Discurso sem Método 2017/1

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Discurso sem Metodo

odiscursosemmetodo.wordpress.com publicação dos estudantes de Filosofia da FFLCH/USP

Ano2017v.1,

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Discurso Sem Método Ano 2017 v. 1, n. 1 Expediente Danilo Augusto Gustavo Mota Laila Manuelle Matheus Oliveira

Conteúdo Editorial ................................................................................................4 Carta de princípios do Jornal da Filosofia ................................4 PARA A PROFILAXIA DOS SONHOS ........................................5 REFLEXÃO FILOSÓFICA ...............................................................6 RESISTÊNCIA ENQUANTO PRAXIS REVOLUCIONÁRIA ......8

Colaboradores Beatriz Chaves Bruna Mello Danilo Augusto Fábio Bittencourt Vargas Felipe Alberto Lopes Fernando Takeshi Guilherme Kasmanas João Batista da Rocha Luana Fúncia Matheus Oliveira Orlando Pimentel Pagu Burguesa Pedro Mauad Pedro Naletto Uirá Gamero Willi Roger da Silva Youkai Makai

A MÁ-FÉ COMO AVALIAÇÃO, OU: DE QUANDO O

Editorial e Carta de Princípios ????? mas o atual expediente concorda

ISABELA ............................................................................................36

Ilustrações Google Images™ Capa Work Frame - Attraktor Zeros

ESPELHO REFLETE A SI MESMO. ............................................12 ILUSTRAÇÃO Beatriz Chaves ......................................................14 DÓLI E EU, AVENTURAS NA MARIANTONIA ....................15 (SEM TÍTULO) ................................................................................16 A HORA DA FORMIGA ..............................................................17 texto GRR ........................................................................................20 REMENDOS SOBRE A UNIVERSIDADE .................................23 UMA BREVE CONSIDERAÇÃO SOBRE O CONCEITO MARXISTA DE PRAXIS ...............................................................25 A FALTA DE DEMOCRACIA NA OMNIVERSIDADE .......27 AS ESTANTES DO CENTRO ACADÊMICO ........................28 PERMANÊNCIA EM LUTA ........................................................29 A PERFOMATIVIDADE DA CRISE ORÇAMENTÁRIA .....30 JUSTIFICATIVA DO DIA 0,1 .......................................................38 OS CEM HOMENS ........................................................................39 XIII – A MORTE .............................................................................39 QUADRINHOS Roger Silva .........................................................40 UMA DÚVIDA ................................................................................42 CACHOS DESOURADOS ............................................................43

Diagramação Laila Manuelle

SUJIDADE .......................................................................................44

Tirania do Jornal, quer fazer parte? jornaldafilo@gmail.com / discurso-semmetodo-2017@googlegroups.com FB: /jornaldafilo

TICO DE HEIDEGGER ...............................................................48

CONSELHOS DE UM DISCÍPULO DE MARX A UM FANÁ-


Editorial

Carta de princípios do Jornal da Filosofia

Em 2012, um grupo de estudantes da filosofia criou um jornal chamado Discurso sem Método. Um jornal aberto para que pessoas, independentemente de serem estudantes ou não do curso de filosofia, publicassem textos políticos e filosóficos, poesias, contos, crônicas, hqs, charges, palavras cruzadas, e muitas outras coisas.

Nós, do jornal da Filosofia, viemos em nota esclarecer o processo de aprovação ou não dos textos mandados para serem publicados pelo jornal. Apesar de não possuirmos uma linha política unificada, temos acordos mínimos de princípios, sendo estes: a não propagação de conteúdo opressor a setores historicamente oprimidos, bem como a não publicação de conteúdo com teor discriminatório. Nossos acordos são bem simples e esperamos que o público leitor compreenda que esta nota, para além de tornar explícito nosso repúdio a qualquer perseguição e opressão, serve de convite para uma abertura de diálogo com quem se sentir confortável para compor as reuniões do Jornal, a fim de discutir seus textos. Ficaríamos muito felizes em manter esse diálogo.

Sua última edição foi lançada no primeiro semestre de 2014. Nenhuma edição foi lançada no segundo semestre de 2014, nem no primeiro de 2015. Isso se deu devido ao fato de que muitas das pessoas que eram responsáveis pelo jornal se formaram ou saíram do curso de filosofia. Agora, o jornal está sendo construído por um novo grupo de pessoas. Essa construção está acontecendo em reuniões abertas que ocorrem normalmente às terças-feiras, às 18 horas, no CAF. Portanto, quem quiser somar e participar do grupo que está construindo o jornal, é só aparecer nas reuniões. O ambiente acadêmico do curso de filosofia (assim como o de vários outros cursos) se resume basicamente a estudar e comentar textos de pessoas que normalmente já morreram há muitos anos. Não se abre muito espaço para a livre criação. Estudamos filosofia como uma coisa morta e quando expressamos nossas próprias idéias, somos tratados como loucos por docentes que sempre repetem insistentemente: “mantenha-se no texto”. Essa será, pois, a importância do Jornal da Filosofia. Um espaço onde as pessoas possam expressar suas ideias e exercer a sua criatividade. Para além disso, o mundo anda passando por uma grande crise política e econômica que tem se refletido na universidade. No ano passado, o reitor Zago anunciou a existência de uma crise orçamentária que vem afetando fortemente a vida das pessoas que estudam e trabalham na USP. Porém, muitas vezes as consequências desta suposta crise não são veiculadas nem pela mídia externa nem pela interna da USP. E o Jornal da Filosofia será um meio onde as pessoas poderão, não só relatar os fatos, mas também enviar seus posicionamentos políticos relativos ao que acontece dentro e fora da universidade. 4

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PARA A PROFILAXIA DOS SONHOS Matheus Oliveira

Imagina-se

sempre o salto de qualidade no porvir: o melhorar está a um passo, empós a tempestade, a calmaria e a bonança, etc; porém umas evidências e outras provam o contrário. Uma regra: as evidências estão sempre na contramão, tabiques andantes a colidir com violência e obliterar a apreensão da ideia de sonho. Sobra, portanto, a ideia de uma ideia – “algo de extremamente vago”.

conteúdo geral da singela vivência. E por isso mesmo, tenta-se atinar na forma, dar aquele tom sério e desgarrado ao todo que é escrito. No entanto, puramente, é mais do mesmo: a mesma farsa, o mesmo sentimento, a mesma quase-tragédia. A consciência permanece pura e querendo-se impessoal, mesmo quando trata de expressar, de maneira incompleta e com empenho intento, a minha vergonha.

Por vezes o corriqueiro e o habitual discorrem com perícia inopinada acerca dos nossos sonhos: estes nem sempre são nobres, nem sempre belos ou profundos e altruístas; muitas vezes vis, arrogantes e levianos. Mas são sonhos, e isso define, formalmente, tudo. Enquanto permanecia silente ante o barulho absurdo do aparelho de televisão, senti fome e fui à cozinha. Lá preparei algo. Assim que olhei para a superfície espelhada que distorcia meu rosto levemente e davalhe um aspecto ondulante, fui acometido por um desejo, sonho, que seja; rábido e lancinante, ele me mostrava aquilo que eu queria e o que eu podia, ele me oferecia aquela euforia terrível que se transmuta em engodo com rapidez. Meu coração e mente foram postos à prova. Sabia que aquela ideia vaga de um sentimento perfeito e belo enfara sobremodo; para evitar incorrer em tal erro fatal novamente, segui meus olhos e minha testa disformes no reflexo e gritei com força “VOCÊ SONHA DEMAIS, MEU AMIGO!”. O intuito era acordar os vizinhos malditos, mas nem isso eu consegui. Não obstante, consegui o mais importante – afastar tal pensamento, que na sua candidez quase que originária, é um oblíquo convite ao desvario. Qualquer pessoa menos ingênua e mais sabida identificará as mesmas arrelias de sempre. Não há nenhuma novidade no

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REFLEXÃO FILOSÓFICA O que significa ser crítico Youkai

Diria

que toda opinião é crítica e que toda crítica é uma opinião, variando apenas o grau qualitativo da suposição que circunda o seu objeto de análise. Como medir a qualidade é explicado indiretamente a seguir. Uma opinião critica se sustenta em uma relação dinâmica entre a expectativa e a especulação. Uma opinião critica expectativa corresponde a uma fundamentação que busca reproduzir e se escorar em símbolos já existentes, pré-estabelecidos e referenciais, baseando na qualidade de sua potência interpretativa, ou seja, no quanto consegue se adequar e reproduzir o sistema de regras em que se insere. Uma opinião critica especulativa corresponde a uma busca por novas formas de arranjar as expectativas, ou mesmo possuindo a pretensão de inovar e oferecer suas próprias, e novas, expectativas, regras ou orientações fundacionais. Nisso ela ou cria a expectativa onde se sustentará, e espera que seja reconhecida como basilar, ou usa e distorce a expectativa já instaurada para ser reconhecida como uma possibilidade inovadora e original dentro do sistema já consolidado. Quando falha o destino lhe garante o esquecimento.

Quando a opinião critica especulativa nasce, ela pode ter por objetivo uma ampla gama de investigações, e conforme ela vai se assentando, a sua chama vai perdendo a intensidade. Chamaria a isso de envelhecimento, alguns chamam de amadurecimento, a maioria chama de razão, moral, etc., e a consequência imediata de uma opinião critica expectativa que busca se sobrepor a especulação é bem simples, ela se coloca como hierarquicamente necessária, essencial e referencial para que qualquer especulação lhe remeta respeito, por exemplo, quando falamos estamos dentro do campo da linguagem, que é um campo por excelência “expectativo”. Se nos perguntarmos se um dia ele já foi especulativo, a resposta é simples, ele nunca deixou de ser. Agora vamos ao ponto principal, o pensamento opinativo crítico.

Quando opinamos criticamente temos duas direções, a criativa e a confirmativa, seguimos ambas ao mesmo tempo, variando a preponderância de uma ou outra em cada caso particular. A criativa é, como disse acima, a especulação das formas, limites, gostos e texturas, onde uma pessoa cresce a aprende a falar, andar, julgar, sentir e vai lentamente adequando a sua criatividade junto ao sistema de ex No decorrer do pensamento filosófico e pectativas, crianças são criativas dizem. Adultos critico ambas as modalidades dinamicamen- também, caso contrário não estaríamos tentante interagem, sendo o pensamento opinativo do subjugar uns aos outros o tempo todo. critico o marco racional sobre o qual a nossa Seguindo. A confirmativa é uma referênespécie humana afirma-se e do qual ela possui tanto orgulho. Mas esse sistema tem o lado cia que olha ao espelho das possibilidades e escolhe uma, geralmente uma que possa, ou corrupto da propagação. que, se estabeleça, como sua sustentação. Um A opinião critica especulativa, quando exemplo banal e simples é o campo da crítica preponderante, é aquilo que chamamos de fi- a filmes. Vamos crescendo e adequando nossos losofia. Junto a ela existe a opinião critica ex- gostos segundo nossas opiniões e valores, ampectativa, que é aquilo que chamamos de tra- bos dinâmicos, é claro, e no fim, ao estarmos dição; por exemplo, os números, os nomes, os mais velhos e dentro de um contexto social de expectativas, isso em conjunto ao nosso próprio significados e sentidos. desenvolvimento e nossa própria contribuição ao campo das regras e expectativas, dizemos que algo é bom, melhor, certo, adequado; cria6

mos um sistema de valores e referenciais. Os filmes que antes vimos são repensados e revalorizados segundo nossas novas expectativas, os novos filmes são “adequalizados” as nossas novas capacidades críticas, e a nossa realidade ganha significado.

O crime maior daqueles que criticam baseados em expectativas é serem referenciais que afunilam a diversidade, e ao mesmo tempo propagam o suposto controle. O crime maior daqueles que criticam baseados em especulações é serem fúteis e diversos, e ao mesmo tempo propagam o suposto caos.

Como estamos sempre discutindo e interagindo uns com os outros, novas especulações surgem aqui e ali e lentamente atualizam nossas expectativas, valores e referenciais. No fim chegamos ao ponto de um dia termos verdades e certezas para podermos seguir em frente e estarmos junto ao conforto de um bom lugar na hierarquia! Dentro do campo filosófico e critico contemporâneo, creio que a tendência mais forte se apresenta exatamente em cumprir expectativas, sendo essa a maior prioridade; e apenas como tempero, pontualmente especulamos, com o devido cuidado e respeito, novas abordagens que adocem, saguem, amargurem ou azedem levemente os sistemas sobre aos quais se reverenciam e obedecem. Não é à toa que a filosofia contemporânea possui tantas regras quanto qualquer matéria da área de exatas. É claro que a manifestação dessas regras se apresenta de um modo bem diverso, e não acho que erre ao afirmar que o que a filosofia preza acima de tudo é o entendimento e não o questionamento, ou seja, que se entenda as regras primeiro.

Aliás, qualidade é uma expectativa.

Quem parte do entendimento reproduz o entendimento – ou o chamado questionamento racional –, quem parte do questionamento produz o entendimento (ou não, isso é uma especulação e não uma expectativa), sendo a única diferença entre um e outro o seu momento, onde a chance de alguém que parte do entendimento sair de suas expectativas é menor do que a de alguém que parte da especulação sair do questionamento – aqui está escrito com uma lógica errada e confusa de propósito – , quem especula sempre questiona, talvez, quem entende sempre ambiciona continuar entendendo, talvez. De qualquer modo a opinião critica expectativa tende a oprimir a especulação e a normatizar o seu percurso. O que não acontece com tanta frequência no campo da especulação. O

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RESISTÊNCIA ENQUANTO PRAXIS REVOLUCIONÁRIA Pedro Mauad

Pensar a resistência que nos cabe atualmente

está ligado à reflexão sobre o lugar em que nos encontramos, isto é, nosso contexto históricoconcreto. Há muito já sabemos que vivemos sob os imperativos do capitalismo tardio, com seu novo espírito e suas novas razões. Tal capitalismo tem como uma de suas características elementares o fato de que ele agora é um sistema mundial, que só funciona a nível global e que, portanto, sua crise assim como sua crítica são realizadas também no nível planetário. Nas últimas décadas da era do capitalismo global e sua expansão fictícia de capital destacam-se três períodos mais ou menos precisos: de 1946 a 1973 em que se predominou os modelos de produção fordistas e as políticas econômicas keynesianas, de 1973 a 1981 com o esfacelamento do capitalismo fordista-keynesiano e sua consequente crise, e da década de 80 em diante inicia-se à contrarrevolução neoliberal que se caracteriza por seu estado de crises constantes (1987, 1996, 2001 e 2008), que explicitam a lógica do “capitalismo das bolhas”, forma originaria do nosso sistema institucional -político na mundialização financeira. O processo de reestruturação capitalista que se inicia nesse último período é impulsionado nas mais diversas áreas da vida social, imputando uma derrota das forças políticas e sociais de esquerda e a vitória das forças políticas do neoconservadorismo neoliberal e seu irmão gêmeo, o neoliberalismo progressista. Exemplo disso é o quadro que vivemos atualmente na crise à brasileira: independente de quem ocupa o cargo executivo, sabemos que quem verdadeiramente “governa” é a junta financeira dos bancos e grandes corporações – em que conservadorismo e progressismo são as duas variantes internas de um mesmo modelo econômico. E, infelizmente, nada ainda nos indica alguma perspectiva concreta e real de superação, pois, a crise de formação da valorização do valor é também a crise da deformação dos sujeitos contemporâneos que ainda não foram capazes de operar uma “negação da negação” efetiva. 8

Desde a Inglaterra do século XVI, quando o capitalismo começou a se desenvolver no interior das relações sociais entre os grandes latifundiários ingleses e os arrendatários de terras (1), o que é constante de suas dinâmicas embrionárias até os dias de hoje, é sua capacidade de regulação e controle enquanto sistema econômico da produção e “distribuição” da riqueza social. Ou seja, ao tratarmos do capitalismo, por mais que ele sofra seus processos de mutações e atualizações devido suas crises internas, munindo-se de um novo espírito e nos oferecendo novas razões, precisamos ter em mente que ele se perpetua na medida em que é capaz de regular a produtividade social, seja ela qual for, e sua distribuição desigual. Ao conseguir dominar essa dinâmica da vida social, o capitalismo domina todo o resto, pois no mais fundo da nossa condição humana ainda pesa nossas necessidades fisiológicas: lá onde a fome grita a teoria perde sua voz. Não à toa nos é dada liberdade total de crítica ao capitalismo, mas nunca que alteremos suas dinâmicas econômicas de produção e distribuição. No lugar onde o capitalismo demonstra sua força, isto é, na economia, aparece também a sua fragilidade, pois a economia nunca é somente econômica, mas só se sustenta na medida em que é implementada através da política. Por isso Marx sempre insistiu em falar em termos de uma economia política em contraste com Ricardo e Smith, que tentavam explicar as novas dinâmicas do mundo industrial apenas em termos econômicos. Um dos segredos ___________________________________ (1) Durante muitos anos os seres humanos proveram suas

necessidades físicas trabalhando a terra, e mesmo nas sociedades pré-capitalistas houveram divisões em classes entre os que trabalhavam e os que se apropriavam do trabalho alheio. Todos esses agricultores detinham a posse dos meios de produção, portanto, também, de sua reprodução. Quando o trabalho excedente era apropriado por terceiros, isso se dava através de meios extra-econômicos – coerção direta de grandes proprietários ou Estados que empregavam forças militares, jurídicas ou políticas. No capitalismo, entretanto, e somente nele, os modos de apropriação baseiam-se na desapropriação dos produtores, cujo trabalho excedente é apropriado através de meios puramente econômicos.

fundamentais da produção capitalista, descoberto por Marx, refere-se às relações sociais e à disposição do poder que se estabelece entre os proletários e o capitalista. É uma disposição do poder que tem como fundamento a configuração política do conjunto da sociedade, por isso podemos dizer que o capitalismo tem como seu segredo uma dimensão política que é escamoteada pela dimensão econômica. A própria economia não se constitui sobre uma rede de forças incorpóreas, mas sim sobre o conjunto das relações sociais que são em primeira e última instâncias políticas. Ao separar o sistema de produção de seus atributos sociais específicos, economistas partidários do capitalismo intentam demonstrar uma certa “eternidade e harmonia das relações sociais”, quando na realidade se esforçam para ocultar que os modos de produção têm seus alicerces na exploração politicamente legitimada de uns sobre outros. Com isso, atingimos um primeiro objetivo buscado pelo texto, pois, apresentar o capitalismo em seu aspecto político tornar-se o modo de permitir que ele seja realmente contestado como relação de dominação, como direitos de propriedade, como poder de organizar e governar a produção e a apropriação. Em suma, o objetivo dessa postura teórica é prático, e busca lançar luzes sobre o terreno de luta observando os modos de produção não como estruturas abstratas, mas como eles realmente enfrentam as pessoas que devem agir em relação a eles.

torná-las mais efetivas: resistência enquanto práxis revolucionária. Com isso, denomina-se uma maneira de resistência que não se reduz a negatividade, mas que traz em sua negação uma atuação positiva por parte dos sujeitos implicados: os sujeitos políticos da resistência não podem, se quiserem transformar sua realidade político-concreta, contentar-se em meramente suportar ou defenderem-se por meio da negação, mas necessitam apreender a dimensão transformativa da positividade que é capaz de instaurar o novo. Existe na positividade a dimensão de uma negação da negação que se caracteriza por uma capacidade afirmativa irredutível. Práxis enquanto resistência, portanto, é essa positividade que é capaz de fundar por cima do que se nega. Ela própria é uma práxis política na medida em que é uma teoria prática. Ou seja, não é uma prática que se conduz pelo ditar teórico, mas é a própria teoria que é prática, isto é, erige-se de dentro da prática política cotidiana: a compreensão se desdobra em ação e, assim, o agir se faz compreender.

