Jornal Discurso Sem Método 01/2019 - Edição Canônica

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discurso sem método • 2019 • nº 1

discurso sem método

2019 • nº 1 1


Discurso sem método • 2019 • nº 1 Expediente Danilo Augusto Gustavo Salmão Uirá Gamero

Colaboradores Eliakim Ferreira Oliveira Elivelton Leonel Allan Cob Leandro Lemuria Estevão Barbosa Guilherme Seidel Carlos Penaforte Ofélia

Capa e contracapa Leonardo R. Silvério

Contato jornaldafilo@gmail.com FB: /jornaldafilo

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Conteúdo 9 teses contra o estado. ........................................................4 A bola oca ...........................................................................8 Elibar e o monstro da reflexão .............................................9 Corno também perde a majestade ......................................10 Gabar a égua antes de subir o morro ..................................11 Esquizoanálise e fascismo ..................................................12 O baralho cigano ...............................................................20 3 poemas contra a sobriedade. ...........................................22 I .......................................................................................24 II ......................................................................................25 Um hipócrita .....................................................................26 Os faróis ...........................................................................28 O Brasileiro do Futuro, ou, The Brazilian Terminator ............30 Viver é isolado ..................................................................32 Twin cafs: episódio 1 .........................................................33 Twin cafs: episódio 2 .........................................................40 Procriação politicamente assistida e Heterossexualismo de Estado. .........................................46

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9 teses contra o estado.

1ª O Estado é uma forma expropriação de bens e de corpos: expropria olhos, boca, ânus, pênis, braços, útero. Todos os órgãos do corpo se tornam órgãos do Estado, do Soberano. A figura da Soberania não se constitui sem fazer que todos os corpos e seus órgãos se tornem corpos e órgãos do Soberano. É a multiplicidade de corpos expropriados e convergidos na figura do Um que dá ao Soberano o poder que o seu mero corpo orgânico não lhe concederia. 2ª A forma-Estado, contudo, não é imutável. Há no mínimo duas rupturas: do Estado pré-capitalista em relação às sociedades contra-Estado e o Estado capitalista em relação ao pré-capitalista. Essas rupturas são menos cronológicas do que topológicas e tipológicas. O caráter topológico da ruptura nos é favorável para a análise da coexistência no espaço de formações históricas de tipos distintos sem cair nas concepções teleológicas das formações sociais. A concepção teleológica implica uma sucessão progressistas das formações, mesmo aquelas que se dizem marxistas por se orientar conforme o nível mínimo de desenvolvimento das forças produtivas para que uma formação suceda a outra: o Estado após as sociedades contra o Estado, o Capitalismo após as formações com estado etc. 4

3ª A forma-Estado é fetichista ou mística. Em relação a essa forma, todos agentes de produção, forças produtivas e, consequentemente, as riquezas, parecem acoplados e pertencentes ao Estado como pressuposto natural ou divino. Esse caráter místico faz com que o Estado apareça como algo que sempre esteve lá, dado desde o início, instância imemorial e sem a qual o próprio desenvolvimento de sua existência concreta não seria possível: a criação de suas instituições, de seus mecanismos, de sua ordem social pressupõe a formaEstado como condição e unidade de sua composição. Assim, a forma-Estado pressupõe a si mesma, contém em si aquilo que deve se realizar e impõe, desse modo, à realidade concreta seus próprios pressupostos. 4ª Dizer que há uma “forma” significa dizer que há uma lógica de relacionamento social que constitui o Estado enquanto um movimento objetivo aparente, o que nos permite afastar a sua concepção como instrumento de classes. A lógica dessa forma é a da divisão entre senhores e súditos ou governantes e governados como componentes intrínsecos. Assim, não é a classe dominante que gera por meio do seus interesses o Estado, mas o Estado, como forma de dominação, que gesta sua classe dominante: por isso a superação


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da dominação é impossível pelo Estado. Daí que o problema da “tomada” do Estado pelos representantes da classe dominada e das “traições” subsequentes, problema ligado à concepção do Estado como instrumento, é precedido pelo problema da sua forma mística e do relacionamento social que a constitui de maneira objetivado. 5ª O ato fundante do Estado, e que fornece sua historicidade, é a violência de captura do seu “fora” e, simultaneamente, a constituição de um discurso legislador ou legitimador desse ato: o Direito é a execução desse discurso legitimador, sendo, portanto, o direito da exceção. Esse ato fundante, no qual a forma-Estado e sua unidade é auto-pressuposta, é a exteriorização do Estado e a constituição de uma realidade concreta adequada a sua forma social. O caráter místico e seu ato originário somados perfazem o caráter de “interioridade” do Estado, que pressupõe um fora desde já capturado. Um paradigma dessa pressuposição do fora – como o fora da interioridade estatal e, portanto, paradigma da autopressuposição do Estado antes mesmo de sua realização concreta – nos é dado pelo dispositivo jurídico-político que é o Estado de Exceção. No Estado de exceção, a exceção como momento não-jurídico é pressuposta e incluída na e pela própria ordenação jurídica que, entretanto, se encontra suspensa e viceversa. A suspensão da norma jurídica por ela mesma é o que estabelece a relação da forma-Estado com o seu fora, uma relação de violência direta e mágica; direta, pois só por ela se efetiva realmente; mágica, porque a auto-pressuposição do

direito, antes mesmo de sua aplicação numa ordem concreta adequada, dá ao próprio Estado “imemorial”, dado desde sempre, o “direito” de se exercer sobre um fora. Essa relação de violência originária é, portanto, justamente aquela mencionada pela qual o Estado em sua interioridade inclui e captura seu fora como domínio em relação ao qual o próprio direito permite o exercício da violência e da interiorização. Assim, a forma do direito, no Estado de exceção, é pressuposta como aquela que dá unidade a ação de violência pela qual o Estado cria uma “ordem” adequada para a aplicação do próprio direito. Ou seja: no estado de exceção, o Direito auto-pressuposto, só pode se realizar a partir da sua suspensão, da violência extra-jurídica. 6ª O Estado enquanto Forma é seletivo: seleciona por sua lógica intrínseca não só quem ocupa certos cargos ou certas posições sociais, mas também seleciona quem pertencerá a essa forma e quem está fora dela. Assim, se por um lado o Estado e sua Soberania só reinam enquanto interioridade sobre aquilo que conseguem “interiorizar”, por outro, sempre haverá um fora não incluído, que escapa e ameaça o Estado e que faz com que o ato originário do Estado sempre retorne. É esse fora nunca capturável por completo que denuncia a falsa universalidade. 7ª O Estado capitalista difere de todos os outros Estados por ser uma forma subordinada ao Capital enquanto relação social. Isso não significa, entretanto, reduzir a interpretação do Estado às determinações sociológicas das classes sociais: o Estado capitalista 5


9 teses contra o estado.

difere por ser um Estado da burguesia. O que colocaria como tarefa a substituição do seu conteúdo sociológico (constituir um Estado Operário etc.) atribuindo, aliás, ao Estado um papel determinante que não possui no capitalismo, a não ser ideologicamente como arcaísmo a-histórico da Soberania. O Estado no capitalismo é determinado, ao contrário, pela lei do valor: valorização do valor a partir da exploração do trabalho social abstrato. Essa subordinação do Estado, assim, se manifesta em outros aspectos além da redução sociológica, como, por exemplo, na dependência do Estado da forma dinheiro e da forma-mercadoria enquanto objetivação do trabalho abstrato. O trabalho abstrato, por outro lado, é indissociável, em sua existência, do capital e do seu ciclo de acumulação em condições históricas determinadas. Ou seja, é o capital que determina, em última instância, conforme a proporção global entre capital constante e variável, entre trabalho morto e vivo, qual trabalho é ou não válido, quais forças vivas de trabalho entrarão ou não no processo de valorização. 8ª A função soberana do Estado no capitalismo se mantém apenas de forma secundária, como arcaísmo atual ao capitalismo, sua Soberania se torna imanente: o Estado se torna presente cada vez mais no cotidiano como forma de regulação das relações sociais mediadas pela forma mercadoria. Nesse contexto, as ações de captura do Estado em relação a seu fora se mantém na forma do Estado de exceção, mas este agora é executado não como conservação e expansão do território do Estado, mas como expansão e 6

conservação da desterritorialização do Capital. A expansão a partir das colonizações encabeçadas pelos EstadosNação não visa meramente constituir territórios pertencentes aos Soberanos, mas desterritorializar os territórios existentes para se criar espaços, a partir de reterritorializações, funcionais para a acumulação sempre ampliada do valor. No capitalismo, portanto, o imperialismo atinge uma tendência ilimitada: para o capital a terra é apenas limite físico, pois do ponto de vista formal o limite do Capital é apenas ele mesmo. Em períodos de crise – quando a finalidade do Capital (valorizar o valor a partir da exploração do trabalho abstrato) entra em contradição com suas forças produtivas: produzir valores de uso com o consumo cada vez menor de força de trabalho a ponto de não se tornar rentável do ponto de vista da acumulação – ou de intensa luta política, o Estado assume a tarefa de garantir a conservação da existência do capital. Para isso, cria novas formas de regulação, mecanismos de deslocamento dos limites da acumulação, integração dos grupos em revolta e mobilização de aparatos policiais e militares. 9ª A contradição do capitalismo entre relação de produção (relacionamento entre capital e trabalho torna-se concreto da forma-valor e constitutiva desta) e forças produtivas é manifestada também na relação entre Estado e Capital. O Capital no seu processo de mundialização das forças produtivas entra em contradição com o Estado como forma de realização do desenvolvimento das forças produtivas e como regulador das relações de produção. O Capital visa


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à mundialização, mas esta só se realiza no âmbito dos Estados nacionais. Por outro lado, os Estado nacionais se tornam um empecilho para a mundialização do Capital. Essa contradição leva, a cada momento histórico, a uma redistribuição entre mercado e Estado: ora o Estado aumenta seu papel, tornado necessário para o desenvolvimento das forças produtivas e contenção do conflito entre capital-trabalho, ora diminui suas funções, restando cada vez mais sua função primária: a regulação do conflito não mais por integração e reconhecimento de grupos sociais, mas por uma gestão cuja base é a violência direta. A violência é o denominador comum de todo Estado: se retiramos aquilo que varia entre os Estados (maior ou menor seguridade social, maior ou menor estatização das atividades produtivas etc.) resta como comum a violência. A contradição, que se torna interna ao Estado enquanto imanente ao corpo social do capitalismo, fecha de partida toda crença no Estado como instância de solução dos conflitos sociais existentes – à direita e à esquerda – e confirma o caráter positivo das tentativas históricas de tomada do Estado como momentos de implementação do próprio capitalismo na forma de Capitalismo de Estado. Assim, o negativo da direita que acredita na possibilidade de um capitalismo sem Estado é a esquerda que acredita na possibilidade de suprimir o capitalismo pelo Estado a partir da conversão da questão da emancipação em “questão nacional”, crendo na “soberania nacional” e no mito do serviço público universal capaz de conciliar todas as classes sociais a partir

da representação do “interesse geral” da nação. Assim, se reduz os conflitos a uma questão de reforço da Soberania Nacional, a partir da nacionalização das indústrias, do aumento da intervenção do Estado e do seu caráter protecionista contra o capital internacional, os monopólios mundiais etc. Não assusta, assim, ver que o PT debandou para esse lado na última eleição como reação aos conflitos que emergiram e que eles próprios ajudaram a produzir a partir da sua gestão da barbárie: o PT não se reconhece na realidade objetiva que ele mesmo ajudou a produzir. E não deixa de ser cômico que as mais diversas correntes e grupelhos trotskistas do PSOL saíram em defesa na eleição de um projeto semelhante de defesa da Soberania Nacional enunciado por Boulos. Tudo o que restou para a esquerda institucional, apesar do seu discurso leninista, trotskista ou qualquer outro requentamento do marxismo tradicional, é confirmar o papel das suas formas de organizações: estabelecer políticas de compromisso, se antes na forma “modernista” de integração ao mercado mundial, agora na forma reacionária da defesa nacional contra o imperialismo ou o capital estrangeiro. E isso num contexto em que os quadros institucionais estabelecidos pelos Estados já não constituem centros de decisão efetivos, que foram deslocados. Fora a esquerda institucionalizada e transformada em componente da gestão do social, os grupúsculos formadores de quadros e com pretensões a serem o centro da construção de um novo partido revolucionário são tão estéreis quanto múltiplos e coloridos. 7


A bola oca Estevão Barbosa

As coisas materiais são tão materiais E as coisas são todas coisas materiais E não sobra nada mais profundo Nenhum segredo mágico ou verdade eterna Com que eu possa tomar banho ou beber leite É tudo tão só aquilo mesmo E eu mesmo não sei se passo além da impressão Ou se sou só um rosto vagando Consumindo sons e comidas Roupas tecidas por pobres na China E tecidos feitos de puro tecido Sem aquele toque de feitiço Que nos faz quase crer na vida após a morte Após a morte de quem queremos que viva Matéria restrita na palma dos cinco sentidos É tudo o que há e sempre haverá Na palma do mundo

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Elibar e o monstro da reflexão

Nada que pudesse evitar cachoeiras, vagas e torvelinhos quando ele recua as nádegas no concreto e assim, reduzido ao seu nada, prepara-se. Fútil relutar, derrogar cada gota d’água dessa maré floreada de pequenas ondas. Não perdoa nas imagens a massa de fenômenos diversos e nodosos. Que são tantos, a enforcá-lo e matá-lo. Ignoro todos os vultos, toda a balbúrdia, apalpo meu estômago, sinto a fúria de um eventual vômito. Minha camisa ainda passa bem. O sarro que me cobre a pele recrudesce, mas não me embaraço. Elibar, eu? Ancho de fumaça e veneno, impassível penedo sob a cachoeira em cujo recesso se esconde aquele quem sugeriu tantas ideias na minha cachola, falho na construção dos rifões, ao som da sineta salteada do pátio. Vem o vento de uma praia que cheiro, o sal, a areia, uma ilha no intelecto que me salva por agora, a brisa costeira nas costas; no limiar das inversões de si próprio, escorrendo como fluido coleante pelo sólido ou maldição empedernida que descansa, contempla e arroja-se para fora: execra tudo, contudo resiste pois é plena fisicalidade. Fungo o nariz entupido pelos vapores das tintas, torno-me adepto da homeopatia: para dentro mais deste tabaco malquerente. Desaba sobre nós uma questão: o abatimento que é a verdade incomunicável desse lugar à comunidade inconfessável dos funcionários. Os encarregados se aproximam de mim no desfecho do descanso; cada passo meu para junto às bobinas de folha de Flandres é fruído com agudo pesar. Na volta à faina, foram-se os espíritos malsãos, restaurando o arranjo das coisas e o seu alívio: Elibar não era mais uma delas, ainda que em meio a tantas. Exausto e contumaz nas suas imagens, entre monstro e herói da reflexão.

