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O CENTRO E A PAISAGEM MODERNA DE BRASÍLIA

pouco detalhada, a cidade nasceu com desenho e intenção. Dois eixos estruturadores da cidade se cruzam e distribuem ao longo de sua extensão funções diversas do contexto urbano. Integração e setorização marcam fortemente a organização da cidade com forma de avião, e nela a experiência do modernismo, em uma escala tão imponente, decola.

Um exemplo prático da expressão modernista, o centro de Brasília em muito difere dos exemplos que podem ser elencados e a sua aplicação física evidencia sua singularidade. No ano de 1957, o surgimento de um concurso público para a escolha do projeto da nova capital do Brasil abre espaço para que os conceitos e elementos modernos, até então bem difundidos na mentalidade vigente do período, pudessem ganhar matéria e amplitude em escala urbana. Com a vitória do Plano Piloto apresentado por Lúcio Costa, de forma simples e

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Uma das prerrogativas colocadas na decisão da transferência da capital federalrealizada efetivamente durante o governo de Juscelino Kubitschek, mas proposta desde 1823 por José Bonifácio - foi o poder de integração que a mesma deveria estabelecer entre as regiões desenvolvidas do litoral Sudeste e o interior, até então pouco desenvolvido economicamente das regiões Norte e Centro-Oeste. Tal fato é importante para o estudo de Brasília pois norteou a escolha de seu terreno e localização geográfica, buscando centralidade no território brasileiro. Desde o seu surgimento, a cidade abarca a ideia de convergência, reunindo os interesses políticos do país na questão administrativa, e centralizando os ensejos populares de um país de dimensões continentais como o Brasil. A centralidade em Brasília já é parte de sua identidade desde o começo. Foi construída a partir de milhares de trabalhadores vindos de todas as regiões do país, cujo esforço foi concentrando na materialização de um desejo nacional. A cidade traz consigo o sucesso da busca pela integração dos diversos Brasis pertencentes ao território, vontade abordada em discussões políticas bem mais antigas que sua proposição. Construída por brasileiros de diversas origens (os candangos), a história da troca cultural em Brasília existe desde seu nascimento, mesclando identidades no processo de sua realização, física e social.

² desenho do Plano Piloto de Brasília por Lúcio Costa, 1957.

A atenção dada à escala humana no projeto de Lúcio Costa (ao que se podem compreender as relações físicas e perceptivas entre o indivíduo e o espaço construído), enriquece sua análise e projeto do espaço urbano enquanto partes que se relacionam e constituem o corpo íntegro da cidade. Em diversos trechos a ideia da centralidade se apresenta, principalmente no que toca à distribuição de atividades de caráter gregário e monumental, centros cívico e social da capital, respectivamente. Nessa divisão dos setores sociais da urbanidade moderna, se articulam as setorizações de funções, fruto da proposta moderna de concentrar atividades similares. O desenvolvimento simultâneo desses conceitos resultou na construção de articulações bem estruturadas a nível urbano. O próprio júri do concurso do Plano Piloto salienta, na decisão da proposta vencedora, que um centro conduz a outro, de modo que o plano pode ser facilmente compreendido*. De extremo destaque no que diz respeito ao desenho urbano estabelecido para a capital, o centro é parcela importante na construção da cidade. É significativa a análise do primeiro ponto colocado pelo urbanista no relatório do plano, que posteriormente veio a abrigar o centro da cidade:

Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz. (Relatório do Plano Piloto, 1956).

Em Brasília, o centro é popularmente compreendido na materialidade da Plataforma Rodoviária, resultante justamente do encontro entre o Eixo Monumental e o Eixo Rodoviário, permeando o cruzamento dos níveis físicos do traçado urbano e os encontros sociais que ali se permitem. Como o restante da capital, o espaço da Plataforma foi sendo ocupado e apreendido ao longo do tempo, na construção de sua vivência. Atualmente conta com fluxo diário de aproximadamente 800 mil passantes (quase 30% da população total), a Plataforma se encontra com o conceito de “centro” além da sua materialidade. Como em quase totalidade dos centros urbanos, o centro se encontra imbuído de simbologias cuja relação se funda na identidade cultural, política e social da sociedade que o determina. A monumentalidade do espaço da Plataforma Rodoviária e as perspectivas que ali são possíveis reconfiguram a construção mental comum ao se pensar em centro urbano, sem perder a referência com o fato de estabelecer centralidade.

