discurso sem método • edição especial pós-pornô • 2019 • nº 2
discurso sem método edição especial
PÓS-PORNÔ 2019 • nº 2
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discurso sem método • edição especial pós-pornô • 2019 • nº 2
Conteúdo Editorial .................................................................4 Ao lado da Catedral de Ruão. ..................................6 Aperitivo .................................................................7 Dinheiro e analidade ..............................................8 Quatro versículos anais ........................................13 O que é queer? .....................................................14 Seu esperma soropositivo, meu útero trans-sapatão ....................................16 Tropeço. ...............................................................30
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Editorial
Parlamento Pós-Pornô O conceito de pós-pornografia ou pós-pornô é primeiramente cunhado pelo holandês Wink van Kempen, em 1980 para descrever um conjunto de obras com conteúdos explícitos [genitália e sexo], porém que não possuíam caráter masturbatório e sim paródico e crítico. Entretanto, foi Annie Sprinkle , atriz, artista e acadêmica que deu ao termo um caráter político e cultural mais amplo. Essa recodificação do conceito por Sprinkle dá nome aos conjuntos de iniciativas críticas da pornografia dominante, que longes de renunciar a representação sexual, estão pensando-a como produção de representações sexuais dissidentes. Nessas novas práticas pornográficas ou de conteúdo “explícito” os corpos em ação e reação, que importam, são os transexuais, os negros, os indígenas, os amarelos, os gordos, os mentalmente e/ou fisicamente incapazes, os corpos prostéticos etc, isto é, tudo aquilo que se distancia epistemicamente da gozada cis-branca-liberal-masculina. A pornotopia pós-pornô desempenha um registro privativo e um registro criativo que põem em relevo a ressignificação performativa das forças sexuais e culturais e a proliferação das identidades dissidentes para transformar a transa, as práticas e os corpos e queerizar os resíduos edipianos da cultura, à moda de Guattari e Deleuze. O apelo do pós-pornô é indissociável da desnaturalização do pornô moderno, afinal essa é a grande e atual máquina de produção de prazer fácil, imediato e ultra-rentável, isto é, a pornografia dominante é a potente tecnologia de produção de gênero e de sexualidade: pornografia hegemônica está para a heterossexualidade, assim como a publicidade está para a cultura do consumo de massa. A indústria do sexo não só é o mercado mais rentável da internet, é também o modelo de rentabilidade máxima do mercado cibernético global, apenas comparado à especulação financeira. Ela é uma linguagem que cria e normaliza modelos de masculinidade e feminilidade, ela fabrica sujeito sexuais dóceis, que os faz crer que prazer sexual é uma metida violenta numa buceta rosinha e sem pelos seguido de uma gozada semelhante a uma cachoeira. O pós-pornô performatiza sua modulação e torna possível contra-modulações subjetivas, no momento preciso no qual o neoliberalismo multiplica os dispositivos de captura biopolítica, fazendo do sexo e do mercado, sites de veridicção, endividando-nos, 4
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aburguesando-nos. Preciado, um do filósofos da pós-pornografia, liga o pós-pornô diretamente com a rede de contra-produção e de agenciamentos coletivos anti-capitalistas, contra esse novo capitalismo que depende da produção e circulação interconctada de centenas de toneladas de esteróides, fluxos, órgãos tecnicamente modificados e da difusão global do fluxo de imagens pornográficas, cito-o: Somos confrontados com um novo tipo de capitalismo, quente, psicotrópico e punk. [...] O biocapitalismo farmacopornográfico não produz coisas, e sim ideias variáveis, órgãos vivos, símbolos, desejos, reações químicas e condições da alma. Em biotecnologia não há objeto a ser produzido. O negócio é a invenção de um sujeito, e em seguida, sua reprodução global. (PRECIADO, 2018, p.36–38)
Alguns pornólogos podem questionar se essa perversão, se essa irrupção anti-discursiva já não podia ser encontrada nos escritos pornográficos clássicos, se nas produções literárias sadianas, por exemplo, já não estavam presentes esses elementos anti-sistêmicos e, de fato, estavam, em sua maioria, todavia o pós-porno emerge numa localização história específica, num capitalismo específico: na década de 80 quando se inicia uma intensa politização do corpo e dos prazeres como agenciamento frente ao forte recrudescimento da homofobia e do fortalecimento das medidas estatais do controle e da regulação da sexualidade: criminalização e pauperização do trabalho sexual, limpeza das cidades. Em suma, a guerrilha pós-pornô surge como reação frente essas novas formas de controle, cito Bourcier: “os punhos guerrilheiros da desobediência sexual e econômica estarão em constante ereção. READY TO FIGHT AND FIST AND GET-FISTED” (BOURCIER, 2014).
BOURCIER, M.H. Buildungs-Post-Porn: notas sobre a proveniência do pós-pornô, para um futuro do feminismo da desobediência sexual, Revista Bagoas, n.11, p.15-37, 2014; PRECIADO, P.B. Testo-junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica, Editora n-1, 2018; _____________. Entrevista com Beatriz Preciado: POSPORNO/Excitación disidente; Parole Queer, 2014; STÜTTGEN, T. Ten Fragments on a Cartography of Post-Pornographic politics, on C’lickme: a Netoporn Studies Reader, p.277-279,
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Ao lado da Catedral de Ruão.
Eram meia-noite e meia, e Carlos, duplamente apressado, já estava na sétima carreira compartilhada; não era o ideal, mas estava rendendo até. Demorava para tomar a cerveja, envolvido no papo – ou coçando o cotovelo – o que acaba em uma fração de uns 2 ou 3 copos por tiro. Vale lembrar também o copo de Salinas no canto da mesa, sendo experimentado por todos os três da mesa, esporadicamente; e um copo desperdiçado de amendoim, R$3,50. Estavam desde às 10h no bar e estavam começando a encher. Cada um com seu maço, menos Pedro, que gostava de pitar um cachimbo, que vivia se orgulhando por ter ganho com a morte do avô. Era a vez de Pedro colocar. Foi Generoso, tiveram que dar uma rápida pausa no 3⁄4 do tiro para comprimir rapidamente os olhos e acabar o trabalho. Esse foi o estopim, todo mundo bem e pronto para mais uma. As quatro próximas foram num intervalo de 10, 8, 8 e 9 minutos. Os três pareciam marionetes antigas, controlados por um mestre que já a anos lidava com o parkinson; os pés mal tocavam o chão, sendo jogados por aí. Carlos estralando de felicidade, sempre se lembrando dela enquanto sacudia a lingua na boca e sentia os dentes geladinhos; imensos na ponta da língua. Gigantes! Estavam crescendo cada vez mais, até o ponto de ser o único sustento do corpo de Carlos. Sua visão subiu até estar quase em total vertical, então começou a descer novamente. A paisagem mudou, parecia estar em uma avenida decorada com torres vermelhas e pernas peludas. Só conseguia mexer a cabeça para os lados, como um pêndulo. Tentou andar e com um relance de suas mãos, unhas grandes e a pele completamente colada nos ossos, confirmou sua hipótese: tinha virado um rato. Desesperado, recorreu aos bons amigos. Tentou escalar o pé de Pedro, que na mesma hora salta para fora de sua cadeira assustado; o outro amigo, Claúdio, pulou junto, noia. Carlos saiu da cobertura da mesa e mostrou o corpo cilíndrico à luz. Os dois amigos decidiram simultaneamente chutar a criatura. Três chutes desviados e o quarto acerta em cheio no fundo da barriga do roedor. — Ô caralho!!!
Foi arremessado sete metros para cima; durante a queda, o peso concentrado na parte traseira fez com que caísse com o cu em perfeitas coordenadas como um espeto da grande da igreja ao lado do bar. Carlos escorregou até a lança romper seu intestino e perfurar os pequenos pulmões. No dia seguinte, faxineiros limpavam a sujeira, enquanto reclamavam dos adolescentes de hoje em dia e suas brincadeiras de mau gosto. 6
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Aperitivo.
Delicadamente, dona Elda, deitava o corpo do Banquete sobre a madeira fria da mesa do salão principal. Uma mesa rústica, de corte quase animalesco. O corpo estava esticado, as mãos presas atrás de sua nuca por uma algema metálica que se ligava ao pescoço por uma barra, acoplada à uma coleira, assim, só era possível que olhasse para uma única direção. Seus pés, amarrados por dois nós, feitos com uma corda grossa e já toda desfiada, que, quando posta em cima da mesa, foi pregada junto à madeira, não estava tão carnudo, dava para ouvir o batucar de seus ossos na superfície durante os minutos iniciais. Cercado de sombras, finalmente avistou uma pele. Era uma mulher, jovem, seios suavemente fartos e coroados por bicos saltados de um rosa bege. Ela subiu e lhe deu um beijo na boca, empurrando com a lingua um comprimido para sua garganta, enquanto arrastava as longas unhas entre o cu e o escroto. Envolveram o pau e começaram a punhetá-lo. O Prato, tão fraco quanto os outros, já beijava continuamente a mulher. Sequer se lembrava o motivo de sua sorte. Seu pau estava completamente duro e lubrificado. Por baixo das pernas da moça, Elda apareceu novamente, desta vez com um bisturi. Encostou no cu dele e cortou uma linha até o fim da cabeça do pau. Quando o períneo se rasgou ele desmaiou. Infelizmente não pôde observar a obra anatômica que ficou os dois lados de sua piroca simetricamente disposto sobre sua bacia, que cada vez mais se encharcava com esguichos de sangue. Elda jogava cocaína dentro do corpo cavernoso e rapidamente se debruçava para chupar a droga, a porra e o sangue. Enquanto isso, os convidados se enfileiravam e batiam seus cigarros dentro dos cinzeiros escrotais.
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Dinheiro e analidade.