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Corno também perde a majestade Eliakim Ferreira Oliveira

A molecada chutando a bola na vidraça dos vizinhos. — Desgraçados! — grita o Dr. Carlos. — Velho corno! — ousa o Miguelzinho. — Dona Nena dorme com seu Zé! — emenda o Alfredinho. — E seu Zé tem pinto grande! — acrescenta o Joãozinho. Dr. Carlos põe a mão no peito, engole seco a suspeita, não aguenta mais a molecada. Se dona Nena não se engraçasse com seu Zé, Dr. Carlos descia a lenha nessa gentalha. Sai para o trabalho, esguio, terno risca de giz, a mala de couro como se tivesse todos os documentos do mundo. Miguelzinho chuta a bola no velho, a mala cai e abre. Não acredito: só uma caneta... — Dr. Carlos só tem uma caneta! Posudo! — gargalha o Alfredinho. — Não é possível — pensa consigo o Dr. Carlos. Que fazer, se sou o corno da Vila Campestre? Senta, suspiro fundo. Tudo se resolve: — Já sei! Sai para o trabalho o respeitável seu Geraldo. Dr. Carlos senta na varanda, abre o jornal. Passa a dona Clélia, anca a ir e a vir, como se acenasse. — Dona Clélia — o velho fogoso. — Bom dia, Dr. Carlos — Melhor com a senhora! Como vai meu bom amigo Geraldo? — Vai bem. Trabalhando muito. Sai cedo, volta tarde. — Ó, sofrimento! E a senhora solitária o dia inteiro! Se quiser, me chame para o café, que a gente põe os assuntos em dia. — Está convidadíssimo. No outro dia, a molecada poupa a vidraça do quarto de dona Clélia. A presença de seu Carlos fez o vidro embaçar, a casa mexer, até grito se ouviu. Sai o homem, gravata torta, cabelo despenteado, paletó na mão, testa brilhosa. Vem chegando o respeitável seu Geraldo. — Boa noite, Geraldo! — orgulhoso. — Boa noite, Carlos! — alegre. A molecada encara o Geraldo. — Boa noite, crianças! — diz o homem. — Boa noite, velho corno! — ousa o Miguelzinho. — Conseguiu sair do ônibus com esse chifre aí? — emenda o Alfredinho. — Dr. Carlos tem pinto grande, viu? — acrescenta o Joãozinho. 10


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Gabar a égua antes de subir o morro Eliakim Ferreira Oliveira

Nada, eu não faço no ônibus, no metrô ou em qualquer transporte público. Nem leio mais livros. Parado, atentamente, ouço o que conversam atrás de mim. Mudo de lugar para ouvir melhor. Sou aquilo que costumam chamar de bico. O bico, aquele bico ali, aponta. Com orgulho. Muitas vezes me decepciono. “O problema é que quem faz o trabalho de Deus são os homens”. Uma frase frouxa como outra qualquer. Nada diz que já não soubéssemos. Outras vezes, me surpreendo com pequenas pérolas: — Dei uma escorada no braço dela. — Cuidado: é gabar a égua antes de subir o morro.

Gabar a égua antes de subir o morro? Que diabo é isso? Imaginemos: estou diante da égua. É uma égua galante, lustrosa, promete escalar, a galope ligeiro, este montinho. Brado retumbante: — Esta aqui, meu amigo, escala até o Everest!

Para escalar o morro, escalo a potranca, meto-lhe as esporas, atravesso as coxilhas em direção ao íngreme. Ao pé do morro, um passo murcho é o que a bicha dá. O segundo é meio coxo. O terceiro claudica, pachorrenta que é. Não sobe nem com elevador, nem com escada rolante, nem a guindaste. Que fiz eu, há pouco, que o camarada advertiu? Gabei a égua antes de subir o morro. Enalteci antes de pôr à prova. Se eu estivesse lendo, por exemplo, Machado de Assis, em direção à Aclimação, você acha que eu saberia que não se deve gabar a égua antes de subir o morro? Nunca vi uma frase assim em Machado de Assis. Nem em José de Alencar, que, apesar de falar de morros, cabanas e bugres, não me lembro de ter falado de gabar uma égua precipitadamente. Matamos o tempo, o tempo nos mata, serenai verdes mares, mas nunca alguém que tenha gabado a égua antes de subir o morro. Parece mais uma frase que um certo capitão Rodrigo diria. Se eu estivesse lendo ou ouvindo música, não me daria conta de que acabara de esbarrar com Rodrigo Cambará. São Paulo, fevereiro de 2019. 11


Esquizoanálise e fascismo

Deleuze e Guattari, em O AntiÉdipo, analisam o fascismo do ponto de vista de uma “psiquiatria materialista”, ao qual dão o nome de esquizoanálise. Esta, diferentemente da psicanálise, seria materialista, pois recusaria tomar como ponto de partida da análise do inconsciente as afecções psicológicas, as fantasias individuais e coletivas latentes, apesar de assumirem que um dos diferenciais da esquizoanálise, herdado das experiências de Guattari com a análise institucional, é considerar que todo fantasma é coletivo, mesmo aquele confinado ao nível individual. Ao contrário da psicanálise, a esquizoanálise tomaria como ponto de partida o campo social, pois todo investimento do desejo é antes de tudo um investimento do campo social, de seu funcionamento, de suas relações de produção, distribuição e consumo. Assim, o método materialistahistórico empregado por Marx em Contribuição à crítica da economia política para analisar o processo de produção geral, determinado historicamente, se mostra operativo para a uma máquina analítica militante. O investimento do desejo se daria, sobretudo, a partir de dois polos: paranoico e esquizofrênico. E estes pólos devem ser considerados a partir 1

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O Anti-Édipo, p. 372

do campo sócio-histórico: no presente contexto, o capitalista. A esquizoanálise não deixa de explicitar o caráter histórico das categorias que emprega, ao invés de positivá-las como trans-históricas: (...) se os investimentos sociais podem ser ditos paranoicos ou esquizofrênicos, é na medida em que eles têm a paranóia e a esquizofrenia como produtos últimos nas condições determinadas do capitalismo.1

Eis a razão do título do livro que demarca dois extremos: capitalismo e esquizofrenia. Entendo por esquizofrenia a expressão não de uma afecção psicológica, mas do processo de funcionamento do próprio desejo e que assombra o capitalismo como limite externo. Há algo que o capitalismo não suporta e que o processo esquizofrênico explicitaria, demandando aparelhos de repressão-recalcamento. Demarcar os extremos, entretanto, não para analisar simplesmente como a sociedade moderna deixa as pessoas loucas. Para entender as formas de alienação capitalista, de repressão e de exploração é necessário lançar mão de termos utilizados para analisar a própria esquizofrenia e o modo como ela expressa o desejo, a libido como processo e não como representação. Essa


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possibilidade analítica se dá na medida em que se abandonou o universo referencial da psicanálise, que consiste em se fechar aos fatos psicológicos, para estender o uso de seus termos ao nível do campo social: isto é, considerar esquizofrenia e paranoia como investimentos da sociedade, modos de produção do desejo em condições determinadas socialmente. Assim, haveria algo na experiência esquizofrênica, enquanto processo de produção do desejo, e não enquanto entidade produzida pela repressão social e enclausurada nas clínicas, que diria algo a respeito do capitalismo e sua relação com o desejo. Se trata de uma relação de tensão entre a produção capitalista e a produção do desejo, a partir da qual se pode explicar o processo de produção capitalista como de alienação do desejo por instâncias molares de socialização constituídas historicamente Assim, não se trata apenas de miséria sexual e da luta por sua libertação num sentido antropomórfico: libertação da “minha” sexualidade e das “minhas” escolhas de objeto de desejo. Mas de entender que também no nível das relações mediadas pela monetarização, pela forma-estado e sua burocracia, pelo complexo industrialmilitar, se faz presente relações de desejo, investimentos libidinais. Nada tem a ver com metáfora, nem mesmo com metáfora paternalista, a constatação que Hitler suscitava tesão nos fascistas

A oscilação entre paranoia e esquizofrenia no investimento do campo social é, portanto, o objeto da esquizoanálise. As fantasias seriam derivadas em relação a esse investimento e seus dois pólos. Pois, do ponto de

vista do desejo, o campo social não é meramente lugar de projeção: no caso da matriz edipiana da análise, poderíamos falar de projeção de figuras parentais, de modo que em caso de ascensão de figuras grandiosas, de liderança, poderíamos precipitar a conclusão que se trataria da substituição da figura do pai como autoridade originária e decadente em decorrência das transformações das estruturas familiares, o chefe político sendo a projeção de uma figura parental etc. Assim, poderíamos dizer que Bolsonaro, no Brasil, ascendeu porque se trata de uma substituição de uma estrutura familiar em crise, ou que o fenômeno de massa que é correlato a essa liderança projeta nele a Imago de autoridade originária do pai: por trás do patrão, do chefe de Estado, do papa, está o pai e a relação originária com essa figura, que remeteria à infância individual ou histórica, relação inconsciente que coloca a figura do pai como figura da Lei e objeto amado. O campo social é, ao contrário, produzido e reproduzido pelo próprio desejo, que, nesse sentido, não é caso de interpretação, isto é, de ver os signos sociais como expressões de uma estrutura latente, de caráter infantil ou familiar e inteligível do desejo, organizado a maneira de um teatro papai-mamãe. A esquizoanálise substitui uma análise representativa por uma “maquínica” ou funcional. Trata-se, assim, de perguntar: como funciona o desejo? Como ele investe e é maquinado pela máquina social? Trata-se de analisar como o desejo investe o campo econômico, político, racial, tirando o desejo do campo da ideologia ou superestrutura, como se as 13


Esquizoanálise e fascismo

formações do inconsciente não dissessem respeito ao modo de produção social e material e não o investisse diretamente. É a partir dessa perspectiva que se pode estabelecer o nexo entre desejo e campo social e explicar como é possível que o desejo invista sua própria repressão, escapando das interpretações psicologistas ou recorrendo a ideia de uma falsa consciência produzida pela ideologia e seus aparelhos ideológicos (educação, Estado, família etc.), pela qual as massas seriam “enganadas”. Aí encontra-se a base de uma ‘psiquiatria materialista’. São os elementos constituintes do desejo que povoam e produzem as máquinas sociais e constituem sua infraestrutural material. Antes fábrica coletiva e irrepresentável do que teatro psicológico: As máquinas desejantes não estão na nossa cabeça, na nossa imaginação, elas estão nas próprias máquinas sociais e técnicas. Nossa relação com as máquinas não é uma relação de invenção nem de imitação, não somos pais cerebrais e nem filhos disciplinados da máquina. É uma relação de povoamento: nós povoamos as máquinas sociais técnicas de máquinas desejantes, e não podemos fazer de outra maneira.2

A máquina social capitalista, nesse sentido, implica uma dinâmica própria de investimento libidinal, de maquinação do desejo: determinação de sua relação de produção, de sua circulação e do consumo de seus produtos a partir da produção de mercadorias. Uma última “precaução metodológica” seria distinguir, assim, o desejo do interesse. O desejo não consiste num interesse, uma vontade produzida por uma deliberação interna 2 O Anti-Édipo, p.524 3 A Ilha Deserta e Outros textos.

