamos ceder, é só uma questão de tempo.
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por que protestar contra a
Copa do Mundo de 2014? Dimitrius Sacute Valentim Todos sabemos que vai ter Copa. Ela está marcada para começar no dia 12 de junho de 2014, quase um ano depois do dia em que a repressão da Polícia Militar de São Paulo a um ato chamado pelo Movimento Passe Livre pela revogação do aumento das tarifas desencadeou a maior mobilização de rua do Brasil depois da transição da ditadura empresarial-militar para nossa democracia. Era o dia 13 de junho de 2013. Lembremos que no dia 17, no 5º. Grande Ato contra o aumento, a torcida brasileira saiu às ruas. Alguns, como eu, já não entendiam mais nada: parecia que não era mais por 20 centavos. Por aqueles dias, uns diziam que um professor vale mais que o Neymar, outros queriam que o Hulk fosse cortado, outros pediam a volta dos militares e ainda outros pediam a volta de Felipe Melo à seleção. Também estava nas ruas a torcida pelos direitos sociais padrão FIFA, uma imensa torcida desorganizada pelo Brasil: parecia que o “país de todos” da propaganda oficial do milagroso “desenvolvimento econômico com distribuição” dos governos Lula e Dilma não era o “país que vai pra frente”, para recordar a canção dos militares na Copa de 1970. Estava nas ruas, cantando, a própria torcida que é “brasileira com muito orgulho e muito amor”, com suas bandeiras verde-amarelas e se protegendo da polícia com seus escudos da CBF. Estavam nas ruas bandeiras vermelhas, vermelhas e pretas, pretas, dos sem-terra, dos sem-teto e da juventude suspeitando-se sem-futuro; estavam nas ruas as bandeiras dos partidos, dos apartidários que não eram os antipartidários, que também estavam nas ruas; estavam lá mais bandeiras políticas do que haveria bandeirinhas de São João naquele junho. Todas as forças da conjuntura em campo... E, ao que parece, tudo teria terminado em 0 x 0 se o placar não tivesse sido, como foi na Cidade de São Paulo: Time misto dos Manifestantes R$ 0,20 x R$ 3,00 Time misto da Prefeitura, Governo do Estado e Máfia dos Transportes Assim, notamos, de lá pra cá, que a Copa, no geral, passou a ser encarada de três maneiras, relativas aos governos, aos empresários e aos manifestantes. Os governos têm investido como nunca em repressão, talvez se valendo da ocasião para garantir que outros junhos não virão, e é claro que o PT vê nos
megaeventos o corolário de seu projeto de desenvolvimento nacional. Os patrocinadores da FIFA, as emissoras de TV, o quase evidente cartel Andrade Gutierrez-Odebrecht-OAS-Camargo Correia 1, as empresas vendedoras de armamentos não letais & Cia. Ltda. estão ganhando de goleada. Manifestantes, por sua vez, continuaram a sair às ruas com uma única mensagem: Se não tiver direitos, Não Vai Ter Copa. Fenômeno curioso, ainda mais se pensarmos que a própria pauta dos atos não é decidida previamente, mas por enquetes de Facebook. Os governos (em todos os níveis) já deixaram claro que, no que depender deles, pode-se ter “menos democracia” para a boa realização do evento, como desejou o Secretário Geral da FIFA, Jérôme Valcke. R$ 1,5 bi foram investidos, das Guardas Civis Metropolitanas à Força Nacional de Segurança e, agora, inclusive, os Choques têm seu novo look ao estilo Robocop. A Lei 12.663/2012, conhecida como Lei Geral da Copa, prevê a criação de zonas de exclusão de um raio de 2 Km em torno dos estádios em dias de jogo e a Justiça de São Paulo, com sua conhecida agilidade, providenciará a nova era do fast judgement ou Ceprajud (Centro de Pronto Atendimento Judiciário), que encarcerará manifestantes em flagrante delito (de manifestar?) no mesmo ritmo da produção de fast food de um McDonald’s, que aliás estará autorizado a comercializar nas zonas de exclusão, ao contrário dos trabalhadores ambulantes. Já vimos que a PM de São Paulo vem se desenvolvendo com a aplicação de táticas como o “caldeirão de Hamburgo”, e aprimorando-se na contenção de protestos por meio da “tropa do braço”; além disso, sabemos que, no que depender do DEIC, ou melhor, do DEOPS, qualquer suposto subversivo será intimado a depôr nas horas dos atos marcados contra a Copa; além disso, no que depender do Ministério Público, Poder Judiciário, da PM, da Polícia Civil, do Governador Geraldo
1 Sobre isso, pode ser consultado o trabalho “Quem são os pro-
prietários do Brasil?”, realizado pelo grupo Mais Democracia. A referência ao cartel mencionado pode ser consultada no link: http://bit.ly/donosdorio
sociedade. 17 Alckmin & Cia., as únicas liberdades garantidas serão a de manifestação da brutalidade policial, a de organização e reunião dos agrupamentos de Choque, o direito de ir e vir a um Distrito Policial sem acusação formal, a liberdade de expressão em um fichamento ilegal das afiliações políticas, além da liberdade de credo, para que possam agir sem constrangimento os policiais que acreditem que haverá vandalismo. Passe ou não no Congresso a lei que reinventará o terrorismo dos subversivos no Brasil, no que depender dos governos, o terrorismo de Estado já se encontra modernizado. Os empresários, além do que já lucraram com gastos públicos mais ou menos obscuros e isenções fiscais para a construção de estádios, terão um pequeno incentivo fiscal de cerca de R$ 10 bi, conforme a Lei Geral da Copa. Afinal de contas, quem foi que falou que a Copa do Mundo do Brasil será para todos os brasileiros? Até onde se pode ter bom senso, seria perfeitamente possível ao governo realizar investimentos em infraestrutura sem que houvesse Copa. Talvez até sobrasse mais dinheiro.