Gostaria de fornecer uma indicação para lidar de forma materialista e histórica com os órgãos. Toda produção social implica um investimento ou desinvestimento dos órgãos. O que significa dizer que não há, de um lado, a realidade natural, na qual se situaria os órgãos humanos enquanto animais, parte da natureza e, de outro, a história ou a cultura que diria respeito aos seres humanos não enquanto animais, dotado de corpo e órgãos, mas enquanto racionais, tendo, portanto, uma dimensão “espiritual” que seria própria da cultura e que permitiria instituir esse campo de realidade. Assim, iríamos dos contratualistas aos estruturalistas: instituição do campo social pelo contrato ou pela estrutura simbólica. Os órgãos são, ao contrário, realidades imediatamente histórico-naturais: o modo como sentimos, cheiramos, tocamos, vemos e, ao mesmo tempo, os objetos que sentimos, cheiramos, tocamos e vemos são condicionados historicamente. Os corpos e aquilo com o qual se relacionam são ao mesmo tempo elementos, forças produtivas das formações históricas e produtos delas. As formações históricas, assim, investem os órgãos ou os desinvestem para sua produção e reprodução. Daí, portanto, a possibilidade de uma história que leve em conta a avaliação das economias libidinais, das posições de desejo que cada formação requer para sua reprodução. Poderíamos, assim, por exemplo, tratar os modos de produção asiático ou Despóticos, como estratos sociais que implicam uma sobrecodificação dos órgãos. Sobrecodificação, pois a formação Despótica permite uma relativa autonomia para a multiplicidade de comunidades que compõem o território do Déspota (a Terra tornada propriedade do Estado) o que implica uma relativa autonomia nas codificações dos órgãos, dos corpos, das práticas sexuais, de iniciação, de marcação, do tempo etc. Mas ao mesmo tempo essa relativa autonomia só subsiste com a condição de serem sobrecodificadas pelo Déspota a partir da Forma da Lei. Nessa sobrecodificação os próprios órgãos são sobrecodificados: boca, ânus, braços, mãos, pernas, olhos tudo isso passa a ser propriedade do déspota, investido pelo Déspota não enquanto indivíduo empírico, mas enquanto corpo pleno, corpo que contém em si todo poder social de forma mistificada. O desejo de todos os corpos e órgãos sobrecodificados passam a ser desejo do desejo: o desejo deseja outro desejo. Mas qual desejo? O do Déspota enquanto grande Outro, claro. A voz e o grafismo aí adquirem outra função: a voz se torna muda, imagem-acústica, significante, enquanto a escrita duplica a voz muda: a voz muda é o significante vazio, a pura Forma da Lei, que não designa 8
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e não prescreve nada de específico e que, por isso mesmo, contém toda arbitrariedade que torna possível identificar a Lei e a vontade Soberana; a escrita se torna um conjunto de significantes subordinados (que designam significados específicos). O sentido que esses significantes subordinados possuem depende da existência daquele significante destacado e arbitrário que não designa nada em específico: o excesso de significado possível para o termo vazio tem como correlato o sentido determinado dos demais termos na medida em que estabelece uma relação de oposição diferencial entre os termos: camponês-burocrata, burocrata-Déspota, as partes da riqueza que cabe a cada um e aquela que pertence de antemão ao Déspota etc. Os olhos aqui devem ser reduzidos à função de ler (os intérpretes burocratas dos decretos do Déspota-Deus), uma subordinação à escrita que, por sua vez, é subordinada a voz (vontade do Déspota a ser interpretada) como fonte da significação e de sentido: falar-escrever-ler, uma forma social e histórica de encadear, seriar os órgãos. E a posição do desejo aqui só pode ser paranoica: por trás de tudo, de cada ato, está o Déspota, que está em todo lugar, mas por sua ausência, sua transcendência, olhando tudo de cima pelos olhos de seus subordinados e determinado a ordenação do espaço social e da produção da riqueza sem a necessidade de sua presença. Vejamos agora a nossa sociedade, nosso corpo social inventor do papai-mamãe-filhinho. O que se passa com os órgãos? Eles foram privatizados, foram tornados propriedades de um Eu abstrato. É aí que começa a aventura das fases edipianas: fase oral, anal, genital, que, a despeito das duas primeiras serem situadas num estágio pré-edipiano, em que há uma pansexualidade infantil, em decorrência da multiplicidade de zonas erógenas ainda não centralizadas pela figura de um Eu, todas elas caminham para uma centralização como meta inevitável. No fim o genital, o Falo transcendente que opera o binarismo masculino-feminino pela castração e identifica o masculino à Lei. O destacamento, no interior da estrutura familiar, do Falo como forma da Lei ou da castração a partir da qual a diferenciação entre o homem (possuidor do falo) e a mulher (ausência do falo) se opera e as faltas são distribuídas (a identidade masculina deve se formar pelo medo de ser castrado e a feminina pelo fato irremediável de não possuir o falo) só é possível pela privatização precedente de um órgão, pela sua retirada do campo social e sua dessexualização: o ânus. A privatização e dessexualização do ânus em favor do genital e da relações entre os sexos é o que permitiu fundar a subjetividade no próprio binarismo. A analidade da nossa sociedade é tão maior quanto mais o ânus é desinvestido, em todo lugar do campo social encontraremos essa analidade: na burocracia, no dinheiro, na subjetividade heteronormativa, todas elas pressupõe essa analidade promovida por dessexualização e privatização. Assim, o ânus é a câmera escura do teatro familiar. Ao mesmo tempo, esse desinvestimento coletivo dos órgãos e sua privatização cujo modelo é a privatização do ânus, implica um sobre-investimento individual dos órgãos, sobretudo aqueles 9
Dinheiro e analidade.
que foram “sexualizados” e tornados base da constituição da identidade: o pênis e a vagina. Essa estrutura exclusiva: ou isso ou aquilo, implicando o princípio do terceiro excluído e de não contradição (princípios lógicos constitutivos da identidade) produz também suas possíveis transgressões, em relação às quais já foram constituídos um conjunto de aparatos práticos e discursivos (como a psicanálise e, sobretudo hoje, a psiquiatria com seus manuais de transtornos) para lidarem com elas e nos fornecerem um conjunto de vocabulários para falar sobre elas. Assim é que a psicanálise pode falar das perversões e da homossexualidade edipiana, que se assenta sobre a mesma estrutura, mas de maneira “invertida”: desejo do pai, identificação com a mãe ou desejo do masculino, identificação e ódio ao feminino, ou… o mesmo binarismo de base. Ou ainda a psiquiatria sobre a transexualidade. A estrutura edipiana contém em si tanto a suas figuras “normais” quanto suas transgressões: a mãe dona-de-casa, implica já suas figuras contrárias: a amante, a prostituta. Da mesma maneira, o binarismo edipiano masculino-feminino implica já as figuras que os transgride: a transexualidade e a intersexualidade. Mas vejamos o passo lógico da constituição da identidade e da sexualidade: esta não parte da família, mas do campo social, que tem como instância determinada a ser determinante o dinheiro e a propriedade privada como mecanismo jurídico de garantia da acumulação. É o corpo social do dinheiro que exige Édipo como instância delegada do sistema de repressão-recalcamento. O eu, constituído de maneira binária, é o que vai constituir a matéria humana a ser reproduzida e transformada em função derivada das quantidades abstratas do mercado: trabalho, dinheiro, mercadoria. E também o Eu que será responsável pela internalização das leis sociais como suas e que irá reduzir todos os problemas postos pelo campo social como problemas individuais e ligados a relação triangular da família. Toda moralização em torno do trabalho produtor de mercadoria e do trabalho doméstico implicou, portanto, produzir uma privatização dos órgãos e a capacidade de dizer EU: Eu e minha propriedade, Eu e minha sexualidade, Eu e meu objeto de desejo”. A família é quem opera esse trabalho delegado de reprodução da força de trabalho e de individualização da mesma a partir da constituição de uma subjetividade edipiana. Assim se explica, também, a necessidade da constituição do domínio familiar e do trabalho doméstico característico desse domínio como necessário à produção capitalista. Daí que a família, ao contrário da ideologia edipiana e da tentativa prática de estruturar e confinar tudo à triangulação papai-mamãe-eu, é recortada pelo campo social: a luta de classes, o racismo, o contexto histórico, tudo isso passa pelo desejo e pela família. Se há o pai como autoridade é porque, há patrão, há uma sistema político estruturado sobre o princípio de masculinidade, e não o inverso. Ou seja, a família nunca consegue se fechar como interioridade, primeiro porque ela é um momento do campo social, um agente delegado da repressão que visa, pelo recalcamento do desejo no campo familiar, gerar um 10
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consenso qual a naturalidade das relações sociais (por trás das figuras parentais – o patrão, o policial, a empregada doméstica etc); segundo, porque o próprio campo social do qual ela depende e que a produz é, ele mesmo, incapaz de se estruturar tudo por completo e de se constituir como uma interioridade universal. Impossibilidade que remete à própria natureza do desejo ou do inconsciente: se o desejo é imediatamente histórico e social, isso não quer dizer que uma estrutura histórica específica seja a última palavra do desejo e do inconsciente, que é portador de forças que escapam ao socius e que podem dar ensejo a novas relações sociais. Nesse momento, podemos indicar a relação entre o Édipo e a pornografia. A subjetivação edipiana produz uma forma de consumo específica. Esse consumo se caracteriza por uma alienação do desejo em relação a suas forças, de modo que o desejo se torna desejo de algo que me falta. É necessário, para a satisfação do desejo, possuir isso que falta e cuja posse nos garante um prazer imediato. É esse tipo de subjetividade e consumo que está na base da pronografia: o caráter masturbatório, pelo qual se vê e se consome as mercadorias pornográficas implica o caráter privativo, edpiano, em que os órgãos foram desinvestidos coletivamente para se reduzir ao consumo privado, subjetivo, com todo sentimento de culpa, de vergonha em relação a si mesmo que isso envolve: “a privatização dos órgãos só começa com a vergonha que o homem experimenta à vista do homem”. Essa má consciência em relação ao que foi expelido do campo social e reservado ao campo privado da família e do Eu encontra uma nova territorialidade na qual a má-consciência pode se externalizar na palavra: o divã do psicanalista. Voltando à pornografia, esta implica, assim, menos uma “publicação do privado” do que uma privatização do público: todas as práticas coletivas, sexuais, se passa em família, na frente da tela com seu regime masturbatório e consumo de mercadorias com nichos específicos constituído a partir da multiplicidade de identidades étnico-raciais e sexuais. O que não significa que não seja possível caminhar pelo campo social, pelos fluxos monetários, procedimentos burocráticos, sem que seja preciso sair de Édipo: Édipo é muito menos uma espaço de confinamento – a família – do que estrutura de subjetivação. É possível que o burocrata, o capitalista, o rentista toquem o dinheiro, os papeis, executem de forma sádica expropriações, higienizações urbanas, tudo isso de maneira sexual – nada de sublimação – e experimente prazer a partir de suas fantasias internas, do seus fantasmas – obviamente coletivo, mas rebatidos na instância do Eu. Se esse modelo de subjetivação e privatização dos órgãos são produzidos a partir de um nexo com a Forma-Dinheiro, podemos então supor que o capitalismo é, de partida, pornográfico. Ao mesmo tempo que a industrialização implica uma privatização dos órgãos, a constituição de uma identidade assentada sobre o binarismo do sexo e uma sexua11
Dinheiro e analidade.
