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VIVÊNCIA E CONFIGURAÇÕES DA PAISAGEM
Aprofunda-se o tema do espaço que não mais se limita ao projeto, ou à sua construção, mas sim à sua realidade vivenciada.
tratar sobre a forma como planos materiais e perspectivas projetadas influenciam nossa apreensão e o processo de identificação do lugar, a paisagem ainda aborda a relação com a imagem mental e a imaterialidade, presentes a partir da relação do indivíduo com suas definições de mundo e vivências. A paisagem da modernidade reconfigura, porém não destitui de fato, o centro dos elementos que o conformam e definem originalmente. Ainda se observa em Brasília a presença de atividades como a concentração de transporte e comércio informal mas é relevante a sua diversidade de ocupação do espaço para tais fins. Percebe-se, ali, a reconfiguração de uso do espaço das atividades tradicionais de um centro urbano, adaptando-se ao espaço moderno.
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A transitoriedade característica da grande Plataforma em muito se relaciona a questões do encontro de diferentes setores da sociedade, enquanto a velocidade da rotina diária configura o estabelecimento de padrões na vivência do espaço. Ela concentra muitos elementos cuja relação com os termos apresentados é possível. Transitoriedade, monumentalidade, espaço e vivência estão, ali, em constante desenvolvimento na inter-relação que os confere. Analisar os elementos –materiais e imateriais – e como se relacionam, pode demonstrar a articulação na construção do mesmo.
É interessante abordar aqui a questão da multivocalidade presente em espaços como o centro urbano. Colabora na consolidação deste enquanto lugar antropológico, ao ponto que o imaginário cultural coletivo, que muito deve à referência da paisagem, aqui se evidencia. O espaço urbano se determina nesse caráter coletivo e na convergência de variáveis como um bem comum que não pode ser reduzido ao agregado de propósitos individuais, é como uma tarefa compartilhada que não pode ser exaurida por um grande número de iniciativas individuais (Bauman, 2000). Contribui para a construção do raciocínio acerca do centro moderno e contemporâneo a visão de Massimo Cacciari acerca do tema. O filósofo ao tratar das questões do “centro” e “periferia” (entendendo pelo segundo termo a área urbana que se situa além dos limites do dito centro urbano), mostra como os termos perdem força na contemporaneidade. Para ele, os centros remetem à uma noção que caberia às velhas cidades dos anos de 1800 e 1900, mas que perdem completamente o sentido atualmente, onde se colocam apenas como referência histórica e monumental (Cacciari, 2014). O espaço urbano que antes abrigava as “funções de excelência”, como o teatro, o tribunal a prefeitura etc, perde a força ao ponto que tais funções se encontram esparsas, distribuídas no território urbano. Cacciari coloca ainda que os termos não dizem nada mais na realidade urbana da contemporaneidade e utilizá-los seria um prejuízo na análise das cidades, cuja abordagem deveria se aprofundar na questão funcional e complexa das dinâmicas urbanas. Como lugar antropológico, no entanto, a vivência no centro de Brasília muito se identifica. A partir da compreensão do termo colocado por Sennett, vale diferenciar as definições de “lugar” e “lugar antropológico”, o segundo tratando das relações humanas com o espaço construído, ou seja, a vivência. Sennett coloca “lugar” como o: espaço onde um corpo é colocado. Essa corporificação se relaciona à referência criada daquele espaço como lugar de culto, experiência da valorização do corpo que ali se encontra. Quanto a isso podem se exemplificar os destinos turísticos, pontos de encontro, monumentos e similares. A partir desse ponto de vista, o autor coloca que os lugares se definem em três classificações, com relações entre si, que constroem a estabilidade mínima do espaço. Como identitários, os lugares se relacionam aos itinerários que ali se consolidam, mesclando as finalidades que levam os indivíduos a vivenciarem aquele espaço e a identidade que se cria nessa construção coletiva daquele lugar. Em