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a partir da qual se realiza a escolha do objeto de desejo possível: este ou aquele. O investimento do desejo, portanto, não é consciente. Ao contrário, é a própria construção do interesse que deve ser explicada, os próprios fantasmas que devem ser explicados enquanto produzidos pelo desejo e sua relação com o campo social. É os estados afetivos que a sociedade produz a partir da determinação do desejo pelas formas sociais (raça, gênero, classe) que explicam a dinâmica dos fantasmas sociais: raciais, de gênero, culturais, parentais, políticos, e todo poço de alucinações que daí decorre. Estados afetivos paranoicos e fantasias paranoicas decorrente de um investimento paranoico em relação às formas sociais e a favor da reprodução delas, isto é, a favor da própria repressão. Ou, ao contrário, estado afetivos esquizofrênicos decorrente de um contra-investimento libidinal das formas sociais a favor da sua dissolução. Que as pessoas numa sociedade desejem a repressão para os outros e para si mesmas, que haja sempre pessoas que queiram lixar outras e que tenham a possibilidade de fazê-lo, ‘o direito’ de fazê-lo, é isso que manifesta o problema de um liame profundo entre o desejo libidinal e o campo social. Um amor ‘desinteressado’ pela máquina opressiva: Nietzsche disse coisas belas sobre esses triunfo permanente dos escravos, sobre a maneira como os azedados os deprimidos, os débeis nos impõem o seu modo de vida.3

******** Como entender, dado essas observações preliminares, a relação entre esquizofrenia e paranoia nas condições


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determinadas do capitalismo? Para os autores, o capitalismo é uma sociedade peculiar devido ao modo pela qual ela estabelece uma “ligação” das relações de produção desejante. Pois, ao contrário das outras máquinas sociais, o capitalismo se constitui sob a base de “fluxos descodificados”, isto é, sobre a dissolução de tudo que existiu até então. E não só se constitui sobre essa base destrutiva, mas ele a reproduz constantemente como um produto seu: o capitalismo vai englobando a terra a partir de descodificações e desterritorializações. Isso é o que define a “civilização” e sua relação com outras formas sociais. Nossas sociedades apresentam um vivo gosto por todos os códigos, os códigos estrangeiros ou exóticos, mas é um gosto destrutivo e mortuário, pois a relação que se estabelece com esses códigos é de descodificação e isso significa, em relação ao código, destruílo enquanto código, atribuir-lhe uma função arcaica, folclórica ou residual, o que faz da psicanálise e da etnologia duas disciplinas apreciadas em nossas sociedades modernas. Essa desterritorialização e descodificação constante, que vai do centro para a periferia, é acompanhada ao mesmo tempo por uma processo de “axiomatização”. Um conceito empregado pelos autores para dar conta da forma específica que as relações sociais adquirirem no capitalismo: estas se dão em torno de uma relação entre fluxos descodificados e monetarizados, relação entre Capital enquanto condições objetivadas do trabalho na forma dinheiro e força de trabalho desterritorializada que irá se confrontar, no mercado, com suas condições 4

objetivas (dinheiro e meios de produção). Relação entre capital-trabalho imanente ao capitalismo, que se impõe a partir de processos de colonização com pretensões totalitárias. Não por outra razão, os autores recusam a tese de que, em seus primórdios, o capitalismo teria sido revolucionário: O capitalismo, desde o seu nascimento, esteve ligado a uma repressão selvagem, teve imediatamente a sua organização de poder e o seu aparelho de Estado. Que o capitalismo tenha implicado a dissolução dos códigos e dos poderes sociais precedentes é certo. Mas, nas fendas dos regimes precedentes, ele tinha já estabelecido as engrenagens do seu poder, inclusive do seu poder de Estado. E sempre assim: as coisas não são tão progressivas; antes mesmo que uma formação social se estabeleça, os seus instrumentos de exploração e repressão já lá estão, girando ainda no vazio, mas prontos para trabalhar plenamente.4

O capitalismo já nasce a partir da rapina do que foi dissolvido e se mantém pela destruição constante para sua reprodução ampliada, formando, em relação a si mesmo, seu “arcaísmo”, suas zonas de “subdesenvolvimento”, suas reterritorialidades artificiais, que não são mundos à parte “atrasados” e que poderiam ser compreendidos de forma isolada, mas peças fundamentais de uma máquina mundial diacrônica. O estabelecimento da relação entre o arcaico e o moderno no seio do capitalismo, como momentos internos a este, é, portanto, uma chave pela qual podemos compreender o fascismo e os momentos “regressivos” do capitalismo. Correlacionado aos dois polos da paranoia e da esquizofrenia, está o do

A Ilha deserta e outros textos, p. 337

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Esquizoanálise e fascismo

“arcaico” e do “moderno”. É o caso da relação entre Estado e capitalismo: este faz do Estado, pré-existente ao capitalismo, um arcaísmo funcional que condiciona o funcionamento do capitalismo, evita que os fluxos escapem com toda a força, a golpes de ditadura mundial, de ditadores locais e de polícia toda-poderosa, enquanto as “modernizações” e as “descodificações e desterritorializações” permanecem e se fazem em função da acumulação do dinheiro. O capitalismo é ao mesmo tempo “arcaísmo e futurismo, neoarcaísmo e ex-futurismo, paranoia e esquizofrenia”.5Termo que expressam a auto-contradição em processo que é o capitalismo. O capitalismo não leva ao “progresso”, sem reatualizar arcaísmo como o Estado, elementos culturais pré-existentes e sem tornar-se a si mesmo obsoleto por via desses próprios arcaísmos. Assim, o caráter “regressivo” que aparece no seio do “progresso” ou da “civilização” deve ser entendido como o que há de mais moderno – um neoarcaísmo, ao mesmo tempo que o mais atual é impulsionado a se tornar um “ex-futurismo”. Ou seja, com tais termos, os autores não querem dizer que aquilo que é “pré-moderno” seja reacionário, mas que faz parte do capitalismo um polo reacionário, que aparece àqueles que surfaram na ilusão de “progresso” ou “desenvolvimento” como algo “regressivo”, sem se ter em conta que faz parte do capitalismo não só tornar tudo “obsoleto” (como as as formas sociais pré-capitalistas), mas também reatualizar e tornar funcional isso que ele torna obsoleto, inclusive seus procedimentos violentos de 5

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O Anti-Édipo, p. 345

“acumulação primitiva” que o originou, os procedimentos de colonização etc. Bolsonaro é o neoarcaismo de um exfuturismo (o PT). O arcaico que é mais moderno (atual e funcional) que o governo que a esquerda acreditava progressista, mas que, agora, tornou-se ele mesmo “arcaico” para o capitalismo. Assim, não custa repetir, o que o capitalismo “libera” com um mão, ele contém com a outra, o que desterritorializa de um lado, ele reterritorializa, cria neoterritorialidades artificiais, arcais, mas com uma função perfeitamente atual, nossa maneira moderna de ‘ladrilhar’, de esquadriar, de reintroduzir fragmentos de códigos, de ressuscitar antigos, de inventar pseudocódigo ou jargões. Por isso quando códigos ou procedimentos que o capitalismo “parecia” ter superado vem à luz em esferas “modernas” e “civilizadas” se tem um susto: aparece como regresso histórico ou civilizatório. Mas lembremos que “isso” que aparece é o procedimento base do centro do capitalismo em relação a sua periferia e que remete aos primórdios geradores da própria dinâmica normalizada no centro: violência, descodificação, desterritorialização, com novos procedimentos de territorialização, amálgama do arcaico e moderno enquanto polos produzidos pelo capitalismo. Assim, o horror que o nazismo causou à Europa é explicado, por Aimé Césaire, pelo fato destes atualizarem no centro as práticas que os europeus destinavam às suas colônias e que constituíam a dinâmica fundamental do sistema que aparecia fenomenicamente e de forma “externalizada” como relação dualista


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entre “moderno e arcaico”. Quando um país europeu passa a ver os outros países europeus como “arcaicos”, atualizando práticas antigas, é sinal que a desterritorialização (modernização) que ia do centro para a periferia se voltou para o próprio centro e fez deste um arcaísmo e isto a partir da atualização de procedimentos eles mesmo arcaicos mas com funções atuais. A funcionalidade atual desses procedimentos arcaicos, se explica por eles fazerem parte de uma desterritorialização atualizada no centro sem a qual o capitalismo não conseguiria deslocar seus limites. As guerras e os regimes totalitários foram responsáveis por salvar o capitalismo de si mesmo, desenvolveram, a partir de uma economia de guerra, as forças produtivas e ensejou um novo ciclo de acumulação. Como, entretanto, cada país tem suas periferias, podemos dizer que o horror da exceção que se abate no “centro” do Brasil decorre do fato de que aqueles que ocupavam o poder passarem a ser vítimas dos procedimentos que reservavam às suas periferias.Mas ainda trata-se de nos perguntarmos: como isso foi possível? A explicação se encontra no nível do desejo. Mesmo os progressistas no nível da consciência, do interesse, permaneciam investindo de forma conservadora uma ordem social baseada na repressão, no estrangulamento do desejo, na sua captura paranoica de um processo “esquizofrenizante”. As repressões dos movimentos de resistências nos governos do PT; o fato da esquerda temer e não saber lidar com o que lhe aparecia como estranho ao seus códigos militantes, que descodificava esses códigos, encontram aí seu papel. É por

essas repressões que selecionam certos tipos de pulsões (paranoicas) e reprimem outras - antes, durante e depois de junho de 2013 - que a recuperação das forças de desterritorialização da sociedade por códigos arcaicos (patriotismo, familismo, etc) foi possível num momento de crise político-econômica. Ou seja, a política de compromisso estabelecidas nos últimos anos, respaldada e executada pela esquerda institucional tinha uma função conservadora e repressiva que desempenhou o seu papel para produção da realidade objetiva e subjetiva que vivemos.É necessário ver o nexo interno entre fenômenos ditos de progresso e os de regresso, como o próprio PT gerou seu demónio. Do ponto de vista do desejo, portanto, não há “progressão” ou “regressão” como a psicanálise e outras teorias da modernização querem fazer crer. A funcionalidade dos arcaísmo no campo da “civilização” capitalista tem a mesma base: a mais fria repressão do desejo. A ilusão de um progresso foi possibilitada pela dinâmica do capitalismo que produz o “arcaico” e o “moderno” a partir dos processos de desterritorialização e reterritorialização, sempre do centro para a periferia, conquistando novos espaços de acumulação. Quando códigos “arcaicos” são funcionalizados para a repressão e quando aquilo que se manifestava na periferia (suas zonas “subdesenvolvidas”) aparece no núcleo do sistema, a aparência é de “regresso”. Contudo: Do ponto de vista do investimento libidinal, nota-se bem que há pouca diferença entre um reformista, um fascista, às vezes até certos revolucionários, que 17


Esquizoanálise e fascismo só se distinguem de maneira préconsciente, mas cujos investimentos inconsciente são do mesmo tipo, mesmo quando não esposam o mesmo corpo.6

Nesse nível, os governos de “esquerda” e de “direita” agem sob a mesma base conservadora da ordem mercantil. Sendo os recrudescimentos cada vez mais paranoicos do governo um reflexo da exigência do capitalismo de sua “salvação” a todo custo. Assim, a emergência de uma figura como a do Bolsonaro apoiado tanto pela classe média quanto pelas classes populares não decorre do fato de serem manipulados midiaticamente ou de serem enganados, mas dos governos ditos progressistas terem alimentado essa ordem conservadora a partir de pactos de conciliação e de tecnologias de governo que garantiram a reprodução de uma ordem repressiva, mas que, enquanto tecnologia de governo se esgotou. Que seja alimentado o ódio contra minorias, contra vagabundos, “bandidos”, por um espectro grande de pessoas, decorre de uma reação à crise social e ao sofrimento que ela provoca reivindicando a manutenção dessa mesma ordem: patriarcal, racista, capitalista. Os anseios não são diferentes daqueles alimentados pelos reformista progressistas e mesmo por revolucionários: anseio pelo trabalho enquanto forma alienada, o desejo por dinheiro, pelo fluxo de acumulação, de crescimento, desejo por relações de exclusão em relação aos imigrantes, aos negros etc, para que o crescimento econômico seja garantido para uma

parcela cada vez mais reduzida. Toda ordem repressiva e as relações de exclusão que lhe são imanente, foram alimentadas, explícita em alguns níveis, dissimuladamente em outros. Dissimuladamente, pois o racismo, se não foi enunciado explicitamente como aspecto programático dos últimos governos, foi do ponto de vista do funcionamento da máquina social, da sua tecnologia de governo e do seu investimento libidinal a partir do recrudescimento do aparelho punitivo do Estado em vistas a uma guerra contra a “criminalidade”: encarceramento em massa, militarização urbana e genocídio justificado pelo combate aos “bandidos” que ameaçam a população de bem. A demanda por segurança, sustentada pela determinação paranoica do investimento do desejo, portanto, foi alimentada por esse processo de guerra à pobreza sob o signo da criminalização, ao mesmo tempo que o medo e insegurança se espalhava no corpo social apoiado também por políticas de austeridades e precarização do trabalho. Assim, a tecnologia social montada nos últimos anos não só não poderia ter sido sustentada sem a conjuntura das commodities, mas também não podia prosseguir em sua conciliação entre políticas voltadas para garantir a concentração de renda e terra e assistência social focalizada sem essa base de contenção e extermínio de uma população “sobrante”, que se generaliza como sintoma da implosão do sistema capitalista mundial cada vez mais excludente.

6 O Anti-Édipo, p. 483. É importante salientar que assim como os autores consideram a possibilidade de uma não identificação entre investimento pré-consciente e investimento inconsciente, podem, assim, coexistir num nível algo de revolucionário ou reformista e no outro algo fascistizante, o mesmo vale para o inverso. No nosso caso, é de se considerar que pode haver um desejo anti-sistêmico em eleitores do Bolsonaro e, assim, poderem mudar sua posição pré-consciente.