lidade confinada a essa estrutura (com suas transgressões estruturalmente antecipadas e tornadas possíveis), o capitalismo trata, portanto, de dar à satisfação e ao prazer sua forma industrial e mercantil: a indústria pornográfica. Portanto, outra funções aos órgãos, ao modo de ver, agir, tatear, cheirar etc. O aparelho de repressão-recalcamento, ligado às formas de representação desse sistema, adquirem um caráter diferente: não mais ligados a uma estrutura semiótica vertical que vai da voz muda do Désposta ao olho que lê, mas ao fluxo de signos axiomatizados, isto é, reduzidos a uma realidade quantificável e, portanto, a um cálculo de probabilidade que submete todo fluxo intensivo do corpo: dos seus órgãos visíveis às suas células. Produzir uma identidade hoje, para operar a manutenção da indústria pornográfica e das demais indústrias, ou simplesmente para conter os excedentes e, no limite, eliminar de forma lenta, é feito com os mais minuciosos cálculos de gestão dos signos, do seus custos, da probabilidade dos efeitos esperados desejáveis e não desejáveis, e do lucro que daí pode advir. No interior desse cálculo do poder, se dosa até mesmo as substâncias biomoleculares injetáveis ou ingeríveis, seja para garantir o consumo (realização da mais-valia) daquilo que é produzido e, ao mesmo tempo, para garantir que os corpos se mantenham dentro das formas de identidade possíveis, seja para paralisar e deixar em estado catatônico os indesejáveis sociais.
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Quatro versículos anais
À memória de José Vinícius Maciel Não virarei semente de ser humano, sêmen, não deixarei vida depois do ato de minha morte. Quero que queimem todas as florestas da espécie homo sapiens. No meu túmulo, nenhuma rosa. Façam de mim a base de concreto para uma cidade de palavras, uma cidade invisível. Quando morre o homem que desflorou o teu vaso pervertido, o que acontece contigo? Existe algo como a viuvez do primeiro que te viu pelado? Se o primeiro some da face da Terra, a conta zera e a soma se anula? O número zero é o buraco de todas as fechaduras. Abro a porta da tua mão e encontro a minha dependurada no abismo de teus dedos. É amor, é rosa. É a flor que inaugura alguma primavera, no caldo de suor, que nasce entre a tua palma e a minha. Daí, uma brisa te atravessa, esfria o nosso corpo uno e meu pulso cai. O fantasma daquele um, o seu toque surdo, brrrrr, brrrrr, o fantasma tranca as ruas do meu corpo que cai, brrrrr, o fantasma cai no lugar sem assombro, a gosma branca sai debaixo do lençol, o plasma de nada, a lembrança do dorso nu e da bunda que o cobria, coisa de um segundo.
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O que é queer?
Para Megg Rayara Gomes de Oliveira O feminismo queer, como prefiro chamar o que muitas pessoas chamam de teoria e ativismo queer, também pode ser entendido como um feminismo sem mulheres. Mas o que quer dizer isso? Um feminismo sem mulheres é um feminismo de homens para homens? Nunca. Porque aí deixaria de ser feminismo. Um feminismo sem mulheres é mais do que um modo de afirmar a mulher, essa categoria eurocentrada que se pretende universal, é um modo de falar de quem sequer se tornou mulher, mais longe ainda de vir a ser um homem. O queer é um corpo sem identidade, um corpo que fala de lugar nenhum, de todos os lugares. Melhor, do não-lugar. Todos os corpos que têm negado o seu acesso ao poder e à linguagem viril seriam queer, no que essa palavra, queer, é mais uma tentativa de dar nome ao parentesco por afinidade que existiria entre as mais diversas formas de vida humana que compartilham a quase inexistência. Queer, portanto, nunca foi uma identidade. Queer é o que sobra, é o que fica de fora da festa do homem, da mulher e das LGBTI, o queer é a ausência de nome, de rosto, de identidade. Ninguém é queer. Mas quem é ninguém? Dizer que o feminismo queer inventa novas identidades é um equívoco do capitalismo. Capitalismo queer. Quem lucra com o mercado de identidades? Os corpos queer, com certeza, não lucram, porque esses corpos sequer existem, ou quase isso. Quando alguém disser eu sou isso, eu sou aquilo, esse alguém estará deixando de ser ninguém, deixando de ser queer, deixando de ser um monstro, um diabo em corpo de gente, um deformado, uma traveca, uma bicha preta, uma machorra, uma vagabunda, uma macaca. O feminismo queer, portanto, teria a pretensão de ser o idioma, a narrativa, a mitologia dessa gente odiada como ninguém e, sobretudo, desumanizada. O feminismo sem mulheres, mais do que evitar a categoria da mulher, procura por outras categorias também efeminadas ou femininas, por outros corpos que resistem ao poder patriarcal. Enfim, o feminismo queer ou sem mulheres é também um feminismo anti-feminista. Nas palavras de Paul B. Preciado, é um animalismo. Os corpos sem humanidade, nem homens, nem mulheres, animais terroristas, terroristas anais, desdenham dos homens e das mulheres. Os corpos queer nascem do terror e vingam como loucos, aos risos, para morrerem sem, de fato, estarem mortos, porque sem um nome e uma biografia, eles se amontoam como eternos sobreviventes, como uma massa anônima e anacrônica, como animais. Por sua vez, os homens nascem, crescem e morrem, e as mulheres nascem e morrem – compartilhando com os corpos 14
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queer um eterno estágio infantil, em que o acesso à linguagem estaria interditado. Muitos recebem nomes, alguns merecem biografias. A humanidade depende do tempo para existir, os animais queer sobrevivem ao tempo e quase inexistem, imortais. O animalismo queer possui outro tempo, ou nenhum – o tempo do feminismo sem mulheres é o futuro de utopia, o horizonte mais do que revolucionário, porque, antes de pretender o retorno a um estado de natureza universal, como os homens e mulheres gays socialistas vislumbravam há cinquenta anos, esse feminismo queer entende a natureza e a utopia como tecnologias ficcionais. Nada existe de universal ou natural no sentido de vir antes da humanidade, antes dos animais, posto que tudo foi criado, transformado e destruído. A natureza e a identidade servem senão como um truque ou uma trapaça e apenas isso. O animalismo queer sonha com uma natureza impossível, um outro mundo, munido com uma profecia disruptiva, a da Queer Nation, uma realidade virtual maior e mais ambiciosa do que as gays communities, os guetos e nichos do mercado consumidor. O feminismo sem mulheres é, portanto, uma vontade criativa por um paraíso artificial futurista. As feministas queer morrerão, natimortas, mas continuarão vivas, como reminiscências do porvir.