No início afirmamos que pensar a resistência é pensar nosso contexto histórico- material. Mas pensar a resistência também deve revelar um outro aspecto: nossa capacidade de ação. Resistir é, acima de tudo, agir. E nossa ação nunca é óbvia o suficiente para que não seja motivo de reflexão.

Resistência e ação, política e revolução. São esses os nomes que se manifestam sobre dois polos complementares: o sujeito e a História. O agir da resistência político- revolucionária nos remete sempre à um sujeito que age. Mas tal sujeito age efetivamente somente na medida em que consegue visualizar o terreno histórico em que se movimenta. Por isso toda revolução traz em si uma dualidade absoluta: a forte e incontornável relação que existe entre existência e história. Os dois polos se retroalimentam em um movimento de tensão perpétua, pois a história nada seria sem o sujeito singular, e o sujeito, por sua vez, não seria um sujeito caso não se desenvolvesse no horizonte indefino e universal da história que o constitui.

Existem diferentes modalidades de resistência, como por exemplo, resistir enquanto suportar, enquanto resiliência, ou, resistir enquanto defesa, como reação à um ataque. Há também a resistência enquanto negação, como recusa. Em certa medida, todas essas formas tem uma estreita ligação entre si, e todas elas nos são bastante familiares. Entretanto, gostaria de propor que pensemos uma outra maneira de resistência, que não exclui nenhuma das anteriores, mas as complementam de forma a

Desse modo, a dualidade que se apresenta no interior de uma revolução tem sempre um traço trágico, pois na medida em que a existência busca alcançar a história por meio da ação, desvela-se, nesse movimento, um comprometimento que tem sua grandeza rivalizada com a inutilidade: o sujeito para se realizar na revolução da história, deve, antes, se perder para que consiga novamente se possuir, e nada o garante que ao lançar- se nesse movimento de despossessão, que conseguirá ob-

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ter a transformação pretendida. Assim, a práxis revolucionária é sempre uma saída de si, que já não busca mais somente seus próprios interesses, mas que se lança em um movimento de transformação que jamais se completa na realização da mudança pretendida, posto que uma práxis dessa natureza está sempre em tensão, e só obtém alguma transformação na medida em que é capaz de fundar por meio de uma ação que é sempre gratuita, pois seu engajamento tem origem na interioridade do sujeito, onde o que há é uma absoluta gratuidade em viver: sua positividade é sempre re-posta enquanto um fundamento que nunca é estável o suficiente para se fixar permanentemente; como existe por tensão, sua atuação é constante e, por isso mesmo, sua perda é sempre um reencontro com o mesmo que se diferencia na medida em que age na realidade histórico-política. A política, e não menos a revolução, só adquirem significado na medida em que pairam sobre esses dois polos: o subjetivo e o histórico. Devido a isso a atuação de uma práxis eficaz precisa sempre de compreender a ambos em suas potencialidades inerentes. Lá onde o sujeito se determina é o mesmo lugar onde ele se ultrapassa para fazer a história por meio de sua ação, e no local onde a História é imperativo determinante das vidas subjetivas, só o é no instante em que a pluralidade de ações a constitui. Resistimos, pois, no centro de uma dialética: nos perdemos para fazer a história para que então a história nos refaça. Seria esse o segredo da experiência que a práxis revolucionária proporciona a cada um que a vive, e desse segredo retiramos a potência capaz de ameaçar a perpetuação do capitalismo. Se o capitalismo enquanto sistema econômico só se realiza na medida em que a própria política o permite, desde sempre para que ele se perpetue é a política que precisa ser negada. A política carrega em seu seio a contingência da ação, e por isso onde ela existe e vigora, sempre paira a possibilidade, e não necessariamente a iminência, de uma revolução. É comum descrever o capitalismo como o reino das liberdades individuais, mas seu problema, e não menos sua fragilidade, é limitar-se a isso, uma vez que se tais liberdades se desenvolve-

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rem para a ação do sujeito singular que encarna o universal, ultrapassando a si mesmo para transformar o curso da história, o capitalismo é posto em cheque: ele só admite sujeitos fechados em si próprios, que não transbordam para além de si mesmos e, por isso, não reconhecem sua capacidade implicativa na História. De todos os grandes feitos de Marx, talvez o reconhecimento da potência transformativa que reside no interior de cada sujeito seja um dos maiores: não basta interpretar o mundo, é preciso transformá-lo, nunca quis dizer que devemos abdicar do pensamento teórico para agirmos compulsivamente. A décima primeira tese sobre Feuerbach sempre foi um aceno para a força da compreensão somada a ação. O pensamento que se dirige ao mundo, deve incidir sobre a ação que transforma a história. Tão ineficaz quanto a teoria anódina e a prática irrefletida. Não é de se espantar que o buraco em que nos encontramos hoje coincida exatamente com a falência da política: o espaço público encontra-se laminado sob as pressões do terror econômico e as lamentações de um moralismo abstrato, de modo a assistirmos calados o depauperamento da política e seus atributos (a estratégia, o projeto, a ação conjunta). Essa dissolução [da política] acontece não pelo seu desaparecimento, e sim no seu revestimento estético, ou seja, a estetização da política que se expressa através da exaltação das proximidades, das microesferas, do acumulo ornamental e a busca de um simulacro de autenticidade. No fundo tudo isso só faz transparecer uma certa desorientação contemporânea diante da incerteza da ação política. Cada vez mais caminhamos para uma diversidade sem diferença, uma massa de singularidades indiferentes que ressaltam pequenas diferenças para que possam deixar de pertencerem como cidadãos ou membros de uma classe social e melhor aderirem às suas próprias demandas identitárias. Contra isso deveríamos mais do que nunca reafirmar a relevância da contingência estratégica, a arte da decisão no momento propício, e as potencialidades da unidade do agir coletivo. Mas como a relação implicativa entre os sujeitos e a história é sempre mais complexa do que qualquer texto pode pretender revelar, as forças reais capazes de transformarem o macro

social e político jamais se encontram nesse ou naquele texto ou teoria. A construção de uma política revolucionária passa sempre pelo defronte que apenas a situabilidade do contexto social somada a capacidade organizativa de seus atores podem oferecer. Isso porque toda práxis revolucionária traz em si o elemento do contato, da dialética da vida real, da possibilidade de união de singularidades em uma universalidade comum, isto é, a ação conjunta com vistas a fins que nunca são um fim em si mesmo, mas sempre rumos de um agir que ultrapassa cada uma das partes envolvidas para se realizar na soma das forças integrantes. Isso o capitalismo e seus aparatos de ordem não suportam, pois a eles interessam a dispersão, o fragmentário, a multiplicidade sem coesão, o fechamento de cada um em si próprio para o cumprimento de suas demandas individuais – algo que se expressa muito bem no famigerado “direito de ir e vir” frente a toda manifestação política que interrompe a normalidade cotidiana. Por isso que seu sucesso atual, mesmo diante de uma de suas maiores crises, deriva em grande medida de seu forte apelo de investimento libidinal e existencial na realização do si, do self empreendedor, no abandono da história enquanto construção constantemente clivada pelas ações políticas, para o refugo nas proximidades, na procura dos pares concordantes, na elaboração de microações voltadas para si mesmas e seus contornos.

fosse feito correlatamente ao diagnóstico que a teoria fornece eos desdobramentos afirmativos que a prática realiza. Resistência enquanto práxis é, portanto, muito mais que meramente um agir desorientado ou um esforço teórico contemplativo, ela é, antes, uma atitude, uma maneira de implicar-se que vai de si à história e retorna, sem que esse movimento jamais cesse, pois a estabilidade não é sua meta, mas sim a transformação efetiva. O que importa não é falar, mas atuar. O que tentamos compreender aqui é justamente o modo como isso se dá.

É característico do tempo em que vivemos concebermos certas possibilidades autênticas e necessárias sem sabermos o que pertence à sua realização. Não sabemos mais nos doarmos e isso significa que desaprendemos que toda geração que quer algo precisa atravessar a experiência na qual ela se “sacrifica” pela geração seguinte, sem resignação, mas muito mais com a força e vontade de quem compreendeu que em todas as realizações autenticamente humanas cada um não pode ser senão precursor para algum outro. Sendo assim, resistir tem, inevitavelmente, algo dessa potência que reside no interior de cada singularidade que se dispõem a fazer a experiência concreta da universalidade histórica: sujeitos políticos que não se contentam com si próprios e agem com vistas a uma despossessão que transforma o real da história sociopolítica. Mas nada disso seria eficaz se não 11


A MÁ-FÉ COMO AVALIAÇÃO, OU: DE QUANDO O ESPELHO REFLETE A SI MESMO. Fábio Bittencourt Vargas

Chavões de que a universidade se converte em

bolha, densa e impenetrável, já são sobrenome dos estudantes. Os que se dedicam às “humanidades” provavelmente acentuam isso ainda mais veementemente. O fato de algo ser cansativamente ressaltado esconde um mistério ou apenas é ócio e ausência de novas edições da filosofia marxista para serem resenhadas? Arrisca-se aqui uma reflexão sobre essa distância e sobre um método clássico de nosso departamento. Sartre ressaltava, na esteira de suas “estruturas imediatas do para-si”, que a “sedução do títere”, ou – a quase obsessiva necessidade humana de interpretar papéis, vestir máscaras, adornar-se de enfeites, era algo a ser, se não extinguido (impossível, já que “essencial”), no mínimo, assumido. A esta personagem (mal) interpretada de si mesma, deu-lhe o complexo nome de Má-fé. Qualquer coisa que negasse a insubstancial existência, a liberdade avassaladora e angustiante da vida, qualquer recurso que solidificasse a violenta fluidez da consciência – que é nada, é deslizar para fora, é lançar-se adiante, é projetar-se para… – seria um ato de má-fé. Do inconsciente freudiano, passando pelas determinações objetivas da matéria encarnadas pelas instituições e diferenças de classes, à criação do artifício Deus, todo esse palavreado seria iluminado pelo conceito de má-fé: o que for possível para tornar-me algo, seja um sujeito sujeitado pela lógica do desejo, seja um marxista na luta para vencer as dicotomias tão determinantemente densas do real, seja um crente seguro da transcendência: no fim, má-fé. Não assumir a liberdade pelo que se é – que é nada, indeterminação absoluta – será sempre um tirar-se daquilo que nos constitui: “a consciência é o que ela não é e não é o que é”. Estanho paradoxo! Usa-se a liberdade fundamental que possibilita “ser” aquilo que se deseja para anular a condição mesma de ser livre ao solidificar-se em categorias que tampam a angústia. 12

A sedução do títere pode ser um evento plural. Geralmente o é. Aquele no bar acredita ser garçom – para se manter nos exemplos sartrianos – e eu estou convencido que sou o empresário que paga a conta. Garçom e Empresário. Quase categorias distintas e a priori da Razão. Não sou ele. Ele não é eu. O verbo de ligação nunca predicou tamanho equívoco na visão sartriana: este “é” só pode encobrir a desesperadora situação de, ontologicamente, não ser nada. O mais grave, contudo, é quando acreditamos sinceramente naquilo que interpretamos de nós. Convencido do que sou, e logo, daquilo que NÃO POSSO SER, visto-me nas máscaras da determinação, engraxo esse terno, cuido dessa tão complexa fama. E aqui, chego ao que me interessa. É prática em nosso departamento escolher, como critério de análise para a produção das notas, os famosos grupos de seminário. Argumento: (quando se julga que é preciso argumentar, feito raro) “é fundamental para a formação do professor”. Vejamos o porquê de tal justificativa. O professor deveria ser o que fala. Deveria ser o que, no mínimo e à guisa de sua personalidade que tem estreita relação com sua metodologia, proporcionaria caminhos. Poderia ser elucidado muitos conceitos freirianos da função docente. Não será preciso, o mesmo Paulo – e aqui, felizmente, não o apóstolo – já tinha plena consciência intencional, sabia que não há docência sem discência, sabia que a relação entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo era mais estreita do que pudesse parecer à primeira vista, sabia que só o professor bem-intencionado numa escola que tem como pano de fundo a destruição da própria educação (1) não conseguiria ir muito longe. Nesse sentido, pergunto-me: que função cumpre nosso seminário na Universidade? O critério de escolha de muitos estudantes para a disciplina a cursar é justamente fugir dos tais seminários. Chavão: que será que esconde? _________________________________ (1) Permito-me um juízo de valor sobre nossa educação paulista.

Textos de uma densidade insana; critérios de análise incompreensíveis, sonolência crônica, respostas de alguns professores quanto a nosso desempenho, muitas vezes, humilhantes, não há outra palavra. Seria a incompetência desses pobres estudantes em apresentarem um texto no método de nosso departamento, dito estruturalista, a premissa do desgosto quanto aos seminários? Ou já se sinaliza a inutilidade de tal prática? Se de fato é a formação do professor que se enquadra nesse método, pergunto-me: para quem esses professores devem lecionar? Mal vejo a hora de ler a primeira Crítica kantiana em divisões alucinantes com meus estudantes do segundo ano do ensino médio. A que tipo de má-fé estamos submetidos? À de que nos convencemos do seminário e inclusive interpretamos o “filósofo” na frente da mesa, ou à de que alguns professores se convenceram de que realmente é da docência que se está falando com essas ações? Reitero: mesmo a função nobre de ter o texto apresentado pelos colegas em sala de aula, dissecado e minimamente didático – já que os seminários deveriam ser como uma aula – está a anos-luz da efetividade. Na maioria dos casos, ninguém suporta tanto narcisismo patológico ou, o exato oposto, tanto descaso melancólico. Professores que se convenceram de que estão contribuindo para a educação, como resposta estrutural, já que “voltaremos à pátria para prestar serviço”, e nós, também convencidos da necessidade dessa artimanha. Parece-me, cada vez mais, que a tática dos seminários é uma apresentação daquilo que a Universidade tem de mais hediondo: a repetição dela mesma. Treinamento para ocupar cátedras, os seminários convertem-se no melhor texto – entenda-se, incompreensível – enquanto a educação e formação (era esse o argumento não?) não falam essa língua. Sedução do títere: de um lado, somos os projetos de docentes sonolentos (2) que compreendem a educação como um cadáver empoeirado, do outro, a certeza do abismo que separa um seminarista tolo e ingênuo de um gabaritado poliglota. Nem a língua, nem o Lattes, nem a voz mais empostada, ou a referência mais insana durante a apresentação poderão dar conta do que significa formar um professor. Que significa, então, ser professor? Não faço ideia. Talvez, se o soubesse aqui, estaria eu “solidificando” covardemente essa possibilidade sempre aberta: o ensino. Sei, contudo, que a cristalização duma prática é alimentada pela “inércia psíquica”. O presente texto não convoca um motim, pelo menos não é a intenção. (3) ______________________________ (2) É evidente que não me refiro a todos, há belíssimos repre-

sentantes de grupo “professores” no nosso departamento, poucos, mas há.

Tampouco pretende, pedantemente, insurgir-se contra a necessidade da “participação” dos estudantes na aula. O que me move nessas notas é a constante confusão entre ser um grande pesquisador/filósofo/ arquiteto da cultura, e um professor. Muitas vezes, as duas coisas estão coadunadas. Mas, na vasta maioria dos casos, esse encontro é frustrado. Que a realidade acadêmica jamais será um espelho do mundo onde ela se situa parece-me uma certeza comprovada, infelizmente, pela própria natureza do conhecimento. Quanto mais distante da beira, mais distante à vista. Contudo, acreditar seriamente que este espelho de molduras luxuosas deva refletir a si mesmo parece ser uma desistência cruel. Seminários não ensinam nada sobre a belíssima função da docência, assim como não curam a timidez, não geram teses de livre-docência, e tampouco convencem quanto a serem um belo exercício para ser professor. Disse Millôr Fernandes, certa feita, que quem joga xadrez adquire uma extraordinária capacidade de jogar xadrez. Afinal, que papel estamos interpretando? Que projeto temos de nós quando nos convencemos sobre o aprendizado para a docência? Que projeto está por trás da arquitetura de um seminário? Que projeto de formação sustenta nossos tão instrutivos seminários? O que diz, no fundo, as palavras extraordinariamente desestimulantes de um professor – em geral extraordinariamente ruim – sobre “o não aprofundamento do texto na apresentação”? Pensemos. Determinar essas perguntas talvez seria, de minha parte, apenas má-fé.

_____________________________________________ (3) Nunca se sabe o texto latente sobre as expressões mani-

festas, não?