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O processo bárbaro da “civilização”, desterritorializando, arrochando salário, encarcerando aqueles que são expurgados do mercado e se tornam “supérfluos”, pôde coexistir com políticas de “bem-estar”, com a introdução de axiomas que integram e tornam administráveis do ponto de vista jurídico-político parcelas da população, prestando assistências, integrando em formas de gestão do sistema etc. Algo que se dá num nível muito mais rebaixado do que aquele analisado pelos autores e ligado à organização da classe operária para exigir “um nível de emprego estável e elevado, e que força o capitalismo a multiplicar seus axiomas ao mesmo tempo que ele devia reproduzir seus limites numa escala cada vez mais ampliada)” e pela eclosão da Revolução Russa. Contudo, nossa situação é bem pior, pois não se trata de um aumento da participação do Estado na regulação da economia contra à configuração liberal7 do capitalismo, engatando um novo processo de crescimento, pleno emprego, bem-estar, acompanhada de uma mobilização permanente para a guerra. O capitalismo, em crise permanente e globalizado, exige uma intervenção do Estado cada vez mais securitária e assassina, uma solução que vai se tornando predominante e que aparece claramente como práticas

do governo de Bolsonaro, enquanto a parte social vai sendo desmantelada e vista como geradora de “vagabundos”. Cabe acrescentar ainda um agravante: no atual contexto de ‘austeridade’ e de ingovernabilidade causada pela “concorrência pelos recursos escassos”, as próprias forças militares estão se “desestatizando”, apesar de manter relações diversas com o Estado, formando máquinas de guerra que alimentam a potência de guerra civil dispersa e que tende a se autonomizar do próprio Estado a medida em que milícias vão crescendo como formas de gerir empresarialmente e militarmente a vida social, ao mesmo passo que grande parcela da população vai sendo expurgada da ordem econômica e precisam ser contidas ou eliminadas preventivamente como “ameaças” virtuais a ordem mercantil8: Junto aos exércitos, tem emergido o que, seguindo Deleuze e Guattari, poderíamos referir como ‘máquinas de guerra’. Essas máquinas são constituídas por segmentos de homens armados que se dividem ou se mesclam, dependendo da tarefa e das circunstâncias. (...) O Estado pode, por si mesmo, se transformar em uma máquina de guerra. (...) Máquinas de guerra (nesse caso, milícias ou movimentos rebeldes) tornam-se rapidamente mecanismos predadores extremamente organizados, que taxam os territórios e as populações que os ocupam (...)9

7 Analisando o imaginário do discurso integralista, Marilena aponta como um dos seus elementos, que prepara sua concepção de Estado forte, o combate ao liberalismo e o capitalismo internacional: “Nos contextos dedicados a uma crítica do liberalismo, o discurso enuncia que a luta de classes foi inventada pela democracia liberal onde o Estado, fraco, deixa que surjam ‘o pânico do Capital’ e a ‘miséria do trabalho’” – Ideologia e Mobilização Popular, p.41. A mobilização da Nação, junto com a religião e a família, tinha o papel de dar as bases para um Estado que seria capaz de superar a divisão de classes a partir do seu papel ativo na regulação da produção. 8 Guerra aos “vagabundos”: sobre os fundamentos sociais da militarização em curso – Maurílio Botelho. 9 Mbembe, A. Necropolítica, p. 54.

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O baralho cigano Allan Cob

Era uma noite de Natal, quente e mofada, mas a cidade jazia inerte, nem os insetos pareciam ousar sair dos bueiros. Eu caminhava sozinho, por entre as fachadas dos prédios semi-destruídos e encortiçados da Cracolândia quando me deparei com um movimento abrupto, disforme. Era um homem. Ele fazia movimentos precisos, como quem realiza uma tarefa concreta. Não consegui avançar. Com cuidado, o homem esticou uma lona preta entre a calçada e o meio fio da Rua Aurora e deitou-se, esticando a mão em minha direção. Rápido — disse ele — eu não tenho muito tempo. Não posso morrer enquanto não tiver me livrado disto. Pegue, anda logo — dizia ele, enquanto balançava um pequeno objeto reluzente em minha direção. — Vamos, rapaz, ainda tenho que lhe contar a história. Eu me abaixei, encostei um joelho na lona preta e estiquei a mão para alcançar o objeto. Era uma pequena caixa de metal. — Isto é um baralho, está comigo há muito tempo — disse ele — Um velho cigano me entregou quando estava prestes a morrer. Minha hora está chegando e você foi o primeiro que passou. Agora que você chegou e decidiu ficar, não tem mais escolha, vai ter que carregá-lo até a hora da sua morte. 20

Enquanto o homem me dizia isso folheei as cartas do baralho, eram sete: o tambor, o navio, a fazenda, a estrada de ferro, a cidade-fábrica, a travessia e o campo-presídio. Estas cartas contam uma história de fugitivos — continuou o homem. — Não conheci direito o cigano que me entregou as cartas, só tive tempo de ouvi-lo dizer que todo portador tem o dever de escrever uma nova carta com a própria vida e adicioná-la ao baralho. Nunca me importei com isso. Mas, agora que estou no meu leito de morte, me assombra a ideia de não poder cumprir com esta missão, talvez a única verdadeiramente importante que o acaso lançou sobre a minha vida. Conto com você para fazer da minha vida a oitava carta. Vou te contar uma história, você ouve e faz a carta. Juntos cumprimos a minha derradeira tarefa nesse mundo e você fica livre, pelo menos até a hora da sua morte. Tudo começou com uma onda de sequestros. O tambor era um chamado da aldeia para avisar que os caçadores de gente estavam chegando. O cigano me disse que essa carta é sobre o medo, mas também sobre a música. Logo alguns de nós conheceram o convés e os porões d’O Navio, esfregando, içando velas, remando ou simplesmente amarrados


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e enjaulados em uma nefasta arca de animais. O cigano me disse que esta carta é sobre a escravidão, mas também sobre o motim. Os sobreviventes da viagem foram jogados em um porto e dali carregados em carroças ou feitos caminhar até as fazendas, onde eram açoitados e obrigados a cultivar açúcar, milho e algodão. O cigano me disse que essa carta é sobre o trabalho, mas também sobre a sabotagem. Depois de décadas sob o sol, fomos levados a uma nova paragem, onde começamos a construir estradas de ferro, com as mãos, pás e martelos. Éramos um batalhão de soldados forçados a trabalhar. Em uma noite quando o capataz adormeceu, o envenenamos e fugimos, sem saber para onde. O cigano me disse que essa carta era sobre a hierarquia, mas também sobre a traição. Chegamos então a uma cidade, no seu centro erguia-se uma torre que cuspia fumaça aos céus, fábrica de tijolos, fábrica de cidades. Ali, sem grilhões nos atiramos às fornalhas em troca de água e pão. O cigano me disse que essa carta era sobre a liberdade mas também sobre a prisão. Levas e mais levas de gente se amontava sobre os portões da cidade-fábrica. As pessoas começaram a fugir. Hordas de viandantes, peregrinos e andarilhos escapavam da Babilônia que lhes cuspia fora depois de lhes sugar até o tutano. Formou-se a caravana da travessia. O cigano me disse que essa carta era sobre a esperança mas também sobre a desilusão. Atravessamos mares, desertos e florestas. Chegamos ao portão de um campo-presídio. Suas fronteiras eram

enormes, cercadas de arame, muros e torres de vigilância. Na nossa ilusão, pedimos para entrar, mas nunca mais pudemos sair. Uma noite um prisioneiro cego encontrou um buraco na cerca e conseguiu escapar. Esse homem cego era o cigano e a sétima é a sua carta. Isso foi tudo que pude ouvir. O cigano desenhou a sua carta enquanto fugia para cá. Já a minha vida é só desapego. Larguei família, casa, fé e dinheiro. Tudo que tenho agora é esse pedaço de chão e minha lona onde durmo e onde pretendo morrer esta noite — A voz do homem enfraquecia-se a cada frase. — Aquele cigano, cego e aprisionado conseguiu encontrar um buraco na cerca mas eu, depois de tanto fugir, só encontrei esse buraco onde dormir. Agora me diga, qual será a minha carta? — O homem recolheu as mãos, que gesticulavam enquanto ele contava a história, agora repousadas sobre sobre o peito. — Adeus! — disse finalmente, fechando os olhos. Sua cabeça tombou levemente para o lado, já sem vida. Ainda perplexo diante daquela situação, levantei-me e voltei a caminhar, enquanto guardava a caixinha no bolso da camisa. Aos poucos, o movimento da cidade ia ressurgindo. Primeiro os moradores de rua, depois os ônibus, o ressoar da portas de aço do comércio e, finalmente, nascia o Sol, por trás de uma espessa cortina de fumaça, com a esperança de mil prisioneiros. — Claro — disse eu em volta alta – essa vai ser a sua carta: o Sol Negro.

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3 poemas contra a sobriedade.

Latrina espiritual. Atmosférico ser pujante e intransitável que come de minhas entranhas os resíduos amorfos e medonhos de refeições retardadas paradas na crueldade fisiológica de meu corpo. Sai! Sai!, inoportuno verme caseiro! Flatulante gordura convidativa e perene, fede ao costume. Lixeiro residual acoplado e estendido (quase choroso) de minha carcaça primal. Raiva eruptiva e grito contra o infante. Sacudida ligeira de seu corpo membranoso e a DOR! Grito novamente e os dentes montanhosos brilham em minha câmera. E-então?! Então nada. Gostei do amigo corpulento e seu chicote, acatei calmo e regurgitei em sua face vergada e obscena — gritante por esdrúxulos restos bovinos pitorescos — cinzas saudosas da salvação

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O Paraíso. Quem diria que quem errou foi Deus? Quem diria que a tortura eterna seria, afinal, solidária? O júbilo da companhia! “E o que será?” “Não importa. Agora somos!” Ele ouviu. Me fascino com os amantes correndo em prantos [de alegria] sobre os ventos e estrelas. Pena sobre aquele que se nega! A repetição e a dor sublime o calor serpenteia a pele e cada parte se torna o todo. Inibido e Inarticulado, remoto. A garganta desce o caminho sagrado e penoso. enquanto os gritos atormentam a festa. Agora, calmo, sigo o mesmo destino e sei que o paraíso da companhia me espera. Afinal, estamos todos lá.

Dor no dente. A reta infinita sem final, apenas sempre. Filme descartável sobreposto em dupla percepção. Quanto mais, ainda, o uno sempre continua, contínuo a foto o discurso a negativa do poder se restaura em um [único] ciclo infinito.

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I Carlos Penaforte

Treslinguagem Não sei dizer sem me contradizer. Quando vejo mundos com o pensar olhos da intuição , cuido inconsciente de despensar e perscentir . Desesperado lobo em desvario solto

. É a angústia a culpada da treslinguagem! A angústia gerada pela distância cruel impercorrível entre o que o olho vê e o que vê o olho

. Sempre que desato a me embrenhar na mata da sentença , trilho o caminho certo para me perder. Pleno mato vocábulo

. É o ponto cego que nasce do encontro das visões nitidez interrompida. É o nó mudo indecifrável que mora no emaranhado das palavras.

. Mas ainda mais é quando vago pela selva das coisas vivas de sentido . Orquestras de bichos me sussurram dicas e descubro e dou novo nome para significados inexplorados esquecidos. Esqueço e confundo nomes e renomes estabelecidos 24


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II Carlos Penaforte

Não me importa que passes o dia a conhecer outras casas, nem que, ao cair da noite, bebas de outras taças que não as minhas, se, todavia, quando sentires cansaço ou agonia, voltes aos meus braços, antes de raiar o dia.

de outros vinhos, a experimentar o êxtase de outros sentidos, se, quando colheres a formosa rosa de outro jardim, ao lhe furar o dedo seu espinho, guardares esta flor para mim.

Se isso, porém, for impossível, também não me importa.

Não me importa que tu saias da minha terra – me é doce afiada a espera! – nem que dances outras danças, te acostumes com novos rostos, conheças outras línguas, e sigas outro norte.

Não me importa que durmas outros sonos que não os nossos, nem que quebres outros copos com seus olhos altivo-distraídos, se, por saudade ou desaforo, tu vieres, de novo, me visitar, nem que somente em sonho. Se também isso for impossível, porém, não me importa. Não me importa que, por vezes, me esqueças, embriagada

Se isso for, porém, também impossível, não me importa.

Contanto que tua ausência não seja eterna, dure só uma temporada, e que, ao menos ao fim da vida, tu voltes. Se também isso for impossível, já não me importa mais nada.