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Seu esperma soropositivo, meu útero trans-sapatão Anti/Futuro e as políticas de sexo “baraback” entre Guillaume Dustan e [Paul]Beatriz Preciado
Elliot Evans*
Resumo O encontro hipotético de baraback da/o teórica/o queer contemporâneo [Paul] Beatriz Preciado com seu amigo e ex-editor, o escritor soropositivo Guillaume Dustan, explora seu [de Preciado] próprio entendimento das origens das políticas queer na época da crise de AIDS. Os escritos insurrecionais de Dustan, particularmente seus apontamentos acerca do sexo “bareback”, faz com que ele tenha uma amarga rivalidade com o grupo anti-AIDS Act Up-Paris. Eu considero o que está em jogo na eventual recusa de Preciado de tal encontro com Dustan antes de sua morte, seu entendimento das políticas queer de Dustan como “caminho para morte”, e, finalmente, a influência dessas ideias na noção de futuro no próprio pensamento de Preciado. Palavras-chave: Sexo “bareback”, Guillaume Dustan, [Paul] Beatriz Preciado, teoria/ políticas queer, teoria/políticas transgênero
Esse artigo considera como o sexo “bareback” tem sido entendido por teóricos queer na França, como isso tem afetado a teoria queer e como pode ser entendido no contexto de ativismo queer em torno do HIV, durante o período de crise de AIDS na França. O dramático campo entre o autor Guillaume Dustan e o capítulo do Act Up de Paris desempenhou uma grande parte da formação de argumentos teóricos e políticos em torno do “bareback” na França. O efeito desse discurso nos escritos queers posteriores na França será examinado. Em particular, o artigo pergunta como as atitudes de Dustan para seu próprio status de soropositivo e o discurso sobre prevenção tem sido entendido pelo ativista transgênero e teórico queer [Paul] Beatriz Preciado, um dos poucos escritores na França, atualmente, trabalhando com teoria queer 1. Preciado registrou sua resposta à morte de Dustan, em 2005 por overdose de drogas, no Testojunkie (2018), onde recorda seu encontro final com o escritor/amigo e a fenda entre suas políticas. Preciado entende as políticas queer de Dustan como originárias da crise de AIDS na França e como aterrada no tempo em que queer implicava uma * Tradução feita por Lis Macêdo de Barros (lis.macêdo.barros@gmail.com) 1 Esse título empresta seu parafraseamento do Testojunkie de Preciado (2008): ‘de ton sperme sidé en et de mes ovules de gouine trans’ (do seu esperma soropositivo e meus óvulos de trans-sapatão) e ‘mon utérus testostéronée’ (meu testo-útero) 16
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aproximação com a morte; Paul, nesse sentido, conecta as políticas queer de Dustan com seu status de soropositivo desse. Examinando atitudes sobre sexo “bareback” e HIV, pôde melhor explicitar a noção de queer e como tal é teorizado hoje na França; de fato os discursos ao redor dos dois podem fazê-los alimentar-se um do outro, numa relação simbiótica, que Preciado explora pelo termo “autofeedback”. Finalmente, o artigo explora o impacto das ideias envoltas no sexo “bareback” e no HIV sobre as noções de futuro no pensamento queer de Preciado. Guillaume Dustan, antigamente Wiliam Baranès, começa a escrever depois de entender seu status soropositivo, em 1989. Depois da publicação de seu primeiro romance, Dans ma chambre, em 1996, Baranès mudou seu nome para Dustan e abandonou sua carreira legal para focar em escrever. Em termos de gênero, os escritos de Dustan podem ser amplamente classificados como autoficção: seus romances são pesados, porém frequentemente ambíguos, informados por detalhes auto-biográficos 2. O trabalho de Dustan é frequentemente caracterizado por descrições longas de sexo e de uso de drogas, definido por uma trilha sonora de música pop e tecno tocadas nos clubes gay que ele frequentava. Os trabalhos ulteriores, como Nicolas Pages (1999), pelo qual Dustan ganhou o Prix de Flore3, ocasionalmente se preocupam com políticas e, até certo ponto, com teoria. Dustan também era editor da série Le Rayon Gay (Esfera Gay), a primeira coleção especificamente LGBT a ser publicada na França, por Éditions Balland.4 [Paul] Beatriz Preciado refere Dustan como um ícone e derradeiro representante francês de uma forma de insurreição sexual por meio da escrita” (PRECIADO, 2018, p.13); de fato, o retrato de Dustan acerca da extrema sexualidade em seus escritos, o coloca numa longa linhagem de escritos franceses insurrecionais desde Marquês de Sade, passando por Rimbaud, Baudelaire e, além, escritores que tem usado representações de sexualidade nos seus escritos para resistir ao já estabelecido código político ou moral. Guillaume Dustan expressou publicamente suas opiniões sobre sexo “bareback” e as declarações que se seguiram disso, lançadas pelo episódio da Act Up Paris (em particular por um dos seus fundadores, o jornalista Didier Lestrade) feito para uma disputa espetacularmente amarga. Act Up (AIDS Coalition to Unleash Power), inicialmente foi formada como um grupo de ação direta, em Nova York, no ano de 1987, em resposta à crise de 2 Autoficção é um modo amplamente praticado e popular na literatura contemporânea francesa. O termo foi originalmente cunhado por Serge Doubrovsky para descrever seu texto de 1977: Fils (Filho). 3 O Prix de Flore é um prêmio de literatura fundado em 1994 pelo escritor e crítico literário Frédéric Beigbeder. Focando em trabalhos de escritores e escritoras jovens, o prêmio anual recompensa os vencedores com um copo de Poully-Fumé no Café de Flore em Paris todo dia, durante um ano. 4 La Rayon pulicou mais de 5º livros, incluindo traduções francesas dos trabalhos variados de Eve Ensler, 1996, Vagina Monologues (Como Les Monologues du vagin, Ensler, 1999) até Straight Mind de Monique Wittig, publicado primeiramente em 1992 (como La Pensée straight, Wittig, 2001). Le Rayon deixou de publicar em 2003. 17
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AIDS 5. Uma história parisiense do Act Up foi feita dois anos depois e se adotou um modelo similar de uso de engajamentos visuais ou “zaps” para trazer a atenção da mídia para HIV/AIDS,6 enquanto outros grupos, como o AIDES, focado em prover suporte e arrecadar fundos para pesquisa.7 Numerosos artigos ainda podem ser encontrados no website do Act Up Paris, que responde às afirmações de Dustan sobre HIV (seus tratamentos e epidemiologia), assim como artigos sobre sexo “bareback”, soro-discriminação e o uso de camisinhas. 8 Lestrade descreveu sua relação com Dustan, se é que se pode chamar isso de relação, como “um ódio fundamental, um dos mais poderosos que eu tive capacidade de sentir durante doze anos com o Act Up” (LESTRADE, 2001).9 Sua disputa nunca foi aliada, mesmo com Act Up indo longe, publicando um artigo intitulado “Forgetting Dustan” (Esquecendo Dustan) na sua morte, em 2005. Dustan expressou suas perspectivas escrevendo nos seus romances e nos artigos para a imprensa nacional, em aparições de televisão e, também, pessoalmente, na “Assemblée Générale des Pédés” (Assembleia Geral das Bichas), chamado pelo Act Up Paris, em novembro de 2000, nos minutos que estão disponíveis online (Act Up-Paris, 2000). Dustan foi a essa reunião com Erik Rémès, outra figura odiada pelo Act Up Paris devido ao seus escritos sobre “sexo bareback”, particularmente nos romances auto ficcionais Je bande donc je suis (1999) and Serial Fucker: Journal d’um barebacker (2003). Uma “definição” do “sexo bareback” é incluída no começo, nos primeiros minutos da Assembleia Geral, presumidamente de acordo com os membros presentes do Act Up: “[Sexo] Bareback é uma ideologia de assumir riscos, de promoção do sexo arriscado “( Act-Up Paris, 2000). Eu acredito que essa concepção de “sexo bareback” dá uma visão valiosa da atitude do Act Up em relação a Dustan; “sexo bareback” não descrito como uma prática ou um comportamento, mas um ideologia. Além disso, não é auto contido, mas é constitui uma incitação dos outros: “sexo bareback” é “promoção” de uma ideologia. Num artigo para o jornal nacional Libération, Dustan tinha apoiado a soro-discri5 Há histórias distintas do Act Up global, com, algumas vezes, instâncias políticas variadas e conflitantes. Todas referencias simples de “Act Up”, nesse artigo, são referências a Act Up Paris. Para uma outra visão dos movimentos históricos no EUA, ver Jim Hubbard And Sarah Schulamn, United in Anger (2005). 6 A língua do Act Up (“zaps”) tem sido reutilizada pelo teórico queer francês Sam Bourcier: ‘Zap la psy, on a retrouvé l abite à Lacan’ (2005.) 7 AIDES foi fundado em 1984 pelo sociologista Daniel Defert, depois da morte de seu parceiro Michel Foucault, inspirado por grupos como o Terence Higgins Trust (THT) na Grã-Bretanha e Gay Men’s Health Crisis (GMHC) no EUA. 8 Soro-discriminação [sorosorting pode ser pensado como soro-discrimination, logo preferi utilizar esse neologismo para tradução] é definido por Tim Dean como “descreve a tendência de buscar sexo não protegido apenas com aqueles que compartilham o mesmo status de HIV” (DEAN, 2009). 9 Todas traduções pro inglês desse artigo são minhas [Eliot Evans] produções, exceto pela tradução de Best and Crowloey, que fora traduzido por Erik Rèmes. 18
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minação como um método de redução de risco ao invés de exclusivamente focar no uso de camisinhas como “a única posição realística em termos de prevenção” (DUSTAN, 2000). Por causa dessa opinião, Dustan era considerado, pelo Act-Up, como “inapto, reacionário, perigoso, criminoso e discriminador” (Act Up-Paris, 2005). O Act Up era veementemente contra tais estratégias de redução de risco, apoiando o uso de camisinha e sua promoção como único meio de prevenção de HIV. Dustan afirmou que o Act Up era culpado por oprimir a comunidade gay através da imposição de suas estritas narrações de sexo seguro (que é o uso de camisinhas) e de atacar Lestrade, por se referir àqueles que são soro-positivos como “granadas ambulantes” (Dustan, 2001: 137). Ilustrando seu ponto de vista com seu pouco sutil “exemplo” dos Judeus, que eram, supostamente, cúmplices dos Nazistas e permitiram suas políticas durante o holocausto, Dustan (que era Judeu) escreveu: “Nos campos, os Judeus era os melhores kapos, os mais inflexíveis” (Dustan, 2001: 137-138) 10. Dustan também e referiu ao Act Up como “Vichy” (DUSTAN, 2001: 137), repercutindo a descrição “camisinhas nazistas” (DEAN, 2009: 63) dos ativistas anti-HIV, feita por alguns “barebackers” nos EUA. Segundo eles, o Act Up acusou Dustan de ser fundamentalmente destrutivo e por usar os mesmos argumentos que a direita religiosa, nos seus argumentos contra camisinha; eles acusaram Dustan de afirmar, na Assembleia Geral, que sexo sem camisinha é mais “natural” (Act Up-Paris, 2005). Dustan poderia certamente ser descrito como um “provocador”, assim como ele foi referido num artigo escrito pelo Act Up em 2001 (ROUILLY AND DELUNA, 2001): uma irritante e socrática mosca varejeira queer. Não estranho à controvérsias, Dustan fez algumas poucas pretensões de respeitabilidade; ele apareceu na televisão francesa para discutir seus pontos de vista vestido de um terno de couro dourado e uma peruca loira, agarrando uma caveira dourada. (INA, 2001).