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DÓLI E EU, AVENTURAS NA MARIANTONIA Luana Fúncia

Foram muitos passos. Perdi a conta nes-

se mundo da pós-automatização. Encontrei-a ali velhinha despretensiosamente em silêncio. A reação foi instantânea. Sua bolsa caiu ao chão e levou-me a concentração poética daquele encontro. Atrapalhada demais para o funcionamento adequaado das coisas. Dentro em pouco senti meu peito cheio de tranqüilidade enquanto ela dormia ao som de divagações benjaminianas. Penso em quantas mensagens de email e pessoas sem-graça foram precisas para que se desse esse instante. Porque muita dor é necessária para qualquer filosofia. Dentre esse monte de destroços, vejo ainda seus olhos verdes cansados agora já quentinhamente fechados. Não há algo senão reconhecer que você sou eu no futuro. Ruiva, atrasada, linda das próprias possibilidades e tímida como se fosse essa a primeira aula de literatura. Ela já deve ter uns 70 e nada como o ineditismo da juventude e a inexperiência dos que involuntariamente perdem a bolsa para o chão. Algumas semanas depois perdi a minha para o acaso, junto a tantas lembranças que você mesma me ensinou a deixar comigo e não em qualquer desses alhures sempre contingentes. Sou jovem e ainda me sinto absoluta de mim mesma. Sei que pessoas e bolsas se perdem ao vento a todo instante, mas eu pude ainda te encontrar. Fato é que minha descrença jamais intentou que nos falássemos: seria um segredo que guardaria para mim e para as conversas com a Luísa na sacada da Mariantonia. Jamais me conformei com o circuito inexorável do tempo. Jamais. Era sobre isso que voaram palavras e despedaçaram-se diante do imponderável: o tempo passa e eu envelheço. É apenas uma questão de constatação. Talvez ela me tenha feito dar 14

conta de que foi esse mesmo tempo que permitiu nosso encontro. Junto a um sorriso de longínqüa familiaridade, porque – tempo que permitiu nosso encontro. Junto a um sorriso de longínqüa familiaridade, porque – – sei, sabemos – nos conhecemos há muito. O não-lembrar de mim a fez sentir o peso da perda da memória e não a atinar que jamais me houvera conhecido. Deve ser bonito cumprimentar as pessoas sem sabê-las ao certo. É cansativo o esquadrinhamento do conhecimento total das coisas. Prefiro sempre o incerto surpreso da vida. Disse do quanto ficara feliz com aquele curso: do nosso professor a beleza de quem ensina aquilo que lhe faz bem e que morrerá como murcha uma flor. E morrer de criações próprias em mundo desgovernado não pode ser senão um privilégio. Fizemos planos de nossa última aula, não sem que isso me causasse certa angústia de não mais encontrar aquela que sou no futuro. Fico feliz com o prognóstico do passeio à livraria cultura em busca de textos de literatura. Nada pode ser mais terno que isso. Estamos no elevador da Mariantonia – quantas pessoas fantásticas não terão passado por aqui? - com sutileza, pergunta-me que horas se iniciam minhas aulas na faculdade de direito. 7:30, respondo eu a dizer que talvez isso já não me faça tanta diferença. Porque eu ficaria durante toda a eternidade a conversar com ela: ela sou eu e nada pode ser mais difícil que isso. A despedida. Mas não se preocupe, diz ela, a gente se encontra sempre. Espero que nos encontremos logo, Doli, gostaria ao menos de te contar que tenho seguido seu conselho e desde o dia-do-toalete-da-fflch tenho o cuidado e o absurdo descuido de aproveitar mais nossa vida.


A HORA DA FORMIGA

(SEM TÍTULO)

Felipe Alberto Lopes

João Batista

Enquanto parado próximo à janela, meus olhos iam no encontro da imagem de um garfo apoiado no estreito da cadeira. Estava ele também próximo à mesa, mas não tão próximo do que se diz por seguro. Qualquer que fosse o manifesto do vento faria com que o estado do garfo se alterasse. Vento esse que já me trouxe tudo o que a vida excitou em trazer. Esse que suavizou os cubos de areia. Pressupõe-se que seja esse também quem casou Vitinha e garantiu a Pablo uma bela escrava – que fugira quatro meses depois graças ao vento que a guiara pelas terras dominadas. E no momento em que o amado de Vitinha dissertava sobre o garfo, ninguém acreditou que o talher não caía independente do vento. Mas é claro que ninguém nunca tentou assoprar a peça. Quando toda a família se reunia a observar o fenômeno do garfo, Henrique tropeçara pelos duros campos de Olinda, uma cidade pouco tomada pelos ventos. Fazia parte das grandes gramas que nada ousam da vida. De volta ao garfo na extremidade da cadeira e a mesa, Vitinha esbarrou em cima da obra e fez com que todo o esforço do vento valesse a pena: o objeto flutuou sobre a escrava de Pablo. E dentro do que se acredita por incertezas, me surge: o que motiva o ar até o garfo apoiado?

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Aristides estava

à beira da morte. Ninguém da cidadezinha estava sabendo. Na verdade, não havia ninguém pra saber. Estava em um leito de hospital, apenas com sua filha, Rosa, do lado, de cabeça baixa. Sua esposa já havia ido há alguns anos. Ele olhava para o teto do quarto, como que tentando ver a realidade do paraíso. Tentava ver, na verdade, se seu nome estava lá, no livro de convidados. Mas era impossível, enquanto tinha olhos feitos da carne, do corpo quase quente. Ainda podia falar. Sua boca era uma das poucas partes do corpo que o seu trabalho não tinha desgastado. Toda a sua energia havia sido devorada pelo seu patrão, Senhor Antônio Cabral, um dos raros homens que tinha sobrenome naquelas terras. Sobrenome trazia consigo herança, fortunas. O agora quase-morto era só Aristides, o trabalhador. Senhor Cabral era dono das terras onde morava Aristides, assim como dono dos bois, das árvores, do rio que ele cuidava com muito esforço e paixão. Tudo era de uma enormidade sem palavra. Vivia lá em troco de trabalhar para seu patrão. No início era apenas cuidar da fazenda. Depois foi tendo que enviar todo produto que a natureza gerava para a casa dele, que de lá ia para outros rumos, além do horizonte. Quanto mais enviava, menos tinha pra si. Seus calos endureciam e sua

coluna estava encurvada pelo peso do sol. Agora a vida estava em seu entardecer. A noite se aproximava cada vez mais. Tinha um último desejo: rever seu velho amigo João, o Da-Viola. – Vá e peça para ele não esquecer de seu Companheiro-de-toda-vida – disse Aristides, numa manhã, à filha, que foi na mesma hora, de forma desesperante. João morava na cidade vizinha. Foi difícil para Rosa o localizar, pois os dois amigos não se falavam há anos, causa de intriga. Ainda assim, foi na mesma noite que se reencontraram. João Da-Viola entrou no quarto do hospital. Apesar do nome, ele trazia um violão, seu companheiro. O rosto dos dois estava cortado pelo tempo, mais do que se lembravam. A face do enfermo iluminou-se

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ante a presença do outro. – Venha cá, amigo, perto. Minha voz já não tem força pra chegar até aí. João sentou-se perto de Aristides, que disse: – Quero pedir desculpas pelo nosso desentendido. Foi muito egoísmo de minha parte. – Esqueça, irmão. O passado só existe quando lembramos. – Mas eu sou só passado. Meu futuro é apenas o desconhecido. A velha briga entre os dois foi porque, em uma época de dificuldade em tempos invernais, Aristides não quis dividir a pouca comida que tinha com o amigo. João era músico, e estava muito tempo sem ganhar dinheiro. O melhor tocador de violão dos arredores. Mas o caminho do artista é dos altos e baixos. Acusavam-no de desocupado, mas só quem toca sabe a dedicação que a música exige. João foi obrigado a procurar serviço, o estômago vazio o exigiu. Só encontrou na cidade vizinha, no bar do Manuel, e pra lá foi. – João, – disse Aristides – o trabalho foi muito mais duro sem o seu violão do lado. Os campos pareciam mais tristes. A vida encheu-me de pensamentos, por castigo. Até hoje tenho perguntas que não sei resolver. Acho que não quero achar as respostas. Exemplo, qual foi o produto da minha vida? Qual minha herança pro mundo? João ficou pensativo. Se prendeu no pensamento para não gritar a tristeza. – Minha herança foi a fartura do meu patrão, suas taças de ouro. Minha filha nem pode tê-la. – Neste momento a filha segurou sua mão. – Enquanto tu... trouxeste alegria com teu violão. – Nem sempre, irmão. Às vezes a música é uma lágrima que não sai do olho. – Pode me fazer um favor? – Claro. – Toque sua música mais uma vez, já não consigo lembrar dela. Toque enquanto eu ainda ouço. João pegou o violão e começou a tocar. O som preencheu todo o quarto, a melodia parecia vir de todas as paredes, do chão, do céu. Pela janela, via-se que estava chovendo. Apenas os três estavam no cô18

modo. Aristides fechou os olhos. Estava totalmente concentrado na música, e João dedilhava toda a sua vida. Lembrava da juventude, de quando namorava sua esposa, Estela. Lembrou-se do nascimento da filha. Tudo era trazido pela melodia que os dedos de seu amigo tiravam do violão. O doente se sentia fora do mundo. As notas já eram escadas que o levavam pra cima. A música foi ficando cada vez mais triste, a mais triste que João tinha tocado. Quando o violão parou, ouviu-se um gemido de Rosa. Uma lágrima caiu do rosto de João e bateu nas cordas do violão. Seu amigo já não respirava.

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texto GRR (com dados de 2014) Pagu Burguesa

uma rápida pesquisa no DuckDuckGo (tipo google, -sqn), chegamos a dados surpreendentes sobre imóveis em SP. Porém a situação é crônica, a crise é mundial, o imperialismo norte-americano globalizado e sua finança capitalista exibe diversos sinais da catástrofe que foi optar por um sistema econômico regido pelo superlucro.

Em

Dados contextualizados sobre imóveis abandonados (1.500 em Salvador, 290.000 em SP), porcentagem de comida jogada no lixo, produção de lixo no mundo, relação de trabalho dos funcionários que manejam a matéria-prima e a extração da matéria-prima, etc. A bolha é o reflexo, a representação máxima do que pode gerar o sistema de exploração de mão-de-obra e exploração de almas. Representa a falha estrutural do local de produção do sistema explorador (especulação financeira), nessa hora me vem Marx e diz que o Capitalismo cavará sua própria cova. E feito, a cova começa pelas suas próprias casas e seu próprio ego. Mas foda-se o Marx, não estamos aqui pra falar de velhos barbudos.

Vamos até o fundo do poço, chafurdamos na lama, para lembrar você burguês, meio-burguês, aspirante a burguês, pseudo-burguês, que lê essas linhas que 100% do que você consome é trabalho escravo, que desses 100% de trabalho escravo, 30 você joga no lixo. Que você financia o Senhor de Engenho para explorar trabalhadores, para produzir lixo que você compra com cara de sabonete e depois ainda joga no lixo de novo. E você, que é conivente, cúmplice de zilhões de mortes anuais no mundo, ainda tem a cara de pau de achar que suas atitudes devem ser resolvidas por um terceiro que você não conhece e que você escolhe para ser seu representante e financia mais Senhores de Engenho? Você tem a habilidade de ser melhor do que isso que o sistema te escravizou a ser. Se você produz lixo, já começou errado. Se você não abre o vidro pra falar com o malabarista já nasceu errado. Se você não percebe a cadeia de extermínio, o rastro de sangue, que fica na pegada de seu sapato, talvez seja tarde demais para você.

Mas ainda assim, acreditando na humanidade, deixo algumas exigências de convívio amigável Quando em 2008 nos EUA a bolha imobiliária se rompia, lançava toda a merda no ventilador entre eu e você: para o resto do mundo também virar uma grande privada e cada país ir cagando em sequência. Nun- Não vote ca a cena do banheiro de Trainspotting fez tanto sentido. O viciado em meio a sua distorção de re- Não vote, não pague a multa, não compareça alidade, mergulha na privada cheia de merda e o a intimações, não dê a mínima para essa porra descaralho a quatro para achar sua droga perdida. sas leis do Estado Feudal de Direito. Foda-se você, fodam-se suas leis. O sistema de representatividade A guerra da propriedade privada proporcio- através da maioria é excludente e assassino, desna situações absurdas a racionalidade humana. pótico. A horizontalidade, o dissenso e o incentivo à participação de dinâmicas coletivas se comprova Jogo armado por velhos psicóticos, vampi- eficiente através de vários exemplos como Grécia, ros do papel moeda, sugam o sangue vermelho e Espanha, Alemanha, Brasil, Dinamarca, EUA, exemdevolvem o vômito verde de sua bile indigesta. plos de comunas anarquistas, grupos de squatting, de reação política, com manifestações de diversas Por isso, hoje venho aqui falar com você, formas em diversos lugares. jovem, de cara limpa, contribuinte dos impostos, cidadão de bem, estudioso, dedicado a família, na Ao invés de votar, frequente os espaços busca da realização do sonho (norte)americano. nos quais eles exercem seus dominíos monárquicos.

A capacidade popular de organização em ambiente propício à criatividade positiva é revolucionário, e é democracia real. Isso representa uma ameaça ao sistema hierárquico da representatividade, de super-valorização do ego e do status, a sua ruína, sua crise de protagonismo. E se há ameaça ao sistema hierárquico a ruptura é necessária. Não tem diálogo. E esse é o pensamento que eles adotam, e se eles acham que não tem diálogo, você vai querer fazer o quê? Marcha pra Jesus?

Não compre

Não pague - ¡Yo Mango!

O livro vermelho do Yo Mango, é uma recomendação para quem quiser entender mais sobre como conseguir coisas de maneira independente do Estado e do capital. Reaja, Reduza, Reutilize, Recicle. Com tanto desperdício, o lixo é um local super abundante em qualquer tipo de matéria-prima. Com tanto desperdício, o lixo é um local super abundante em qualquer tipo de matéria-prima.

unilever / pepsico / kraft / coca-cola / johnson johnson / p&g / nestle / kellogs / mars / camargo correa / planova / vale / globo / odebrecht / fernandez mera / santander / bradesco / itau / estatais / multinacionais / nike / diariosassociados / instituto millenium / grupo folha / grupo estado / grupo abril / grupo globo / grupo bandeirantes / grupo record / grupo pao de acucar São as empresas (conglomerados), entre outras, que financiam os laranjas para assumirem cargos públicos e levarem a consequência de seus jogos de exploração da raça humana. Tem atuação através do mesmo grupo de sócios que visam manter a cadeia alimentar do capital, deixando os donos desses conglomerados eternamente no poder.

Rompa com os paradigmas que te es-

cravizam e aprisionam à Matrix

Bom e mau, certo e errado, direito ou torto (gauche), são maniqueísmos que induzem o raciocínio à conclusões superficiais. A não-lineariedade da vida, a caoticidade dos acontecimentos, a aleatoriedade como padrão do universo: esses são paradigmas mais condizentes com a realidade das coisas materiais e imateriais. O padrão é fração não exata, portanto qualquer julgamento baseado em argumentos moralistas deve ser questionado, combatido e eliminado.

Meu papel é mostrar que é possível parasi- tar o parasita. O processo democrático dentro de uma república com congresso feudal é uma ilusão. Quem se acha livre nesse planeta bostalizado é camada de coco igual. 20