Não faltam razões para lutar contra a Copa. Mas é preciso
que se reconheça a diversidade dos modos de luta Temos assim dois óbvios “legados” do mundial que vão na contramão do prometido com a “Copa das Copas”: o aperfeiçoamento de uma estrutura de contenção de movimentos sociais, por mado, veio para ficar. um lado, e o avanço no processo de mitigação do Estado O outro modelo é o dos Comitês Populares da Copa, brasileiro, tendo havido, aliás, privatizações justificadas que se articulam nas 12 cidades-sede desde 2011 junpelo torneio, além das isenções. to aos movimentos populares e entidades de base. Os Neste sentido, está em jogo um terceiro legado, que é o da Comitês se caracterizam por uma leitura estratégica do papel da luta política contra a Copa. Trata-se de luta popular. usá-la para projetar as pautas dos movimentos já exisTemos dois modelos de luta. O primeiro consiste na tentes que foram atingidos negativamente pela orgamobilização até certo ponto espontânea das pessoas nização do evento. Deste modo, colocam-se contra os nos atos chamados pelo que veio a ser conhecido despejos, os processos de higienização e gentrificacomo Não Vai Ter Copa. Até o presente momento eu ção, a proibição de trabalho aos ambulantes, a explonão saberia dizer quem começou a chamar tais atos ração de mulheres adultas, adolescentes ou crianças de rua de janeiro pra cá, sendo que algumas organi- por ocasião do turismo sexual que tende a se formar zações e partidos de esquerda, iniciado o processo, nesse tipo de evento. Os Comitês também trazem a tentam articulá-lo num coletivo. Ao que parece, tais pauta concreta pela revogação da Lei Geral da Copa atos têm semelhança com alguns que ocorreram nas e seu caráter de exceção ao Estado de Direito e fajornadas de junho: são chamados por redes sociais, vorecimento escuso ao capital privado. Além disso, produzindo-se uma unidade circunstancial em torno transformaram-se num importante espaço de articude uma dada palavra de ordem e um sentimento lação da luta pela desmilitarização da PM, que será a comum de urgência, nem sempre com pautas arbitragem entre a insatisfação popular e o governo. concretas, justamente porque tais mobilizações não Ademais, os Comitês podem ser um importante espadecorrem de movimentos sociais organizados. Parece ço de articulação da luta por uma auditoria popular que esse modelo de luta, nas proporções que tem to- da Dívida Pública, tendo em vista dar transparência,
sociedade. 18 dentre outras coisas, aos gastos com o mundial. Para dar esse sentido à luta, os Comitês se propuseram a fazer o beabá: Trabalho de base e formação, articulando-se, contudo, de modo horizontal em reuniões abertas aos diversos ativistas, não ignorando as boas lições de junho de 2013.
pressão, além de desgastar a pauta em torno da Copa com a opinião pública, inviabilizando um saldo positivo de lutas para depois dela. 31 de março – Ato da Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” 1 de abril – Ato do MTST “contra a ditadura”;
Portanto, não faltam razões para lutar contra a Copa. Mas é preciso que se reconheça a diversidade dos modos de luta. Se tudo der certo e esses dois modelos confluírem, o mundo vai ver uma nova ola, não nos estádios, mas tomando as ruas no próximo junho.
1 de abril – Cordão da Mentira – 50 anos do Golpe;
***
17 de abril – Reunião aberta do Comitê Popular da Copa SP;
Por fim, gostaria de recomendar o calendário central2 de atividades do Comitê Popula da Copa de São Paulo, uma vez que compartilho a visão consensual de seus membros de que o outro modelo de organização (ato após ato) pode servir, em alguma medida, para treinar as forças de re-
26 de abril – Marcha da Maconha: “Cultivar a liberdade para não colher a guerra”;
2 O CPC-SP participa todas as semanas de inúmeras atividades em articulação com os movimentos e entidades parceiros. Para contato, consultar seu manifesto, a formulação de suas pautas, saber dos movimentos e entidades de base que o compõem e apoiam, acesse: http://comitepopularsp.wordpress.com
3 de abril – Reunião aberta do Comitê Popular da Copa SP; 8 de abril – Jornada de lutas por moradia; 13 de abril – 2ª Copa Rebelde dos Movimentos Sociais;3
1 de maio – Encontro Nacional dxs Atingidxs por Megaeventos e Megaprojetos (BH); 15 de maio – Dia (Inter)Nacional de Luta contra a Copa, Megaeventos e Megaprojetos.
3 Da qual o CAF-USP participará.
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domínio de fato Lucas Paolo No momento em que a política volta radicalmente a individual. A grande estratégia atual - e que tem dado fabular o direito, o policiamento ideológico opera se- certo de maneira vertiginosa - é separar no mito a encarparando os mitos da plasticidade de sua força coletiva. nação individual e as potências coletivas. A política volta A política institucional bloqueia as forças de reatua- a fabular radicalmente o direito porque abre primeiro na lização da origem e isso é exatamente o que permite ideologia a força - nunca antes vista - de separar o indique o mito opere como encarnado apenas em sujeitos víduo das potências coletivas, e depois, legitimado por políticos, insensibilizando, à revelia desses, a base esse primeiro movimento, produz uma jurisprudência das potências coletivas. O mito é sempre uma instân- que opera separando a plasticidade do coletivo e a consciência individual. cia problemática entre sujeito e coletividade, Um projeto que totae o problema diretivo liza o estado de exdo mito é que se não ceção está em curso: intervimos nele, ele in1. o indivíduo não tervém em nós. O que mais se reconhece o policiamento ideolónas potências colegico tem operado com tivas, pois os mitos maestria nos últimos não são mais um esmeses (ou talvez desde paço problemático junho) é a retirada da do comum, mas no aura de nossos mitos. comum aquilo que Assim, uma origem inpermite o policiacerta que precisa semmento ideológico. O pre ser reatualizada é mito esvaziado da sedimentada e esvaziacoletividade virou a da e o mito passa a ser principal ferramenum operador fixo de ta de criminalização identificação dos sujeido autenticamente tos. Georges Sorel nos político. 2. O sujeito ajudaria muito a entencoincide com a rader como os Black Bloc cionalidade totalitá- que com suas táticas ria que não afasta o propunham uma nova mito, mas o esvazia plasticidade entre mito de suas potencialie violência - foram dades coletivas. Essa (com consentimento de racionalidade não muitos) desauratizacai no seu contrário, dos. A mídia, a polícia ela exclui seu contráe o Estado elegem tal rio, não diretamente significante como mito Um projeto que totaliza o estado de mas através do mito que esvaziado encarnado em suexceção está em curso ela mesma prometia exjeitos apartados da problepurgar. O nazismo não maticidade própria a plasticidade da violência. Isso completou seu projeto no século XX, pois enclaustrapermite identificar culpados sem precisar encarar a do na necessidade da identidade nacional precisava origem da culpa. A criminalização dos movimentos ainda articular mito e coletividade. Com o progressociais não é um aspecto do reordenamento jurídico, é sivo abandono das fronteiras nacionais em um capia estratégia própria para que se possa separar direito talismo imperial, o nazismo pode se totalizar: exclui e coletividade, legitimando no seio da democracia a do mito (aquilo que permite uma comunicação do operatividade própria a um estado de exceção. comum) a própria coletividade. O carnaval está comNão se pode fabricar um mito, mas se pode impedir que o pleto: cada um pode sair com sua fantasia, e o Estado mito seja uma mescla de potências coletivas e encarnação pode expurgar a fantasia do Outro.