Dustan foi acusado de se esconder atrás de seu gênero literário – auto-ficção – absolvendo de si próprio a responsabilidade dos efeitos transitórios que seus escritos sobre “sexo bareback” podem ter, escritos esses que o Act Up reivindicou “incitar” outros a fuder sem camisinha (CCONSTANTINO AND HÉRAUD, 2001). Outros autores de auto-ficção, como Christine Angot (1994, 1999) descartaram qualquer questionamento de declarações controvérsias acerca de seus trabalhos, atribuindo-as aos narradores (afirmações relativas a incesto e à homofobia, no caso de Angot, 1999) e afirmando a diferença dos narradores e deles mesmo, deles pessoas-autores. 11 Enquanto Erik Rémès respondeu, através de seu blog, à carga de irresponsabilidade 10 Kapo refere aos prisioneiros atribuídos pelos guardas da SS na Segunda Guerra Mundial para empreender trabalhos administrativos nos campos ou para supervisionar outros prisioneiros no trabalho forçado. 11 Para a exploração de uma relação incômoda entre autor, narrador e protagonista no trabalho de Angot, ver Rye, 2004. 19
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nivelada do Act Up contra seu próprio escrito autoficcional sobre “sexo bareback”, ao invés de uma fraca negação do poder de transitividade da escrita – “Até onde eu sei, literatura ainda não matou ninguém” (BEST AND CROWLEY, 2007: 108) – a postura de Dustan, articulada no seu artigo para o Liberátion e repetido nas aparições na televisão, foi de simplesmente dizer que ele não tem responsabilidade nenhuma por ninguém além dele próprio: “ nós somos responsáveis por nós próprios, não pelos outros” (DUSTAN, 2000). Esse individualismo foi recebido pelo Act Up com asserções sobre a importância da comunidade e da solidariedade: “A epidemia de AIDS nos tem nos mostrado a necessidade de responsabilidade coletiva e solidariedade comunitária. Para eles (Dustan e Rémès), nossa comunidade é secundária às suas liberdades individuais” (ACT UP-PARIS, 2001). Dustan é entendido pelo Act Up como aquele que desposa um tipo de neo-libertinagem, na qual coloca a si próprio antes da comunidade. O suposto individualismo de Dustan, que fora visto como sua exoneração da comunidade e da solidariedade, foi até percebido como um tipo de neoliberalismo Anglo-Americano (uma acusação que Dustan agiu um pouco para se defender, deliciando-se no consumismo com referências a marcas americanas e inglesas e letras de música na sua obra). O discurso do Act Up é particularmente intrigante quando entendido no contexto do discurso político francês ao redor do comunitarismo, a rejeição republicana que marcou sexualidade e, então, HIV como um “assunto privado”; essa antipatia pelas políticas identitárias atrasou, inquestionavelmente, o governo socialista no providenciar fundos para pesquisa e campanhas direcionadas para informação específica, especialmente para homens que dormem com homens. 12 Em 2011, o Act Up saiu de uma conferência acerca da natureza do discurso teórico sobre o ativismo ao redor do HIV na França, incluindo as discussões sobre “sexo bareback”, devido a um texto escrito por [Paul] Beatriz Preciado, onde escreveu sobre “as tensões entre a imposição do uso de camisinha e o ‘sexo bareback’” (PRECIADO, 2011), objetando ao uso de Preciado do termo “imposição”. O Act Up criticou os termos que Preciado construiu a rixa entre os membros e Dustan, no qual Paul caracterizou como um conflito: “...entre profilaxia e ‘orgulho soropositivo’, entre criminalização de contaminação e uma defesa radical de ‘liberdade sexual’, entre responsabilidade e resistência (PRECIADO, 2011, tradução minha). Ele também foi criticado por teorizar sobre uma doença, por abstrair algo muito real em algo que eles viram como uma metáfora sem sentido; o autor dos artigos do Act Up escreveu: AIDS não é uma metáfora para aprender filosofia, para ser usada como um ‘conceito’” (ACT UP-PARIS, 2011). Enquanto é vital que as realidades do 12 20
Ver Boulé (2002: 11) para uma visão além.
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HIV e do “sexo barebacking” não sejam ignoradas, com certeza essa criticismo não se estende a nenhuma discussão de como o discurso da teoria queer tem sido moldado pelo discurso entorno do “sexo barebacking” e do HIV, e vice-versa. Como mostrarei ulteriormente, para Preciado, as raízes do ativismo queer consiste na respota à crise de AIDS, da raiva política assim como no luto pessoal que ela causa. Quero considerar como, através de seus escritos sobre a relação com Dustan e suas políticas, Preciado vê o efeito do HIV e do “sexo barebacking” na teoria queer, o que isso significa para “o queer” e como isso agora pode ser modificado. [Paul] Beatriz Preciado é um teórico queer e transgênero e autor do Manifeste contra-sexuel (2017 – Manifesto Contrassexual), que foi editado por Guillaume Dustan e incluído nas suas séries Rayon Gay. Preciado nasceu na Espanha e estudou com Jacques Derrida na New School for Social Research em Nova York antes de se mudar para Paris, onde atualmente [2015] ensina Estudos de Gênero e História Política do Corpo na Paris 8 – Saint Denis. Preciado escreve em inglês, espanhol e francês e traduziu ele próprio o texto original, em espanhol, Testoyonqui para o francês; a edição francesa foi publicada por Grasset em 2008. Testo junkie: Sex, Drugs and Biopolitics dá um relato sobre a relação entre Dustan e Preciado; de fato, todo o texto é assombrado pela recente morte de Dustan e é dedicado a “William” (PRECIADO, 2018, p.5), quem se deve assumir ser Dustan, referido por seu nome antigo. Testojunkie é impossível de ser definido precisamente, já que é compreendido como quase 400 páginas de filosofia e narrativa. Ele reconta as experiências de Preciado de seu corpo assim que inicia a absorver testosterona andrógena, administrada na forma de um gel dérmico, que é absorvido através da pele até chegar em sua corrente sanguínea. Influenciado pela teoria do biopoder de Foucault, pela perfomatividade Butler e pela teoria ciborguiana de Haraway, entre outros, Testojunkie é uma genealogia do que Preciado vê como dois “pilares do biocapitalismo contemporâneo” (PRECIADO, 2018, p.54), as indústrias farmacêutica e pornográfica. Discussões teóricas são conectadas às suas próprias experiências através das seções narrativas, desta forma, o livro se preocupa com as formas que os corpos afetam teoria e tecnologias num processo contínuo, uma relação simbiótica que Preciado denomina “autofeedback” (PRECIADO, 2018, p.37). Preciado desenvolve sua ideia por seu conceito de “autoteoria” (PRECIADO, 2018, p.33), um processo de utilização do próprio corpo para explorar e criar teoria, onde ele põe em prática ingerindo testosterona. Tais considerações sobre a reflexividade entre corpos e discursos são pertinentes para as interações entre “sexo bareback” e seus discursos, particularmente com a teoria e as políticas queer. Eu argumentaria que o conceito de “autofeedback” informa sua leitura das origens queer, do conceito e da prática de “sexo bareback” e da forma 21
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que isso tem afetado a teoria queer; em particular, como o desenvolvimento dos anti-retrovirais pode afetar um corpo de teoria, como a queer, assim como afeta corpos individuais. Embora Preciado nunca se traz ou nunca se prontifica a dizer a Dustan que começara a tomar testosterona – o que é, em vários aspectos, a premissa central de seu livro – Paul afirma que ele “você é o único que poderia ler esse livro” (PRECIADO, 2018, p.21). Dois fatores, é dito aos leitores, influenciaram-o, desta vez, a tomar testosterona: a morte de Dustan e o começo do relacionamento com a escritora e produtora de filmes Virginie Despentes, autora de Baise-moi (Fuck me, 1993). Ao longo e por toda parte do livro, Dustan é invocado e endereçado na forma [pronominal] tu – “c’est toi”, “ton fantome”, “ton esprit” (é você, seu fantasma, seu espírito. PRECIADO, 2018). No capítulo que inicia o livro, intitulado “Ta mort” (Sua morte), Preciado canaliza o estilo de escrita de Dustan, encena um tipo de ritual auto-pornográfico dedicado e performado a esse, em drag king, que se ve completamente montado com o “moustache de pédé” (bigode de bicha, PRECIADO, 2018, p.20). Quando Preciado descreve sua performance ou ritual, quase toda sentença começa com o pronome je: “Je plie ... Je me fais ... J’ouvre ... Je prends ... Je me regarde (“eu dobrei ... eu mesmo/mesma fiz ... eu abri ... eu tomei ... eu mesmo/ mesma vejo” PRECIADO, 2018, p.18) ecoando o próprio estilo de escrita de Dustan na insistência do uso do pronome em primeira pessoa e verbo-formas correspondentes, frequentemente no tempo presente, em sua estrutura de sentenças simples, com falta ou ausência de pontuação e longas descrições de masturbações e dildos. A lista completa de próteses, no primeiro capítulo, com a exata dimensão dos “godês” (dildos) que serão usados (analmente), aparecem no exato formato – “24x4”, “25x6”, “14x2” (PRECIADO, 2018, p.18) – que aparecem no primeiro romance de Dustan, Dans ma chambre, um texto que Preciado descreve como fisicamente presente no seu ritual e também é lido na encenação. Em essência, Preciado tenta invocar Dustan, seus escritos e seu espírito: Reencarna em mim, possui minha língua ... habite-me, viva em mim. Vem. Vem. Por favor, não vá embora. Volte à vida. Segure-se em meu sexo. Baixo, sujo. Fique comigo (PRECIADO, 2018, p.22)13
Essas linhas não são apenas uma suplicação pelo retorno do fantasma de Dustan, embora o ritual envolva seu texto e o corpo de Preciado; elas [as linhas] são, sem dúvida, sexuais – o contive para habitá-lo e, em particular, o “come”, possui 13 O texto original de Preciado é escrito numa combinação de francês, inglês e espanhol: “Réincarne-toi en moi, possède ma langue ... habite-moi, vis en moi. Viens. Ven. Please don’t leave. Vuelve a la vida. Reviens à l avie. Hold on to my sex. Low, down, dirty. Stay with me” (PRECIADO, 2008, p.20) 22
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outro significado [ejacular]. Porém, eventualmente, Preciado nos diz que não pode continuar o legado de Dustan, que isso é impossível: “Este livro não tem razão de ser fora da margem de incerteza entre... você-vivendo e você-morto, entre meu desejo de carregar sua estirpe e a impossibilidade de reviver seu esperma” (PRECIADO, 2018, p.22). O deslizamento contido na referência de Preciado à linhagem, é, aqui, a chave e explica, em parte, a incerteza que descreve. Em algum sentido, Preciado quer continuar a linhagem textual, política e cultura de Dustan, todavia sempre é dito que ele não pode, fazendo uma referência específica ao esperma de Dustan, sua soropositividade e sua linhagem biológica. Eu quero explorar o que Preciado quer dizer aqui e como isso explica suas opiniões sobre “sexo bareback” e a relação desse com o queer, considerando uma anedota que é contada depois, no próprio Testojunkie. No meio do texto, Preciado reconta suas interações finais com Dustan, antes de sua morte. Ele e Preciado imaginavam criar um bebê nascido de seus óvulo testosteronizado de um trans-sapatão [Preciado] e esperma soropositivado [Dustan]. Dustan percebe que o processo de Fertilização in Vitro seria caro, desde que percebeu que teria que achar um jeito de filtrar seu esperma para que apenas células boas restassem. 14 Ele decide que tentarão arrecadar fundos de um conselho de arte – o Centre national du Livre (Centro de publicação nacional) – sob a pretensa de escrever uma “política auto-ficcional” (PRECIADO, 2018, p.257) sobre suas experiências. É Dustan que sugere a filtragem de esperma, par usar apenas células saudáveis; apesar disso, Preciado sabe que Dustan não consegue perdoar a rejeição dele do seu “sperme malade” (esperma doente): Sei que me odeia por considerar a possibilidade de filtragem, embora seja você quem insista em que deveríamos fazê-lo desse modo. Você me odeia porque não sou capaz de te pedir esse esperma maligno sem pensar duas vezes, de te masturbar aqui mesmo e meter seu esperma contaminado na minha buceta; você me odeia porque, como você, eu tenho medo da morte. (PRECIADO, 2018, p.257.)