afinidade, os lugares relacionais se determinam pelos cruzamentos existentes no espaço e a forma como as diversidades de finalidade, função e expressão social encontram equilíbrio a partir das iniciativas individuais do mobile vugus. Já do ponto de vista de lugar histórico, o simbolismo se faz muito evidente no entendimento. A ideia de valorização e culto do espaço que rememora eventos anteriores que sediou o posiciona no caráter de monumentalidade e referência geográfica. À essa última classificação, com capacidade de construção a partir das duas anteriores, os centros urbanos se identificam e na construção social. Toda a monumentalidade e valorização de um centro histórico no entendimento urbano permeia a identidade ali estabelecida a partir do cruzamento das diversas iniciativas singulares. Pode-se buscar relação entre a constituição física e social da Plataforma
Rodoviária e conceitos que vêm à luz já no século XX. O caráter de transitoriedade de certos espaços levantados como aeroportos, estações de trem, supermercados e rodoviárias, podem delimitar - sob algumas perspectivasespaços que não são em si lugares antropológicos (Augé, 1992). Na construção do seu raciocínio analítico acerca da supermodernidade (conceito criado pelo autor para definir os reflexos da modernidade em um passado mais próximo), Marc Augé trata ainda sobre a dificuldade de apreensão, troca e identificação com o lugar que, no contexto atual, não apresenta, por sua conformação, identidade singular, uma vez que espaços “genéricos” como os descritos serão muito similares ainda que em localidades muito diversas. O desafio em lidar com as excentricidades do indivíduo em relação ao coletivo não encontra abrigo no estabelecimento da normalidade para Bauman, pois o projeto de esconder-se do impacto enervante da multivocalidade urbana nos abrigos da conformidade, monotonia e repetitividade comunitárias é um projeto que se auto-alimenta, mas que está fadado à derrota (Bauman, 2000), onde o entendimento do autor traz a cidade como um assentamento humano em que estranhos têm a chance de se encontrar.
Ainda se especula o reflexo da produção dos ditos não lugares nas relações pessoais, tratando sobre o modo como o mesmo incentiva ou exclui um ou outro tipo de vivência. A supermodernidade, a partir do contexto em que Augé inicia seu raciocínio (sentado a bordo de um voo internacional, em uma companhia aérea “genérica”), reduz as distâncias físicas com adventos de novas tecnologias ao mesmo tempo que afasta as vivências. O espaço do não lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude. (Augé, 1992).
A rodoviária do Plano piloto pode se identificar com o termo em partes. Abraçando algumas críticas colocadas à cidade no que diz respeito ao privilégio que recebe o automóvel no desenho urbano em comparação ao pedestre. A Plataforma delimita o ponto de encontro entre vias e veículos sendo ao mesmo tempo ponto de chegada e partida de itinerários. É a estação central da rede metroviária e ponto articulador principal entre as linhas de ônibus da capital. Nesse sentido, a transitoriedade do espaço pode ser evidenciada ao longo de sua extensão, visto que quase um terço da população de Brasília atravessa esse centro diariamente.
Na parcela inferior do edifício, o desenho privilegia os veículos e o arcabouço viário que o desenho urbano da cidade exige. O pedestre se percebe em segundo plano em um espaço hostil à caminhada e passagem para os demais setores da cidade. A acessibilidade é reduzida e o único reduto de segurança para o transeunte que percorre o espaço a pé é a estação central da rodoviária. Um amplo espaço que permite o trânsito interno de pedestres conta com a presença de quiosques, lanchonetes, serviços e demais atividades comerciais. Não deixa de ser, no entanto, um reduto isolado de livre percurso peatonal nesse nível do centro urbano, visto que é circundado por um anel viário que articula a conexão entre os eixos da cidade. Seu acesso é fácil a partir da plataforma superior, vertical apenas. No nível inferior, acessar a área requer superar a distância mínima de seis faixas de rolamento, independente do sentido de origem.