Interessante também ao entendimento do conceito no contexto moderno, o estudo sobre as escalas urbanas de Brasília aparece como suporte analítico. A divisão da cidade em 4 escalas, classificadas a partir das funções que abrigam e sua conformação espacial, tem como escopo abarcar os elementos presentes na vivência urbana moderna e tendo características distintas, buscam, em um jogo de proporções e significações, se complementarem e interagirem (MONTE JUCÁ apud BOTELHO, 2009). A diversidade dos elementos da morfologia urbana de cada escala confere à cidade multiplicidade entre suas partes, abordando as características tanto de urbs (dimensão da vida urbana cotidiana) quanto de civitas (relações simbólicas da cidade). Para o entendimento da paisagem central, vale salientar as escalas gregária e monumental, criadas em 1987 com o tombamento patrimonial da cidade, a primeira com caráter de agregar as mais diversas culturas da cidade enquanto a segunda reforça a identidade marcante da área central simbólica.

Desenvolvida a partir da plataforma rodoviária, a escala gregária é o centro urbano de Brasília (Azevêdo; Neves; Lira, 2014). Na criação dessa escala em Brasília, Lucio Costa trata em seu relatório sobre a finalidade dessa dimensão como pontos de encontro, onde se deveriam se encontrar atividades de lazer, além das demais funções presentes na área. Há uma concordância de diversos autores sobre o fato da Plataforma Rodoviária ser o espaço onde a urbanidade da cidade melhor se manifesta, com maior número de pessoas se apropriando do espaço para algum fim. O trecho entre o

Conjunto Nacional e o Conic, delimitando um amplo vazio urbano, provavelmente estabelece o espaço onde se dá o maior número de encontros sociais na capital federal. Se observa a diversidade dos indivíduos que ali percorrem, em relação democrática com os demais, na construção da espacialidade social do lugar. Está presente também a alta densidade construtiva dos arredores do centro, com verticalização dos edifícios, preenche a área e predomina a paisagem à distância. Encontra, no entanto, contraste com a amplitude da perspectiva livre existente a partir da plataforma, onde o caráter de agregação do espaço se relaciona com a monumentalidade do mesmo.

A força visual que a horizontalidade da escala monumental dá ao espectador é certamente o aspecto mais significante em Brasília ao se tratar da paisagem. Desde seu nascimento, a visão da Esplanada dos Ministérios estabelece a imagem mais presente na memória coletiva ao se referenciar o Plano Piloto. Os simbolismos que acompanham a materialidade do espaço – levando em conta o desejo nacional que a capital representa - dão muita identidade à paisagem de Brasília, visto que a mesma se realiza também, por meio de evocações afetivas e simbólicas (Monte Jucá, 2009). A vista desimpedida e a perspectiva criada, cujo melhor ponto de observação global se localiza na parte superior da plataforma, figuram a vivência urbana cotidiana, independente dos espaços internos dos Ministérios, Palácios ou o Congresso Nacional. A presença da paisagem construída, como símbolo nacional, estabelece a identidade e relação no espaço ao se perceberem no cerne de todos os dispositivos espaciais estudados classicamente pela antropologia (Augé, 1992).

Na concretização de um sonho coletivo, a partir da maestria do pensamento urbano de Lúcio Costa, o centro das distâncias permite que elas se encontrem. Sociais, políticas, espaciais e culturais, todas são diminuídas na multiplicidade de um espaço como a Plataforma Rodoviária, onde a modernidade que tanto transformou a realidade humana fica frente a frente com seus reflexos: na vivência urbana social.

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