crônica. 20
estação Sé do metrô Alex Pantoja Entre as portas emperradas e os botões secretos das estações, os vândalos de Alckmin compartilham pequenas histórias nos túneis do metrô que permeiam a cidade. Uma delas vem dessas máquinas que vendem livros nas plataformas dos trens. Alguém já as notou? É curioso. Um dia passei diante de uma dessas máquinas achando que era uma daquelas que expele chocolates e outras best...eiras do gênero. Mas, estupefato, percebi que lá onde deveria estar uma fileira de pacotes Ruffles, estava, na verdade, uma mini coluna do Exército Vermelho: um pequeno destacamento de uns quinze livros vermelhos, enfileirados e milimetricamente dispostos, ostentando na capa: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels. No dia seguinte, claro, já esperava por um Bakunin. Ele não iria deixar essa vanguarda vermelha ficar pela Sé pagando sozinha de revolucionária. Mas, na verdade, achava que apareceria mesmo mesmo é uma coluna da C.N.T espanhola, que não deixaria barato aquele destacamento do Exército Vermelho. Tinha certeza que, no mínimo, haveria uns vinte livretinhos do Bakunin ali, lado a lado, para fazer uma boa dialética. Mas eis que passo novamente pela mesma máquina da estação Sé e, porra! O que aconteceu? Estava cheio de Agapinho, do Marcelo Rossi, um monte deles. Quase uma procissão de beatas. Logo imaginei uma explicação para tudo isso: deve rolar uma guerrinha ideológica entre os funcionários responsáveis pelo abastecimento de livros nas máquinas. Em um dia, um certo sujeito vai lá e pega pesado: enche a máquina de Rousseau, Voltaire, Engels e Nietzsche. Até Schopenhauer já vi. Aposto até que abastece a máquina enquanto assobia “La Marseillaise” ou a “A Internacional”. Mas no dia seguinte, aquele outro carinha da mesma empresa dá o troco: no lugar do Rousseau coloca Marcelo Rossi. Tira o Voltaire e lança um cartão pré-pago de celular. Tem a manha de empurrar o Nietzsche lá pro fundo só para - doce ironia - colocar aquele livreto que ensina como ser feliz com 10 reais e dez filhos. E não menos tenso é o fato de que os vândalos do metrô, digo, os usuários, ficam expostos a um destino sortido. Quem terá passado pela máquina naquele dia? Uma vez um carinha na minha frente, dois conto na mão, nota novinha em folha, titubeou entre o Como prevenir
Qual foi o contrato que ele nunca assinou mas que continua pagando a multa contratual até hoje? doenças e viver feliz e o Kama Sutra simplificado. Apostei com o outro vândalo que me acompanhava, Marcelo Guimarães Martins, que não daria outra. Aqueles dois conto na mão, segurados daquele jeito e com o carinha já meio decrépito, seria tiro certeiro: Como prevenir doenças e viver feliz. Meus vinte centavos - e eram só os vinte centavos mesmo - já estavam empenhados. Mas não é que o neguinho escolheu o Contrato Social? E depois que a máquina expeliu o livretinho, ainda saiu todo serelepe folheando as páginas de papel jornal e querendo sacar qual foi o contrato que ele nunca assinou mas que continua pagando a multa contratual até hoje. Estou pensando em entrar em contato com o SAC para que seja obrigatória a exposição da escala de funcionários do dia. Assim não haverá surpresa sobre o que teremos pela frente. Vai que um dia desses essa porra de metrô para de funcionar do nada ou o sistema de ventilação é desligado. Ou então, sei lá, a porta trava ou algum maluco aperta o botão secreto da estação e tudo para? Tipo só pra sabotar mesmo, sabe? Já pensou se isso acontece? O que vou ter para ler nesse dia?
crônica. 21
a crise do transporte na Omniversidade de
São Paulo Leandro Lemuria
Os circulares na Omniversidade de São Paulo têm estado cada vez mais lotados, os únicos horários em que é possível pegar um ônibus vazio, são os horários da madrugada. Mas como de madrugada os circulares são extremamente escassos, às vezes demorando mais de uma hora para passar, prefiro voltar para casa a pé. Outro dia estava voltando para casa de madrugada a pé e, ao chegar no P1, o portãozinho de pedestre que fica na calçada estava fechado com uma corrente. Um guarda omniversitário pediu para eu atravessar a rua e sair pela meio da guarita. “Tá zuado esse portão”, me disse ele num tom imponente e ao mesmo tempo meio de escárnio, parecia estar me julgando pois deve ter percebido o estado em que eu me encontrava. A hora em que estava atravessando a rua, vi que o guarda estava retirando um cone, quando olhei para trás, vi que estava vindo um circular numa velocidade muito alta, de madrugada os motoristas de ônibus costumam sentar o pé no acelerador. Rapidamente o ônibus estava vindo em minha direção e, eu, devido ao meu estado fiquei em dúvida se eu corria para esquerda ou para a direita, corri um pouco para direita mas depois mudei de ideia e corri para a esquerda. Escapei do ônibus por um triz, senti o vento do ônibus passando no meu ombro intensamente. O guarda olhou assustado para mim pois viu a situação, mas não falou nada.
mas não havia nenhum corpo lá, mesmo assim a sensação ruim de ter sido atropelado e estar morto não passou. Havia algo muito estranho, a rua estava deserta, ainda sentia aquela sensação ruim de morte mas continuei andando mesmo assim. Lembrei do impacto do ônibus em meu ombro, aquele que supostamente não havia ocorrido, ou será que havia? Comecei a olhar para meu corpo enquanto andava e comecei a me questionar se eu estava sonhando. Às vezes, durante meus sonhos, eu percebo que estou sonhando, mas quando isso acontece, fico em dúvida se estou sonhando mesmo ou se estou acordado. Ao olhar para meu corpo andando me indaguei “será que esse é meu corpo mesmo, ou é meu corpo de sonho?” Andei mais um pouco e vi uns pedreiros trabalhando numa obra na rua, um deles olhou para mim, desejei “boa noite” para ele e ele me respondeu com cara de tacho pois ele estava trabalhando e eu estava andando naquele estado. Bom, como ele me respondeu, ficou claro para mim que eu não havia morrido, mas ainda estava em dúvida se eu estava sonhando ou não. E esse também é um motivo pelo qual eu prefiro voltar para casa a pé de madrugada ao invés de esperar o circular.