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REMENDOS SOBRE A UNIVERSIDADE

~~~~~~~Manual do Okupante ~~~Passo-a-passo

Matheus Oliveira

Etapa 1 Projetos essenciais para o desenvolvimento de um local sadio de homeoffice coletivo. Se organize: -quadrodeagenda -quadrodetarefas -quadrodedesejos -biblioteca -escritórios -salasdeestudo -oficinas -depósitodeferramentas -recicle: comida, brechó, móveis, caixas de frutas, canetões, papéis, garrafas, etc.. -composteira horta Etapa 2 Vá até o mercado mais próximo ou outro local e consiga/arranje (Mango): - Lista de Ferramentas Básicas - martelos, pregos, correntes, cordas, panos, baldes - Água - Elemento essencial para a vida no Planeta Terra. - Pé de cabra ou Chaves (michas) - Seje bem-vindê! - Lanterna - Olhe por onde anda - Verduras - Algumas verduras duram bastante tempo fora da geladeira, algumas como repolhos, tomates, acelga, etc.. (http://www.guiadacasa.com/dicas/dicas-para -limpar-e-armazenar-verduras-por-mais-tempo) - Cebola - Remédio natural, ótimo alimento para a manutenção do pulmão e vasos sanguíneos. Evita inflamações, dores e inchaços. - Alho - Remédio natural, ótimo para combater inflamações e bactérias gerais do corpo. - Limão - Remédio natural, excelente fonte de vitamina C, essencial na absorção de Ferro, entre outros nutrientes. - Oleagenosas - Repositor de proteínas, essencial para a produção de energia do corpo, é um alimento que se mantém conservado sem refrigeração. - Vassouras - É sempre bom retirar poeira e qualquer outra coisa que possa colocar seu caminho em risco. - Cândida - Desinfetante power, nunca se sabe o que virá por ae, sempre bom prezar pela saúde.

vel:

Etapa 3 Se você tem dúvida do abandono de um imó-

- veja algum estabeleciomento perto ao local do imóvel e pergunte ao dono se ele sabe algo sobre o local, vale a pena dizer que você está interessado em alugar ou comprar o imóvel, dependendo de como você estiver vestido. - procure nas correspondências por contas ou qualquer outro papel, com os dados do endereço você consegue procurar informações; datas, dívidas, e o número de inscrição do imóvel nos registros de cartórios e do iptu. - deixe algum item em algum local que o dono vigente terá que mexer para entrar no imóvel, assim vocês podem ver se alguém está frequentando o local sem precisar ficar vigiando. Pode até ser uma placa de Vende-se / Aluga-se Etapa 4 Registros A lei diz que a partir de três (3) dias de ocupação, vocês já têm direito a abrir um processo judicial, portanto, vale a pena se manter incógnito nos primeiros dias (não entrar e sair), para que a polícia não possa te retirar sem um madado. Mas lembre-se de fazer algum registro, fotos com jornal do dia ou algum indicativo de data, e fotos que demonstrem o estado do ambiente quando entrou e as mudanças que vocês estão fazendo são importantes na argumentação de que vocês merecem e são melhores “donos” que o vigente. Etapa 5 A água nunca é realmente cortada, os registros são apenas fechados

Reúna-se Vire-se Okupe-se Viva anos de luta! 0/ /////////////////////////////(A)///////////////////////////////// 22

Parte

da legitimação psicossocial que o estado produz é primeiramente processada como legitimidade epistêmica, dentro do quadro da instituição que chamamos de Universidade. Nela se produz as formas de conhecimento que, se bem que não se precisem dizer práticas, consegue pôr em funcionamento uma justificação da aceitação e do escopo de atuação, repressão e pilhagem estatal; a figura do intelectual que tem aí a sua morada, é marcante no sentido de como ele se põe – ao menos em princípio – como o grande legitimador do conhecimento e da defesa, através dele, do estado. A atuação anarquista e libertária, nesse contexto, vê-se diante de um impasse: o que fazer com a Universidade? Estando ela no patamar mais alto na formação (e reprodução, pois forma também os professores que ocuparão as escolas estatais) da legitimação psicossocial do estado, uma saída possível seria a criação de uma cultura intelectual antiacadêmica que funciona de modo autônomo e visa a atingir a sociedade no todo para criar uma mentalidade antiestatista e desconfiada da Universidade, preparando sua abolição. Ou, por outro lado, seria mais desejável infiltrá-la para subvertê-la, conquistar espaços para modificar o quadro de opiniões geralmente aceitas a fim de criar um consenso que seja, embora de modo paulatino, cada vez mais contra as ideias do estado? Os problemas que então surgem dessa breve consideração dos dois modos de ação são três: primeiro, o de ordem numérica: há pouquíssimos agentes intelectuais capazes de produzir uma mudança na percepção coletiva (uma vez que o consenso estatista produzida dentro da instituição é reforçada por uma semelhança nas práticas sociais) sem serem boicotados e censurados por isso. Um certo grau de homogeneidade ideológica foi atingido, o qual é difícil reverter. Em parte pelo espírito de corpo, incrivelmente fácil de se observar em todos os estamentos universitários, de professores a estudantes. Por mais que os circunlóquios pseudointelectuais das militâncias sejam profusos, há pouca hesitação na hora de se proteger do inimigo, vindo ele de “dentro” ou de “fora”. O segundo problema é de ordem econômica, e dele se deriva o terceiro e último de ordem ética, ainda que, penso eu, eles entretenham um certo grau de reciprocidade. O problema de ordem econô-

mica é que, ao mesmo tempo que a possibilidade de uma prática intelectual antiacademicista seja extremamente dificultada por razões de financiamento, bolsas, etc. A Universidade e suas montanhas de dinheiro – nada mais nada menos que o investimento para a produção da submissão ao estado, no que concerne parte dele – seria, talvez, um atalho para a demolição do conhecimento que ela produz e da destruição das posições de privilégio de que ela necessita para seus quadros, do mais reles aluno, idiota útil, até o professor mais insigne cujas canalhice e estreiteza se mostram ao se revelar “intelectual orgânico” e “homem de partido”. Parte dessa destruição por infiltração (a velha e boa noyautage?) acontece por desmantelar as sinecuras dos progressistas que se instalam na Universidade. O porém é que ocupar os quadros da Universidade é, inevitavelmente, dar curso e sentido à espoliação à qual ela obriga a população mais pobre. Por óbvio, o discurso da “Universidade para a classe trabalhadora” é o engodo sagaz dos privilegiados para distrair os despossuídos quanto à exploração que lhes é imposta pela mesma Universidade. É precisamente deste ponto que sobrevém terceiro dilema ético que os anarquistas devem ter em mente: a ocupação de cargos, o trabalho na Universidade é uma forma de conivência com a espoliação que a sustenta. Assim, a raiz do problema da espoliação continua intacta, mesmo que ação anarquista seja em vista de produzir a explicitação dessa contrariedade, desse contrassenso fundamental que rege, por fim, a Universidade: um poderoso aparelho de estado, a subsistir do subsídio dos pobres para os ricos, a fim de fazer aqueles acreditar que o bálsamo do seu bem-estar é devido à magnanimidade e sabedoria destes.

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UMA BREVE CONSIDERAÇÃO SOBRE O CONCEITO MARXISTA DE PRAXIS Pedro Mauad

A aporia estabelecida entre teoria e prática

é muito cara a filosofia desde seus primórdios. Desde Platão vemos a filosofia se debater entre esses dois âmbitos sem que uma verdadeira solução possa ser alcançada, pendendo sempre para teorias que muito pouco ou quase nada tem de efetividade prática. Mas essa celeuma não é estritamente filosófica, sendo, no mundo contemporâneo, um problema acima de tudo político. Isto é, o locus principal onde tal aporia não cessa de reaparecer é o locus da ação política, lugar onde muitas vezes a prática acaba por abolir a teoria. Quando Marx escreveu a segunda tese sobre Feuerbach, afirmando que a questão relativa à possibilidade de verdade pelo pensamento é uma questão prática no lugar de teórica, muito desentendimento se fez de lá para cá. Ora, que só interpretar o mundo não basta, o importante é transformá-lo, isso todos que se dispõe minimamente a superar o atual estado de coisas já entendeu. O problema se apresenta exatamente no entremeio da interpretação para a transformação. Como bem disse Adorno, a impaciência que pretende transformar o mundo sem interpretá-lo, é a mesma que despotencializa e constitui a fragilidade de qualquer práxis que se almeje revolucionária. Por isso, para que o conceito de práxis não fique perdido e isolado somente na antítese entre teoria e prática, sem que consiga desenvolver-se e desdobrar-se em algo com potência de transformação efetiva, é preciso compreender a profundidade do seu significado.

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Marx, nesse sentido, foi responsável por derrubar um velho tabu filosófico, a saber, a distinção radical entre práxis e poiesis. Os dois conceitos têm sua origem na antiguidade grega e, para o pensamento da época, designavam práticas antagônicas: enquanto a práxis era a ação livre na qual o homem não transforma nem modifica nada além de si pró-

prio, a poiesis era seu exato oposto, onde o que se visava era justamente a transformação do mundo material, da natureza e a fabricação de objetos. Com seu materialismo da processualidade, Marx conseguirá desestabelecer a distinção que mantinha os dois conceitos separados para fundi-los numa só noção, ou seja, não existe práxis que não dependa de uma poiesis, assim como não se realiza nenhum tipo de poiesis sem que exista uma práxis. Em outras palavras, se transformar o mundo é a intenção, saber interpretá-lo torna-se imprescindível. Certamente Marx estava absolutamente convencido de que apenas pela demolição prática das relações sociais reais que se alcança alguma transformação verdadeira, e por isso dizia ser na prática que o homem tem de provar

a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza interior de seu pensamento. Entretanto,

em nada isso quer dizer que o pensamento, a teoria, em alguma medida deve ser desconsiderada. Ele não possuía essa inocência. Tanto é assim que escreveu livros sua vida inteira, sempre tendo em vista a superação do capitalismo. Ao fazer esses apontamentos, ele desejava que fosse mudado o ponto de partida, o foco principal e recorrente em sua época, isto é, as teorias ideológicas com suas fraseologias abstratas. Daí todo seu esforço em criticar a ideologia alemã e sua sagrada família. Não era um ataque a teoria em si, mas sim uma resposta ao imobilismo da ação em que se encontrava a Alemanha de sua época. E quando, para estabelecer um novo conceito que consiga dar conta disso tudo, ele aglutina ambas no conceito de práxis, é porque tinha total ciência de que mesmo o pensar, também é uma forma de agir – mesmo que insuficiente quando não acompanhado de algum tipo de ação concreta -, e que toda práxis eficaz está imbuída de teoria. Enquanto não se

descobre na realidade uma figura de práxis possível mais elevada; sua descoberta necessita de reflexão teórica. Portanto, é de suma importância que se entenda, em se tratando de práxis,

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ao modo de como foi cunhada por Marx, não se trata, nunca, de reduzi-la apenas à prática. Ela comporta em si, tanto a teoria quanto a ação. E daí vêm sua força e capacidade revolucionárias.

cial, econômica e histórica. É claro que sempre tomando o devido cuidado para que a crítica ideológica não se converta em crítica ideologizante.

A FALTA DE DEMOCRACIA NA OMNIVERSIDADE

Também estamos tratando, em última instância, da relação constitutiva sujeito-objeto. Ou seja, trata-se de compreender o nexo dialético entre sujeito e objeto que caracterizará a produção da vida dos homens. Não se trata de um sujeito pressuposto, dado a realizar uma prática idealizada, mas sim de uma relação constituinte entre o objeto e o sujeito da atividade sensível. O sujeito se forma em nexo com sua prática e objeto, na mesma medida em que a prática revelará uma subjetividade jetividade mediante a qual corresponde o dinamismo do sujeito. Pois do contrário, caso se simule que o

Devido a isso, a práxis revolucionária de que falam as Teses sobre Feuerbach não visa a realização de um programa que reorganizará a sociedade; visa menos ainda ficar a reboque de um futuro proposto por teorias filosóficas; ela deve, portanto, coincidir com o “movimento real que aniquila o estado de coisas existente”. (1) A ação deve ser praticada no presente, em ato, pelas próprias mãos dos indivíduos corpóreos, no lugar de ser comentada ou anunciada, mas sabendo não existir prática possível que não passe por dentro de uma teoria.

A Omniversidade de São Paulo possui uma estru-

ção do capital que transitam entre a ideologia e a prática alienada que devem ser combatidos à altura. Se a ideologia burguesa condiciona as consciências dos homens reais, a teoria, para Marx, será justamente um tipo de produção de consciência que, se vinculada a práxis revolucionária, não se deixará esgotar nas fraseologias ideológicas inoperantes. Mas, acima de tudo, é de extrema importância que as contradições do capital deixem de ser apreendidas apenas em seu contexto conceitual para serem apreendidas no contexto contingente do aqui e agora da vida dos homens reais. Decifrar aquilo que foi eclipsado pelos nexos conceituais abstratos e superá-los na realidade entendida enquanto relações sociohistóricas materiais. Realizar um deslocamento constante entre a generalidade conceitual abstrata da filosofia para a vida material dos indivíduos concretos, tendo sempre em vista a práxis em sua dialética contingente. A seu modo, era isso o que queria dizer Herbert Marcuse quando afirmou ser necessário aprender todo conceito filosófico como categoria so-

a práxis, ciente e sempre aberta à contingência, esse lugar vazio, que nos permite manter distância em relação à ideologia, e dali não só criticá-la como também subvertê-la e com isso destruí-la? Indo um pouco mais além dessa questão, podemos nos perguntar: não seria a crise da esquerda contemporânea, justamente, a incapacidade de se situar nesse espaço e construir uma práxis verdadeiramente revolucionária, que não se esgota nem na prática desorientada e imediatista nem na teoria anódina e inoperante? _____________________________ (1) “O Comunismo não é para nós um estado de coisas

Por fim, à guisa de conclusão, pegueobjeto é pura e simplesmente incomensurável em relação ao sujeito, um cego destino captura- mos uma passagem do pensamento de Zižek em relação à ideologia em que esse afirmava: rá a comunicação entre ambos. a ideologia não é tudo; é possível assumir um O que Marx, então, queria dizer quando lugar que nos permita manter distância em reafirmava ser necessário combater ocapital me- lação a ela, mas esse lugar de onde se pode diante suas próprias forças? Quais forças seriam denunciar a ideologia tem que permanecer vaessas de que a superação deveria partir median- zio, não pode ser ocupado por nenhuma realite o que se deseja superar? Ora, é justamente o dade positivamente determinada; no momento duplo caráter constitutivo dos mecanismos de em que cedemos a essa tentação, voltamos à captura, assujeitamento, alienação e explora- ideologia. Uma pergunta se coloca: não seria

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Leandro Lamuria

tura extremamente antidemocrática em seus órgãos colegiados. No Conselho Omniversitário (CU), considerado o maior órgão de deliberação da Omniversidade, menos de 10% das cadeiras são destinadas a estudantes, já os funcionários (denominados servidores não docentes), possuem apenas 3 vagas. O CU é considerado o maior órgão de deliberação da Omniversidade apenas porquê a grande maioria das pessoas desconhece a existência uma instância ainda acima dele, que possui uma estrutura ainda mais antidemocrática pois não conta com a presença de nenhum estudante e nenhum funcionário, apenas de alguns professores doutores, além do próprio governador do estado. Neste conselho, que ocorre todo início de ano (não podemos chamar de fórum, pois nele não há nenhuma discussão), os membros se vestem com suas túnicas brancas e se juntam no entorno de uma grande fogueira. Nela eles queimam folhas de café e de cana-de-açúcar, para invocar a presença de ninguém mais do que Armando Sales de Oliveira, o fundador da Omniversidade. E é Armando Sales quem passa as diretrizes políticas nas quais esses burocratas devem seguir durante o ano. Inclusive foi ele o responsável por elaborar os “Parâmetros de Sustentabilidade Econômico-Financeira”, que reduz drasticamente os gastos da Omniversidade, garantindo cortes, congelamento de salários além de possibilitar novamente demissões em massa. Portanto o Conselho Omniversitário não passa de uma grande fachada, pois a maior parte das medidas votadas nele, vieram de uma instância superior na hierarquia Omniversitária.

[Zustand] que deve ser instaurado, um ideal para o qual a realidade deve se direcionar. Chamamos comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento devem ser julgadas segundo sua própria realidade efetiva resultante dos pressupostos realmente existentes.” Karl Marx.

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AS ESTANTES DO CENTRO ACADÊMICO Guilherme Kasmanas

Na situação do materialismo histórico, a pers-

pectiva das coisas será praticada de maneira, também, materialista. Quanto mais cedo souberem que qualquer agir no mundo que tiverem os estudantes praticando a crítica ou militando terá de ser ela própria materialista, tanto melhor para a saúde de sua marca que responde pelo nome de bacharelado. Resolvido isso, pode-se passar para outras ocupações corriqueiras resumidas na profissão estudantil de hoje com a sustentação de joguetes e outros gracejos, na ocupação de reserva do mercado. Trata-se de uma saída negociada com a intenção de não aderir às obsessões de rebote, as do meio estudantil. Sabemos que somos materialistas porque temos uma visão mais ou menos clara do momento histórico atual e que estamos certos de nossa sensibilidade para fornecer gritos de guerra com extrações singularescas ou recompor se quisermos o hino da USP. Esta última tese é avançada pelo tardio Walter Benjamin quando ventura pela crítica dos costumes. Pois esta é a crítica de arte materialista: constrói um artefato com um resultado observável e antecipa-se à sua recepção. A tarefa mais presente seria, então, a possibilidade de recensear todo o universo de lançamentos e esclarecer em que direção se dirigem a um público inerte.(1) A divulgação científica certamente é o caso aqui, assim como as produções que vertem dos canais muito produtivos dos nossos colegas. Cabe perguntar se é possível alguma conformação com o assim dito social-democrata de “Saber é Poder”, uma vez que escondemo-nos na propriedade intelectual, e descuramos de úteis manuais a prova do tempo como a Bíblia ou o Manual de Receitas do Anarquista. Longe de querer possuir um exemplar em cada Centro Acadêmico dos clássicos mais perenes, ainda assim creio que os nossos organizadores poderiam se beneficiar de um pouco de colecionismo. Observando as convenções que fizeram retraduzir a obra de Max Stirner em nome de tudo que é profano em qualquer coletividade, atender ao desejo de autogenia de um rebento do anarquismo ainda assim requer algo muito simples, que é o senso histórico dos leitores. O desejo projetado foi que se perseguisse as respostas universais da sabedoria de um modo que resultasse propriedade do seu utilizador, para que bem entendesse suas propriedades pessoais.(2) É de tal forma que se “coleciona” sistemas filosóficos, 28