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Um hipócrita

Caminhei aquele passo doído, exausto e rude, mesmo mecânico. Parei. Virei-me de lado, vi o céu borrado e os edifícios que se dissolviam no ar. Os homens, como em todos os dias, caminhavam em descompasso, honestamente convictos de que guiados pela vontade, andavam com alguma razão. Vi o piso ceder. Rangi os dentes com ódio, não daqueles que passam com um cigarro no meio dos dentes, mas daqueles que ardem o peito com furor. O estrépito atormentava-me. Parecia que eu, um homem feito de carne, iria também dissolver-me como os prédios que em espiral afluíam, como as vozes e círculos do meu tormento longitudinal. Fumei um cigarro. A fumaça se contorcia no ar sujo. Nojo. Escarrei no chão aguado e fingi estar vivo. O som embaralhava-me o ódio, embriagava-me de desconsolo, aquele ruído, maldito alarido da cidade que sorridente persistia em me amofinar. Feliz? Fome, fome de uns cinco minutos a menos numa maldição de algumas horas diárias. Os carros exalaram trevas, que misturadas ao ar, faziam a noite-dia do dia-noite. Vozes, algumas vozes, tantas vozes, meu Deus quantas vozes! Ruídos, conversas e burburinhos, prantos enfadonhos, sorrisos melancólicos, rostos disformes e colarinhos elegantes! Embasbacado, parei olhando para o nada, com a boca arreganhada e palavras… Acendi outro cigarro, mastiguei o alcatrão sem mover os dentes, sentei26

me no meio-fio com os sapatos velhos de papai. Os outros conversavam sobre o trabalho, os carros gemiam e numa construção próxima as britadeiras soavam pelas últimas vezes dum dia moribundo. Aos toques n’água e pequenos respingos, secava uma varanda acima de mim uma velha sem forma. Ao longe ladrava um cão, meu relógio marcava minha morte no pulso e acima de mim planava um avião repleto de almas, rugia com pavor o monstro. E os outros o olhavam como sempre, e passava da mesma forma, mas apetecialhes mirar e clamar: — Como passou perto! — Disse um terno, que andava ao lado de um vestido com um par de saltos altos. Senti vontade. Mas de que? Não sei, queria tantas coisas e tanto me queria o pesar. Gosto de sentir, vontade tira o tédio. Voltavam os gritos, o rodo, o avião e o relógio, o cão e os carros... Odeio o silêncio, mas gosto de almejálo, me sinto com vontade. Acendi outro cigarro, a fumaça dançava naquele arco-íris de preto e branco. Gosto de fumar porque passa o tempo que não uso, acho que perdi uns três minutos aqui sentado e o tempo não passa! — Moça! Boa noite, você tem horas? — Pensei dizer — São dez pras oito. — Disse uma secretária de calças verdes e óculos manchados. Agradeci e perdi mais tempo refletindo. Há algo de particular nas lentes turvas, um quê de pragmático nos olhos fumacentos. Deitei o cigarro fora


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e segui ao ponto, chegando descobri através de um velho que o ônibus até Utinga havia passado há pouco. Aborreci-me e decidi ir caminhando, gosto de andar, mas gosto de andar quando tenho tempo para esse luxo. Os pés me doíam, os sapatos de papai me trairiam no final. Atravessando uma pequena ponte, onde os carros acercavam-se de meus canais auditivos, joguei o maço pela metade numa telha de zinco. Ao final do ponto avistei uma banca e comprei dois maços, estavam em promoção, afinal, gosto de economizar tempo. Começou a chover. Abriguei-me em um café, que não era gourmet, mas servia. Paguei um copo de café e sentei-me ao lado de uma camisa envelhecida. — Boa noite. — Boa noite — me respondeu a camisa. Mastigava uma esfirra de carne e olhava as notícias. Gostava de escutá-lo mastigar, mas as notícias atrapalhavamme com seu ruído. O balcão era repleto de ladrilhos manchados e sujos, os imaginei alvos e sorri enquanto acendia outro cigarro. A camisa pediu-me um, e eu como um homem generoso, o dei dois enquanto sorria, gosto de sentirme generoso. Guardei o maço no bolso interno do paletó, que prazer me dava esse bolso, me sentia requintado. — Esse país é uma comédia! — Rouquejou indignado o bêbedo. Ergui-me na cadeira, olhei em seus olhos amarelados e disse: — É mesmo! Saí, levando a carteira do bêbedo me sentindo sincero. Perto de casa, deixei-a no asfalto rindo e ao olhar mais a frente, vi algumas luzes onde a esquina se contorcia em concreto. O piso abaixo e próximo a mim passou a liquidificar lentamente, haviam vozes e sirenes que amoleciam o contorno das casas.

Chegando ao meu prédio, vi que uma pequena muvuca se concentrava ali, Dona Irene tinha morrido. Chegou o carro funerário quase simultaneamente e assinei um papel que não entendi, levaram Irene naqueles sacos pretos, encontrei prática a ideia do zíper e sempre me encantava como reluzia aquele pretume. Dona Irene tinha ido ao mercado comprar um aparato culinário, era uma ferrenha consumidora das promoções. Visando completar sua coleção seguiu ao mercado, gastando as economias do mês. Isto narrou a nós o porteiro, que só queria ler os anúncios em paz enquanto Irene lhe contava seus planos. Encontraram-na contorcida numa poça de sangue, ao pé de seu apartamento, havia tropeçado numa tábua solta e dado com a testa em um degrau firme. Subi as escadas apressado e cuidadoso, temente ao poder do cotidiano. Tirei as chaves do bolso interno do paletó, aspirei o cheiro de alvejante. Sorri. Como gosto de coisas limpas! Sentei-me na poltrona de papai e abri um romance vagabundo, não tinha fome e como um leitor culto, dormi sentado. Já desperto, telefonei ao trabalho informando minha ausência, agradeci minha chefe que falava gravemente. Tomei dois copos de café frio e fui ler o jornal em silêncio, aquela paz de estar longe dos alaridos que distorciam tudo. Puxei novamente o maço do paletó sujo porque tinha vontade, o guardei logo em seguida. Dona Irene odiava cigarros. A vizinha me trouxe bolo e fez rosto de quem sente muito, eu fiz cara de quem sente dor e agradeci sem sorrir. O telefone tocou, atendi mastigando o bolo da misericórdia. — Opa — disse impaciente e de forma nasalada — José, o enterro da sua mãe é domingo. Tá tudo bem filho? 27


Os faróis

Desperto. Não há nada, só existe a eterna e infinita obscuridade amorfa. Se só há a escuridão, e eu me reconheço como existente, o que sou eu? Aparentemente, eu sou esse todo, sem limite, eterno, completo e autossuficiente. No entanto, apesar de aparentar ser esse infinito obscuro, sinto que posso me mover, que mudo de posição e que controlo algo restrito. Como sou o infinito e o finito, ao mesmo tempo? Após milênios de existência como ser único, algo surge a minha frente. Um ser totalmente distinto da escuridão me ilumina e me impõe um limite. Nunca havia me visto. Agora, os raios luminosos que emanam do Outro me obrigam a aparecer. Possuo um limite, um corpo, uma certa coloração distinta da escuridão, tenho coisas que crescem pelo corpo todo, o que chamarei de pelos. Todavia, apesar de ter adorado me ver, eu repudiava ser limitado por esse Outro, visto que ele me iluminava e me distinguia dele. Desejo que as luzes se apaguem, que os olhos se fechem, e que não nos distingamos mais. Penso: “sejamos todo, o mesmo”. No entanto, ele permanece a me iluminar. Me sinto exposto, envergonhado, indefeso, mas algo me instiga a 28

permanecer aqui, olhando para aqueles misteriosos olhos. Esse conflito entre ficar ou não disposto aquela luz, me consumia, visto que antes disso não havia luminosidade. Como viver sem tal sensação de calor, de alegria, agora que ela veio até mim? Decidi permanecer, pois desejava conhecer aquilo que possuía os lindos olhos iluminadores. O tempo perdeu sua importância, se ele a tinha. Eu apenas ficava ali, limitado e fascinado pelo Outro que era um mistério, um desafio. No decorrer das horas uma sensação me consumia, algo totalmente novo. Um desejo de tocá-lo, de conhecê-lo e de se fundir a ele, pois, aparentemente, só ele limitava minha totalidade, minha plenitude. Aos poucos, a luz deu lugar a escuridão. Para onde foi Aquele que me iluminava e me fazia sentir o calor? Por que desapareceu? Mesmo almejando ser um todo sem a restrição da luminosidade, eu desejava ser com Aquele que me iluminava. Jamais havia desejado tanto ser limitado, só para poder “ser” com um Outro. Um ser existente não podia deixar de existir do nada, pois aquilo que existe é eterno. O que aconteceu com Aquele que me fez finito? Tal questão perturbou toda


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minha eternidade. No entanto, torneime um todo, livre, independente e sem restrições novamente. Mas infelizmente, isso era falso: como eu poderia ser um todo completo, se eu não comporto a luz em mim? Estou de fronte de novos sentimentos: a falta, a saudade, a angústia e a vontade de ser com Aquele. Todavia, ele nunca retornou. A mera relação entre um Outro e eu, produziu em mim o desejo de estar com esse. Por isso, a infinidade eterna da escuridão livre já não me bastava, não me saciava, precisava de mais. Precisava dele. Decidi buscá-lo, e para isso eu andaria por toda infinita escuridão, até encontrar os únicos olhos que me fizeram sentir a intensidade de ser restrito. Vaguei por todo o espaço amorfo da escuridão, sob aquilo que convencionei chamar de pernas, mas nunca o encontrei. Aos poucos a saudade tornou-se solidão, e o infinito que, antes dele, me fazia pleno, agora era a mera falta. Desisti de vagar sem rumo, pois uma ideia veio a mim: algo permaneceu após sua partida? As lembranças permaneceram; logo, se eu não podia encontrá-lo, podia, pelo menos, me lembrar das sensações causadas por ele. O eterno obscuro se desfez, visto que as lembranças se desenhavam com cores vividas por toda a extensão. A mesma sensação de calor apoderou-se de mim, e lá longe, desenhava-se os olhos misteriosos do ser que eu enamorava. No entanto, ele não existia realmente, era a era lembrança construída por mim.

Mas isso não acabou com as sensações que me dominavam por inteiro. Senti escorrer pelo meu corpo as mais árduas lágrimas de felicidade, frutos da lembrança do Outro que me tornou finito, e fez sua presença necessária para a minha totalidade. Por algum tempo me abasteci lembrando e fantasiado aquele ser magnífico que outrora existia. Porém, com o passar dos séculos a angústia da falta tornou-se maior do que as vividas lembranças que circundavam minha mente. Aos poucos deixei de fantasiar, e o silêncio solitário consumiu as expressivas cores produzidas pela memória. Fui aprisionado, novamente, na infinidade da escuridão eterna. Depois de milênios já estava claro que o Outro nunca mais voltaria a me limitar, ou a existir. Mas eu desejava, eu buscava aquela sensação de me relacionar com a luz, pois como eu poderia ser completo sem o Outro? Não podia, por isso desisti de buscá-lo. Permaneço existindo, todavia, incompleto, marcado pela falta da limitação, pela falta de relação, e consumido pelo maior das dores: o amor que é impedido de chegar ao ser amado. Solitário é o meu destino, mesmo que ele não tenha limites ou finalidade, continuarei a existir sem uma restrição, mas desejando infinitamente ser, novamente, iluminado pelos misteriosos olhos do Outro.

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O Brasileiro do Futuro, ou, The Brazilian Terminator (Parte 1?)

O garoto levantava sorridente o troféu, abraçava e beijava sua mãe e seu patrocinador. “Nunca chegaria aqui sem o apoio da OMO!” lagrimas escorriam. Gustavo Limma sobe no palco cantando e jogando sabão em pó na plateia que vai ao êxtase. “Very Nice!” Pedro pensou consigo mesmo. Também ele já havia ganho seu concurso culinário na TV, que o garantiu uma vida na Capital, Dallas no Texas. O logo de sua companhia, Dreyfus, para sempre estaria tatuado no peito: ganhou a última temporada apresentando pratos que continham somente soja; a apresentação conceitual e o conhecimento de processamentos avançados lhe valeram o prêmio final. A próxima notícia mostrava dois repórteres enforcados, seus corpos pendiam dos fios elétricos em frente à filial do Buzzfeed na Philadelphia. Richard Farinha, 23, e Philip Costa Souza, 32, invadiram a empresa nesta manhã e abriram fogo contra seu chefe e colegas de trabalho, as vítimas já contavam 78. “Oh my God!” Pedro pensou consigo mesmo. Rapidamente apareceram na tela as imagens das câmeras de segurança do Buzzfeed Philadelphia. Ana Paula Padrão surgiu justaposta ao vídeo da chacina, apontava com os dedos para os rostos dos terroristas durante a ação. Pedro era apaixonado por Ana Paula Padrão desde de sua terceira reencarnação hologramática, desviou os olhos da tela para olhar em direção à janela, que havia coberto com um poster de Ana Paula Padrão de biquini. Molhou seu rosto pensando na importância daquela mulher na história de seu pais e na sua vida, depois molhou as calças por conta do biquini. Se levantou da cama e foi bater na porta do quarto de sua filha Kate, Kate não saía do quarto desde que se mudaram para a Capital. “C’mon Kate, I put so much work in giving you this new life here in the United States! I don’t understand why you are so sad! People would kill to have this chance!” Kate nunca respondia. “Shit!” Pedro pensou consigo mesmo. Não compreendia sua filha, também não possuía os fundos para comprar um esposa que a garantisse apoio psicológico. Tinha adquirido 30


discurso sem método • 2019 • nº 1

uma esposa ano passado, Carolina, uma imigrante brasileira que vendeu seu corpo ao Estado Americano para conseguir cidadania, seus circuitos neurológicos foram afetados no processo e assim ficou com metade do corpo paralisado, também não conseguia mais articular palavras inteiras, porém era o tipo mulher que cabia no seu orçamento. A reação de Kate foi péssima, Pedro teve que devolver Carolina à empresa e ainda está pagando a multa por cancelar o contrato. “One day Kate will be like Ana Paula Padrão, I know it!” Pedro estava guardando dinheiro para enviar sua filha para uma Faculdade de Letras americana, o que certamente aumentaria o valor de Kate no mercado. Foi até a cozinha para preparar o café da manhã: soja. Seu apartamento era pequeno, porém sua cozinha era equipada com os prêmios que recebeu durante o programa e um retrato de Pedro com o troféu ocupava toda a parede da sala. Mais notícias pululavam nas telas enquanto Pedro cozinhava. A final dessa temporada já estava causando polêmica: a entrada da empresa OMO no ramo alimentício não era bem vista pelas outras companhias do setor, várias crianças que consumiam os biscoitinhos de sabão OMO já apresentavam sinais de dependência e alguns adolescentes americanos estavam ingerindo o pó azul pelas vias nasais. Os comentários mostravam um jovem sendo atendido no Hospital da Califórnia soltando bolhas de sabão por todos os buracos. De repente tudo piscou vermelho, as telas anunciavam o plantão de emergência: “Brazilian Terminator Attacks Again!” O vídeo mostrava o enorme robô precário jorrando gás lacrimogênio e lançando um jato de fogo pelas mãos. A repórter americana falava ao vivo do parlamento de Dallas explicando como terroristas comunistas construíram a máquina com restos tecnológicos e armamentos roubados da polícia militar na colônia; “Breaking News! Richard Farinha and Philip Costa Souza confirmed commies involved with the Brazilian Terminator Attack, Buzzfeed has no…” Todas as telas ficaram estáticas ao mesmo tempo, a imagem da repórter piscou e depois dobrou sobre si mesma de maneira geométrica, a energia acabou. Já se ouviam gritos nas ruas e o choro dos vizinhos, Pedro correu até o quarto de sua filha, que estava vazio. Da janela aberta do terceiro andar subiam labaredas. Pedro caiu de joelhos e lembrou do seu passado na colônia: “Shit!”.