As palavras de Preciado lembram sua declaração do capítulo inicial, citado anteriormente. O texto revela uma tensão entre seu desejo de continuar a linhagem de Dustan e a impossibilidade de “reviver (seu [de Dustan]) esperma”. Aqui, de novo, é dito sobre impossibilidades. Preciado é incapaz de desejar o esperma infectado por HIV. Esse potencial encontro “bareback” é, certamente, incomum; o imaginado processo de fertilização in vitro é, num sentido, uma mudança imediata e, enquanto 14 A ideia de Dustan de filtrar talvez se assemelhe à técnica de “lavagem de esperma”, um método que envolve separar o fluído espermático (o transportador primeiro de HIV) do sêmen, conteúdo que, então, pode ser usado para inseminação. 23
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reprodutiva, não é exatamente um encontro sexual, encarado como uma tomada de lugar fora de seus corpos pelo processo in vitro, antes de ser transferido para o corpo de Preciado. 15 Ainda, como numa citação anterior, Preciado também imagina uma mudança mais direta entre os dois (“te gozar pra fora e, então”) e a perspectiva de sexo entre ele[e Dustan não pode ser considerado impossível devido à ambas preferências sexuais assumidas – ao contrário, como eu sugeri antes, há um tensão sexual inegável entre eles no texto: Dustan diz a Preciado que se masturbou sobre seu antigo trabalho, Manifeste contra-sexual (PRECIADO, 2018, p.433) e Preciado aparece com Dustan numa cena no quarto dos fundo de Keller, no qual ele lambe o nariz de Paul e traça um contorno de um pênis no peito de Preciado (PRECIADO, 2008, p.436). Porém o que realmente dignifica numa recusa de Preciado, de mesmo um imaginário, encontro “bareback”? Por que, quando anteriormente Preciado suplicou por reprodutivo encontro bareback com Dustan, repetidamente chamando ele, dizendo “Vem”, ele eventualmente recusou isso? Quero considerar essas questões, que eventualmente nos levam ao significado de queer para Preciado, como isso está relacionado a HIV/AIDS e o que a atitude de Dustan sobre “bareback” significa para ele. Depois da overdose fatal de Dustan, Preciado sentiu-se suicida, homicida e comumente perto da morte. Paul vem a entender melhor suas atitudes para a morte e a propagação de HIV: Estou em dúvida entre me suicidar; tornar-me um serial killer; dedidcar minha vida ao desenvolvimento transmoral da humanidade como espécie, isto é, à sua mutação intencional; ou fundar uma armada transfeminista que tenha por missão atacar indiscriminadamente tudo aquilo que se ponha pela frente, sem distinção... Gradualmente, aprendo a apreciar sua ideia de contaminação... o destino “punk” de nossa espécie. (PRECIADO, 2018, p.262)
Para Preciado, atitudes ou políticas queer, que se originaram na crise de AIDS, na França, carrega a marca de um time, de quando queer implicava uma proximidade com a morte. De fato, a especificidade do contexto francês não deveria ser ignorado: a incidência de HIV na Franças era três vezes maior que na Grã-Bretanha, um país com uma comparável população (BOULÉ, 2002, p.11). Essas raízes do queer parecem distante agora, entretanto: “Os anos de 1990 estão longe. Aqueles foram anos diferentes, próximos como estavam da morte que havia encadeado todos nós a um laço viral... Políticas queer como você [Dustan] entendia não eram se não uma 15 Isso deve ser percebido que a linguagem usada por algumas comunidades “bareback” fazem uma analogia entre soroconversão e reprodução, com alguns referindo à transmissão de HIV como “reprodução”. Como Tim Dean percebe, para alguns “barebackers”, “soroconversão pode ser percebida semelhantemente a engravidar” (DEAN, 2009, p.88). 24
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preparação para morte: vias mortis.” (PRECIADO, 2018, p.435). As formas de políticas queer que emergem em 1990 são inundadas de morte, inextricável dela e até mesmo uma preparação para a morte. Preciado vai longe para dizer que foi o status soropositivo de Dustan ou seu ser situado no meio da crise e cercado pela morte dos outros, que o permitiu escrever “permitiu [Dustan] a tomar o veneno da escritura” (PRECIADO, 2018, p.435); realmente, Dustan somente começou a publicar trabalhos depois de detectar seu status de soropositivo. Dustan simboliza, para Preciado, a atitude da raiz do queer. Preciado vê as políticas queer de Dustan como inextricável de sua soropositividade e do HIV. A discussão de Tim Dean, onde ambos “barebackers” usam a metáfora da transmissão de HIV como filiação e como transmissão cultural (a sustentação da cultura de material incorporada daquela cultura) parece extremamente relevante aqui (DEAN, 2009). A formas de política queer de Dustan é simbolizada pelo seu esperma soropositivo. A relutância de Preciado de reproduzir com ele, num sentido biológico, é, então, ligado a relutância de Paul à reprodução das políticas dele, e, de fato, as referências de Preciado escorregam entre as ressonâncias literárias e biológicas do termo. Preciado metaforiza sua relutância em assumir as perspectivas políticas de Dustan da mesma forma que reluta em transar com ele ou em usar seu esperma soropositivo para reproduzir. Essa concepção de momento fundador do queer, como se tivesse imergido da crise de AIDS (que é, a crise de AIDS no Ocidente, entre as comunidades de homens gay antes do desenvolvimento de anti-retrovirais, para qualificar o termo) quase implora a questão do que o queer pode significar depois disso. Preciado argumenta que a introdução dos anti-retrovirais, do crescimento na presença da prevenção de HIV e companhas de pesquisas e os laços vermelhos, que são globalmente usados no Dia Mundial da AIDS, tem permitido as pessoas esquecerem sobre a morte envelopada que inaugurou as políticas queer. Como consequência, para Preciado, as políticas queer estão mortas: “Política queer morreu com aqueles que a iniciaram e que sucumbiram ao retrovírus” (PRECIADO, 2018, p.435). A teoria de “autofeedback” de Preciado, a simbiótica relação entre teorias e corpos ou entre biocapitalismo e políticas é posta em uso aqui. Seu termo “pharmacopouvoir” (farmacopoder, PRECIADO, 2018, p.157), uma extensão do “biopouvoir” (biopoder) de Foucault, pretende descrever os efeitos regulatórios da indústria farmacêutica sobre os corpos no capitalismo, é especificamente relevante para uma caracterização da interação entre um particular desenvolvimento da medicação de HIV e daqueles corpos que tem acesso a isso, e, reciprocamente, como isso se relaciona de volta, numa volta, com o discurso teórico ou político. Com o desenvolvimento de anti-retrovirais, o panorama do queer mudou. Queer era originalmente relacionado à morte. 25
Seu esperma soropositivo, meu útero trans-sapatão
Preciado certamente sente uma afinidade com esse movimento inicial das políticas queer, devido àqueles que estão mortos. Há uma tentação de se juntar a eles ou de abraçar as políticas cercadas pela morte: “ Agora já estão todos mortos: Amelia, Hervé, Michel, Karen, Jacki, Teo e Você. Pertenço mais ao mundo de vocês do que ao dos vivos? Por acaso minha política não é vocês?” (PRECIADO, 2018, p.22). Essas são todas as figuras queer francesas – alguns mais óbvios e outros talvez mais ambíguos. Hervé Guibert e Michel Foucualt morreram por uma doença correlacionada à AIDS. “Jackie” se refere a Jacques Derrida, que morreu de um câncer no pâncreas em 2004. “Karen” é Karen Lancaume, a atriz pornô que estreou na adaptação de Despentes de seu próprio romance Baise-moi e Karen se matou depois da estreia do filme, em 2000; aquele filme simboliza, para Preciado, o aniversário do ativismo queer na Europa e um “terrorismo intravenoso de gênero, classe e raça” (PRECIADO, 2018, p.81). Para Preciado, as perspectivas de Dustan sobre seu próprio status soroposivito e sua recusa de tomar responsabilidade pelos outros são incontestavelmente antissociais e anti-futuro – Dustan se tornou a figura líder das políticas queer que Preciado ve como “caminho para a morte”. Talvez, finalmente, as compreensões de Preciado acerca de Dustan não são tão diferentes da de Lestrade, que escreveu que, para Dustan, “destruição é gloriosa” (LESTRADE, 2001), mesmo Lestrade tenha visto a posição de Dustan como contrário e hipócrita. Enquanto Preciado não simplesmente categoriza as perspectivas de Dustan sobre “bareback” como ideologias, como fez Act Up, ele certamente entendeu elas entrelaçadas de ideologias, inseparável delas. Por fim, enquanto atraído pelas políticas que Dustan representa, Preciado, eventualmente, rejeita-o, lamentando sua perda assim como lamente o próprio Dustan. No capítulo final, relembrando o funeral de Dustan, Preciado, então, dirige-se a ele: Se você estivesse vivo, com certeza nos odiaria, a V.D. e a mim, com um ódio quente e sedodo com um pau que não fica duro, porque você saberia que ela e eu, juntas, somos a revolução em marcha. Por isso, você faria o luto do seu heroísmo gonádico e nos escolheria como lobas sagradas para levar adiante seu legado aidético. (PRECIADO, 2018, p. 444)16