Saí do campus e continuei andando na rua quando me veio uma sensação horrível, comecei a imaginar o ônibus batendo naquela velocidade em meu ombro, e comecei a imaginar como seria a sensação de sentir a pancada, a sensação dos meus ossos quebrando e do meu corpo caindo no chão inconsciente e, essa situação começou a aparecer muito viva na minha mente, como se tivesse realmente acontecido. Comecei a pensar que talvez eu tivesse sido realmente atropelado e estava morto andando como um espírito, olhei para trás para ver se meu corpo estava lá estraçalhado no chão onde passou o ônibus,
Escapei do ônibus por um triz, senti o vento do ônibus passando no meu ombro intensamente
resenha. 22
a caça Gabriel Bichir This is the way the world ends This is the way the world ends This is the way the world ends Not with a bang but a whimper. (T.S Eliot) Poucos filmes ilustram tão bem os dizeres de T.S Eliot como A Caça, do dinamarquês Thomas Vinterberg. Lucas (Mads Mikkelsen) é um assistente no jardim da infância injustamente acusado de pedofilia por uma menina com sérios problemas edípicos, Klara, que, deparada com a impossibilidade de amar Lucas, decide (ainda que inconscientemente) destruí-lo. Trata-se de uma menina introspectiva e solitária, negligenciada pelos pais e pelo irmão adolescente. Para escapar às discussões e problemas da família, ela recorre a Lucas como um apoio emocional, um pai postiço e presente como nunca tivera. O filme é o próprio retrato da catástrofe que se abate sobre a vida do protagonista. De uma pequena fagulha, a história fictícia contada pela menina à diretora, sucedem-se episódios cada vez mais desesperadores, que chocam o espectador por seu caráter absurdo e ao mesmo tempo extremamente verossímil. Aquele pequeno vilarejo na Dinamarca, mantendo sua singularidade, faz apelo a um universal que transcende toda circunscrição espacial: poderíamos imaginar a mesma situação desenrolando-se em qualquer grande metrópole. Toda sociedade cria seus fantasmas, eis o que nos diz Vinterberg. O pedófilo é uma dessas figuras emblemáticas, características de nossa época, uma das tais “partes malditas”, para utilizar a expressão de Bataille. Estas assumem diferentes feições ao longo da história; passando dos loucos para os homossexuais e incontáveis tipos de “perversos”, o que se nota é que a postulação de um Outro surge invariavelmente como efeito colateral de dada ordem social. Sigamos Baudrillard: Pois o verdadeiro problema, o único problema é: para onde foi o Mal? Para toda a parte; a anamorfose das formas contemporâneas do Mal é infinita. Numa sociedade em que, à força de profilaxia, de extinção das referências naturais, de embranquecimento da violência, de exterminação dos germes e de todas as partes malditas, de cirurgia estética do negativo, só se quer tratar com a gestão calculada e com o discurso do Bem, numa sociedade em que já não há possibilidade de enunciar o Mal, este metamorfoseou-se em todas as formas virais e terroristas que nos obsessionam. 1 O pedófilo é o perverso por excelência de nossa época, a pura
1 BAUDRILLARD, Jean. A transparência do Mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990.
encarnação desse Mal que sequer pode ser enunciado. Ele é o responsável por privar a criança de sua inocência, pureza; ele a violenta, a corrompe, ousa atacar o que há de mais sagrado nos direitos humanos: a preservação da infância. A resposta a esse (suposto) ataque jamais poderia ser racional: os habitantes da pacata cidade perseguem e isolam Lucas, privam-no de qualquer contato social, envolvem sua família e tratam-no a socos e pontapés. Enquanto o protagonista permanece impassível em sua convicção, a bestialidade do lado oposto aumenta de tal forma que, em um movimento análogo ao Senhor das Moscas, ele se torna a caça daqueles que um dia foram seus amigos. Ora, continuaria um pedófilo a aparecer normalmente no supermercado após abusar de uma criança? Iria à igreja em plena noite de natal? Permaneceria na cidade para tentar reestabelecer sua vida? Mas de que valem tais questionamentos, dado que o “pedófilo” está além de qualquer salvação? Ele é a caça e assim deve permanecer. No fim, a aparência de conciliação traz em si mesma a impossibilidade de redenção. O que resta de fato, muito mais do que a dor, é o ressentimento. Há algo de inominável no ódio sentido pelos cidadãos contra o pobre assistente: mesmo após suas crianças contarem histórias de abuso em um porão que jamais existira, eles persistem vigorosamente em sua caçada. Entendamos bem, não é Lucas que eles querem, não é ele quem caçam. O que buscam é algo vazio, o “lugar-pedófilo”, aquela função que deve ser ocupada pelo Mal, não importa exatamente sob qual forma. E nesse vazio encontram apenas seus próprios medos, em um movimento de projeção que não é e nem poderia ser plenamente individualizado, já que o pedófilo é, antes de tudo, um espectro, fugidio como a mais enganadora das presas. Não se trata em momento algum de condenar a população por agir de maneira violenta, ou de denunciar a irracionalidade do coletivo enfurecido. O mérito do filme é justamente questionar esse fundo social que gera sua própria parte maldita, como se houvesse um elemento de necessidade em todo o episódio. E é na personagem da diretora da escola que se encarna esse fatalismo, justamente quando ela chama um suposto psicólogo para fazer perguntas à menina. Não importa que Klara negue tudo o que dissera anteriormente logo no começo do interrogatório, nem que diga que só quer “sair para brincar”, o psicólogo insiste em uma pergunta de sim ou não: “foi aqui na escola que aconteceu?”. Após o consentimento hesitante da menina, nada mais havia a ser feito, Lucas já estava condenado e todo o resto se seguiria naturalmente como que por associações mágicas, sem qualquer tipo de evidência. E é assim, como um gemido, que acaba o mundo.
aeroacadêmico. 23
a nudez castigada do
sujeito masculino:
lancinho do tempo histórico Caio Sarack A reflexão vem pulsante, assim como a força explosiva que nos espreita na vida. Alguns autores dirão que Turma do Pagode é exemplo de diluição (verve poundiana), mas cá venho mostrar “que Lancinho”, produção agora de 2012, recente, mas não menos colada à realidade, é uma denúncia - de inspiração foucaultiana - do fim de uma epistème.
que sofre com os grilhões que ele próprio aprisionou o feminino. Veremos, neste que é o último passo do artigo proposto:
Já no início vemos agonizar o sujeito masculino. A vogal em repetição vem com a força de um simulacro, sem conformação ou fundamento, sem um Modelo. A vogal “u” nunca mostrou tanta vida. Ainda assim o sujeito com seu gênero explícito, desnudo (num termo perovazcaminiano: com sua vergonha à mostra) tenta reagir ao combate, ele não quer se igualar, não quer viver as dores da reificação de gênero que sofreu e sofre o feminino.