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Viver é isolado Ofélia

ouço todos os dias a mesma canção quando acordo de madrugada e estou tão só e alguém, em algum lugar, de madrugada está tão só também mas nossos olhares jamais se cruzaram ou, talvez, nos encontremos todos os dias mas nenhum reconhece o outro afinal viver é cada um

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discurso sem método • 2019 • nº 1

Twin cafs: episódio 1

Anteriormente em Twin Cafs: Se você perdeu o Episódio Piloto de Twin Cafs, procure a edição anterior do jornal Discurso sem Método, ou leia em: twincafs.blogspot.com

A PORTA DENTRO DA PORTA “Aquela noite, na noite de sábado para o domingo, eu tive um sonho muito estranho. Estranho porque que parecia muito real. Eu ouvia um barulho, um barulho vindo do Espaço Verde, e ia lá checar. Ao chegar no espaço, estava tendo uma festa. Eu entrava no espaço e não era uma festa qualquer, tinha uma fogueira no meio, as pessoas estavam peladas, com os corpos pintados, dançando, transando, não apenas casais entende? Haviam orgias acontecendo. Mas nada daquilo me abalava, eu apenas continuava andando, quase como se estivesse flutuando, ia em direção ao centro acadêmico, sem sentir qualquer emoção. Ao chegar ao centro acadêmico, abri a porta, e lá haviam algumas pessoas, e no meio havia uma jovem loira cheirando uma carreira de cocaína em cima da mesa, após terminar de cheirar ela levantou a cabeça, olhou para mim e começou a rir, a gargalhar, nesse momento senti um medo subindo na minha espinha e acordei! Olhei no relógio e eram 4:37 da manhã. Após isso fui correndo até o espaço verde, olhei pelo vidro, e não vi não nem ninguém lá dentro” — E foi isso que Jonas, o segurança que estava lá no dia do roubo, contou pra

mim e pra Barbara enquanto eu acompanhava ela até o ponto de ônibus, antes de eu vir pra cá — terminou Jéssica. Era manhã, o Sol adentrava as frestas da janela do quarto de Willian no CRUSP, ele e Jéssica fumavam um cigarro na cama enquanto conversavam sobre os episódios da noite anterior. — Laura — sussurrou Willian — Será que a garota loira que Jonas viu no sonho 33


Twin cafs: episódio 1 – A porta dentro da porta

era a Laura Palmer? — Não sabemos — respondeu Jéssica — poderíamos ter pego uma foto dela no

google e mostrado para ele na hora pelo celular. Mas estávamos tão abaladas que nem pensamos nisso. Só acompanhei a Barbara até o ponto e depois vim para cá. — Que bom que veio — disse Willian com um sorriso no canto da boca. — É foi tão bom que acabamos nem conversando. Mas foi bem melhor assim.

Me conta, como foi sua conversa com o Lafatte? E aquele Daniel, que cara estranho, como ele ficou sabendo sobre o roubo se ele nem é da USP? — Ele é estranho mesmo, também estava abalado acabei nem perguntando isso

pra ele, mais tarde pergunto. Ele tá dormindo aqui na sala do apê.

— A Rita ficou meio afim dele — interrompeu Jessica sussurrando e depois deu

uma risadinha sutil.

— Bom melhor ela ir com calma, porque ele parece ser estranhão mesmo. Mas

está bem empenhado em descobrir quem roubou o quadro. Fez uma boa pesquisa sobre os textos do Lafatte sobre Lynch antes de falarmos com ele. E o Lafatte topou nos ajudar e participar de uma atividade. — Bom vamos marcar, amanhã acho que um bom dia para fazer essa atividade

com ele. Avisa Rita que ela está elaborando o resto do calendário da semana e terminando a nota sobre o ocorrido. Bom preciso parar de enrolar que já estou atrasada pra reunião com meu orientador. Fico ansiosa só de lembrar — disse Jéssica levantando abruptamente e começando a procurar a calcinha dentre as roupas que estavam jogadas no chão.

— Também, te avisei desde o começo que escolher o Roberto Serra como orientador era roubada — respondeu Willian enquanto levantava para ajudá-la a

procurar.

— É devia ter te ouvido, é que ele é um dos poucos que estuda feminismo —

disse Jessica ainda revirando as roupas.

— É isso que está procurando? — disse ele com a calcinha na mão. — Obrigada lindo. Era mais fácil você achar mesmo, pois afinal, foi você que

tirou ela para mim né? Vou me vestir que preciso correr tá?

Jéssica vestiu a calcinha e Willian começou a procurar suas roupas para também. Após ambos se vestirem, Jessica se despediu. Ao sair do quarto, Willian ficou surpreso que Daniel não estava mais dormindo na sala. Andou até o corredor e ascendeu um cigarro na janela. Alguns minutos depois surge Daniel subindo a escada, andava quase saltitando 34


discurso sem método • 2019 • nº 1

como se tivesse acordado de muito bom humor. — Bom dia Willian! Fui dar uma volta pra conhecer o campus de vocês, é incrível! — falou Daniel com nítida empolgação — aquela praça com um relógio de

sol, como chama?

— Praça do Relógio de Sol. — Uau! — Bom, mais tarde vou lhe apresentar o bandejão. Vamos dar um jeito de te

colocar lá dentro pra comer e depois vamos ao Espaço Verde, pois vai ter projeção da primeira temporada de Twin Peaks. — Sim, e ainda precisamos reunir mais pistas sobre o roubo!

**** — Por que o quadro da Laura Palmer era tão importante para vocês?

Essa pergunta foi como um chacoalhão em Jéssica. Ela havia passado a reunião inteira com Roberto Serra divagando, sem conseguir prestar atenção em nada que ele falava. Mas quando ele perguntou isso, foi como se trouxesse ela de volta para realidade. — Não entendi a pergunta professor — gaguejou ela. — A pergunta foi simples Jéssica. É nítido que você não está em condições de

continuar nessa reunião, me sinto falando para as paredes. É por causa do roubo do quadro né? Tudo bem, pode ir embora, mas só fiquei curioso, porque o quadro era tão importante? — Você tem razão professor, não estou muito bem, preciso ir embora — respondeu Jessica já levantando rapidamente e pegando sua bolsa — vamos remarcar essa

reunião, pode ser algum dia essa semana mesmo.

Jessica saiu da sala do professor e foi andando rapidamente ao banheiro. Estava tendo uma crise de ansiedade. Entrou lá para lavar o rosto. Deu um grito de susto quando seu celular tocou. Foi pegar o celular na bolsa para atender, mas desajeitada deixou ele cair no chão. Olhou para a tela e viu que quem estava ligando era o Vitor do primeiro ano. Devido a sua crise, preferiu não atender. **** Após comer no bandejão, Willian e Daniel subiam em direção a FFLCH conversado. 35


Twin cafs: episódio 1 – A porta dentro da porta

— Me conta uma coisa — perguntou Willian a Daniel enquanto caminhavam —

como você ficou sabendo do roubo, se você nem da USP é?

— Recebi uma mensagem — respondeu Daniel — uma mensagem com uma

cópia do e-mail institucional que vocês mandaram pros alunos da filosofia notificando sobre o roubo. — Uma mensagem? Mensagem de quem?

— Não sei, recebi a mensagem naquele aplicativo chamado Sarahah, lá as

mensagens são anônimas.

— Sarahah, nem sabia que tinha gente que ainda usava isso. — Ei Willian veja! — exclamou Daniel interrompendo a conversa e apontando

para uma parede que havia no prédio da filosofia em baixo do espaço verde. Naquela parede estava escrito “VOCÊ ABRE UMA PORTA E PERCEBE QUE TEM OUTRA PORTA DENTRO”. — Eu já vi essa frase em algum lugar — disse Willian sussurrando, como se

estivesse dizendo apenas para si mesmo.

— Mas veja isso Willian! — falou Daniel enquanto pegava um pedaço de papel

em seu bolso. Era o bilhete que foi deixado no dia do roubo do quadro, que estava escrito “AS CORUJAS NÃO SÃO O QUE PARECEM SER”. — Você está andando com isso no bolso? — Sim, mas não é isso que importa Willian. Repare! — Daniel estava apontando para o papel e apontando para a parede onde havia a pichação — É a mesma

caligrafia! Quem pixou a parede com essa frase, foi a mesma pessoa que efetuou o roubo. — Como disse antes, tenho certeza que já essa frase anteriormente em algum lugar — afirmou Willian, dessa vez com segurança.

**** Mais tarde Jéssica chegava ao espaço verde, onde estava sendo feito os preparativos para a projeção da primeira temporada de Twin Peaks. Vitor viu ela chegando e foi em direção a ela para conversar. — Oi, te liguei e você não atendeu — disse ele — queria saber como você tá, não

te vejo desde o sábado na praça do relógio, quando você saiu correndo.

— Desculpa Vitor, acho que não ando muito bem não. E agora com essa estória

do roubo, eu, eu...

— Ei, como foi a reunião com Serra? — disse Willian interrompendo a conversa 36


discurso sem método • 2019 • nº 1

dos dois. — Horrível, depois conto mais para vocês, preciso falar com a Barbara.

Jessica caminhou em direção à Barbara, que estava com Rita ajudando a montar o projetor. — Amiga, tudo bem? — disse Jéssica. — Tudo sim — respondeu Barbara — e você? Não está com uma cara muito

boa.

— Não, não estou muito bem, minha ansiedade está atacando. Mas então, queria

falar sobre o relato do segurança Jonas sobre o sonho dele. Não conseguimos conversar sobre isso direito ontem. Eu e Willian estávamos comentando a possibilidade da menina loira que ele viu no sonho ser Laura Palmer. — Que loucura, fiquei pensando muito nisso também.

— Então, que tal se nós formos atrás dele e mostrar uma foto da Laura na

internet?

— Podem ir lá amigas — disse Rita — eu me encarrego de terminar de montar

o projetor aqui, tá suave.

Ambas caminharam até a guarita dos seguranças. Perguntaram por Jonas para a moça que estava lá trabalhando. — Hoje não é dia de serviço do Jonas. Se puderem voltar amanhã talvez ele

esteja aqui.

**** Mais tarde acontecia o evento onde estava sendo projetado Twin Peaks. O espaço verde estava relativamente cheio. As pessoas assistiam silenciosamente os episódios da série. Em um dos sofás estava sentada a Jéssica que estava com a cabeça deitada no ombro de Willian. — Jonas não estava lá na guarita hoje — disse Jessica — vamos voltar amanhã

para ver se conseguimos mostrar a foto para ele.

— Tranquilo espero que amanhã ele esteja e que vocês consigam falar com ele, estou muito curioso. — respondeu Willian enquanto passava o baseado para Rita

que estava sentada no sofá ao lado.

Rita pega o baseado, dá uns tragos. Ela olha para o lado e vê que Daniel está sozinho em um sofá, e há um lugar ao lado dele. Ela anda em direção a ele com o baseado e pergunta: — Você fuma? 37


Twin cafs: episódio 1 – A porta dentro da porta

— Não, obrigado Rita! — Posso me sentar ao seu lado? — Seria um prazer, aliás parabéns pela organização da atividade, ela está ótima! — Que isso! Precisamos fazer uma homenagem à altura do que era o quadro

da Laura da Laura para nós! Amanhã teremos a mesa com Lafatte e uma cervejada depois. Apareça também! Você tá ficando no apartamento do Willian né? — Dormi lá essa noite, mas hoje ainda pretendo ir para casa. — Bom mas amanhã, se quiser ficar na cervejada, pode dormir no CRUSP de

novo. Tem o apartamento do Willian, mas tem outras pessoas que podem te abrigar lá também. Como eu por exemplo, que também moro lá. Mas me diz, onde você mora? — Em Guarulhos, próximo da UNIFESP.

— Uau que longe, mas então — continuou Rita — é verdade que você ficou

sabendo do roubo através de uma mensagem do Sarahah? Willian me contou!