mesmo com o prospecto de acumular tranqueiras irônicas pelo caminho (e tornar-se alvo da crítica da hegelianos de esquerda). Não importa bem que gestão decidiu certa vez limpar os armários dos Espaços Estudantis. O resultado, dependendo da opinião de então sobre o colecionismo, pôde ter sido a limpeza ou o esforço de memória de muitas passagens documentais de outros gestores ou apenas transeuntes. A possessão dos objetos encontrados, se bem dispostos em um estande com alguma finalidade, e é verdade que incorro em opiniões pessoais aqui, poderia ter conferido um prestígio. Por causa de uma curiosidade intelectual, se poderia ter um número de indivíduos similares cuja demanda atribuiria valor a uma potencial coleção. É claro que o simples efeito decorativo de adorno contribuiria por sua vez com a monotonia de um espaço de arquivo, oferecido à ruína. No entanto, o valor a que se poderia aspirar, é preciso repetir, seria apenas imaterial, um verdadeiro arremedo de todo o potencial propositivo que a função comunicativa pode alcançar. Na verdade, o poder à mão do estudante, se ele teve de se ver com o rejeito da sociedade em termos de apreço pela escolha profissional, certamente tem alguma utilidade, a da linguagem. Segundo Pomian, “o invisível deve sua existência à linguagem, no sentido que é a linguagem que permite a indivíduos comunicar suas fantasias separadas uns aos outros, transformando em eventos sociais suas convicções mais arraigadas de que estiveram em contato com algo oculto aos olhos humanos.”(3) O simples evento de tornar-se receptor de um conhecimento pode tornar-se um acontecimento tempestivo na medida em que um passado pode apenas tornar-se vivo se intencionado no presente e se ele for induzido pela linguagem de uma geração para a seguinte.(4) Sendo que, sob alguma perspectiva, dar as devidas dimensões às coisas pode tornar-se a atitude mais revolucionária da história – isenta, é claro, de seu elemento épico. _____________________________________________ (1)BENJAMIN, W. Eduard Fuchs, Colecionador e Historiador In. O Anjo da História São Paulo: Editora Autêntica, 2012. p.246 (2) LANDSTREICHER, W. Introduction In. STIRNER, M. The Unique and Its Property Texas: Underworld Amusements, 2017. p. 11 (3) POMIAN, K. Collectors and Curiosities: Paris and Venice, 1500-1800 Cambridge: Polity Press, 1990. p. 26 (4) Sopesar com a afirmação que Benjamin atribui a Engels: “Porque é irrecuperável toda imagem do passado que ameaça desaparecer com todo presente que não se reconheceu como presente intencionado nela” ibid., p. 238.

PERMANÊNCIA EM LUTA Orlando Lima Pimentel

O ano que começa não é um novíssimo período de

tempo. Uma unidade a mais é incrementada a data do ano passado, ocorrem férias, reajustes financeiros de toda sorte, no entanto, quanto à continuidade dos problemas que concernem aos estudantes de filosofia da USP, o tempo parece estar estacionado ou até mesmo regredindo. Data, pelo menos, de 2002 parte das pautas estudantis específicas, reivindicadas pela greve do ano de 2016. A pauta por ensino de línguas na graduação, por ampliação do acesso à pesquisa acadêmica e às bolsas de iniciação científica, por disciplinas, de fato, introdutórias aos estudantes recém-chegados ao curso, apesar de serem de uma necessidade inegável, sofrem com o desânimo reinante dos que encampam a luta institucional dentro dos fóruns oficiais da universidade (Congregação, CTA, Conselho Universitário, etc). Não haveria de ser de outra maneira, já que a maioria dos partícipes de tais instâncias deliberativas (nada democráticas, que se o diga) preferem barrar questões políticas, com argumentos técnicos pretensamente irremediáveis. Quanto às pautas gerais por permanência estudantil e cotas, poderíamos traçar sua temporalidade junto às lutas que se encontram para além dos muros da universidade. As lutas por permanência estudantil são indissociáveis ao problema do acesso à cidade universitária e ao direito a uma moradia digna, portanto podem ser datadas desde as primeiras reivindicações por reforma urbana (o MTST vai fazer 20 anos, em 2017) e por direito de acesso aos diversos pontos urbanos, através de uma bem distribuída e gratuita rede de transportes (luta que teve seu pico em 2013, mas que é empreendida pelo MPL já há muito tempo). A luta pelas cotas, por sua vez, é a luta do Movimento Negro e poderia ser datada desde as primeiras revoltas contra os regimes escravistas. Se levarmos em consideração que os Quilombos eram formas de preservar a cultura da diversidade dos povos escravizados e de permanecerem juntos territorialmente, enquanto comunidade, encontraremos uma correlação interessante entre permanência e movimento negro. Ora, mas, a história e temporalidade dos vencedores – para lembrar uma expressão de Benjamin – não admitem tais confusões de data. É preciso que as lutas tenham período certo, começo, meio e fim, sejam identificáveis e tratáveis operacionalmente pelas burocracias do Estado e do Capital, a fim de que se perpetue a dominação das elites nacionais sob o interesse de qualquer fração do todo social brasileiro. As lutas, tenham elas ou não uma here-

ditariedade óbvia em outras lutas sociais, devem se curvar ao ritmo institucional e aos seus fóruns tecnopolíticos uspianos, que fazem força para institucionalizar a rebeldia estudantil e sindical. A aparente “repetição” dos movimentos sindicais e estudantis uspianos, que “todo ano fazem greve”, nada mais é do que um dos sucessos desta tentativa de deslegitimação de movimentos reivindicatórios, empreendida pela estrutura de poder universitária. Não é o caso reclamar que todo o ano se faz greve. O caso é que há muitos anos nada ou muito pouco se faz, quanto às pautas que devem continuar a ser reivindicadas pelo movimento estudantil e por outros movimentos sociais. Com a crise econômica, com o Golpe de Estado que sofremos o ano passado, com as passeatas cheias de patriotas aficionados com a bandeira do Brasil (mas que a abandonariam facilmente, se tivessem condições de estabelecer moradia no exterior), com tudo isso as datas podem facilmente assumir para si o ano de 1964. Tal como nos anos de chumbo, em prol da superação da crise econômica, impõe-se uma política de austeridade tão velha quanto às primeiras crises do Capital. Tal austeridade, no entanto, ataca agora a casa da ciência e pesquisa brasileira, o que se faz sentir mesmo em nosso dia a dia de estudantes de filosofia. Portanto, os anos regridem e são confusos não só para o movimento estudantil, mas para a ciência e para a USP. Manter a normalidade da estrutura de poder universitária é manter um corpo político respirando à base de aparelhos. É nosso dever em defesa da universidade pública interromper e imprimir outro ritmo na normalidade institucional, questionando o modo como ela parece institucionalizar todo conflito pretensamente interno. A forma como os fóruns oficiais universitários costumam fazer vista grossa aos alertas que há tempos o movimento sindical e estudantil vem dando quanto aos rumos da política brasileira e seus reflexos no ensino superior já mostrou que tal desleixo não leva a nada e até mesmo contribui para piorar a vida institucional e o valor da atividade acadêmica perante os rumos político-econômicos do país. Permaneceremos em luta, sem reconhecer o marcapasso institucional. Em breve, os estudantes voltam a ocupar o prédio. Sangue novo vem oxigenar as salas. É questão de tempo, e de quanto tempo, para que possamos nos reunir em outros lugares para além dos que, convencionalmente, não têm propiciado a pujança da universidade enquanto instituição pública de importância para o país.

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A PERFOMATIVIDADE DA CRISE ORÇAMENTÁRIA Danilo Augusto

Desde ao menos 2014, o discurso sobre a crise

orçamentária vem se acentuando ao mesmo passo que medidas de precarização da Universidade em prol do imperativo categórico da “responsabilidade fiscal” estão sendo adotadas como formas de solução da crise. O que justifica essas medidas é a enunciação da crise ou de uma situação de necessidade que impediria não só o funcionamento pleno da Universidade, mas até mesmo a realização de debates políticos, a reflexão sobre as causas de tal crise, das soluções apresentadas etc. Instrumentalizando a situação de crise, medidas como corte de salários, congelamento de contratações, terceirização, quarteirização, programas de incentivo à demissão voluntária (PIDV) e cobrança de mensalidade aparecem como operações técnicas, racionais e, portanto, necessárias, na medida em que só tais tipos de medidas poderiam colocar a Universidade no eixo de um desenvolvimento, que é um desenvolvimento determinado por critérios que aparecem cada vez mais na fraseologia daqueles responsáveis pela administração pública e outros atores privados que surgem como parceiros ou compadres. São critérios como: aumento da eficiência e, portanto, dos resultados que a Universidade pode apresentar, tendo no cálculo de custo/benefício e nos mecanismos de avaliação os meios de tornar previsível aquilo que se entende por eficiência e resultado.(1)

titucionais e toda canalização do fundo público para o pagamento da dívida pública e para a consequente manutenção de nossa credibilidade frente aos proprietários de títulos da dívida (bancos, investidores estrangeiros, fundos de pensão etc) cortando, para isso, gastos no campo social e blindando o direito do capital que rende juros em realizar sua valorização ou acumulação em frente dos direitos sociais constitucionais. Nesse caso, vale ressaltar que se trata de uma mudança mais ampla na dinâmica da acumulação do Capital que tem como correlato um novo saber – economia política – que faz do discurso sobre o orçamento público e do próprio papel do fundo público historicamente distinto, toda uma nova epistemologia historicamente situada, se se quiser, que nos faz falar de outra maneira e ver sobre novas luzes; mas também um novo governo com efeitos distintos se tratando dos espaços sociais que se toma em consideração.

Não é de se estranhar, dado esse pano de fundo, a semelhança – evocada pelo próprio Zago, aliás, na sua última entrevista para Veja – de tal fraseologia sobre a crise com aquela adotada em nível Federal e cuja Lei de Responsabilidade Fiscal, que transforma o deficit público em crime, dá a formalização de toda essa racionalidade que instrumentaliza uma crise que seria oriunda de uma irresponsabilidade administrativa. Daí que pela necessidade, ou por uma espécie de exceção no nível econômico se justificaria decretos incons-

Na época do chamado Consenso Keynesiano, o orçamento público era canalizado para subsidiar a acumulação do Capital via uma político-econômica baseada em dois vetores de financiamento: o primeiro, se caracterizava pelo subsídio ao crescimento do setor produtivo privado e estatal (agricultura, indústria e comércio) incluso as infraestruturas necessárias para isso (geração de energia, transporte etc) e a produção científica em vista do aumento da produtividade ou do desenvolvimento das forças produtivas. Consequentemente, o financiamento do setor produtivo, no momento histórico em que se deu, favoreceu a geração massiva de emprego por parte da intervenção do Estado. Em resumo, tratava-se de um papel do Estado ajustado à exigência de se formar e acumular Capital em um dado país implicado na corrida pela apropriação do bolo do capital que ia crescendo globalmente na medida em que este ia expandindo suas fronteiras interna e externa, com toda violência. O segundo vetor se caracteriza pelo financiamento da reprodução da força de trabalho a partir de um salário indireto que consistia em garantir direitos sociais via serviços públicos com pretensões universais: saúde, educação, previdência, habitação etc; vetor este responsável pelo processo de integração da classe operária ao sistema capitalista pelo Estado a partir do seu reco-

(1) Só por ideologia ainda poderíamos continuar falando em termos de uma “autonomia universitária” existente a maneira dos velhos tempos, isto é, quando era capaz de determinar seus próprios critérios, critérios estes acadêmicos, com valores que lhe são próprios e distintos daqueles, por exemplo, do mercado. Na verdade, há um bom tempo a Universidade se tornou Operacional, isto é, uma organização que opera conforme imperativos que são próprios às empresas em concorrência no mercado, determinando metas a serem atingidas da maneira mais eficiente. É essa ideologia regressiva que faz que uma parcela ainda viva em outros tempos, investindo representa-

ções arcaicas como mecanismos de defesa, clamando pela boa formação e reivindicando como forma de “resistência” a valorização da FFLCH como polo de produção de um conhecimento útil a sociedade quase à maneira de sua função inicial, isto é, a da formação de elites políticas esclarecidas, enquanto no nível “inconsciente” as determinações da “boa formação” são outras, mais precisamente aquelas qualitativamente abstratas e manifestas em números pelos indicadores de produtividade/eficiência que com seus métodos de avaliação apenas intensificam o trabalho. “A avaliação significa o quê? Significa que você necessita de indicadores para aprimorar a funcio-

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nhecimento enquanto sujeito de direito e mediando os conflitos entre capital-trabalho. Ou seja, se produziu uma cidadania que nesse momento era fundamentada no trabalho e que definia o cidadão enquanto trabalhador. Esses dois vetores de atuação, o econômico e o social, digamos assim, para além daquele ligado ao policiamento e à Segurança Nacional, constituíam, numa relação orgânica entre Estado e Capital, um Capitalismo Monopolista de Estado.(2) Nesse capitalismo monopolista, o bem -estar que a classe operária integrada passou a desfrutar não deixou de ser garantido pelo complexo político/militar/econômico que garantia a extração da mais-valia inclusive por processos de neocolonização, guerras etc.(3) Agora o fundo público (ou orçamento) do Estado é canalizado para salvaguardar uma forma de acumulação do Capital que não é mediada pelo trabalho ou pela forma produtiva de investimento do Capital, mas uma acumulação fictícia que tem no dispositivo da dívida pública infindável sua expressão mais bem-acabada. Por isso o pagamento de nossa dívida é interminável e só aumenta, pois essa é uma das formas (predominante) pela qual o Capital se acumula, apesar de ser um processo autodestrutivo, já que o pagamento da dívida implica um desmoronamento das próprias bases sociais que tornam possível a reprodução do processo. E é diante dessa exigência de acumulação que o Estado se reorganiza e se legitima como instância social que, longe de ser um Leviatã, é própria aos objetivos de acumulação de uma riqueza social abstrata encarnada na forma dinheiro enquanto forma de expressão imediata do valor. A passagem de uma situação para a outra não deve ser apenas subjetivista ou da ordem de modelos de regulação que foram implantados arbitrariamente e que caberia a esquerda, portanto, escolher o melhor, mais precisamente aquele que possibilitaria uma administração consciente das próprias formas fetichistas do capitalismo: trabalho abstrato, mercadoria, valor, dinheiro etc, e, consequentemente, uma justa distribuição da riqueza. Uma esquerda assim já nasce morta, pois tentar administrar conscientemente formas com estatuto fetichista e ligadas a um objetivo que contém em seu seio a produção da desigualdanalidade. Esses indicadores só podem ser obtidos através de avaliações quantitativas da produtividade. Através disso você consegue, como se fosse um mapa de vendas, mapear a produção, os índices, o acréscimo, o decréscimo etc, e com isso você consegue um diagnóstico de providências a serem tomadas, sempre nesse nível organizacional e operacional” (Franklin Leopoldo). É a racionalização da produção de conhecimento em seu ponto máximo, tentando conjurar todo imprevisto e maximizar os resultados. Racionalização fruto da própria dinâmica do capitalismo, que visa a desenvolver suas forças produtivas

de social é se propor como melhor pretendente ao governo do Capital. Assim, há algo de objetivo que diz respeito ao desdobramento histórico da lógica das categorias do Capital que não conseguiu ser pela esquerda solapada, mas, ao contrário, até mesmo alimentada com suas aspirações modernizantes, quais sejam: a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas (a ciência e sua aplicação técnica, as formas de organização do trabalho, máquinas, infraestruturas etc, que levam a um aumento da produtividade) e a capacidade de produzir valor (força viva de trabalho); ou entre riqueza material e riqueza abstrata (valor).(4) É em decorrência do limite que o primeiro apresenta à acumulação ampliada do Capital e as formas de compensação historicamente esgotadas (colonização interna, aumentar a proletarização, criação de novos mercados etc) de contornar esse limite de acumulação real que chegamos onde chegamos. O Capital fictício como forma fetichista mais bem-acabada da relação capital, na medida em que nesta ele aparece como uma espécie de Deus autocriador sem nenhuma mediação com o concreto – é apenas o efeito de uma fuga para frente do Capital em relação a si mesmo enquanto seu próprio limite a ser reproduzido em escala ampliada, e não causa da crise em decorrência da adoção de um determinado modelo de regulação (o monetarismo ou a macroeconomia ortodoxa transformada em consenso tanto pela esquerda quanto pela direita). Quer dizer, dado o limite de se valorizar na forma produtiva (que se dava basicamente naquela esboçada acima ao falar do Consenso Keynesiano), o Capital monetário ascende aos céus da valorização por especulação a respeito dos seus ganhos futuros esperando que um dinheiro adiantado magicamente volte acrescido de um mais-valor sem que necessariamente recorra a uma exploração empresarial da força de trabalho enquanto substância do valor. Daí o colapso da modernização – que nada mais é que o terminal histórico do projeto inacabado imanente a uma modernidade sempre devedora de si mesma, que se volta contra si mesma – tal como era concebida antes e a caduquice dos atuais discursos reformistas ou modernizantes: modernização e reforma hoje têm o sentido histórico inverso do que tinham antes, quer dizer, não têm nada a ponto da força viva de trabalho se tornar um empecilho a ser eliminado. Cf. Marilena Chauí – A Universidade Operacional; Entrevista de Franklin Leopoldo – Despolitização leva ao empobrecimento intelectual da USP. Sobre a história da USP e sua passagem para um processo de racionalização administrativa e de modernização do perfil universitário, cf. Texto de Melissa no Boletim da Filosofia de 2017 (2) Aqui se deve pesar a relação entre Estado e mercado a fim de evitar a visão do Estado como um Outro do mercado a ser


de ascendente rumo a uma autonomia de desenvolvimento– que implicava industrialização – dos Estados Nacionais e a realização de direitos plenos ou ainda de valores próprios a uma sociedade esclarecida e imbuída de promessas civilizatórias, mas descendente a nível mundial, fazendo de todo governo – de esquerda ou direita – administração de emergência de uma massa cada vez maior de sujeitos-dinheiro (proletariado) sem dinheiro (ou sem emprego), o que não se dá sem a escalada punitiva em diversas esferas de atuação do Estado Penal e que atinge a base da pirâmide social – que é majoritariamente negra – e os recalcitrantes da vez e da hora. Além de se limitar a uma forma de “inclusão financeirizada” que não tem relação orgânica alguma com um desenvolvimento econômico ligado à geração massiva de empregos estáveis e direitos sociais plenos como outrora, apesar de ter sido um esforço sempre incompleto, mas com validade história vencida do ponto de vista da história interna do capitalismo. E cabe lembrar que se tratando de Brasil, trabalho informal, precarizado, sem carteira assinada, não reconhecido etc, sempre foi presente, tendo como horizonte a extensão da cidadania regulada pela carteira de trabalho como forma de inclusão às relações entre capital-trabalho administradas e, portanto, ao próprio estatuto de cidadão. Se há um caráter objetivo da crise, sua causa não deve ser subjetivista ou intencional, ligada à irresponsabilidade administrativa, ou ao modelo institucional adotado, mas deve ser analisada no nível das relações sociais reificadas no capitalismo e baseadas na exploração em prol da acumulação de uma coisa tornada sujeito: o trabalho morto ou valor – e em relação a qual o trabalhador, o capitalista industrial, o banqueiro etc, não passam de personificações do capital, veículos ou máscaras postas e respostas a serviço de uma coisa que determina o sentido da produção social. Assim, a crise é a crise posta necessariamente pelas relações capitalistas e que tem como uma das formas de manifestação imediata essa generalização da concorrência e da racionalidade empresarial a todas dimensões da vida social como forma de salvaguardar a própria existência do Capital que emancipado da sua determinação burguesa. Historicamente, há um movimento ondulatório onde domina ora um estatismo (seja na sua forma Keynesiana, seja na Economia de Comando da União Soviética, em que o aparelho de Estado com sua casta tecno-burocrática vale pela burguesia enquanto ‘grande -ausente’, induzindo a expropriação absoluta do trabalho ao mesmo tempo em que impunha – com sua valorização ideológica do “trabalho” e do “trabalhador” enquanto mediação universal da sociedade – a vocação profissional secularizada, quer dizer, o velho ethos protestante só que agora ajustado