Na intenção de captar a vivência da paisagem central de Brasília, segue um ensaio fotográfico autoral que aborda os extremos do espaço urbano moderno. A análise foi dividida em dois momentos: o primeiro trata das cenas de transitoriedade que a vivência com o automóvel cria. A tensão entre a relação com a escala humana, a divergência de velocidades e o contraste da vivência entre os elementos criadores da paisagem, todos na parcela inferior da Plataforma Rodoviária. Em uma escala mais ampla - das vias urbanas -, compreende-se melhor a constituição do espaço físico e as relações dimensionais do centro.
Estão dispostas em sequência:
Foto 1: Ônibus e pedestres em movimento
Foto 2: Anel viário e linearidade
Foto 3: Velocidade
Foto 4: Pedestre em suspensão
Foto 5: Enquadramento do esquecimento
Foto 6: Multivocalidade às 18h
Na parte superior da Plataforma, no entanto, as hierarquias se invertem. Em um espaço onde a série de atividades e serviços dos Setores de Diversões, Comerciais e Bancários se encontra em pleno funcionamento durante os períodos úteis da semana, o fluxo de pedestres encontra sua máxima expressão. Diferentemente da parte inferior, ali a escala humana encontra mais força que o automóvel, impondo ao veículo papel secundário no que diz respeito ao uso do espaço. Faixas de pedestre largas permitem o trânsito perpendicular da plataforma no nível superior. Lotadas durante os horários de pico, o espaço limita o uso pelos indivíduos por sua constituição física, que ainda encontra barreiras à vivência de diversas atividades de caráter coletivo. Tais atividades, como o comércio informal, apresentações artísticas, ponto de encontro de cidadãos com interesses similares, não deixam de existir, em absoluto, devido às características físicas do espaço. Ao contrário, se adaptam ao meio para que sua presença não se perca e criam identidade na multiplicidade cultural de Brasília.
Com toda a sua linearidade do caráter urbano horizontal proposto por Lúcio Costa, reforça perfeitamente as intenções do urbanista na construção da capital. O patamar no centro da cidade permite que se criem perspectivas em qualquer direção que se observe, aproveitando-se das distâncias para conferir monumentalidade ao espaço. Sua forma curva impede o observador de visualizar seus limites e convida à possibilidade de uma paisagem infinita. No eixo Monumental, sua nomenclatura se materializa. Seja na parte superior do mesmo, ou na Esplanada dos Ministérios, cria pontos de fuga e perspectivas marcantes para quem que o vivencie. De um lado a Torre de TV esbanja a força de uma estrutura metálica de 224 metros de altura, enquanto a esplanada marca a representatividade da máxima expressão política do país com o Congresso Nacional. A singularidade de Brasília contradiz veemente a aproximação ao conceito dos não-lugares de Marc Augé. Como a maioria dos centros urbanos atualmente, é perceptível em Brasília a temporalidade do uso e a apropriação espontânea do espaço por indivíduos marginalizados socialmente, na busca de um abrigo. A transitoriedade que o espaço abarca, juntamente a seu caráter público, contribui para a possibilidade do uso genérico e acaba por dificultar em alguns momentos a apropriação afetiva por parte da população, o que não supera de forma alguma a singularidade do centro da cidade. O caráter monumental, histórico e social da Plataforma Rodoviária como experiência única no mundo a aproxima do lugar antropológico, contrariando a falta de identidade do não-lugar. Ali, a materialidade do espaço tão forte enquanto traço descobre sua força na vivência diária de milhares de indivíduos de diferentes origens que constroem em conjunto a paisagem da capital. No segundo momento do ensaio, sobre a plataforma superior, a escala humana prevalece em cenas da vivência cotidiana.
Estão dispostas em sequência:
Foto 1: Final de expediente
Foto 2: Brasilienses
Foto 3: Reflexo humano
Foto 4: Pedestres com voz
Foto 5: À espera