O sujeito sugere uma subversão por parte do alter-ego. O Outro-Eu assume uma negatividade que denuncia a tensão que tentamos aqui explorar. O que é proibido, sujeito macho nu? Não tem resposta que satisfaça o inquisidor, posto que não há, desta vez, um inquisidor por direito (lê-se usurpação). O nosso sujeito-réu tenta mais uma vez: “eu que sou culpado, eu que sou bandido?”, desvela-se um argumento (não um julgamento), não há delito menor que este, conservar a potência, que continua a criar na obscuridade, na madrugada ainda existe o lancinho para se desvelar:
“Você sempre quis alguém que pudesse te fazer feliz”, impõe o sujeito masculino e ainda vocifera: “e esse alguém sou eu, precisa saber” (Pagode 1, 0:36). O Eu mais uma vez se afirma, quer a si mesmo forte. A atrofia do seu sujeito não é aceita, o potencial fascista de impotência de sua autodeterminação. Mas então ele se vê estanque no mundo, cavoca com os pés seu abismo: a mulher1 tem um companheiro na vida. O Eu em questão quer justificar seu posto reificado, reluta, mais uma vez: agoniza. “Se ele não liga nem pra desejar um boa noite ou saber como está, por isso me liga querendo me ver” (idem ibidem, 0:52). Veja, caro leitor, ele quer ainda uma vez mais ter certeza que sua nudez não será castigada, no entanto se perde na síntese temporal do desejo e desvela a tensão: “E eu paro tudo pra estar com você, preciso te dizer: quero você” (id ib, 1:01-1:09), vemos aqui que o sujeito flexiona ao mesmo tempo um verbo de submissão e outro que põe diante de si (vorstellen) o sujeito/objeto2 feminino.3 Agora, leitor que persiste, temos uma via não de mão-dupla, mas múltipla em suas mãos, depois da tensão acima exposta, explodem problemas dessa reificação do sujeito masculino,
1 Veremos como o sujeito feminino se afirma como alteridade, mas não negativa e sim positiva necessariamente.
“Namora, mas adora um proibido. E eu que sou o culpado, eu que sou bandido? Prefere um romance escondido, sai na madrugada pra dar lancinho comigo.” (Pagode 1, 1:10-1:20)
Pois há uma grande diferença entre destruir para conservar e perpetuar a ordem restabelecida. (...) Levantar um fantasma – a mais inocente de todas as destruições” (Deleuze 5, p. 271) Podemos facilmente dizer que não mais o platonismo, mas a mais inocente das destruições é hoje a do sujeito masculino que a tudo e a todos reifica, bom saber que esta é uma “força explosiva interna que a vida traz em si”(Deleuze 6, p. 57 da ed 2006). Djibuti, 30 de junho de 2012. Löwy Fidelix, por um aeropensamento. Bibliografia 1. PAGODE, Turma do. “Lancinho”, 2012. DVD Ao Vivo CrediCard Hall. 2. EXALTASAMBA. “Se eu ganho um beijo seu”, 25 anos de Exalta. 2010. 3 MOLEQUE, Jeito. “Sobrenatural”, 2007. 4. FOUCAULT, Michel. Histoire de la Sexualité: La volonté de
2 A tensão emerge à superfície com pathos. savoir, Paris, 1976. 3 Podemos notar isto em outras produções contemporâneas da
poética turmapagodiana: “Se eu ganho um beijo seu eu vou até o céu”(Exaltasamba 2), a tensão dos dois verbos mais uma vez se nota. Outro exemplo, agora um pouco anterior, é “Vi a alegria voltar quando recebi um telegrama: você dizendo pra te esperar, que não demora e que ainda me ama” (Moleque 3), aqui se vê um desequilíbrio, o pêndulo parece ter parado em uma das extremidades porque o centro deste sistema descentrado foi deslocado e neste instante causou efeito.
5. DELEUZE, Gilles. Logique du sens, Paris, 1969. 6. ____________. La conception de la difference chez Bergson. In: DELEUZE, Gilles. L’lle deserte et autres textes: textes et entretiens (1953-1974).Paris: Les Éditions de Minuit, 2002. 7. PLATÃO, República, 400a.C.