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produziu uma sociedade com dívidas eternas e uma massa de sujeitos que, dada a onipotência da socialização pelo mercado, tem que se virarem para sobreviver – a base objetiva da subjetividade empreendedora de si, subjetividade induzida pelos bancos e pela sebraeização da vida como salvação. Como eu ia dizendo, o comum num nível e noutro – Federal e Universitário – é, por um lado, o discurso que enfatiza a estabilidade orçamentária frente a todas as outras questões, o que explica a indiferença do imperativo da estabilidade em relação às demandas sociais por direitos. O que explicita, me repetindo, que o papel histórico do fundo público no capitalismo não é mais de ser gasto de forma extensiva no setor social (nesse o imperativo do fazer mais com menos já esta vingando) e produtivo. (5) Por outro, a mobilização da necessidade ou crise como forma de atribuir um caráter racional a determinadas medidas como única forma de se retomar ao crescimento econômico-nacional ou o ímpeto modernizante da Universidade, ambos (crescimento e modernização) tomados como objetivos inquestionáveis pertencentes a um horizonte comum e que sustentam, portanto, a coesão de nossa experiência social ameaçada pela crise. Contudo, aquilo que ameaça a coesão é o que garante a própria coesão, quer dizer, ao evocar a crise e a necessidade de superá-la a todo custo, mesmo com medidas que parecem descabidas, faz dela um elemento de coesão social na medida em que a legitimidade do governo social se dá mediada pela crise e pelo afeto de medo a ela ligada, algo que toma as pessoas por fora e por dentro. Nesse sentido, parafraseando o que a Melissa escreveu, no Boletim organizado pelo Jornal da Filosofia, sobre o discurso técnico-gerencial ou empresarial internalizado e naturalizado pela nossa Universidade, o discurso da crise orçamentária ou da austeridade, pertencente a essa linguagem gerencial, impõe uma linguagem e um sistema de classi-

ficação que estrutura o pensável, na medida em que determina o que pode e o que deve ser a Universidade. Mas essa determinação de todo o pensável

possível, quer dizer, do que é a Universidade, de que medidas devem ser adotadas, que critérios devem ao aumento da graça secularizada do Capital enquanto novo Deus) ora um monetarismo em que a apropriação privada da mais-valia ganha espaço. Ainda nesse último caso, o Estado ainda se faz presente, como fica claro no nosso tempo em que o Estado que se desmorona – o Estado Social – é substituído por um Estado Penal, caracterizado não só pelo encarceramento em massa, mas pela extensão da racionalidade punitivista como gramática que faz a mediação de nossa questão social e que afeta os próprios programas sociais focalizados e que acenam também para uma nova forma de tratamento – o ge-

ser valorizados em detrimentos de outros, é uma determinação puramente ideológica, na medida em que apaga a si mesmo como determinado politicamente e como estabelecendo relações apologéticas com a calamidade atual da nossa Universidade. E opera esse apagamento instrumentalizado a necessidade e, portanto, o caráter inevitável das medidas adotadas, como se elas partissem “de um saber objetivo e impessoal portador de uma racionalidade inscrita no real, aparecendo como um depositário da verdade” (Melissa, Boletim da Filosofia 2017). Assim, as relações de poder subjacentes ao discurso como forma de reprodução ou institucionalização dessas próprias relações, e estas relações de forças ou de dominação como aquilo que o discurso supõe como condição de sua atualização e disseminação dos seus efeitos de verdade ficam não tematizadas.

mo Conselho Universitário como forma de garantir a aprovação da PEC do Fim da USP, ou, ainda, o fato de o Reitor aprovar acordos as escondidas, como aquele realizado com a McKinsey, e apresentar como justificativa quando questionado o fato de o Conselho Universitário, um órgão legislativo, ser um obstáculo para que se tomem medidas que são necessárias, isto é, urgentes. É esse discurso, portanto, que é evocado para dar ao reitor o caráter de Soberano: aquele que, ao declarar uma situação de emergência – no caso a crise orçamentária – se coloca ao mesmo tempo dentro e fora da Lei, e que faz com que suas decisões, mesmo que ilegais ou inconstitucionais, tenham força de lei e possa até ser feitas em nome da lei e da ordem, enquanto a lei deixa de se aplicar, apesar de existir formalmente.

Daí a performatividade do discurso sobre a crise orçamentária enunciada. Quer dizer, esse discurso é performativo à medida que produz o que enuncia, ou seja, a enunciação não é meramente um conjunto encadeado de signos linguísticos neutros que constatariam fatos e regimes de causalidades inegáveis, mas possui um teor existencial ou prático que influi na experiência vivida da Universidade. Um indício desse teor performativo é o fato de que a própria precarização produzida pela necessidade de cortar gastos justifica a impossibilidade de manter certas atividades, pois mina as condições de manutenção de existência das mesmas, produzindo uma situação de precarização que já tem como solução um conjunto de medidas que só generalizam a internalização do princípio de concorrência na Universidade e confirma o diagnóstico já feito: o de que a Universidade se tornou Operacional ou um Simulacro de Fábrica.(6)

Mas o que é essa crise que a reitoria fala, para além de uma técnica de governo sob a exceção que aqui esboçamos? De acordo com o discurso oficial, a crise é uma crise orçamentária cuja causa é a inflação do seu quadro de funcionários, seja professores seja técnico-administrativo. São, portanto, gorduras que devem ser queimadas, nas palavras do Zago, juntamente às outras atividades da Universidade que são vistas como secundárias: as creches, o Hospital Universitário, permanência etc. Daí a criação de medidas como o estabelecimento de um teto de gastos com o corpo de funcionários, mais precisamente os que estão na base.

Assim, o falar da crise dá as bases – nada de vontade geral ou qualquer outra coisa abstrata de outrora – para um governo da Universidade que é um governo de exceção, quer dizer, a exceção não é um acidente mas componente imprescindível de uma estratégia ou de uma formação de poder. Daí que não é possível pensarmos esse discurso e sua performatividade sem pensarmos sua relação funcional com a repressão realizada pela PM no últirencial, ligado a constituição de um mercado da cidadania – da nossa desigualdade social. Assim, o Estado também não deixa de se relacionar com o mercado e de ter um papel fundamental a partir de parcerias público-privada, em que os editais são a figura por excelência dessa dinâmica que transfere fundo público para empresas privadas gerirem de forma “eficiente”. (3) Cf. O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, p. 298. (4) “… a causa da crise é a mesma para todas as partes do

A falsidade dessa análise do ponto de vista das causas da dita crise orçamentária explicita, entretanto, um momento de verdade, que é aquele ligado ao projeto de poder da universidade. Quer dizer, o que parece é que não se trata de sair da crise, mas de produzi-la – com o auxílio de um efeito de verdade a partir de um discurso que evoque as causas – como técnica política que torna possível garantir certos objetivos político-econômicos e que rebaixa o horizonte de expectativa daqueles que poderiam a eles se opor, produzindo uma insegurança via, principalmente, precarização do trabalho. Assim, por exemplo, ao aumentar o produtivismo acadêmico e a concorrência entre pares; ao aumentar a terceirização, produzindo obstáculos para a auto sistema mundial produtor de mercadorias: a diminuição histórica da substância de ‘trabalho abstrato’, em consequência da alta produtividade (‘força produtiva ciência’) alcançada pela mediação da concorrência. No entanto, o sistema produtor de mercadorias está vinculado à sua finalidade inerente tautológica e depende do crescimento interminável, em escala mundial, dessa substância de ‘trabalho’.” (Kurz, R. O Colapso da Modernização, p. 220). Daí que esse processo contraditório não deixa de operar em nível intraclasse, pois se o aumento da produtividade mediada pela concorrência, seja nacional

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organização, em decorrência das ameaças constantes de demissão, rotatividade entre os espaços, sobrepondo o não-lugar ao lugar, e uma hierarquia entre os funcionários; ao desmantelar nossos espaços de convivência e organização, o que se produz é principalmente uma desmobilização política por mobilização excessiva da força de trabalho e por um desmantelamento dos espaços que tornariam possíveis a construção de uma subjetividade política. Parece, então, que é essa produção da insegurança que Zago visa ao falar que se trata de tirar os funcionários e professores da zona de conforto. Pois se trata de retirar cada vez mais a proteção social que o trabalho efetivado possui em prol de um trabalho inseguro, precarizado e de alta rotatividade.(7) Com efeito, a realidade vivida na Universidade não deixa de ser um reflexo da acumulação flexível global do capital e da nova forma de governo – um governo punitivista e assentado na responsabilidade de si num ambiente de hiperconcorrência em que cada um deve responder por seus próprios fracassos - que ela engendra como forma de salvaguardar seu objetivo narcísico. Assim, na esteira da análise das causas da dita crise orçamentária, Maria Carlotto num texto recente publicado no Outras Palavras(8) mostra a partir de uma análise dos dados fornecidos pelo Anuário de Estatística da USP, que o quadro de funcionários bem como de professores se mantiveram estáveis e que a crise poderia, na verdade, ser efeito da correlação entre aumento da USP (cursos e campus) e do congelamento do valor do repasse a Universidade. Mas aqui se trata menos de uma discussão sobre dados, mas do estatuto da crise enunciada e dos mecanismos de controle, repressão e exploração que o governo da Universidade produz como se fossem necessários e racionais. Por fim, talvez seja necessário salientar que fazer uma crítica ao atual curso da Universidade começa por fazer uma crítica também a ideologia que é executada em diversos níveis, e que é uma ideologia também do “diálogo” e que sua adoção acaba por desmoralizar ainda mais a violência dos movimentos de resistência, como se fosse uma espécie de tabu ou pecado, enquanto deveria ser traou mundial, produz seus “perdedores” e um número cada vez menor de “vencedores” que se apropriam da massa global de dinheiro, este aumento também diminui a massa global de valor e mais-valia a ser apropriada, quer dizer: vencer significa destruir o próprio capital, o que não significa que seja algo bom, ao contrário, esse processo deixado a si mesmo leva a humanidade a caducar e não há nenhuma mudança nas relações de produção incitada pela liberação contínua das forças produtivas/destrutivas que já alcançaram a muito tempo um nível capaz de erradicar as necessidades, historicamente pro-

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tada em termos de eficácia das suas formas. Todo o discurso oficial que tentamos abordar aqui e que se apresenta como neutro, universal, se apresenta também a partir da ilusão de um “entre-nós” que teria no diálogo a possibilidade de resolução de conflitos dentro de um mesmo horizonte normativo. Quer dizer, o diálogo em sua dimensão ideológica é uma forma de apagar uma cisão sociopolítica existente, e instaurar uma dimensão impessoal que retifica a ilusão de que as medidas tomadas sem tematizar o próprio projeto de Universidade são medidas técnicas que melhorariam as relações num plano consensual que mina o próprio fazer político e, portanto, a própria possibilidade de transformação radical da Universidade governada – em consonância com a exceção permanente e normalizada desde a transição infindável para o Estado Democrático de Direito – sob bomba, austeridade, tiro e muito “diálogo”. Principalmente se entendermos por “diálogo” uma espécie de “dar-as-mãos” em que todos se juntam num grande acordo para o governo gerencial da Universidade, ou por aquilo que o Franklyn Leopoldo chamou de democracia selvagem: “O que é democracia aqui? Todo mundo em paz, não briga com ninguém, não briga com o reitor, não briga com o governador, cada um faz o que quer, eu não lhe atrapalho, você não me atrapalha.” Dada a velocidade do dito desmonte, o que se impõe é o limite desse próprio diálogo. Entre-nós, ainda mais com o estatuto abstrato que assume, de forma a produzir uma igualdade formal, só mesmo o dinheiro como nexo social. Então, quando o dinheiro fica escasso, cortando gastos, é de se prever que as tensões se acirrem, o que em si não tem nada de emancipatório. A escassez do dinheiro é isso: perda de nexo social ou de validade social das pessoas, já que o que determina essa validade, isto é, a socialização e mobilização no tecido social é uma forma social quase-objetiva: o dinheiro. O dinheiro é uma forma social autonomizada em relação aos seus agentes e que representa as próprias relações sociais capitalistas como objetivadas, isto é, como propriedades das coisas, que passam elas mesmas a se relacionarem por meio das pessoas e só assim estas se relacionam, isto é, por meio do dinheiro enquanto representação universal de todo trabalho abstrato – em escassez – e por isso social e de toda riqueza

abstrata produzida por ele. Entretanto, na medida em que dinheiro não é só forma em que dispêndio de trabalho é encarnado, na medida em que não é só meio de expressão de equivalência de todas as mercadorias, mas momento de expressão de um processo de produção social (em crise) - acumulação de dinheiro enquanto Capital – o segredo da igualdade formal passiva é, portanto, a desigualdade social, incluindo ai como constitutivo desse processo as relações raciais e de gênero, a destruição da natureza, o genocídio, a pilhagem em adoração de uma coisa animada, abstrata, mas real. O caráter real do abstrato faz com que o concreto se torne seu mero predicado e seja essencialmente, portanto, abstrato. Quer dizer, a abstração não é um processo do pensamento, em que se extrairia aquilo que há de comum num diverso, mas um processo de redução real das distinções qualitativas a um abstrato que organiza a vida social e que a valida - todo um socius como reprodução de um corpo pleno do dinheiro enquanto capital. O valor de uso exemplifica bem isso: ele não vale, na relação capitalista, enquanto algo da ordem do singular, mas enquanto concreto qualquer que serve de suporte ao valor, adquirindo, ele mesmo, portanto, um papel formal. É essa indiferença em relação à vida naquilo que há de intensivo e qualitativo e a subsunção de seus elementos ao abstrato enquanto aquilo que faz com que o capitalismo assuma uma força destrutiva nunca antes vista.

duzidas,

r uma população universitária docilizada, disciplinada e passiva. Sobre isso cf. Pablo Ortellado, A Fábrica de Papers e Paulo Arantes, Capitalismo Acadêmico.

no

meio

da

abundância.

(5) Sobre essa mudança história do papel do fundo público, ver Marilena Chauí, Universidade Operacional, p. 4. (6) Sobre a ideia de que é um Simulacro, é porque a universidade não produz valor e ou ‘mais-valor’ encarnado em mercadorias e que seriam realizados na instância de compra e venda de mercadorias, consumando o movimento D-M-D’. A funcionalidade da racionalidade empresarial é outra: produzir

(8) http://outraspalavras.net/brasil/usp-o-que-a-reitoria-e-a -repressao-tentam-esconder/

(7) Cabe aqui a constatação da Angela Davis sobre a quem toda a reestruturação do regime de trabalho no atual estágio de capitalismo de desastre atinge: “Poderia ter sido previsto que os negros, especialmente as mulheres negras, que, em muitas instâncias, tinham sido os últimos a serem contratados, seriam os primeiros a serem demitidos.”

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ISABELA

Felipe Alberto Lopes

Eu

era amiga dos dois, colegas de trabalho. Trabalhávamos todos em um escritório. Nesses onde só se veem os funcionários e papéis amontanhados. Éramos um grupo de vinte e tantas pessoas, presas ali no cotidiano. Ela, Isabela, era uma menina que se escondia. Vivia na maior timidez, todo medo de ser vista. Nunca falava em público e aceitava as ordens com uma obediência de quem não tem mais pra onde ir. Era grata por ter emprego, mesmo um desses de saláriomínimo. Ele, Ícaro, também era de poucas palavras e não se apresentava muito. Porém não ligava muito para o emprego, desejava um mundo muito maior do que tinha. Estudava filosofia, era músico e desenhista, passava o tempo todo lendo livros sobre artes e humanidades. Às vezes eu achava que ele não conversava impedido por timidez, outras vezes achava que ele não conversava por que não queria se contaminar com nossas mentes menores. Por reformulação no layout do escritório, as mesas todas mudaram de lugar. Assim, Ícaro e Isabela ficaram trabalhando frente a frente. Um olhar mais fugitivo que o outro. Ela se escondia por trás de florestas espinhentas, enquanto ele desenhava bravos cavaleiros. No castelo onde ela vivia e estava adormecida há cem anos, algo despertava. Despertava o que não havia; vazios. Começaram a ter pequenas conversas anedóticas, coisas de trabalho, e às vezes dali saíam sorrisos. De vez em quando saíam juntos.

mais que tudo no mundo. Ele contava belas histórias, de Tristão e Isolda a Simão e Teresa. Eles tinham as bênçãos das fadas, haja suspiros. Ele apresentava o mundo das artes, das letras e da filosofia, tudo bagunçado na cabeça dele, e ela aceitava tudo sem questionar. Ela o idolatrava. Acabei virando a melhor amiga do casal, conselheira e terapeuta, pois nenhum deles tinha experiência com relacionamentos. Ele nunca foi muito sortudo com mulheres. Ela nunca fora escolhida, aguardava ansiosamente o dia. Já se apaixonara muitas vezes, metade por personagens de filmes, e a outra metade ficava esperando o destino acontecer. Não podia ir atrás dos homens, não é coisa de mulher decente. Ela me contou que Ícaro era seu primeiro namorado, e que deveria ser o único, pois sua mãe só teve um homem durante toda sua vida. Ela tinha certeza que se casaria com ele, ele é perfeito. Ele a deixou com borboletas no estômago. A tirara de um estágio de quase morte para reviver em um mundo de alegria, beleza e encanto. Ela me disse, em dois meses de namoro, que não viveria mais sem ele.

