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MODERNIDADE, CENTRO E A QUESTÃO DA PAISAGEM
desde então criando a noção mais pontual da matéria, no foco de um interesse. O entendimento que se constrói do conceito encontra respaldo na análise da coletividade dos espaços “urbanos”, entendendo pelo último termo as espacialidades providas de relação e conexão entre partes individuais: uma cidade; ponto de convergência.”¹
Surgindo a partir da ação primordial de se aproximar da origem e/ou praticar a concentração de alguma matéria (concreta ou abstrata), o termo “centro” indica a convergência desta para um ponto no espaço –virtual ou real - ao demarcar algum limite do mesmo, frente a tantas possibilidades. Possível é relacionar o início dos assentamentos humanos à relação com cursos d’água e seu acesso a estes,
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A centralidade ad-vém desde o primeiro recolhimento e da primeira re-coleção de objetos dispersos na natureza, desde o primeiro ajuntamento ou amontoado de frutos. Ela anunciava sua realização virtual. Desde o princípio, reunir, amontoar, recolher é algo de essencial na prática social; é um aspecto racional da produção que não coincide com a atividade produtiva, mas dela não se dissocia. (Lefebvre, 1999)
Compreender o contexto do objeto de estudo também é base para que se referencie a problemática que está sendo apresentada. Antes de mais nada, é necessário levantar a discussão sobre o centro urbano e suas significâncias a nível de estudo. Produções mais recentes tratam sobre a transformação que os entendimentos de “tempo”, “espaço” e “lugar” sofrem desde o advento da modernidade. É inevitável tratar aqui sobre a enorme reviravolta
¹ (Bueno, S. Minidicionário da Língua Portuguesa. FTD, 2000) histórica da humanidade, em seus métodos de produção e organização sociais, cujo reflexo se percebe diretamente no espaço: a Revolução Industrial. O surgimento de distritos industriais e a consequente necessidade de concentração de matéria prima, mão de obra e distribuição da produção, resultou no crescimento da ocupação urbana em todas as sociedades que se reorganizaram a esses moldes. A ocupação deu-se a partir de locais onde a articulação social em torno da indústria pudesse ser mais eficiente e deu-se, por consequência, grande transferência dos assentamentos humanos até então majoritariamente rurais para o contexto urbano.
Essa produção de um novo espaço, o perspectivo, não se separa de uma transformação econômica: crescimento da produção e das trocas, ascensão de uma nova classe, importância das cidades etc. (Lefebvre, 1985).
O tema é recorrente em diversas leituras urbanas, impulsionadas com o crescimento do interesse sobre o assunto a partir das primeiras décadas do século XX - como pode ser visto em Lefebvre -, a questão dos centros urbanos está muito presente na discussão do que seria o espaço nas cidades. Dentre uma série de estudos teóricos que começam a surgir com a consolidação da modernidade, muito se pensa sobre a forma como as cidades são concebidas, a definição de conceitos e os elementos presentes na vivência urbana. Não só a presença de iniciativas como os CIAM’s (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) surge a partir dos anos 20, estendendo-se a meados dos anos 50, mas também se percebe um grande expoente de análises retrospectivas da produção arquitetônica e urbanística moderna a partir da década de 60.
Ambos são interessantes para a análise à medida que o primeiro contexto pode situar a esfera da consolidação de grandes obras e experiências modernas, enquanto o último concentra maior número de reflexões sobre os impactos do processo de evolução da sociedade. Evidência gritante das transformações modernas, os centros urbanos assumem o papel de foco de interesse e ocupação por parte da sociedade. Seu crescimento físico e social é visível à medida que o fluxo de bens, serviços e pessoas aumenta de forma drástica, transformando o espaço e reconfigurando sua organização.
A organização do espaço centralizado e concentrado serve ao mesmo tempo ao poder político e à produção material, otimizando os benefícios. Na hierarquia dos espaços ocupados as classes sociais se investem e se travestem. (Lefebvre, 1985).
Daí para frente, a valorização do espaço da zona central cresce assim como o gabarito das edificações que o conformam, na busca por uma organização otimizada que pudesse se articular de forma mais eficiente à produtividade. O transporte se reúne ali tais quais as iniciativas comerciais e sociais de maior porte, ao aproveitarem-se do grande número de transeuntes que a nova organização espacial permitiu. Tais fatores foram decisivos para a crescente valorização financeira das áreas centrais restringindo o seu acesso àqueles com maior poder monetário. Às classes mais baixas, com menor poder aquisitivo (operários, pequenos comerciantes, pequenos agricultores etc.), restaram os terrenos mais afastados do centro, onde o acesso aos serviços e atividades principais da cidade se dificulta pela distância. Desde então a sociedade moderna vive o conflito de lidar com as problemáticas decorrentes da marginalização das classes menos abastadas, a fim de democratizar o acesso aos bens e serviços presentes nos centros urbanos.