conto. 24
Bricolagem I – X eminente professorx de filosofia descobre-se mortal como Sócrates André Braga X eminente professorx de filosofia encontrava-se sentado numa larga poltrona, num quarto de dormir; e era um crepúsculo magnífico, que deixava entrar pela janela o ar putrefato do rio. Elx olhava mudo para o céu, que se tornava cada vez mais azul, as sombras violeta do vale, as cristas ainda imersas no sol. A faculdade estava distante, não se avistava mais sequer o seu relógio. Devia ser um crepúsculo de felicidade, mesmo para os homens de uma sorte mediana. X eminente professorx de filosofia pensou na cidade de tarde, os doces anseios da nova estação, jovens casais nas marginais ao longo do rio... Todos, de um modo ou de outro, tinham algum motivo, ainda que mínimo, para esperar, em tráfego, todos menos ele. Embaixo, na sala, um homem depois dois juntos puseram-se a cantar uma espécie de canção popular de amor. No alto do céu, lá onde o azul era profundo, embora não se pudesse ver naquela cidade, brilhavam três ou quatro estrelas. X eminente professorx de filosofia estava sozinho no quarto, nos cantos e embaixo do móveis acumulavam-se sombras suspeitas. X eminente professorx de filosofia por um instante pareceu não resistir (ninguém afinal x via, ninguém saberia que estava vivo), mas X Eminente Professorx de Filosofia por um instante sentiu que o duro fardo de seu íntimo estava para romper em pranto. Foi aí então que dos fundos recessos surgiu, límpido e tremulante, um novo pensamento: a morte. X eminente professorx de filosofia via que estava morrendo, e o desespero não x largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo. O exemplo do silogismo que elx aprendera na Lógica de Aristóteles: Sócrates é um homem, os homens são mortais, logo Sócrates é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Sócrates, mas de modo algum em relação a elx. Tratava-se
de Sócrates-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas elx não era Sócrates, não era um homem em geral, sempre fora um ser completa e absolutamente distinto dos demais. E Sócrates é realmente mortal, e está certo que ele morra, mas quanto a mim, Eminente Professorx de Filosofia, com todos os meus artigos e publicações, aí o caso é bem outro. E não pode ser que eu tenha de morrer. Seria demasiadamente terrível. Era assim que elx sentia. “Se eu tivesse que morrer, que nem Sócrates, bem que eu o saberia, a minha voz interior haveria de dizê-lo, mas nada disso ocorreu em mim; tanto eu como todos xs mxxxs amigxs compreendemos que isso é bem diferente do que sucedeu a Sócrates. E eis o que acontece agora! – dizia em seu íntimo –, não pode ser. Não pode ser, mas é.” Mas x eminente professorx de filosofia, a partir do momento em que a filosofia passou a lhe dizer respeito, não queria mais saber de filosofia. Suas preocupações não x deixavam dormir e estava com vontade de pensar em literatura, pois elx tinha tão poucas oportunidades, em geral pensava apenas em filosofia, só conhecia pessoas que se interessavam exclusivamente por filosofia. E àquela altura x eminente professorx de filosofia lembrou-se de uma frase que seu tio, literato fracassado, sempre lhe dizia, e proferiu-a em voz alta. Disse: a filosofia parece só tratar da verdade, mas talvez só diga fantasias, e a literatura parece só tratar de fantasias, mas talvez diga a verdade. E x eminente professorx de filosofia sorriu e pensou que parecia uma bela definição para as duas disciplinas. E, pensando nisso, dormiu. Quando x eminente professorx de filosofia despertou, na manhã seguinte, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie asquerosa de animal improdutivo, uma mula humana, incapaz de reproduzir espécie viva em forma de artigos acadêmicos. Logo agora que o departamento atingiu o nível
conto. 25
Quando x eminente professorx de filosofia despertou, na manhã seguinte, de um sonho agitado, viu que se transformara numa espécie asquerosa de animal improdutivo, incapaz de reproduzir espécie viva em forma de artigos acadêmicos sete na Capes, pensou. É que, dos extremos confins, elx sentia avançar para cima de si uma sombra progressiva e concêntrica: seria talvez questão de horas, talvez de semanas ou de meses; mas até os meses e as semanas são pouca coisa quando nos separam da morte. A vida então virara uma espécie de brincadeira, totalmente avessa aos seus ideias de produtividade. “Coragem, eminente professorx de filosofia, esta é a última publicação, vá ao encontro da morte como um professor de filosofia, e que o seu perfil no Lattes pelo menos termine de forma digna. Vingado finalmente da sorte, ninguém cantará seus louvores, ninguém o chamará de herói ou de qualquer coisa semelhante, mas justamente por isso vale a pena. Ultrapasse com pés firmes o limite da sombra, aprumado como para uma conferência, e sorria, se conseguir”. Isso x eminente professorx de filosofia dizia a si
mesmo, sentindo apertar à sua volta o círculo conclusivo da vida. E do amargo poço das publicações apenas rascunhadas, dos cargos não alcançados, das desfeitas sofridas, subia uma força que ele nunca teria ousado esperar. Com inexprimível alegria, x eminente professorx de filosofia percebeu, de repente, estar absolutamente tranquilx, ansiosx quase por recomeçar a provação. Coragem, eminente professorx de filosofia! E elx experimentou fazer força, manter-se firme, brincar com o pensamento terrível. Pôs nisso todo o seu ânimo, num ímpeto desesperado, como se, sozinhx, professasse uma conferência no Collège de France. E, subitamente, os antigos terrores caíram por terra, os pesadelos afrouxaram-se, a morte perdeu seu vulto enregelante, transformando-se em coisa simples e de acordo com a natureza. X eminente professorx de filosofia, consumido pela doença e pelos anos, pobre funcionárix públicx, forçou o imenso portal...
conto. 26
recording eye Arnaldo Pagano Vale do Silício, 14 de outubro de um ano não muito distante.
- Isso é algum tipo de brincadeira?
- E então, o que me diz? Gostou? Conseguimos lançar ainda neste Natal?
- Não brincaria com isso. Olhe bem aqui – apontou para os olhos – e veja.
- Não estou entendendo, Howard. Onde está o produto?
- Lentes de contato? Esse é o produto revolucionário que lançaremos neste Natal? Acho melhor você dizer que isso é mesmo uma brincadeira.
- Bem na sua frente, Stephen.
- Entendo essa sua reação. Deveria estar esperando um novo tipo de smartphone, ou algum tablet diferente. Nossos padrões de consumo ainda estão baseados na velha distinção entre ser humano e produto. Stephen continuou com a cara de que não estava entendendo nada. E de fato não estava. Howard se levantou e pegou um leitor biométrico ligado a um cabo USB. Conectou o cabo ao notebook e imprimiu sua digital ao leitor. Em seguida, abriu um programa. Olhou no relógio e preencheu um horário em um campo. Uma tela se abriu. Para surpresa de Stephen, era ele quem aparecia no vídeo. - Entende agora? - Você estava me filmando. Stephen começou a olhar ao redor à procura de alguma câmera. - Não adianta procurar. Olhe o vídeo com atenção. Você vai descobrir. Stephen atentou-se ao vídeo. De repente, ficou boquiaberto. - Esses momentos em que a tela fica toda preta…
A ideia é que o Recording Eye vire seja implantado em todos nós e em
- Isso mesmo. Ainda é uma falha nossa. Eu pisco. Todo mundo pisca. É verdade que é lei em poucos anos e uma fração de segundo, mas é uma fração de cada bebê que nascer segundo que perdemos na gravação.