— Sim, esta aqui — disse Daniel enquanto pegava o celular e mostrava a

mensagem à Rita.

— Mas você sempre recebe mensagens desse tipo no seu celular? Você faz algum ideia de quem pode ter mandado? — perguntou Rita pegando o celular da mão dele.

Daniel ficou sem jeito sem saber o que responder e um silêncio constrangedor pairou no ar. — I gonna have ask you to leave now, police busines — disse Rita com uma voz

grossa, como se estivesse imitando um homem falando. — O que? — perguntou Daniel perplexo.

— Nada, O Cooper acabou de falar isso para Audrey — respondeu ela apontando para a tela onde estava sendo projetada a série — vou voltar para meu lugar, com

licença.

Após isso Rita voltou para o lugar que estava sentada antes e devolveu o baseado para Willian. **** A primeira temporada de Twin Peaks foi projetada até o final. Ao seu término, se mantem um silêncio no espaço verde. Escorre uma lágrima no rosto de Jéssica, enquanto toca a música do encerramento dos episódios.

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discurso sem método • 2019 • nº 1

Laura Palmer 22 de julho de 1971 — 24 de fevereiro de 1989

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Twin cafs: episódio 2

PETIT A NOTA DO CENTRO ACADÊMICO DA FILSOSOFIA A RESPEITO O ROUBO DO QUADRO DA LAURA PALMER Nós do Centro Acadêmico da filosofia manifestamos muito pesar com relação ao episódio ocorrido nesse fim de semana, onde nosso espaço foi invadido e o quadro da Laura Palmer foi subtraído dele. Sabemos o apreço que muitos tinham com relação ao quadro, por isso estamos organizando, durante essa semana, diversas atividades para homenageálo. Estão todos convidados, tanto para participar das atividades, quanto para ajudar à construí-las. Sabemos que muitos boatos estão sendo disseminados com relação ao episódio do roubo. Pedimos encarecidamente que tomem muito cuidado com esses boatos, eles muitas vezes atrapalham todo nosso esforço gerando uma rede de desinformação sobre o caso. Além do fato de que muitas vezes esses comentários podem ser desrespeitosos com relação ao quadro da Laura. Vamos manter viva a memória do quadro! Compareçam às atividades! Hoje, quarta-feira, haverá uma mesa com o professor Wagner Lafatte sobre David Lynch. Logo após uma cervejada no Espaço Verde, onde tocarão apenas músicas das trilhas sonoras de Twin Peaks e de outras obras do Lynch.

Giovane estava no saguão do prédio do meio panfletando a nota do centro acadêmico. Ele entrega o panfleto para Vitor que estava passando na hora. Vitor pega o papel, anda um pouco e olha para trás, ao ver que Giovane não estava mais olhando para ele, Vitor amassa o papel e joga no lixo. **** Ao chegar ao CAF, Daniel encontra Willian mexendo em vários papeis que pareciam jornais velhos. 40


discurso sem método • 2019 • nº 1

— Tenho que te dizer Willian, a acomodação no seu apartamento do CRUSP

ontem foi ótima! Porém nada melhor que uma noite de sono na sua própria casa, me sinto bem mais disposto no dia de hoje — disse Daniel — O que são esses jornais?

— Esses são o Discurso sem método — respondeu Willian — jornal produzido pelos

estudantes da filosofia. Preciso te mostrar uma coisa, lembra que eu te disse que já tinha visto em algum lugar aquela frase que estava pixada na parede? Então veja isso.

Willian pegou um dos jornais que estava em cima da mesa abriu em uma página e mostrou a Daniel. — Veja essa poesia, ela não tem nome e autor também está anônimo — disse

Willian apontando para o jornal.

você percebe que entre aquilo que você pensa e aquilo que você diz que você pensa existe uma grande diferença todo mundo tem um lado obscuro que não quer que ninguém conheça será que eu quero conhecer?? talvez sim, talvez não ignorância não é uma benção mas também não é uma maldição o importante é ir todo dia quebrando as barreiras você abre uma porta e percebe que tem outra dentro é preciso uma explosão atômica no interior da sua cabeça no subsolo, no banheiro eu sou a entidade da minha própria oferenda mais rápido que o tempo mas mais lento que o intento até onde será que eu aguento?? — Esse verso! “você abre uma porta e percebe que tem outra dentro” é a frase

pixada pelo autor do roubo na parede lá em baixo. Sabe o que isso significa Willian? Que talvez o ladrão do quadro tenha colocado algumas pistas sobre o roubo nesses 41


Twin cafs: episódio 2 – Petit A

jornais. — Mas acontece que esse jornal onde está publicado essa poesia é o número

7, que foi escrito em 2014, será que ele está tramando isso há tanto tempo assim? De qualquer forma, se vamos procurar as tais pistas, vamos ter que fuçar todos os Discursos sem Método, que existe desde 2012. Logo após Giovane e Barbara entravam no CAF. — Olá Willian, olá Daniel — disse Barbara — não sabe o que acabamos de

descobrir.

— Fomos atrás do Jonas, o segurança do prédio que estava na noite do roubo, para tentar descobrir se a moça do sonho dele era Laura Palmer — continuou ela — novamente fomos informados de que ele não estava trabalhando. Demos uma

pressionada e acabamos descobrindo que ele foi transferido para outro prédio, porém ninguém da guarita soube dizer para gente para qual unidade ele foi transferido.

— Vamos tentar questionar o departamento sobre o motivo desta transferência e para onde ele foi — complementou Giovane — mas acredito que eles vão dizer que

não tem nada a ver com isso, pois Jonas era terceirizado.

— Será que essa transferência dele tem a ver com o sonho que ele contou para vocês? — perguntou Willian. — Creio que não — respondeu Barbara — pois não teria como saberem que ele

contou isso para gente. Mas de qualquer muito estranho ele ter sido transferido logo no dia seguinte. — Mudando de assunto — disse Willian — como está o contato com o Lafatte,

Giovane, ele é seu orientador né? Será que ele vem mesmo? Ele costuma atrasar sempre e às vezes nem aparecer. — Ele não é meu orientador, pelo menos não ainda pois estou na fila de espera e

ele é muito concorrido. De qualquer forma frequento os grupos de estudos dele. Ele disse que vem, espero que venha mesmo — respondeu Giovane — porque acho que a atividade vai estar bastante cheia, seria muito chato se ele não aparecesse! **** Como previsto por Giovane, o espaço verde estava cheio, por volta de umas duzentas pessoas aguardando a chegada do professor Lafatte. — Gente ele já tá atrasado quase meia hora — disse Barbara para as pessoas que estavam dentro do CAF — o que faremos com essas pessoas se ele não vier? — Eu já mandei umas três mensagens para ele e nada dele responder até agora —

disse Giovane olhando para o celular. 42


discurso sem método • 2019 • nº 1

— Vocês já se perguntaram porque ele sempre atrasa? — perguntou Daniel.

Todos no recinto ficaram em silêncio e olharam para Daniel. — Quer dizer — continuou ele — se vocês dizem que ele sempre atrasa para as

atividades, para as aulas e às vezes nem aparece. Qual será o motivo disso?

— Bom ele é bem ocupado, trabalha na Folha de S. Paulo, às vezes participa do Jornal da Cultura, escreve vários artigos — respondeu Giovane que parou um pouco para pensar — mas pensando bem, nada disso justifica a atitude dele! — Galera — disse Jéssica na porta do CAF — ele chegou!

Lafatte andou até a mesa onde ele ia sentar para a atividade. Barbara foi em direção a ele. — Boa noite professor — disse ela. — Boa noite – respondeu Lafatte — me desculpe o atraso. — Tudo bem – disse ela sentando na mesa — eu que vou apresentar a atividade.

Vamos começar?

**** A exposição do professor durou mais de uma hora. Ele falou bastante sobre a trilogia de Lynch (Estrada Perdida, Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos). Comentou sobre Twin Peaks relacionando com filósofos contemporâneos e com psicanálise, especialmente Lacan. E terminou fazendo uma homenagem ao quadro da Laura Palmer. Ao final, todos no espaço verde bateram palmas. Barbara abriu para a plateia fazer perguntas. O primeiro a levantar a mão foi um menino que estava lá no fundo do espaço verde. — Professor, o que são as corujas? — Quer dizer — continuou ele — na série aparece várias vezes a frase que diz que

as corujas não são o que parece ser, e é a mesma frase que o ladrão do quadro deixou no local do roubo. Mas na série, em nenhuma das temporadas, é respondido o que elas são. Então, você saberia dizer o que são as corujas?

— Veja bem, não há como responder qual é o simbolismo exato das corujas, não é essa a questão — disse Lafatte tentando responder a pergunta e ficando com a testa vermelha — as corujas aparecem em vários episódios, normalmente nas partes tensas

da série, mas David Lynch não explica o que elas são. E acho não é nisso que devemos nos ater. Após a tentativa de resposta de Lafatte, se iniciou um burburinho no espaço. Barbara logo cortou e abriu para novas perguntas.

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Twin cafs: episódio 2 – Petit A

A atividade continuou com mais algumas perguntas e se encerrou após as considerações finais do professor. **** Mais tarde, após a mesa com Lafatte, ocorria a cervejada. O espaço verde estava bem decorado, apenas metade das luzes estavam acesas e estas estavam cobertas com um celofane vermelho, dando um aspecto mais intimista para o lugar. Rita estava só esperando tocar uma música lenta para convidar Daniel para dançar. No momento em que tocou, foi em direção a ele. — Dançaria essa música comigo?? — perguntou Rita. — Seria um prazer!

And I saw your smile — Então — continuou ela falando baixinho enquanto dançavam — só eu acho

muito estranho você aparecer do nada pra nos ajudar, com essa estória maluca da mensagem no Sarahah? — Admito que também acho bem estranho Rita, mas ao mesmo tempo isso é

muito importante para mim e farei de tudo para solucionar o caso.

— Mas o mais estranho é que nesse caso onde o ladrão está simulando os eventos

de Twin Peaks, você ser tão assim, tão o agente Cooper. Falling Falling Falling Falling in love. — Se eu sou o Cooper, isso faz de você quem?

— A Audrey — disse Rita sussurrando bem baixinho no ouvido dele. Logo após,

ela largou do corpo dele e começou a se afastar, ainda no ritmo da música, encarando-o com um sorriso malicioso, depois virou as costas e saiu andando. Enquanto isso, do lado de fora do espaço verde, Willian e Jéssica conversavam.

— O Roberto Serra remarcou nossa reunião para sexta de manhã — disse ela —

mas estou morrendo de vergonha, eu meio que saí correndo da última, praticamente deixei ele falando sozinho. — Meu, qualquer coisa inventa qualquer desculpa e tenta adiar.

— É seila, espero estar melhor até lá — respondeu ela. Olhando para dentro do

espaço verde, ela tomou um pequeno susto, vendo que Vitor estava observando os dois conversando.

— Bom, qualquer ajuda que precisar, me avisa — disse Willian dando um selinho nela — vou mijar ali no matinho e já volto. 44


discurso sem método • 2019 • nº 1

Após Willian descer as escadas, Vitor foi em direção a Jessica e começou a falar com ela. — E aí? Vai ficar só me evitando mesmo? — perguntou ele num tom passivo

agressivo.

— O que? — Desde de sábado que você saiu correndo e me deixou sozinho na praça do

relógio, você não falou mais comigo. Se você disse que tem relação aberta com Willian, você deveria ter um tempo para mim também e não ficar só com ele.

— Escuta aqui Vitor, não é porque eu tenho relação aberta que eu tenho que ficar

com todo mundo. E não é porque eu fiquei com você umas vezes, que eu devo ficar sempre e que você tem o direito de chegar assim em mim cobrando satisfações. Quem é você? Você nem sabe pelo o que eu estou passando e nem parece se importar. Acho que a melhor ajuda que você poderia me oferecer agora, era saindo da minha frente!

Vitor pensou em responder alguma coisa para ela, mas mudou de ideia e só saiu de lá. Jéssica esboçou um sorriso, pois sentiu que pela primeira vez na semana, pelo menos momentaneamente, sua ansiedade havia passado. **** Ainda na cervejada, Daniel se surpreendeu quando chegou uma mensagem no Sarahah dele escrito: ME ENCONTRE NA PRAÇA DO RELÓGIO, EM FRENTE À TORRE. Sem avisar ninguém, Daniel caminhou até a praça. Chegando no lugar indicado, ficou aguardando. Quando de repente aparece Rita, saindo do meio das árvores. — Você não tem medo de vir até aqui sozinho? — perguntou ela. — Rita? O que está fazendo aqui? — Fui que te mandei a mensagem, bobinho. Ontem quando peguei seu celular

consegui ver qual era o seu perfil do Sarhah. — Mas por que me?

— Sabe que as pessoas normalmente usam esse aplicativo para outras coisas né? Além de receber mensagens sobre roubos de quadro em centros acadêmicos — disse

ela dando um passo em direção à ele.

— E para que elas usam então? — Perguntou ele dando um passo em direção à ela. — Para que mais oras? Para paquera!