Sua recusa em aceitar a noção de Dustan acerca do que queer implica, resulta numa fenda entre eles: Preciado não pode aceitar sua morte, não pode dar continuidade a sua linha, isto é, não pode aceitar suas ideias e, materialmente, não pode se tornar soropositivo como Dustan. Para continuar essa linhagem política teria que haver um sacrifício, aceitar a morte. Novamente relembrando os escritos de Tim Dean sobre 16 “V.D.” refere-se, aqui, a Virginie Despentes. Ambos Despentes e Dustan são referidos por suas iniciais frequentemente ao longo do texto. 26
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“sexo bareback” como transmissão cultural (2009), Preciado aqui sente que está sendo questionado por Dustan, para que literalmente incorpore uma cultura através da transmissão de HIV, uma incorporação que Paul vê como um sacrifício – assim como vê como doloroso, ou até mesmo fatal – apesar de seu conhecimento, um pouco contraditório, do sucesso dos tratamentos anti-retrovirais, pois agora, obviamente, contrair HIV não necessariamente significa morte. Todavia o que Preciado decide são noções de futuro e comunidade contidos em seu próprio referencial de revolução. Seu relacionamento com Despentes é textualmente reprodutivo, ao invés de biologicamente reprodutivo. Eles tem colaborado em vários textos: Preciado traduziu o King Kong Théorie de Despentes (King Kong Theory, 2006) para o espanhol e suas colaborações mais amplas são evidentes no Testojunkie (PRECIADO, 2018, p.444). A relação de Preciado com Despentes coincide com a morte de Dustan, ele escreve: “teu enterro é o nosso casamento” (PRECIADO, 2018, p.445). A escolha de um futuro, feita por Preciado, envolve uma quebra com Dustan e as políticas que ele expunha, uma política que é vista como impregnada de seu status soropositivo ou, pelo menos, do que esse status vêm a simbolizar para Preciado. Preciado aproxima as compreensões de Dustan de seu próprio HIV e de sua possibilidade de infectar outros como algo inseparável de suas reflexões do queer, de que esse seria um tipo de política “punk” (PRECIADO, 2018, p.?). O quão longe entramos no reino da metáfora, o quão distante Dustan, seu status soropositivo e suas opiniões sobre “sexo bareback” vêm a ser simbólico e o quanto estamos baseados numa realidade (como Preciado viu), tornam-se questões incertas. A discussão de Preciado acerca de HIV e “sexo bareback” flutua entre o literal e o metafórico, talvez de maneira problemática. O quanto Dustan simplesmente se tornou combustível para Preciado reagir contra, para posicionar uma nova política de oposição? Aliás, o tropismo de Preciado acerca de HIV é específico para a concepção de Dustan sobre isso e sobre o que isso significa para ele próprio, ou Preciado generaliza as psicologias de todos aqueles que se encontram no meio da crise de AIDS, rodeados pelas mortes dos outros e pela presença da possibilidade de suas próprias mortes? Não está claro se a relutância de Preciado de reproduzir fielmente o tipo “punk” de políticas queer niilistas, ou hedonistas, que Dustan representa para ele – o que ele, em outro lugar, refere como “la politique snuff ” (políticas snuff, PRECIADO, 2018, p.362) – na verdade, está relacionado ao status HIV-positivo de Dustan e o perigo potencial de um encontro “bareback”. A tendência de metaforizar queer como um vírus, e esse como uma instância política, deixa Preciado aberto às acusações feitas anteriormente, pelo Act Up (2011), de filosofar e metaforizar um vírus, na medida que a realidade disso é deixada de lado. Dito isso, Dustan queria perfeitamente fa27
lar sobre ideologias associadas com HIV e com “sexo bareback”, escrevendo que: “camisinhas... podem proteger muito mais do que de apenas um vírus” (DUSTAN, 2000). Aqui Dustan argumenta que camisinhas podem proteger não apenas do vírus do HIV, mas da grande ideia do que sexo e sexualidade com HIV poderiam representar (afirmação que, obviamente, enfureceria o Act Up-Paris). Ainda sobre essa questão, continua a dúvida se queer é ou não, simplesmente, um produto de seu tempo: queer seria uma específica reação para um evento traumático do (recente) passado ou é algo de longo alcance e versatilidade – um ponto de vista mutável e específico do contexto de resistência ao dogma, ao estabelecido ou convencional? Queer era realmente tão efêmero? Está morto? Ou é mais amorfo que o “caminho da morte” incorporado na figura de Dustan? Tentativas de outros teóricos queer de introduzir a disciplina no contexto francês apontaram para uma compreensão flexível e mutante do queer, perguntando não o que é, mas “o que pode ser na França ...” (BOUERCIER, 1998, p.56). Como Q como Queer (Q como Queer, compilado por [Sam] Marie-Hélène Bourcier em 1998) argumenta, que queer deve responder a um contexto: anti-assimilacionismo e anti-universalismo queer, irá significar coisas muito diferentes na França do que significa no EUA ou na Grã-Bretanha. Se queer está preocupado com desafiar ideias normativas e hegemônicas, um “Queer feito na França” (BOURCIER, 1998) deve reconhecer os problemas de universalismo da República da França, o racismo anti-arábico e uma ultra-direita politicamente dominante e bem sucedida e deve se direcionar a eles (BOURCIER, 1998, p.94-96). Assim como para Preciado, sua atitude sobre Dustan e seu dilema acerca de “reproduzir” ou não as políticas dele, ecoa a grande tensão na teoria queer entre futuro e anti-futuro. Situando Preciado nesse debate, ele compreende que deve escolher políticas coletivas que investem no futuro acima de instâncias anti-futuristas, simbolizados por Dustan, questão que ele mesmo pensa ser insustentável. Enquanto não cita a intervenção de Lee Edelman sobre a teoria queer de 2004, No Future: Queer Theory and the Death Drive – talvez a culminação de tendências anti-futuristas na teoria queer – nem sua pequena questão com Judith Butler sobre as leituras dela acerca do mito de Antígona (BUTLER, 2000), a linguagem e o simbolismo da cena final do Testojunkie é altamente evocativo dos seus mitos, com seus temas opostos de casamento e enterro. Preciado escreve do enterro, na manhã do funeral de Dustan, a gravação que faz de seu ritual na imagem de Dustan numa caixa de fósforo com o nome dele escrito repetidamente (PRECIADO, 2018, p.444). Preciado é exato na sua escolha: um (textualmente) casamento reprodutivo com Despentes sobre a lápide de Dustan – “la révolution en marche”. Nesse sentido, enfatiza, de novo, que as políticas snuff de Dustan são inseparáveis da sua sexualidade, 28
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referindo ao caixão dele como “seu ataúde em que você vai se deixar dar pelo cu por toda eternidade” (PRECIADO, 2018, p.444). Preciado também implica que, sem Dustan, sua união com Despentes que simboliza “o início da revolução” não pode ocorrer: “você, ninguém mais que você, é o fantasma oficial que selará... a aliança entre tua morte e nosso amor” (PRECIADO, 2018, p.445). Talvez sem Dustan, e sem as políticas que ele representa, a revolução de Preciado não poderia ser imaginada o bastante, da mesma forma. Em Queer Utopia (2009), escrito parcialmente em resposta a Edelman, José Esteban Muñoz afirmou que: “queerness existe... como ideal que pode ser destilado do passado e usado para imaginar o futuro” (MUNHOZ, 2009, p.1). Preciado de fato tenta desenhar da energia política resultante da crise de AIDS, “destilando” isso para informar uma nova política. Tendo argumentado que sob o biocapitalismo todos os nossos corpos estão em jogo, Preciado procura atrelar a urgência do ativismo anti-AIDS durante os anos de 1980, um período quando a vulnerabilidade dos corpos era muito evidentes: Preciado escreve: “Uma filosofia que não utiliza seu corpo... está pisando em falso. Ideias não bastam. “Arte não é o bastante”. Estilo não é suficiente. Boas intenções não bastam. Simpatia não é suficiente.” (PRECIADO, 2018, p.377). O slogan “arte não basta” era usado como parte vários pôsteres criados pelo Gran Fury para o Act Up nos Estados Unidos, por volta de 1988. 17 Muitos pôsteres observaram o número de morte por AIDS para estipular (“com 47.524 Mortos, Arte não basta”) e chamar uma “ação coletiva direta” para desafiar as políticas (ou por falta dela) do Estado e de companhias de drogas através ação física (Gran Fury, 1988). Enquanto esse momento, para o queer é historicamente específico, Preciado identifica uma energia queer e tenta desenhar a partir dela, defendendo o caso para novas políticas de experimentação corporal e de ressignificação do tipo que ele encena por todo o Testojunkie. A leitura de Preciado sobre as políticas de Dustan é sincera e carregada com o que parece ser uma tristeza sincera da morte dele, assim como a política que ele representa, apesar da eventual recusa a essa. Parece haver uma honestidade no dilema acerca do que queer representa, o que tem representado e qual direção poderia, ou deveria, seguir. Para Preciado, tem que haver um corte com as tendências anti-futuristas presentes na teoria queer, das quais Dustan vem a ser o representante simbólico último.
17 O coletivo artístico Gran Fury, criou muitos dos pôsteres de camapanha do Act Up- Nova York. Esses estão, agora, alojados na coleção do Gran Fury, na New York Public Library. 29
Tropeço.