conto. 27 - Não pode ser. - Por enquanto chamamos de Recording Eye. Mas talvez, com a sua ajuda, principalmente, possamos achar um nome mais forte no mercado. - Quer dizer que você tem uma câmera nos olhos? - Quase isso. Meus olhos são uma câmera. Mas você disse bem: olhos. No plural. A captação da visão periférica é fantástica, não acha? Infelizmente ainda não conseguimos tirar o nariz das imagens. Mas ele pouco atrapalha. - Como é possível? - 20 anos de estudos e pesquisas. Os melhores desenvolvedores do mercado. Investimento de 50 trilhões de dólares. Eu acho, sinceramente, que a gente pode ainda mais. - Alguém já está usando? - A Casa Branca fez uma solicitação. O alto escalão do FBI já está com o produto em mãos.
exibido, que não esteja registrado. Tudo o que o homem vir será registrado. Ninguém fará mais nada que não será visto. Mesmo que ninguém veja o que você está fazendo, seus olhos estão registrando tudo. Não há escapatória. A Casa Branca não está com o produto em mãos à toa. A ideia é que o Recording Eye vire lei em poucos anos e seja implantado em todos nós e em cada bebê que nascer. - Meu Deus. Chegamos ao momento em que toda ação humana será gravada. Por diversos ângulos. Pelo ângulo de quem age. Isso é assustador.
- Para a polícia isso é incrível. - Não é para a polícia. Nem para o governo. É para todos. Todos. É claro que não conseguiremos para este Natal, mas em breve o objetivo será atingido. - Os brasileiros? - Não, nosso mercado consumidor é muito mais amplo. É o mundo inteiro. Não vê que estamos fazendo uma verdadeira revolução? Mudaremos drasticamente a forma de viver. Não haverá nada no mundo que escape, que não possa ser visto mais de uma vez, que não possa ser
- Não é nada assustador. Caminhamos para isso há tempos. Já filmávamos praticamente tudo lá pelo ano de 2013, ou até antes disso, se não me falha a memória. O homem e a câmera já eram um só. Faltavam apenas alguns ajustes. Stephen parecia não acreditar. Coçava a cabeça e olhava para um vaso ao lado da mesa de Howard, pensando que imagem mais sem graça estaria registrando naquele momento. Em seguida, pensou que teria que acabar com seu hábito de beber no trabalho. Depois, começou a rir discretamente, já que poderia mostrar à sua mulher a cara que ela fazia quando gozava. Mas mudou de expressão rapidamente ao constatar que sua mulher poderia saber que ele a traía. E ele poderia quem sabe ver as imagens de outro homem sobre ela. Gozando. Repentinamente, outro pensamento lhe veio à mente. - Howard, lembrei de algo importante. - Sim? - Ninguém pode saber que estive aqui. Nosso encontro é totalmente sigiloso. Há milhões de dólares em jogo. - Stephen, meu caro. Eu não posso mais fechar os olhos para isso.
conto. 28
consequência do dia Y.K. A1. O terreno desconhecido ao qual tantos já investigaram, ganha nome forma e ciência. Seu desconhecimento transforma-se a cada passo do andarilho, porém, seu conhecimento afirma-se enquanto este continuar de pé. A sombra das nuvens que se associam em ideias condensadas opera a solução para o calor. O braço vergado ao horizonte, o passo lento e a estrada lateral. Investiga a via pública anonimamente, percorre a sua obra comentando com suas pegadas. Não existem lembranças em seu rosto. A hesitação herdada de sujeito, agora não passa de Posterioridade que cobra conceitos em troca de crenças, negando objeto, sobrando apenas seus a desistência como um critério das possibilidades, estendendo-se o sentidos inatos por de traz da suficiente para construir uma teoria do imediato pintura de gente. Sussurra algo acerca de sede, inspeciona os A cabine ampla do veículo oferecia uma perspectiva inbolsos e reclama que não cocomum. Da memória opaca o andarilho tentava resgatar nhece o mundo. Ate onde a realidade alcança? Além dos alguma lembrança, um gosto de virtude. Compôs as anexemplos cognoscíveis existe a razão dos animais, a busca por milagres, o divino e particular futuro. Onde perderam tigas impressões junto às novas; concluiu que as cores e costuras não mais importam. os princípios das paixões? Em oposição à inércia de exclusão de questões, vira às costas a procura de algum veículo amigo. Alguns ao longe se encaminham... Mas o transpassam como se esquecessem de que é um homem. Está desprendido do rigor e da exatidão. Volta a caminhar com eloquência, vencido pelo discurso adulterado de sua aparência. Existem muitas superstições populares que ultrapassam sua capacidade de verdade, assuntos remotos e obscuros que fazem fronteira em mentes que operam a desordem. Esta fora de alcance entender a abrangência de tal causa, por isso, experimenta e institui seus próprios limites, como manter o braço em prontidão enquanto segue o vento, afinal, existe a possibilidade dos conceitos primitivos, aqueles dos quais partem as justificativas das crenças. O terreno desconhecido. A2.
O homem que pilotava não falava há algum tempo, silêncio que convida a imaginação a se perguntar se incomoda. - Posso fumar? Perguntou. Um “à vontade” vívido lhe permitiu. Do bolso sacou dois cigarros e ofereceu um ao motorista. Este negou. Encarou a chama da ponta do cigarro, tragou e ouviu a pergunta. “pra onde vai?” Pergunta rotineira, resposta rotineira. Contradição. Ideias que fundidas concebem o não visto, o olhar para os sentidos internos, externos. Critério da experiência. Comparou os lugares, os materiais e a falsa intensidade. A verdade é que não havia desejo em particular, obscuro talvez. As costumeiras justificativas tradicionais.