Os dois se beijaram. Numa árvore distante havia uma coruja os observando. 45


Procriação politicamente assistida e heterossexualismo de Estado* Paul B. Preciado**

Embora a lei do “matrimônio para todos” faz supor uma abertura da instituição e uma extensão de seus privilégios políticos, a negativa do governo francês ao aceitar o PMA 1 para casais, coletivos ou indivíduos não heterossexuais é uma maneira de respaldar os modos hegemônicos de reprodução sexual e confirma que o Partido Socialista Fracês promove uma política de heterossexualismo de Estado: a heterossexualidade normativa e obrigatória seria, de novo, legitimada como técnica de governo nacional. A restrição do PMA aos reprodutores heterossexuais é a resposta dos senhores feudais da tecno-heterossexualidade, dos fiadores da ordem simbólica masculinista nacional (nisto estão de acordo com os novos patronos do judaísmocristianismo-islã) a um conflito social e político secular que poderia fazer tremer seu poder, conferindo, pela primeira vez, aos corpos da multidão o controle cooperativo de suas células, seus fluídos e seus órgãos reprodutivos. Em termos biológicos, afirmar que são necessários um homem e uma mulher para executar um processo de reprodução sexual é tão ridículo como foram, em outros tempos, as afirmações de que a reprodução apenas podia acontecer entre dois corpos que compartilham a mesma religião, o mesmo “sangue”, a mesma cor de pele ou o mesmo status social. Se hoje somos capazes de identificar estas afirmações como prescrições políticas que dependiam de uma ideologia religiosa, racial ou de classe, deveríamos ser também capazes de discernir a ideologia heterossexista e os processos de normalização de gênero que subjazem aos argumentos que fazem da união sexo-política de um homem e de uma mulher uma condição de reprodução. Enquanto a direita francesa se embrutece negando o que denominam “teoria de gênero” em nome da “natureza” – com uma fanfarrice apenas comparável àquela com a qual a direita americana se opôs à “teoria da evolução” -, a biologia evolutiva do desenvolvimento, a engenharia genética e a bio-informática estão modificando radicalmente o que até agora entendíamos por natureza, por sexo e por transmissão hereditária do patrimônio biológico. * ** 1

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Un apartamento en Urano: cronicas del cruce, Editora Anagrama, 2019 Tradução feita por Lis Macêdo de Barros (lis.macedo.barros@gmail.com) Procréation médicalement assistée.


discurso sem método • 2019 • nº 1

Por detrás da reivindicação conservadora do caráter natural da heterossexualidade se esconde a confusão estratégica entre reprodução sexual e prática sexual. Quando se diz que a reprodução heterossexual é mais “natural” que a homossexual se confunde a “reprodução sexual” e as coreografias sociais que acompanham a heterossexualidade. Como nos ensina a bióloga Lynn Margulis, o único que podemos afirmar sobre a reprodução sexual do animal humano é que ela é meiótica: a maior parte das células do nosso corpo é diploide, ou seja, têm duas séries de 23 cromossomas cada uma. Todavia, os espermatozoides e os óvulos são células haploides, isto é, tem um único jogo de 23 cromossomos. O processo de fertilização não supõe a diferença de sexo ou de gênero dos corpos implicados, mas a fusão do material genético de duas células haploides. Não há nada que faça mais apto para a reprodução um cromossomo heterossexual, do que um cromossomo de um homossexual, independentemente se a inseminação ocorra com um pênis ou com uma seringa, numa vagina ou numa placa de Petri. A reprodução sexual não necessita da união política, nem sexual, de um homem e de uma mulher, nem heterossexual nem homossexual. A reprodução sexual é simples e maravilhosamente uma recombinação cromossômica. O único que podemos afirmar desde um ponto de vista biológico é que nenhum corpo “humano” pode se reproduzir fora de agenciamentos sociais e políticos coletivos. A reprodução é um ato de comunismo somático. Todos os animais humanos procriam de forma politicamente assistida. A reprodução exige sempre uma coletivização do material genético de um corpo através de uma prática social mais ou menos regulada. Um espermatozoide não se encontra com um óvulo de forma “natural”. Os úteros não se engravidam de maneira espontânea, nem os espermatozoides viajam pelas ruas em busca de óvulos. Em termos históricos, diferentes técnicas de gestão política e social têm controlado os processos de reprodução da vida. Até o século XX, quando não era possível intervir nos processos moleculares e cromossômicos de reprodução, o controle se exercia sobre o corpo feminino (com útero e potencialmente gestante) e sobre os fluídos de esperma, sangue e leite que, acreditava-se, participavam do processo de reprodução. A heterossexualidade se impôs como tecnologia social de reprodução politicamente assistida. A particularidade dessa técnica é que tem sido historicamente naturalizada através de um exercício de legitimação política. O matrimônio era a instituição patriarcal necessária para um mundo sem pílula contraceptiva, sem mapa genético e sem teste de paternidade: qualquer produto de um útero se considerava, de imediato, propriedade e tutela do pater famílias. O sistema de subjetivação da modernidade europeia colonial se baseou na distribuição política dos corpos com respeito às suas funções reprodutivas. Em um projeto biopolítico em que a população era objeto de cálculo econômico, o agenciamento heterossexual se converteu em dispositivo de reprodução nacional. Foram excluídos desse “contrato heterossexual” (poderíamos dizer, lendo de forma cruzada Carole Patman e Judith Butler) das democracias modernas todos aqueles corpos 47


Procriação politicamente assistida e heterossexualismo de Estado

cujos agenciamentos sexuais não podiam dar lugar a processos de reprodução. A isso se refeririam Monique Wittig e Guy Hocquenghem quando apontavam, nos anos 70, que a heterossexualidade não era uma simples prática sexual, mas um regime político. Para alguns homossexuais, alguns transexuais (aqueles que estão em relações heterossexuais nas quais os dois membros do casal produzem unicamente espermatozoides ou unicamente óvulos), assexuais, intersexuais ou algumas pessoas com diversidade funcional, provocar o encontro de seus materiais genéticos não é possível através de um agenciamento genital, ou seja, a penetração biopênisbiovagina com ejaculação. Porém isso não quer dizer que não sejam férteis ou que não tem o direito de transmitir informação genética. Homossexuais, transexuais ou assexuais não somos unicamente minoria sexuais (uso aqui minoria no sentido deleuziano do termo, não em termos estadísticos, mas como um segmento social e politicamente oprimido), são também minoria reprodutivas. Temos pago nossa dissidência sexual e reprodutiva com silencia genético: não apenas somos borrados da história social, mas também temos sido borrados da história genética. Junto com aqueles corpos considerados como “incapazes”, homossexuais, intersexuais e transexuais, ou temos sido “politicamente” esterilizados, ou nos foi forçado a reproduzir através de técnicas heterossexuais alheias aos nossos próprios agenciamentos sexuais. A atual batalha pela extensão do PMA aos corpos não heterossexuais é uma guerra política e econômica pela despatologização dos nossos corpos, pelo controle de nossos materiais reprodutivos: nossos úteros, nossos óvulos, nossos espermas, em suma, nossas cadeias de DNA. Os heterosexocratas que saem às ruas e se manifestam, o fazem para que sua forma de reprodução assistida possa seguir sendo validada pela lei e pelos aparatos governamentais como a única natural, o que os permitiria manter seus privilégios político-reprodutivos. Pode François Hollande e seu governo, buscando o respaldo das forças conservadoras, alçar-se como tecno-pai soberano da pátria, como polícia da recombinação genética e arrogar-se o direito de nos esterilizar, de nos impedir de utilizar nossos fluídos e nossas células reprodutivas? Os teóricos da economia parecem ser conscientes de que o capitalismo entrou num período de mutação de suas formas de produção. Todavia a maioria dessas análises, ao separar produção e reprodução, ignoram que uma das transformações mais importantes do capitalismo contemporâneo depende das trocas introduzidas pelas tecnologias biológicas, informáticas e farmacêuticas, mas também das introduzidas pelas tecnologias de governo, não no processo de produção, mas de reprodução sexual e social. Enquanto a produção se virtualiza e os fluidos do capital financeiro se tornam cada vez mais móveis e abstratos, o âmbito da reprodução sexual e social aparece como o lugar de um novo processo de acumulação primitiva. É nesse contexto de metamorfose da economia da reprodução no qual quero situar hoje a pergunta pela procriação medicamente 48


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assistida e suas condições. A masculinidade e a feminilidade, a heterossexualidade e a homossexualidade não são entidades ontológicas, não existem na natureza com independência das relações sociais e redes discursivas, então, não podem ser objeto de observação empírica. São efeito das relações de poder, sistemas de signos, mapas cognitivos e regimes políticos de produção da vida e da morte. A anatomia não pode ser o fundamento sobre o que se apoia as agendas políticas e os juízos morais, visto que a anatomia (um sistema de representação historicamente fabricado) é em si mesma o resultado das convenções políticas e sociais mutantes. Os séculos XVII e XVIII não foram apenas um período de expansão colonial, de tráfico transatlântico e de desenvolvimento industrial, foram também os anos de troca de paradigma nos âmbitos da biologia e da representação anatômica do corpo. Uma mudança tão radical, quanto a mudança que levou a astronomia ptolomaica à astronomia galileia, teve lugar no âmbito da representação do corpo: passamos de uma anatomia, regida pela lógica de semelhanças, no qual apenas os órgãos sexuais masculinos teriam plena existência (pois os femininos eram variações degeneradas do sistema reprodutivo masculino) a uma anatomia regida por uma lógica de diferenças na qual, pela primeira vez, os ovários, o útero e as trompas de Falópio se representavam como órgãos independentes e com funções específicas. A diferença sexual entendida como verdade anatômica deriva deste sistema de representação moderno. Na segunda metade do século XX, com a descoberta (ou a invenção, dependendo do grau de construtivismo biocultural que aceitamos) dos hormônios, dos genes e dos processos de reprodução celular, inicia-se uma nova mudança de paradigma epistêmico e com ele o novo modelo de gestão político-sexual que denominei farmacopornográfico, uma mutação tão profunda e objeto de tantos conflitos sociais e políticos como o que ocorreu entre os séculos XVII e XVIII. 2 O bio-necro-poder modificou sua escala de ação e, com a ajuda de novas técnicas, estendeu sua regulação desde o corpo aos órgãos e desses até âmbitos micro-celulares. Se o capitalismo industrial, apoiado numa anatomia dos órgãos e das funções, fez do corpo e dos órgãos a base material da força de trabalho e da forma de reprodução, o capitalismo cognitivo funciona como uma nova epistemologia do corpo no qual os fluidos, as células, os hormônios, as moléculas e os genes são objeto de um novo processo de extração, tráfico e exploração global. Em termos históricos, pênis e vaginas, testículos e úteros, esperma e óvulos tem sido submetidos a uma gestão biopolítica diferencial. Enquanto os óvulos e o útero tem sido objeto de privatização social e de cercamento econômico, o 2 Sobre farmacopornografia ver: PRECIADO, P.B. Testo-junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacorponográfica, Editora N-1, 2018.

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esperma, entendido como fluido soberano, tem sido um líquido, cuja circulação pública foi promovida politicamente como índice de poder, saúde e riqueza. No capitalismo colonial, o útero foi constituído como um órgão-trabalho cuja produção de riqueza biopolítica tem sido totalmente expropriada e ocultada sob a cobertura de uma função puramente biológica. Como ensinou Silvia Federici, se o útero tem uma função central no processo de acumulação capitalista é na medida em que este é o lugar “que se produz e reproduz a mercadoria capitalista mais essencial: a força de trabalho” 3. Pensada as análises da acumulação primitiva de Marx em termos feministas, Silvia Federici definiu o capitalismo como o sistema social de produção que não reconhece a reprodução de força de trabalho como uma atividade socioeconômica e como lugar de produção de valor “e, em troca, mistifica como um recurso natural ou um serviço pessoal, ao mesmo tempo em que tira proveito da condição não assalariada do trabalho envolvido” 4. Enquanto o valor econômico do corpo reprodutor é desvalorizado, sua atividade produtiva se vê simultaneamente investida de mais-valia simbólica (a realização da mulher através da maternidade) que assegura e intensifica sua captura. No neo-patriarcado farmacopornográfico, a hegemonia do corpo heterossexual branco e válido e sua histórica superioridade ontoteológica é garantida por seu acesso prioritário aos dispositivos científico-técnicos de reprodução. Desta forma, o corpo heterossexual é o único a ter acesso legal ao mercado da reprodução tecnicamente assistida. Produz-se, assim, uma inesperada aliança entre os discursos ancestrais de corte mítico-religioso, as linguagens coloniais e biopolíticas modernas e a bio-informática de reprodução. Essas regulações estatais restritivas deixam as minorias reprodutivas fora da lei, entregando a gestão de suas cadeias de DNA, de seus fluidos e órgãos corporais ao mercado. Caberia se perguntar se não é necessário inventar um conjunto de técnicas de gestão do nosso material reprodutivo que exceda o antagonismo entre as formas de reprodução naturalistas legitimadas pelos Estados-Nação e pelas técnicas de privatização e capitalização estabelecidas pelo mercado da reprodução. Entre o corpo-reprodutor-público do Estado-Nação e o corpo-privado da gestão neoliberal é urgente afirmar novas formas de produção de anarcocomunismo somático. Entre a soberania da penetração heteropatriarcal e a regulação neoliberal do banco de esperma, entre a cama com lugar de produção de verdade e mercantilização dos materiais genéticos parece necessário inventar novas práticas de reprodução que excedam o quadrilátero tecno-edípico mamãe-papai-a-clínica-o-menino. Paris, 28 de setembro de 2013.

3 FEDERICI, S. Calibã e a Bruxa, Editora Elefante, 2018. 4 Idem.

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