Ele me contou uma vez que, quando foi na casa da Isabela pela primeira vez, ela estava toda toda, orgulhosa por ter feito um almoço delicioso. A mãe estava ensinando a fazer comidas diferentes, porque ia precisar, quando logo. Ela havia também limpado a casa, e ele andava no chão com os brilhos da dedicação dela. Contava essas coisas dando risada. Achava extremamente engraçada a situação. Não por ela ter feito isso, mas pelo que poderia significar. Era todo cheio de achar sentidos nas coisas. Disse “parece que estou namorando com minha avó”. Chegou o dia em que fiquei espantada. Verdade, todos nós. Estávamos todos traba Eu sabia, porém, que ele se referia à Mãe lhando quando os vejo digitando com uma mão dela. Isabela era sem-amigos. Era sozinha pela só. Estavam de mãos dadas, em um entrelaçamaior parte da vida. Seus pensamentos e seu mento sereno. As faces mostravam uma seriemundo foram formados em conversas com sua dade, estavam ambos concentrados em cummãe, ideias de tantas décadas. Ela não formaprir. No profundo de si, estavam lutando pra va nada de seu. Qualquer conflito de ideias era não voltar atrás. Entendemos, aquela era uma marcado por uma vitória do pensamento de sua declaração de enamoramento. Não precisamos mãe, que lhe explicava o mundo, tintim por tinperguntar, as mãos declaravam e os olhos contim. A família toda estava congelada no tempo. firmavam. Todos sorriam pra eles, e com isso Ela era inocente, virgem de corpo e alma, pois sentiam o mundo menos pesado. os pais haviam protegido de tudo que podiam. Ela não conhecia a maldade que paira sobre a No que se segue, eles passavam o tempo terra, mas sua mãe contava histórias de como todo juntos, da hora que chegavam à hora que as pessoas eram cruéis e de como os homens iam embora. Eu me perguntava se não iriam ennão eram confiáveis. Agora ela vivia um conflito. joar assim, talvez. Todo dia de manhã ela cheAlguém apresentava um mundo completo novo, gava mais cedo, e enfeitava a mesa dele com diverso do de sua mãe, foi ganhando tanta influcartinhas perfumadas, declarantes de um amor ência quanto ela. 36

“Minha mãe falou que quem estuda filosofia é louco” disse ela uma vez. Ele riu. “Você acha que eu sou louco?” “Minha mãe que falou, minhas primas riram e concordaram.” “E você, o que acha?” “Não sei, não entendo essas coisas.” “Você tem que achar alguma coisa. Já te expliquei o que é filosofia.” “Não sei!” Isabela começou a chorar. Sempre chorava, as lágrimas não viam a hora de pular de seus olhos. Ela não sabia em quem acreditar mais. “Calma, calma”, tentava desentristecer. “Sabe, eu acho que sua mãe está certa, de alguma forma. Mas, ao contrário, não acho toda loucura ruim. A filosofia é uma espécie de loucura boa.”

pensa naquilo, e que ele iria embora se ela não entregasse sua pureza. Ela acreditou tão bem, como a fé dos desesperados. Queria de qualquer forma que ele a tocasse. Mas ele estava convencido a não avançar mais estágios. Sabia que ia voar, e não levaria nada de tão valoroso para ela e para a sua família, cumpridora de tradição. Eu ficava tentando fazê-la entender que a vida é possível sem ele. Mas o choro era inevitável.

E foi o que estava pra ser. Ele queria um tempo, pra pensar. “Quanto tempo?” “Não sei”. Ela não conseguia soltar. Nunca. Ele determinou: “Se não puder ter um tempo, não consigo mais.” “Me ensina como tenho que ser, pra você.” “Não posso.” Ele chegava na empresa e nem falava com ninguém, muito menos com ela. Pediu até pra Ela o achava tão sabido. Nunca consegui- trocar de lugar com o Jobson, colega nosso. Asria ser tão inteligente quanto ele. “Não sou tão sim, saiu da frente dela. Mas isso não impediu assim, acho que você não está me enxergando de ter cartinhas todo dia, cada vez maiores e direito”, ele repetia zilhões de vezes. Ícaro co- mais salgadas. Ela continuou ligando três vezes meçou a ficar com medo. Sentiu que tinha pode- ao dia. A mãe tentava interferir, mas Isabela não res sobre ela que não devia. Poderia moldá-la que mais obedecia. E ele cumpriu o prometido: “Eu não havia resistência nenhuma. Tomava cuidado disse que não aguentaria, então…” pra não abusar. Em uma semana ele a convencera que rock era o melhor gênero musical que No dia seguinte ele não veio, e ela toda existe. Ela já tinha parado de ouvir sertanejo, que hora olhava sua ausência na cadeira. No dia setanto gostava, e agora só ouvia rock. guinte também não, e no outro. Uma semana depois, relatam, foi visto no RH, assinando. Com o tempo ele foi ficando irritado com a passividade. Explicava que ela não deveria con- Isabela não conseguiu trabalhar direito por cordar com tudo, deveria ser dona de si, empo- muito tempo. Só não foi demitida por minha inderada. Ele se sentia vergonhoso por ter de ex- sistência junto ao chefe, tudo ia passar. Ícaro plicar isso, não era seu papel. Ele entendia que permaneceu espetando agulhas em seu coração a vida não era a busca do outro, metade da la- por semanas. Quatro meses de namoro, um mês ranja, que preenche nossos vazios. A vida é um e meio de esquecimento. Saiu. E com sua saída, encontrar-se enquanto laranja toda inteira. Ele algo surgiu dentro dela, o sol e a lua, a grande não poderia ser príncipe, só é completa a pessoa borboleta, completamente. que é príncipe e princesa, conjuntamente. Eu não concordava com ele em completo, mas achava a dependência dela perigosa. As cartas diárias eram cada vez mais exageradas. A coisa começou a ir mal, ele não estava preparado para ser o mundo de outra pessoa, não queria tanta responsabilidade. Não queria ser a condição de existência de ninguém. Estava desgostado daquilo. Premeditava. Mas toda conversa que tentava ter, anunciando que ia mal, acabava em choro, soluço e desmaio. Ela era o puro medo. Sim, desmaiava. E ele não sabia o que fazer além de esperar os quinze minutos até voltar ao normal.

A prima dela havia dito que homem só


JUSTIFICATIVA DO DIA 0,1 Youkai

Qualquer semelhança com a ficção é mera re-

alidade. Cabisbaixo seguia o jovem pensando em aprender a soltar pião. Se as pessoas, assim como eu, tivessem a coragem de assumir suas dificuldades, o mundo seria um lugar muito melhor, pensou. Elas deveriam se inclinar e aprender junto aos outros. Sabia exatamente onde encontrar um santo de madeira de um dono esquecido entre o tempo do fundo de uma gaveta. Mas não sabia, nem na teoria, o que era soltar um pião. Mentia ser dono do objeto acompanhado do esquecimento, o tomou como seu, gastou alguns centavos em uma corda e a enrolou sobre a sustentação cilíndrica. Ela soltou, enrolou novamente, e novamente. Arremessou uma vez sozinho, outras vezes igualmente. Acertar o encobrimento e a adequada firmeza das voltas era primordial, prender bem ao dedo a ponta da corda, era o gancho que, das diversas virtuosas tentativas curavam a moléstia do vício do erro. Mesmo assim ele errou todas as vezes. Pediu conselhos ao pai. Sua técnica era estranha, arremessava o santo de ponta cabeça, mas ele sempre caia de ponta no chão. Tentou imitar a gênesis, confessou as heterogêneas e metódicas interpretações sem jamais acertar a mão. Arremessava a madeira contra o chão inventando novos métodos de produzir sons ocos, geralmente a corda nem sequer terminava de desenrolar-se do corpo, ou mesmo o tranco pu-

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xava perigosamente a peça contra si mesmo. Quedas laterais, cordas frouxas que não davam torque; devotou muita retórica e não obteve resultado. O que significa aprender junto aos outros, talvez seja aprender consigo mesmo. Esticou a corda de braço a braço, cortou o resto que sobrava do tamanho total e, com uma corda pouco menor do que o comprimento de sua altura e aproximadamente equivalente à envergadura de seu tronco, enrolou o santo e tentou novamente, e mais uma vez. Divulgou um acerto e seguiu com maior prestígio nos próximos. Então é assim! Relatou que o alcance de sua técnica era a precisão do arremesso, o pião caia onde ele queria que ele caísse, e girava, girava, furava a terra e cumpria seu propósito. Aprendeu por fim, adaptando os limites de seu corpo à correta motivação e experiência. Dias depois testou o santo na ladeira, errou o arremesso e mergulhou sobre sua responsabilidade o seu personagem no único bueiro de distância blasfematória. Maldito seja deus, pensou. Criatura de recursos limitados, investiu as economias em outro santo confesso, e pra ser sincero, este era mais santo e menos oco que o anterior, mesmo que fosse menos sagrado. Desenvolveu novas habilidades públicas, e com fé aprimorou o perdão do giro sobre a mão, sobre a corda, sobre o pé, antebraço, poças da água, poças de barro, terrenos de pedra, escadas da escola, mesas da escola, lousa da escola, amigos da escola... e com precisão de copo, mesmo quebrando alguns, acertava exatamente onde queria. A fieira curta do inefável alcançava

os obstáculos mais diversos. Aprendeu o arremesso de prédio, o estilingue e a dor nas juntas. Uirá Gamero Lançava sobre o asfalto, sobre o mármore, sobre o piso, sobre a almofada e sobre a sagrada folha de zinco, a melhor cotagem jamais observada Não existe maldição que não possa ser rompida por seus olhos seria sobre o menor atrito bene- O que não nos mata, nos fortalece. fício, de minutos mágicos cronometrados e hoje E o que nos mata, fortalece mais ainda esquecidos. Grande competidor mesmo com torque menor. A precisão resultava na baixa perda por impacto e na suavidade do pouso e percurso de giro. Jamais furou seu testemunho para que o giro produzisse sons assoviados, nem pintou a narrativa de cores primárias para sedimentar efeitos cromáticos, o santo era marrom; temia as rinhas de racha e sua brutalidade filosófica. Nunca ganhou nenhuma competição que não fosse o segundo lugar instigado por uma distração que o fez perder uma das três rodadas que somavam o placar. Não se arrepende por culpar o azar de ter amigos de mais.

XIII – A MORTE

OS CEM HOMENS Bruna Mello

ENTRE ESTAÇÕES E RUAS ENTRE ESTAÇÕES EM GASOLINA GENTE IA INDISCRETAMENTE SOBRE FAIXAS FUMO SUMIA FEITO TEMPORAL GARGANTA RANGIA MIL JUNÇÕES RASGANDO GRANDES REVISTAS ERAM INTEIRAS FOLHAS NA CIDADE GRANDE RONDA TINHAM RUAS ENTRE RONDAS RONDANDO GENTE RONDAS GOZAVAM RENTE ENTRE GRITOS RISOS NA FRENTE SUAS NOTAS SOBRESSAIAM FOME DOS CEM HOMENS DA RUA SEM TETO UM HOMEM DESSE LEVANTANDO TERRA ENTRE TRAVESSAS DUVIDANDO SE HOJE RECEBERIA ALGUMA OFERTA NÃO INVADIA RUAS DE GENTE INVADIDA PELA FRENTE NÃO ENTRARIA NA ESTAÇÃO ENTRE RUAS ATRAVESSARIA A FAIXA E NUNCA OLHARIA PRA TRÁS FUGIRIA JUNTO CONSIGO ASSIM COMO OS OUTROS GRITARIA EM TODAS AS NOITES NÃO DORMIDAS SE BANHARIA COM ÁGUA BENZIDA E SE PERFUMARIA

DOS VENTOS CINZAS FUMARIA FUNDO ENQUANTO VERIA O AMANHECER QUENTE RECUSANDO ROUPA CONVICTO VALSARIA NU SOBRE A CALÇADA CHOVERIA NO PRÓXIMO DIA NÃO AMANHECERIA ASSIM NÃO HAVERIA NO PRÓXIMO DIA A MESMA SINTONIA ESSE HOMEM NÃO MAIS SONHARIA PORQUE ESSE HOMEM NÃO MAIS PERDERIA A ESTAÇÃO ERA ELE LEVANTANDO TERRA DEBAIXO DOS PÉS À NOITE O TERRENO EM DECLIVE E ELE POR CIMA DO PICO OUVIA OS SONS EM SINTONIA NÃO ERAM PÁSSAROS NÃO HAVIA RIMA ELE SÓ ACREDITAVA NO QUE VIA DA FANTASIA DESACREDITAVA EM VÃO MAS SERÁ QUE SABIA QUE NA REALIDADE VIVE ILUSÃO? ELE ERA SOZINHO ELE ERA QUALQUER UM ELE ERA TODOS OS CEM HOMENS DA ESTAÇÃO 39


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vani, vamos lá: “Professor, esta semana tive um sonho bastante confuso, era como se a minha casa não pertencesse a mim ou a ninguém da Pedro Naletto minha família, mas que qualquer pessoa pudesse transitar livremente pelos cômodos. Ainda assim, ninguém causou nenhum dano às minhas O professor entra na sala e enquanto espera coisas, todos que utilizavam algo se preocupaque os alunos se assentem começa a explicar vam com sua conservação e tinham bom senso sua nova proposta para a organizar o levanta- durante o uso. O sonho me fez pensar na prómento de dúvidas durante a aula. Haverá uma pria natureza da propriedade privada, pois o caixa em minha mesa, na qual deverão ser de- meu sentimento de que algo no sonho estava positadas, por escrito, as dúvidas referentes à errado me pareceu estranho, me incomodou, aula. É interessante que vocês possam elabo- era como se a situação só causasse espanto rar suas perguntas com calma e de forma cla- em mim, como se a casa fosse na verdade o ra, que vocês realmente compreendam quais próprio mundo e a questão fosse como eu me são as suas dúvidas. Além disso, é possível que relacionava com ele, como entender a relação a sua pergunta seja respondida no decorrer da do eu como parte do mundo e ao mesmo tempo aula, ou que você mesmo encontre a resposta, separado deste, pensando-o. A minha dúvida é por isso acredito que a caixa de dúvidas pode se as minhas interpretações do sonho podem ser interessante para a dinâmica da aula. Quan- estar corretas e qual a relação, se houver, entre do faltar vinte minutos para o final eu começa- isto e a obra que estamos estudando.” rei a respondê-las. A aula prosseguiu normal- O fim da pergunta foi seguido de algumas mente e as dúvidas foram sendo depositadas, tímidas palmas, então o professor agradeceu vez ou outra alguém levantava a mão ainda esperando ser atendido na hora, sendo logo lem- pela pergunta, ressaltou sua pertinência e importância e cumprimentou Giovani, que seguiu brado do novo acordo por algum colega. contente de volta para sua carteira, enquanto o Quando o final da aula já podia ser ante- professor retornava à caixa para sortear a percipado no discurso do professor os alunos co- gunta seguinte. meçaram a ficar inquietos. Desejavam que sua pergunta tivesse uma chance de ser respondida, mas viram muitos papéis ser depositados na caixa e certamente vinte minutos não seriam suficientes para atender a todos. Quando a exposição finalmente terminou o professor anunciou a hora das perguntas e foi até a caixa dizendo que iria sortear a primeira pergunta a ser respondida. Neste momento a tensão cresceu entre os estudantes, o esclarecimento de suas dúvidas legado ao acaso era algo que agitava os ânimos, brincava com as esperanças e fomentava as expectativas dos jovens alunos. O professor enfiou a mão no buraco da caixa e misturou os papéis com a mão, primeiro no sentido horário, três ou quatro vezes e depois no sentido anti-horário, mais duas vezes, antes de retirar a primeira pergunta. Segurando o papel, anunciou que a pergunta sorteada era a de Giovani dos Santos. O garoto ficou instantaneamente atônito e permaneceu assim enquanto era cumprimentado pelos colegas ao redor. O professor convidou-o a vir à frente da sala e esperou enquanto o aluno saia de sua fileira e descia as escadas.

UMA DÚVIDA

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A primeira pergunta de hoje é a do Gio-

CACHOS DESOURADOS Felipe Alberto Lopes

Uma vez eu vi, e era, uma menina, de cachos

enormes. Ela entrava em finais de infância, era semiadolescente. Negra, linda de doer. Passava o dia todo brincando em casa. A mãe, que cuidava dela, deixava-a fazer de tudo, de modo que se tornou uma menina de boa vida. Era faladeira e tinha resposta para tudo na vida. Poucos conseguiam desargumentá-la. A vida era agradável, enquanto era. Mas deu-se que a mãe adoeceu e veio a partir dessa para a de cima. Foi um Deus-me-ajude. Todos choravam e lembravam das cenas boas da vida da mulher, mas ninguém chorava mais do que a menina, escondida nos cachos. Ela era só lágrimas. Procuraram o pai, já sumido no mundo, e não acharam nem indícios de pistas. Era um fugitivo profissional.

“Está muito frio, meu mingau” ela disse. Os outros da mesa se entreolharam e não esboçaram palavra. A mãe pegou a tigela e colocou no micro-ondas. Quando o mingau voltou à mesa, estava fervilhando, de queimar a língua. A menina não falou nada. Ficou girando a colher até o mingau esfriar um pouco, numa temperatura comível. Na mesa discutiam que não iriam poder mandar a menina pra mesma escola do filho, pois era muito caro, impossível. Nas manhãs seguintes, ela acordava cedo pra ajudar a cuidar do café. Se treinava pra casar. Lavava roupa, varria a casa, tudo conforme uma moça prendada. Ela queria mais tempo para fazer a lição, pois ficava muito cansada durante o dia.

O Menino não gostava muito de brincar com ela. Nem de deixá-la a sós com seus brinquedos. E foi o fim do mundo quando ela, por descuido, sentou na sua cadeirinha preferida e quebrou, pois era mais pesada do que o supor Decidiram que ela ficaria com os padritável. O garoto fez o auê, deixou de comer e nhos, família estruturada. Era o pai, grandigorgritou até conseguir o que queria: a menina fora do, a mãe, magribaixa, e o filhinho, pouco mais do seu quarto. Ela passou a dormir na sala, no novo que ela. Moravam numa grande cidade, maior sofá. que parecia floresta de cinzas e concreto. Ela fora apadrinhada porque eles tinham dinheiro Um dia, enquanto o pai trabalhava, o mepra comprar brinquedos, e os agradinhos tonino e a mãe foram na festa de um colega da dos. Mas na verdade só a viram duas ou três escola. A menina não quis ir e ninguém contesvezes, na casa de conhecidos em comum, destou. Como ato de rebeldia desmedida, entrou combinados. Eles esqueciam-se da menina de no quarto azul e brincou com os brinquedos quando em quando. E só lembravam quando altodos, até acabar-se a energia, e adormeceu na guém perguntava dela. cama pequenina. Ela foi, instalou-se no quarto todo azulzinho, feito nuvem fina. Levou seus pertences de vestir e de brincar numa trouxa, e acomodou dentro do guarda-roupa, diante do nariz torcido do menino.

“Mas o quarto é meu” exigia ele, já em caminho de fazer birra. Estavam todos sentados na mesa para tomar um mingau. “Sim, ele é seu, mas você deixará sua nova coleguinha dormir nele” determinou o pai e dirigiu-se para a mãe. “Ela pode ajudar você a cuidar da casa, né, querida?” Na casa da mãe, nunca lavara um prato. Limpava o chão só quando ia roubar biscoitos à noite e, sem querer, deixava cair algum, desfarelado. Ela olhava o mingau, sem comer. Gostava de tudo perfeitinho.

O pai chegou, jogou a pasta no sofá e percorreu os cômodos da casa. Encontrou a menina sozinha adormecida, emanando inocência. O sono é um ensaio de paraíso. Na porta do quarto o homem a olhava, com uma risada repleta de malignos. Aproximou-se e apalpou, com sua mão grande e peluda, o corpo da menina, que acordou desacreditante. Levou um susto, e encostou-se sentada na cabeceira, olhos arregalados. Ele avançou pra cima dela, bestialmente, tentou agarrá-la, como um urso. Fez-se luta, agarra e desagarra, urros e gritos. A menina conseguiu fugir, saiu correndo pela rua ofegante e arranhada. Sentiu-se vitoriosa. As garras eram mais fortes que ela, mesmo assim conseguiu fugir. Só via a rua em sua frente, cheia de travessas. Na rua, sentia-se um animal humano que venceu a fera. E mesmo não sendo pra sempre, estava feliz. 43


SUJIDADE

Matheus Oliveira

Um

túnel oblongo, com suas paredes e portas; e assim se vai lentamente divagando através do símbolo máximo do moderno. Rápido ou lento, desacelerando; quase parando às vezes ele se põe, porquanto na hora de apear ele já está perto da estação, decerto. Mas não tão rápido: o seu movimento progressivo no espaço é um enregelar do tempo, um congelamento das consciências que repousam dentro dele por algumas horas, e tais horas são ambíguas mas, sobretudo, põem-se como verdadeiras na sua evidência inconteste, enquanto suspensão existencial angustiante porém necessária, e de ponta a ponta, lado a lado, resume-se tudo a um feixe de preocupações derivadas da mera questão dada aos seres viventes, apenas substancialmente existentes. Como um personagem a apresentar-se contempla nossa definição, eis o problema principal por agora, e imediato. Por início, pensemos nas suas angústias principais, aqui então a serem enumeradas de modo mais próximo do sistemático.

***

– Não há nada a ser feito: acabamos. Tudo terminado. Não me ligue, não quero falar. Aliás, nada houve. – Sinto-me lisonjeado pelas suas palavras. Quase que me tocam de maneira pungente. À maneira de um movimento abrupto, pôs o telefone no bolso e continuou sua observação da paisagem local. Que ele não depreendia nada do que era visto, parece óbvio, ele diz que observa, mas apenas olha com o desinteresse comum pertencente a todas as pessoas que vivem nessas cidades como metrópoles.