conto. 29 - O que podemos conhecer? Escapou-lhe o impulso das letras. - Podemos acreditar no que conhecemos? Continuou a língua distraída. E antes que acabasse aquecendo demais os músculos, o caminhoneiro teoriza. “Não sei senhor! Suspendo-me pelo mundo sem fim. Não lembro quando comecei. Melhorei, aprendi e corrigi meus erros, mas ainda não acredito.” Abaixou o vidro, soprou a fumaça pra fora. Como se comprova e sustenta a complexidade? Garantias que exigem fé, onde as conclusões sustentam a si mesmas. Posterioridade que cobra conceitos em troca de crenças, negando a desistência como um critério das possibilidades, estendendo-se o suficiente para construir uma teoria do imediato. A3. O cascalho rangia de um modo peculiar. No pasto ralo e corrompido por detritos, toda a vegetação derivava de ervas daninhas e pragas verdejantes, mato que impossibilitava a oportunidade do solo cultivar sua natureza inata, seja ela qual fosse. Já o herbívoro sonolento que ali pastava pouco se importava com tal distinção, remetia os olhos ao infinito, marcava como única cada mordida ruminante e, usando de nenhuma imaginação compartilhava a sombra com o andarilho. Internamente o cansaço que o fizera sentar ainda mantinha sua cadeia de comando. A percepção sincronizava com as consequências de tantos dias sem comer, o que lhe fazia se aproximar de ter certas ideias. Proviam em deriva algumas cogitações, nenhuma agradável, em geral todas culminavam na palavra “querer”. Planejamentos complexos e confusos se diluíam ou flutuavam para longe. “eu quero”. Correspondia muito bem ao instinto que apertava a empunhadura da faca. A tríade apreendida na experiência lhe dizia que eram precisos três termos para se sustentar no vazio. Uma boa bota para calçar, água para matar a sede e uma faca para proteger a vida. Cada um significava uma conexão de ruptura. Absteve-se do alimento por afirmar sua negação de possuir uma necessidade, justificou ser crível que era melhor seguir sem roubar do que deixar de seguir. O óbvio se propôs sem qualquer dúvida razoável. Aceitar um resultado nulo em uma situação de contra balanço é um caminho não apenas provável, mas certo que com o tempo a sustentação de tal posição se mostrará além de qualquer conhecimento ou vontade, inferior em frente ao princípio de subsistência. Refletiu. Sua anterior irreflexiva cobrou o preço. Levantou. Andou de maneira assimétrica até o animal domesticado ou apenas composto de um nível embasado de dependência. Algo é certo para dizer que em princípio houve objetividade, delineou-se uma transitiva intransitiva de alto enunciação em certas condições que se sabe que sabe. O último envolve todos os anteriores, nos negativos, o último envolve todos os anteriores. Os 13 passos. A4.
Pensamentos que surgem e se sucedem uns aos outros, todos quebram sua rotina e nenhum faz parte de qualquer sequência. O andarilho estava deposto abaixo de uma camada de papelão, coeso em sua linha de frio e umidade, reconhecido pela febre e pelos calafrios regulares. Gotas indeterminadas atingiam-lhe o corpo, respondia a elas com uma linguagem de ideias complexas sussurradas, nas quais, o seguinte diálogo se segue: - Contiguidade, tem efeito de tempo... Meu espaço, meu espaço... O que disse? - Não filho, essa abrangência tá errada, imagine uma conexão de ideias. - Exato, tem que ter regularidade, o mais geral possível... Parou um momento para se relacionar com o roedor curioso que observava a conversa. Semelhantes o seguiram, uma ninhada. Intuiu que se sustentavam da ciência dos restos. - Restos. Restos. A claridade lentamente retomou os seus olhos, levantou-se o possível, mas não o suficiente e voltou a deitar-se sobre o chão encharcado. Permitiu que a chuva fina especula-se sobre teu rosto pontuando lhe o semblante, respirou fundo e resolveu explorar o ímpeto de se erguer mesmo sobre o equívoco das forças. Houve correspondência a tal concessão, e de modo mais simples do que pensará; após a conquista estruturou a postura em defesa de algo próximo a uma aproximação de passos, associou-os em dependência mutua uns dos outros e prosseguiu. O beco no qual se encontrava se relacionava muito bem com o entulho, com evidências de vidro, demonstrações de madeira, papel, metal, barro e lodo. O caos da vida urbana inconcebível. Procurou aos bolsos por cigarros subjetivos, operação que independeu completamente da realidade e resultou em uma lembrança. Tinha a impressão que sangrava; levou a mão à parte de traz da cabeça e comprovou que o fato dispensa qualquer dúvida, o inchaço companheiro do corte despertou seu torpor. O tempo havia fechado naquela maldita periferia de um santificado dia contraditório. O andarilho investigou a natureza fundacionista do bando que se aproximava em sua direção, contatou o mau cheiro e prosseguiu seu caminho. Sensações se apresentaram por si próprias junto ao sujeito de mãe pecaminosa que lhe desferiu o primeiro chute. Segue-se que a dor da surpresa possui uma propriedade de reflexo que engloba certo grau de crença, acreditou que o objeto mesmo que lhe atingirá intencionalmente deveria julgar e temer, e sem erro de percepção o erigiu de suas partes sensíveis. A única certeza que se seguiria a isso... O peso consequente sobre a aparência era o mesmo, tanto para derrota quanto para vitória, significava adaptação junto à “quebra”. A busca da segurança, auto preservação, satisfaz a sentença ao ser comparada e semelhante aos diferentes usos das justificativas pelos fins.
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poesia. 34 Fôrmas Pedro Côrtes Loureiro A vida em forma me formou Em fôrmas feita forma Deformada Em formas informa a fôrma Que em fôrmas é que se deforma Basta ver todas as formas conhecidas E ver a fôrma que deforma, de formas não sabidas As formas em que se formam vidas Se me torno torto em torno Entorno de mim tornam-se tortos Os que não haviam se tornado ainda De formas que certamente não sei Tornam-se tortas as fôrmas As quais deformam as formas Que enfim entortam as fôrmas Tomemos forma, tornemo-nos fôrma Formemos o torto que entorno de nós Deforma
Poesia Uirá Gamero você percebe que entre aquilo o que você pensa e aquilo o que você diz que você pensa existe uma grande diferença todo mundo tem um lado obscuro que não quer que ninguém conheça será que eu quero conhecer?? talvez sim, talvez não ignorância não é uma benção mas também não é uma maldição o importante é todo dia ir quebrando as barreiras você abre uma porta e percebe que tem outra dentro é preciso uma explosão atômica no interior da sua cabeça no subsolo, no banheiro eu sou a entidade da minha própria oferenda mais rápido que o tempo mas mais lento que o intento até onde será que eu aguento??
poesia. 35 todos os poemas nesta página: Duanne Ribeiro
Anotação do Aluno de Poesia senhor, que eu não fique nunca como esse velho artista aí do lado que vive dentro do seu nome e as visitas que tem só visitam sua História.
adoniranmunch "Mato Grosso quis gritar! mas em cima eu falei..." (— Devia ter deixado gritar.)
Aquele piano tem uma senhora este lugar tem o correr dos rios e o murmúrio que as árvores fazem o que é agradável, mas não é a poesia de Fernando Pessoa. para que é precisa a Natureza? (seja para isso ou para aquilo, precisaremos de um poeta para dizê-lo...)
CAF em 1994. 36