Para manter a salubridade das cidades, cuja estrutura não mais suportava as novas funções da sociedade industrial “era preciso reestruturar o espaço para atender à maior concentração da população trabalhadora” (Costa, 2013), e surgiu em seguida o discurso higienista cuja base de atuação estava na organização racionalizada e salubre da cidade. Muito contribuiu à disciplina do urbanismo e à ocupação de se pensar na melhor disposição do espaço urbano para fins modernos. De forma mais evidente, o centro encontra transformação e representação no espaço, nas definições de lugar e no estudo urbano que melhor se estruturaria na consolidação da Arquitetura Moderna. Iniciando-se na Europa, os reflexos do pensamento moderno no escopo de racionalizar o espaço encontram substância ao longo do território da América e, pontualmente, bastante força no Brasil. O que se percebe a seguir é um grande crescimento da disciplina entre os principais atuantes brasileiros, em uma produção que veio a receber forte reconhecimento internacional, desde o início do século XX à atualidade. Diversos teóricos como Marc Augé e Zygmut Baumann questionam, em suas leituras, os efeitos da modernidade na conjuntura mais atual da sociedade - em perspectiva antropológica na maioria dos casos - e levantam discussão sobre conceitos como “espaço”, “lugar”, “tempo”, “civilidade” etc. Baumann trata sobre a forma como a modernidade subverte a realidade estabelecida até então, reconfigurando conceitos e definições, em outras palavras, a modernidade não foi “fluida” desde sua concepção? (Baumann, 2000). Já na construção do conceito de não-lugares, Augé traz importantes reflexões para o estudo do centro de Brasília (reduto político e administrativo do país, que encontra semelhanças na análise do autor sobre a área de La Defense, em Paris), ao tratar, por exemplo, que a linguagem política é naturalmente espacial [...]porque lhe é necessário pensar simultaneamente a unidade e a diversidade –sendo a centralidade a expressão mais aproximada, mais cheia de imagens e mais material, ao mesmo tempo, dessa dupla e contraditória obrigação intelectual. (Augé, 1992).
Fatores inerentes na concepção da cidade, as questões sociais e simbólicas em muito determinam a reconfiguração de conceitos de caráter urbano. Por consequência, a vivência urbana também se transforma ao adaptar-se à nova tipologia de espaço, ocupando socialmente o lugar construído. Esses efeitos se estendem também à ampla investigação e atual discussão acerca do termo “paisagem”, na qual encontram-se definições interessantes sob novas perspectivas como as de Anne Cauquelin e Solá Morales. Para Cauquelin, a cidade participa da própria forma perspectivista que produziu a paisagem. Ela é, por sua origem, natureza em forma de paisagem (Cauquelin, 2000), o que contribui para a acepção dos elementos construídos de um espaço urbano como parte do conceito, independentemente da sua forma. A noção do termo se reconstrói, assim como as diversas perspectivas que criam os centros urbanos modernos. Em suas configurações, a paisagem se recria. Solá Morales traz ainda a indissociabilidade do espaço e da vivência, ao entender que para a arquitetura a noção de espaço está ligada ao desenovlivmento da cultura moderna (Morales, 1995). Não só as transformações físicas como a abertura de avenidas e bulevares, construção de edifícios imponentes e inovações no transporte modelam a paisagem moderna. Também é muito importante estabelecer a conexão entre as novas espacialidades e as transformações sociais que se deram ao longo da história. A paisagem da modernidade é a construção de uma identidade e relação entre o indivíduo que a experiencia, o espaço construído, e as experiências visuais coletivas da vida em sociedade. A partir daí o conceito se flexibiliza, abrindo possibilidades para o estudo analítico e a flexibilização do conceito da paisagem, tão difundido na contemporaneidade.
Como exemplo prático para analisar os conceitos supracitados, Brasília se apresenta como um ímpar. Além da vivência de mais de 20 anos na cidade, é fato que ela se estabelece como singularidade no contexto prático moderno e discorrer sobre questões como modernidade, centro e paisagem sob a análise do Plano Piloto é substancial. Os contrastes presentes na vivência ainda jovem da cidade se colocam como subsídio para analisar os efeitos da modernidade na escala urbana e seus reflexos.