do quase ordenado de modo perfeito, e construído de modo simétrico, jardim suspenso. Ao seu lado está um casal, branco, que lhe atua na percepção. Malícias coincidentes… – A vida é mais que isso: para fora, de novo ao mundo. Junto à frase uma olhada estranha do casal. Do tipo rápida, para não perder o foco: a confluência dos afetos intensos, que bem se dane o resto do mundo, poderiam ter assumido. Entretanto, há mais que o simples pensar com direito. O casal não poderia ter nem ideia da mudança que se operava lentamente, pelo sorrateiro e absoluto trabalho do negativo, na alma daquele homem. Eles não imaginavam que ele se punha questionando fazia já algum tempo, e que a ocorrência da lhana demonstração do amor recíproco que ali acontecia aguilhoou um sentimento de raiva e de sofreguidão sem precedentes na vida daquele quase sincero e nobre… indivíduo. Inversamente, a verdade permanecia com ele ainda. ele sabia que a sua presença e a sua frase proferida eram irrelevantes e equidistantes ao casal assim como uma constelação qualquer. Daí tê-la proferido com tamanha franqueza, que disfarçava um incipiente ódio e uma já robusta indiferença. Assim, foi embora.

***

Ao tempo que entrou no metrô, tentou ligar para a mãe. Era de supina importância falar com ela, já que em sua lista imaginária de amigos, a mãe era uma das duas pessoas realmente existentes.

Despender-se- ia tempo e faina para explicar com pormenores o que gerou essa solidão, mas, incorrendo em contradição, pode-se com tranquilidade assumir o determinismo urbanístico que fora descartado há pouco: o clima impessoal do vale-tudo capitalista da cidade grande se punha em antagonismo com sua constituição emocional, provinciana, até reacionária; punha Essas cidades sem o grande quadro; ele se, pois, a pensar sobre como ter a vida em coali morar não implica em nada de muito interesmunidade no lugar em que o próprio significante sante em termos de determinação; em termos desfrutava de grande irrelevância, como não se de enfaro, continua sendo livre, mordazmente referia a nada. Não era possível nem imperativa passivo. uma comunidade real, apenas uma virtual, condenada a jamais sair de lá. Naquele dia, no entanto, finda a conversa no telefone – junto a ela qualquer esperança no No que, enquanto ligava de fato, pensava, ser humano que pudesse ser levada a sério – ele dentro desse carregador de consciência, consisenta-se no banco branco, que corre ao lado do derado com requintes singelos e nominalistas de 44

transporte público, apenas como um Homem pode vislumbrar para si e nos outros, tamanho ódio, tamanha inconformidade com o desbaratado desse existir mesquinho. Ponderava com ênfase se esse absurdo ali era percebido ou simplesmente jamais aventado, e saía desse pensamento inútil para uma dúvida pertinente, se as pessoas contemplavam o absurdo – se os objetos, por assim dizer, em face deles mesmos, contemplavam o absurdo. Com certa modorra, pôs-se sentado, assim como que a trabalhar (intelectualmente) – tal qual um cientista sobre a sua – o que as pessoas achavam daquele elã que jorrava em tudo uma esperança, um sentido orientador. E, em repetição, reiteração pura, começou sentadinho ali, uma profunda elucubração metodicamente assentada no “trabalho do negativo” daquele dia que não conseguia acabar. As conclusões mostravam-se rasas e inconclusas. Surpreendente: não as terminou, porque chegou na estação. Saiu rápido, com a porta quase se fechando nele. No meio daquela semana, ele resolveu ir para sua cidade. Não aguentava o ar, as pessoas, a poluição: tudo o irritava. Mesmo assim, falou com algumas pessoas antes de ir. Tinha que terminar as tarefas enquanto pesquisador na Universidade, e antes disso não havia como voltar. Apesar de a indisposição para resolver tudo isso, logo foi encaminhando as tarefas: ele era pago para aquilo. Longe de apenas pago: era um destino. A névoa deste era o resultado de diferentes coisas que já lhe perturbavam fazia tempo suficiente. E o estatuto de seu relacionamento era uma destas. Ele quase nem percebeu até onde andava: os pensamentos insuflavam sua mente de um jeito confuso e atordoado, o movimento das pernas era automático.

sua companheira, era desinteressante por si só, uma angústia por nada, ao olho comum. O ânimo primordial de se esvair dum dia para o outro, como se o aqui fosse nada mais que uma brincadeira de mau gosto, um impulso destrutivo que muito discursa sobre coisa alguma; mais que tal filosofismo desbaratado, via nesses pequenos afetos que lhe visitavam com intermitência um otimismo duro e uma consequência que lhe dava preguiça. Se o rei se apresentava assim tão nu, era só decapitá-lo: não havia nenhuma tarefa mais grandiosa ou mais oculta. Era só ir sem medo, reconhecer-se no que é claro, assentir ao que é óbvio, e desviar-se da intriga inútil. Nada mais que isso ou além disso. Até os piores conflitos, depois de um respiro, podem ser postos em variáveis consistentes e discretas. A desvantagem, porém, é todo esse instinto de calma tediosa que vinha a habitar-lhe com pouca frequência. Sem falar que lhe soava hipócrita. Como concordar com tamanha tolice para afagar uma existência atribulada? Era melhor encarar o perigo de peito aberto, ter uma pequena curiosidade para ver até onde poderia tal perigo levar. Esse era o principal traço de sua descrença: queria ver até onde absurdo daquilo que via – e que grassava paulatinamente – poderia caminhar, encaminhando-o. Também isto o repelia da ideia de um limbo, porque – percebeu, então – essa curiosidade obscena pela vida lhe mantinha vivo. Um fato banal, porém aterrador, pois significava que o valor da vida e consequentemente o das coisas não eram pontos importantes. Nada dizia muito sobre o pouco a partir do qual se poderia dizer. A natureza das coisas possui essa fraqueza interna que as faz se mostrar de um só jeito nu, estanque e monótono. Esse conjunto todo que ele apelidava de real, era um oblíquo convite à loucura. Dele nada escapava.

Ao meio do barulho voltou ao questionamento primordial que a vida lhe mostrara, e que porventura estivesse em sua alma desde a mais tenra idade: a orientação geral para o todo. O O sonho, resquício deste conjunto, não que caminha com ele ao passo que ele caminha? era algo como uma parte apartada e feliz daquilo que ele vivia. Era algo tão ingrediente a este Longe de alguém lhe ter narrado os fatos, real que – ele pensava – não passava de uma mimostrado-lhe as filmagens, a tradição, donde se-en- scène, um rearranjo pomposo que tinha veio, aonde possivelmente ia; tudo que ele sen- como objetivo lhe dar um pouco de esperança, tiu foi um enorme peso – se bem que hoje quase ou até fé. Duas palavras, que diziam muito para cliché – de ser jogado no mundo e daí tudo se o indizível bem redundante. derivar. Pior seria se tivesse passado fome, ti- vesse que ter trabalhado desde cedo, entre ou- tras coisas… sua história, quando contada para a 45


– Nem o herói ignora que ele pode se desorientar. E eu não vou, dizia para si mesmo. Sua pequena figura no vagão do trem nada retinha sobre a desolação árida que a batalha de sentimentos causava em seu espírito. Longe de transparecer isso tudo, a única detectável era um olhar baço dirigido com insistência à janela na superfície, na superfície da qual gotas fugidias escorriam. A chuva é um depressivo eficaz… logo ali aquele pequeno fogo de se mover infinitamente para que pudesse dominar as coisas já sumia com uma precocidade desagradável. Não, não queria pensar em mais nada. Não existe uma vida racional. É preciso sofrer às vezes, mas ninguém quer deixar de viver. A vida é a propriedade por definição: aquilo que é o próprio, característica notória. A partir dela se contempla a morte, ou apenas a ausência de desejo, ou apenas a contemplação escura, ou apenas o negativo da vida. Uma massa escura passa por aqui, a enfileirar tudo o que se excogita como peças iguais de um dominó.

A mão restou ali por um bom tempo esfregando o ombro ossudo, dava a fina mulher um sorriso discreto assim que ele abria os olhos sonâmbulos para entrevê-la, apenas entrever: ele adormecia logo após. Vamos indo, Éline…

Sair do vagão, entrar no vagão; ir para lá, ir para cá. Um pêndulo sem altos e baixos. Com os olhos fechados, movendo a cabeça de cima a baixo, uma leve brisa do outono e a decisão de acomodar-se de vez num eterno, tépido nada. Um banco pleno, sem ninguém, livre. – Abra os olhos, agora. – Eu não quero. – Você deve. – Não quero mais te ver, você foi embora. – Eu voltei pra conversar, você não quer conversar? – Quero que você vá embora, apenas. – Não muda nada. A mesma coisa. Mole, choroso. Éline voltou mais cedo para vê-lo, mas nada ia além da indisposição dele, sua tristeza, seu pensamento de toneladas, sua canseira indomável no metrô, mesmo sentado, pior ainda de pé. Ela passa seus longos dedos no seu ombro até que acorde. Ele iria: ela julgava que era o momento de reatar. A sua tez não lhe desperta nojo. Não faz chorar nem rir, e o sentimento que lhe invadiu por causa dele mesmo não é, em propriedade, causado por ela. Ele tem uma decisão, e constância de uma correlação algo suicida, e a mão quente dela ali, bem-feita e tratada, suave nos ademanes todos, não o alentava; parecia bem o caso de mandá-la embora, por que não? Não, com certeza não: mister é que, mesmo nos piores momentos, haja diversão. 46

Éline não respondeu à sua carícia mais grosseira. A imundície é muito espessa. Ela se avoluma. Toma sua mente. Não lhe consegue responder, ela cresce mais e mais, o seu desejo apaga tudo.

A caminhada levava tempo, ela já ofegava com leveza após alguns minutos. A resolução estava tomada: ela salvara-o, em absoluto, sem esquiva, para sempre em casal, para sempre juntos, e ele se livrou da névoa, da garoa, da obnubilação ácida e tinha certeza plena do seu próprio sentimento em relação à sua contraparte. Parecendo feliz, mal escondendo um certo tremor essencial que o saudável afeto lhe dava, ele anda, pois não resta dúvida: saciou o seu desejo de clareza, e superou um mau sentimento. Por enquanto via isso; malgrado a visão, a razão ia adormecida, incapaz de qualquer cálculo. Ele se engana? O corpo permanece ali, adormecido na sua sujeira inquietante… ele ainda não consegue chegar às vias de fato.

Logo que adentra o trem com o seu pensamento; agora sem chorro, sem sujidade.

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CONSELHOS DE UM DISCÍPULO DE MARX A UM FANÁTICO DE HEIDEGGER Poema de Mário Santiago Papasquiaro Tradução: Fernando Takeshi Tanouye

“Também é hora de recordar que nada é belo, nem sequer em Poesía, o que não é o caso”. W. H. Auden

O mundo te é dado em fragmentos / em

lascas: de um rosto melancólico vislumbras uma pincelada de Durero de alguém feliz sua careta de palhaço amador de uma árvore: o tremor de pássaros sugando-lhe a nuca de um verão em chamas apanhas pedaços de universo lambendo-se a cara o momento em que uma garota indescritível rasga sua camisola oaxaqueña exatamente junto à meia-lua de suor das axilas & mais além da casca está a polpa / debaixo do olho a pestana Talvez nem o Carbono 14 será capaz de reconstruir os fatos verdadeiros Já não são os tempos em que um pintor naturalista ruminava os excessos do almoço entre movimentos de ginástica sueca & sem perder de vista os tons rosazuis / de flores que não teria imaginado nem nos seus mais doces pesadelos —Somos atores de atos infinitos & não precisamente sob a língua azul dos refletores cinematográficos— hoje por exemplo / que vês como Antonioni caminha com sua camarada de sempre observado por aqueles que preferem enterrar a cabeça na grama a embriagar-se de fumaça ou sei lá eu / para que não aumentem os escândalos

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que já tornam intransitável a via pública para os que nasceram para ser beijados largamente pelo sol & seus embaixadores cotidianos para os que falam de coitos fabulosos/ de fêmeas que não crês nessa idade geológica de vibrações que te fariam tenaz propagandista do Budismo Zen para os que se salvaram alguma vez dos acidentes que a página vermelha chama substanciosos & que de passagem – por hora – não se contam entre as flores do Absurdo Assim no trapézio na corda bamba deste circo de mil pistas um avô pratica a emoção que sentiu ao ver Gagarin revoando como uma mosca no espaço & lastima que a nave não se chamara Icaro I que a Rússia seja tão ferozmente antitrotskista & sua voz então se dissolve tropeça entre aplausos & vaias a Realidade & o Desejo se reviram/ se despedaçam/ se esparramam uma sobre a outra como nunca o fariam num poema de Cernuda corre espume pela boca do que diz maravilhas & parece viver dentro das nuvens & não nos baldios deste bairro O ar úmido de abril o vento lascivo do outono o granizo de julho & agosto

todos aqui presentes com suas impressões digitais Álcool urines/ o que não terá servido de adubo a esta erva quantos jardineiros sem salário mínimo deixariam nessa armadilha suas escassas proteínas Até agora te estendes de bruços à sombra das pernas largas & peludas dos parques onde se reúnem o que sonha com revoluções que estacionaram tempo demais no Caribe o que gostaria de arrancar os olhos dos heróis dos cartazes para mostrar ao despido o oco da farsa a garota de olhos verdes gatunos & fílmicos ainda que melhor se aproximando resultem azuis ou quem sabe o estudante todo adrenalina & poros revoltosos o que não crê em nada/ nem na beleza kantiana de algumas admiradoras de Marcuse & explode gritando que estamos podres de fúria desidratados com tantos tomos de teoria a vadia de ocasião que partilha a torrente de sua solidão com os desconhecidos deixando que a balança da oferta & da procura incline-lhe a graça a simpatia as vibrações repentinas —o Azar: esse outro antipoeta & vacante impagável— os que vêm aqui a chorar/ até esculpir-se –como em madeira– um rosto de mártir paranoico depois de destruir —& não necessariamente de entusiasmo— as poltronas dos cinemas o que escreve seu testamento ou seu epitáfio num guardanapo amassado & logo lança beijos ao ar —& todo mundo supõe que celebra seu aniversário/ ou o divino matrimônio da noite retrasada—

& todas as hipóteses resultam frágeis para explicar por que utilizou uma pistola & não uma lata de tinta se parecia capaz de seduzir até à fervura/ o pulso & a pupila de Giotto o que sempre saúda com Eu estou desesperado/ e você? os que se amam raivosamente como cães de rua —nas verdes & nas maduras— & alguém lhes chama apaixonados floridos & são um afrodisíaco não apenas para a sensibilidade de Marc Chagall os que conhecem a morte em pessoa na hora em que o suicídio se torna uma obsessão uns anseios desprendidos de morder & ser mordido de pôr um fim a tanto castelo de areia que parece indestrutível de inventar-se por segundos um poder que as misturadoras de cimento rotineiras desbaratam como se fostes um papel de embrulho E então compreendes quem desejava sepultar sob toneladas de plantas edifícios / terra negra a menor pulsação / a taquicardia de sua história íntima te contagia o nervosismo a intranquilidade dos que fingem respirar / como se possuíssem um certo quê de plantas carnívoras & gastam horas esperando a companheira Ternura essa garota de programa que raras vezes chega os que vêm escapando dos gases lacrimogênios & os porretes das grandes avenidas das grandes & pequenas manchas que já não têm remédio com cheiro de pinho ou a carícia de um kleenex os que ignoram quem são nem o querem saber/ quando o tempo tem pior fama a cada dia os eternos enfermos de amnésia que chupam o dedo de alegria porque aqui & não em Miami está o Paraíso Terreno os que juram declarar isto território livre ilha independente


que não degenere em sucata ruína supermarket No instante em que uma canção da moda enreda seu ritmo à peculiar batucada da chuva & se instaura uma ordem fatalmente momentânea para que sigam dominando a cena o cabelo bagunçado os enormes olhos úmidos & como que surgida do claro-escuro mesmo da noite aparece uma menina com os punhos enlameados contra as coxas repetindo 1, 2, 3 vezes: Eu não sou um objeto sexual, não sou robôs, estou viva / como um bosque de eucaliptos Aqui onde a norma é ser implacavelmente amáveis uns com os outros & este é o mal menor O parque estremece / meus passos interiores me levam às ruas de um porto de mar verde que os nativos chamam Mescalina Uma sensação até agora desconhecida como saber a ciência certa a que sabe o DNA. depois de fazer Amor Se isto não é Arte corto-me as cordas vocais meu testículo mais terno deixo de dizer besteiras Se isto não é Arte o galho de uma árvore se curva sob o peso de um pardal ou melhor dizendo um pardal acaba por rebentar um galho já quebrado Ainda estamos com vida de alguma maneira deve-se chamar as ilhas de cristais que com luxo de violência chutam as zonas mais brandas de teus olhos A realidade parece de mica de miniatura a escala mas também tuas pálpebras tua percepção & sua camisa de força a matéria & a Energia & o ânimo para meter tua língua entre sua língua este é um dia insólito vibrante cotidiano anônimo mundano até não poder mais como costumamos dizer 50

vez

os dias de festa ou durante as buscas cada

mais frequentes das casas o medo te ilumina o estômago & o queima NÃO HÁ ANGÚSTIA AHISTÓRICA AQUI VIVER É CONTER O FÔLEGO & DESPIR-SE /conselhos de um discípulo de Marx a um fanático de Heidegger/ Poesia: ainda estamos com vida & tu me prendes com teus fósforos meu cigarro barato & me olhas como a um simples cabelo bagunçado tremendo de frio no pente da noite Ainda estamos com vida uma mariposa de olhoverde & asamarelas se prendeu na lapela azul da minha jaqueta —meu corpo de denim se sente sedutor radar humano imã de pólen adquire por momentos a convicção de uma galáxia em pequenino cantando puras maluquices entre Ohs de assombro— Puxa que lua! exclama o milionário em solidão & mísero em emprego ao que apenas ontem demitiram porque não lhe emocionavam os curto-circuitos da cafeteira burocrática Que lua! como unha cortada —como um gomo de esperma suspenso sobre o lombo negro da noite quando se escuta um rachar de nozes trituradas –crac– o zumbido o lamento de uma ambulância que outra vez não chega a tempo o rumor das lagartixas com manchas de leopardo escalando travessíssimas pela trepadeira em busca de alimento os últimos ruídos de um picnic onde a Desolação fez das suas

& acabou berrando a proximidade do vento que tudo mancha & rói

sem explicar o porquê deste horizonte insalivado pelo fogo

No entanto alguém ainda caminha por aqui como pardal feliz como Chaplin o dia em que beijou pela primeira vez Mary Pickford alguém passeia com um rádio de transistores que parece sua segunda orelha

Ainda que o céu –aparentemente– se veja sóbrio & limpo

Galileu descobre a lei do pêndulo observando o doce balanço desses amantes violentamente unidos & semiconsumidos pela névoa crendo os muito néscios que o Amor a dentadas terminará por brilhar em Tecnicolor E isto no mesmo M2 à mesma hora em que o Pole Norte & o Polo Sul a Tese & a Antítese do mundo se conhecem como um aerólito incandescente & um óvni em apuros e inexplicavelmente se saúdam: Eu sou o que ficou gravado na espalda da jaqueta jeans a frase: O núcleo do meu sistema solar é a Aventura Me chamo assim mas gosto que me digam: Protoplasma Kid Você é o que morde as unhas enquanto folheia a seção de crimes com os dedos perplexos na rigidez da folha do periódico mas são as notícias os que as relatam os que as leem como uma droga necessária? Quem Sherlock Holmes são os assassinos? Dadas as circunstâncias desconfies até de teus próprios olhos lutas corrediças pleitos de qual calibre se escondem sob as roupas mais ásperas os medrosos trepam-se nas árvores os mais ágeis preferem andar sinalizando com o dedo o momento exato em que a atmosfera se rarefaz até dizer basta & começam a derrubar-se os aviões como numa sequencia de cinema mudo na qual os braços dos moribundos se movem como lâminas

como inimigo irreconciliável das Artes Plásticas & quase ninguém repare no doido que beija lambe morde seu relógio sem ponteiros enquanto pergunta se estará a terra resfriando não estaríamos saindo da órbita??? seguro de que num caso assim até Jerry Lewis choraria sinceramente.




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