O presságio da chuva amedrontava alguns poucos esquecidos que corriam atrasados pelas ruas. Pouco a pouco, o padrão difuso das poças se alterava, sacudido pelos pés, todos úmidos e perdidos em pequenos perâmbulos. A fumaça nas calçadas amanheceu opaca; um pouco como retratam aquela gloriosa metrópole, tempos de felicidade e monotonia. A cidade estava distante, perdendo-se nas dobras sobrepostas de seus diferentes edifícios. De dentro do ônibus – e deve-se dizer que era um ônibus já abandonado aos poucos cuidados urbanos – Murilo, sem querer e definido em sua decepção, sentia só agora que o lado esquerdo de seu assento estava molhado. Paranóico como é, indagava qual a causa daquele embuste úmido que viera lhe apurrinhar tão cedo. Noite passada, algum bêbado, levantando a mão para coçar um incômodo atrás de sua orelha – um movimento nada harmonioso devido ao excesso de remédios, misturados com uma pinga meio quente e nauseante, uns 2 reais cada copo –, se espanta com o tamanho que uma ferida assume na ponta de seus dedos. Com a mínima inclinação, sente um compulsório sacudir de seu corpo, que culmina num soluço, de envergadura pequena até, porém concentrado em peristaltismo e densos vapores. Sua cabeça salta e junto sobe uma matéria porosa esbranquiçada, começando a escorrer pela canto rachado e purulento de seus lábios. Gotinhas corpulentas, de bordas pixeladas, caíam ritmadas no pano mal lavado do assento público. Perto da esquina da Rua 15, onde também baratas, ratos e humanos felizmente rejeitados – afinal, ninguém merece esses vagabundos, só servem para poluir as fachadas com cheiro de merda – dormiam, Murilo trabalhava. Atendente subalterno de uma loja de eletrônicos que, de acordo com o senso comum, já estava precisando de algumas manutenções. Não sabe muito bem qual sua função: vender, atrair, carregar; só lhe é cobrado o tempo, e que, putaquemepariu, faça algo com ele! Algo que, bem... não se sabe por que e por quem, tem que fazer. Os outros parecem estar bem. Daquele jeito, né. No primeiro intervalo, Fred, um homem já nos 30 anos, de olhar arrebatado, barba malfeita e um nariz um tanto curioso – pareciam dois fossos de mineração – aperta um baseado. E é graças ao bem bolado, e a mais outros dois intervalos, que a população da loja parece sobreviver. Fred, nada inocente, sempre que passa por Murilo dá-lhe uma batidinha na parte de trás do úmero: – E aí? É hoje que você vem com a gente? – Alguns o chamariam de filho da puta. 30
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Murilo, uma personagem de espírito pequeno e mesquinho, borbulhava de raiva; aquele lembrete de sua miséria e solidão, aquele baseado. No caso, parecia mais um alto-relevo realista de uma paisagem formada por conjuntos de rostos senis, que, certamente, já esqueceram o nome de seus filhos; finalmente né, já faziam 6 anos que o velho só atrapalha e a casa foi avaliada em 750 mil!!! Há uns tempos já que todos se aproveitavam do coitado. A neta mais nova, Alice, menina de 16 anos – sórdida, já dava relances dos deliciosos e pequenos seios que, pouco a pouco, se desenvolvem e provocam profundas reflexões sobre punhetas escondidas de professores, vizinhos, tios... –, cabelos de um moreno morto sem nada de especial e uma pinta, excessivamente elevada, no vão entre seus dedos anelar e mínimo. Era a única que parecia ainda se importar com o presunto. Toda terça e quinta, por volta das 14h30, ia passar a tarde com o vovô. Preparava e dava-lhe uma sopa primordial sem qualquer gosto ou forma, sujava as beiradas do vestido de estampa meio amarelada – nunca souberam se era realmente sua cor ou apenas consequência da lavagem – com as teias de baba, que se estendiam como pilares entre o rosto do velho e a perna, macia e delicada, da jovem. Com o poente, umas 18h, Alice se inclinava lentamente, se equilibrando graças às mãos que avançavam, como um encontro inevitável, para o pescoço troncudo do avô, sua bunda se empinava e seu corpo começava a parecer um sorriso, sequelado por diversos derrames; com o olhar cerrado, dava um beijo molhado no canto da bochecha flácida, bem perto da boca, que já segurava suspiros. Consequentemente, surgia uma ereção esforçosa, claustrofóbica e moralmente indesejável no velho, e esse, intimidado por si, sedia. – Toma, querida. Vai se divertir, mas não esquece do vovô. – Agora, com uma nota suada de 20, Alice corre entre os obstáculos da vida comum para um bar qualquer gastar a grana num maço de cigarros, que acaba razoavelmente rápido e é motivo de orgulho para a aventureira, e uma jarra de cerveja, que pretende dividir com jovens potencialmente orgulhosos e outras amigas pseudo-cuidadoras. Voltando ao dia de trabalho, sobrou para Murilo fechar a loja, devido ao seu reconhecido tempo livre; tempo geralmente gasto em complicadas receitas solitárias, cada vez mais aperfeiçoadas por um livro genérico de “massas e molhos italianos necessários para qualquer cardápio”. Bastou uns 50 minutos para sobrar apenas ele. O ambiente já estava pouco iluminado, com apenas as luzes dos fundos acesas e feixes azulados das televisões, todas passando o mesmo programa em sincronia, uma tentativa de atrair clientela; no final, o público se limitava à algumas mariposas e desempregados, ambos com problemas para conseguir o necessário oxigênio para uma boa sustentação. Nos fundos, duas salinhas improvisadas, simétricas, 20 m2 cada. Paredes feitas de um material plástico que tentava imitar uma madeira clara, o que era mais que ridículo, a 31
Tropeço.
cada 1 metro havia uma tarja preta, onde se localizava o engate de cada painel; as duas tinham o mesmo estilo de porta sanfonada, no canto esquerdo de cada uma de suas fachadas. A sala da direita é um espaço de “descanso”, onde os funcionários guardam suas coisas e tentam se distrair nos minutos finais de intervalos e pausas para cigarros; a da esquerda, um pequeno depósito, com uma mesa, clássicas quatro cadeiras, mesmo conjunto da promoção. O centro era de metal azul perolado e as bordas revestidas por alumínio tinham algumas manchas de ferrugem, mas em algumas partes ainda alterava o reflexo de um bebedouro que ficava no canto da sala. Murilo entrou na sala da direita. Mal puxou a porta e já sentiu o rastro da diversão. Todo dia o cheiro de maconha impregnava aquela sala de descanso, mas agora parecia que cada móvel fora friccionado exaustivamente contra o cabelo de Fred; era o lugar que parecia mais acumular o fedor. Murilo se dirige ao sofá para trocar o sapato social – obrigatório para todos funcionários – por um tênis; gastava compulsivamente em tênis ergonômicos de última linha, com amortecedores especiais e, geralmente, uma combinação de verde e roxo. Ao puxar o cadarço, sente Fred encostando no seu braço, mais uma vez, ou, pelo menos, sente uma extensão de Fred: um baseado. Fica dez segundos observando, não sabe o que fazer e nem como se livrar do negócio. Estava exposto, qualquer um o veria e saberia que só estava ele e a droga naquela sala, ninguém para justificar e, sabia muito bem, aqueles que o olhavam não se importavam muito com suas desculpas. Mas aí estava ele, Murilo, e ele, baseado, em uma provocação mútua que se acumulava no apoio macio do assento ao lado. O cadarço branco, caído pelo chão, formava um sinuoso caminho que, por ocasião do destino, acaba apontando para a posição exata da verdinha. Murilo só conseguia imaginar um modo de resolver esse e outros impasses, e, sem qualquer motivo literário em especial, agarra aquela miniatura de tronco e decide dar um tapinha. Achou uma caixa de fósforos em um armário a poucos metros de distância. Sentou novamente e colocou o fumo na boca. Sejamos sinceros aqui, não é a primeira vez de nenhum dos dois. Ninguém sabia, sequer desconfiava, mas Murilo, principalmente durante seus 16 anos, se reunia toda quinta na mureta de uma casa afastada de seu bairro para fumar com mais três amigos. A experiência era em maior parte estressante, tinham medo de todos que passavam, o que não deixava de ser justificado. Com pressa, fumavam ansiosos e, formando uma caverna com a mão, passavam sorrateiramente entre si o beck. Deu o terceiro trago, até o momento tudo parecia normal; menos o cheiro, estava um pouco diferente dos outros que Murilo conheceu, mas considerando a qualidade duvidável da maconha de sua adolescência, não se preocupou mais com isso. Sede, é verdade, normal. Se levantou para ir até o bebedouro na sala ao lado. Já conseguia sentir o efeito. 32
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São só uns 10 metros, fácil de andar. Felizmente, devido ao intervalo desde o último beck, sentiu-se alterado. Saiu da sala, lá apareceu uma porta. Seguiu reto e pretendia virar a esquerda quando começaram a surgir manchas em sua visão, sua pressão. Conseguiu chegar até a sala, o bebedouro na sua frente; agachou e encaixou sua boca na torneira. Depois de seis ou sete goles decidiu que devia ir embora. Se o acharem nesse estado, dormente, teria antecipadamente temores esquisitos sobre breves vestes rasgadas e contas assustadoras restantes a serem pagas. Chega no sofá, pega o sapato e, enquanto saía animado doentio, percebeu o caminho perfeitamente traçado no chão pelo conjunto total das luzes expelidas diretamente das TVs. Um caminho azul, de tijolos amarelos, levando divinamente até a porta. Um tapete azul da fama, perfeito para toda a atenção que Murilo desperdiçava no momento. As paredes todas cobertas de um verniz, alterando, conforme olhava, a luminosidade de cada plano que se cobria em sua superfície; um mapa de relevo colorido e acelerado através de séculos, remodelando-se completamente a cada piscada. Piscava constantemente, tinha medo das figuras se tornarem aparentes e detalhadas, assumindo sua realidade. Correu em unidade até a porta, em 1⁄4 de segundo sentiu o pé esquerdo não subir e se curvar levemente para a esquerda; o capacho estava dobrado, uma pequena duna de precisões matemáticas. Murilo foi arremessado contra a porta da entrada e, no primeiro contato, estilhaçou o vidro em centenas de polígonos. Acordou rapidamente e sentindo uma mancha tomar conta de sua roupa, deixando cada vez mais molhada, tentou levantar. Colocou a mão no chão e ao fazer força sente um caco entrando na palma de sua mão. Murilo gritou e se jogou para o lado, o que empurrou ainda mais o triângulo isósceles que perfurava sua artéria femoral, logo abaixo da bacia. Murilo sequer gritou, estava resignado. Jogado na mesma latrina de outros crápulas mais expressivos, na mesma de todos. Entretanto, o seu pau, encostando no vidro, animava-se. A cada bombeada empurrava o vidro, que rasgava cada vez mais os tecidos internos, encharcando sua genitália com um sangue espesso e corredio. Não demorou para a piroca estar completamente dura. Com uma sequência de espasmos, Alice e outras milhares de virgens foram arremessadas contra um espelho que, inevitavelmente, não atravessaram. As poças de porra, conforme se aproximavam suas bordas, transformavam-se gradualmente em sangue, olhos num lago infernal. Assim, morto, Murilo gozou. O cheiro logo atraiu os vermes. Toda sua epiderme foi consumida em questão de segundos. As mariposas tomaram a loja, cobrindo toda possível fonte de luz. Sobraram os miseráveis, que quando avistaram a carcaça, aproveitavam o buffet. 33
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