Solicitadoria e Ação Executiva | Estudos #7

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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #7 DEZEMBRO 2019 – DEZEMBRO 2020

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LABOR IMPROBUS OMNIA VINCIT 5


FICHA TÉCNICA 6


SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #7 dezembro 2019 – dezembro 2020

Ficha Técnica Diretor Paulo Teixeira Editor Francisco Serra Loureiro Colaboraram nesta edição Ana Isabel Guerra, Ana Margarida de Andrade Teles, Andreia Fabiana Alves Moreira, Beatriz Coelho, Camila Sofia Freitas Rodrigues, Catarina Alves, Cláudio Cardoso, Diana Leiras, Fernanda Pereira, Florbela Teixeira, Isa Raquel Pinto Pereira, João Vasco Loureiro, Luís Manuel Pica, Maria João Machado, Mário Filipe Borralho, Patrícia Ferreira, Paulo Sérgio de Sousa Magalhães e Susana Pereira Conselho Geral Tel. 213 849 200 | Fax. 213 534 870 | geral@osae.pt Conselho Regional do Porto Tel. 222 074 700 | Fax. 222 054 140 | c.r.porto@osae.pt Conselho Regional de Coimbra Tel. 239 070 690/1 | c.r.coimbra@osae.pt Conselho Regional de Lisboa Tel. 213 800 030 | Fax. 213 534 834 | c.r.lisboa@osae.pt Design Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução Periodicidade Anual ISSN 2182-9225 Depósito legal 358745/13 Registo na ERC com o n.º 126587 Sede da Redação e do Editor Rua Artilharia 1, n.º 63 | 1250-038 | Lisboa N.º de contribuinte do proprietário 500 963 126 Propriedade Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução www.osae.pt Os trabalhos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. ESTATUTO EDITORIAL disponível em http://osae.pt/pt/pag/OSAE/estatutos-editoriais/1/1/1/361

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ÍN DI CE 8


Nota introdutória ..................................................................................... 11 Falecimento de um dos cônjuges na pendência de ação ou procedimento de divórcio ou separação de pessoas e bens: Efeitos sobre os direitos sucessórios do cônjuge viúvo. Presente e Futuro. ................................................................................... 13 A Responsabilidade Patrimonial por Dívidas de um dos Cônjuges: Aspetos substantivos, processuais e registais da penhora do património comum conjugal e a sua importância para o comércio jurídico ............................................................................ 29 Perda de Chance: Considerações Gerais .......................................................... 49 O Arresto: Distinção de Figuras Afins .............................................................. 71 Titulação de Factos Sujeitos a Registo Predial: O Documento Particular Autenticado, em especial ................................................................................................ 95 Legitimidade das Partes e Réus Incertos......................................................... 119 A Garantia Voluntária na Venda de Bens de Consumo ......................................... 133 A Declaração de Insolvência e o Crédito Tributário: Subsídio à sua compatibilização. .. 147 A Tramitação do Processo Especial de Revitalização (Até à fase das negociações) ...... 159 A Titulação no Âmbito do Processo Executivo .................................................. 173

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Nota introdutรณria

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Nota introdutória Colaborar na administração da Justiça através de uma diversidade de contributos que, dignificando e prestigiando a nossa classe, promovam realmente o seu aperfeiçoamento e especialização profissionais, fomentando, ainda, o desenvolvimento de algumas matérias jurídicas mais relevantes para o exercício das nossas profissões é o objetivo desta sétima edição da coletânea "Solicitadoria e Ação Executiva - Estudos". É já apanágio da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução a conservação destes contributos intelectuais, ambicionando que também as gerações vindouras os venham a conhecer. Este é um projeto que pensa e faz pensar, visando o surgimento de novas formas de olhar para a realidade de todos os dias. Afinal de contas, questionar e ponderar novas respostas são as metas desta publicação, que conta com a colaboração de várias Instituições de Ensino Superior por forma a reforçar o caráter científico da mesma. O Instituto de Formação Botto Machado, o instituto de formação da Ordem, enquadra-se plenamente nos desígnios avençados e é um marco na consolidação da qualidade das nossas publicações e, especialmente, da nossa formação, inicial e contínua.

Paulo Teixeira Diretor do Instituto de Formação Botto Machado 1º Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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Falecimento de um dos cônjuges na pendência de ação ou procedimento de divórcio ou separação de pessoas e bens: Efeitos sobre os direitos sucessórios do cônjuge viúvo. Presente e Futuro.

Diana Leiras Docente no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, Licenciada e Mestre em Solicitadoria, Doutora em Direito

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Introdução A constante procura da felicidade pelo indivíduo e a facilidade e simplicidade com que hoje é possível dissolver o casamento por divórcio conduzem ao aumento do número de ruturas conjugais e ao aparecimento de novas formas de família, consolidando-se a ideia de que, se por um lado, os laços conjugais são menos intensos ou vinculativos, por outro, se se mantêm é porque são fortes. As crises conjugais – não só o divórcio mas também a separação de pessoas e bens – têm implicações necessárias na sucessão do cônjuge viúvo (assenta na affectio maritalis), sendo neste âmbito que surge a questão sobre que versa este estudo. Tal questão consiste em saber se os direitos sucessórios viduais são conservados no caso em que a abertura da sucessão tem lugar na pendência de ação ou procedimento de divórcio ou separação de pessoas e bens, isto é, num momento em que não existe decisão de divórcio ou separação, ou existe mas não é definitiva. Através da análise dessa questão, que abarcará não só as soluções atuais mas também perspetivas futuras, objetivamos prestar um contributo para a reflexão quanto ao modo como as crises conjugais incidem sobre a posição sucessória do cônjuge sobrevivo. I. O divórcio e a separação de pessoas e bens enquanto causas de exclusão do chamamento do cônjuge sobrevivo Como ponto de partida do estudo que nos propomos realizar, referimo-nos, ainda que em traços gerais, à posição sucessória do cônjuge sobrevivo. Desde a Reforma de 1977, o cônjuge sobrevivo tem a categoria de herdeiro legitimário (e de herdeiro legítimo se tem lugar a abertura da sucessão legítima), sendo chamado na primeira ou na segunda classe de sucessíveis (arts. 2133.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, 2134.º e 2157.º1), independentemente do regime de bens do casamento2. O Código Civil consagra um preceito que constitui a base essencial do estudo da matéria da incidência das crises conjugais sobre a participação do cônjuge sobrevivo na sucessão legal3. Trata-se do art. 2133.º, n.º 3 que dispõe: “O cônjuge não é chamado à herança se à data da morte do autor da sucessão se encontrar divorciado ou separado judicialmente de pessoas e bens, por sentença que já tenha transitado ou venha a

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Todas as normas mencionadas neste estudo sem indicação da respetiva fonte legal pertencem ao Código Civil (na redação em vigor). 2 A Reforma de 1977, operada pelo DL n.º 496/77, de 25 de novembro, dignificou a posição sucessória do cônjuge sobrevivo em resposta à conceção atual da família: família nuclear, composta pelos cônjuges e eventuais filhos. 3 “A sucessão legal é legítima ou legitimária, conforme possa ou não ser afastada pela vontade do seu autor” (art. 2027.º).

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transitar em julgado, ou ainda se a sentença de divórcio ou separação vier a ser proferida posteriormente àquela data, nos termos do n.º 3 do art. 1785.º”4. Da aludida norma, que respeita à sucessão legítima mas que também é aplicável na sucessão legitimária ex vi da remissão presente no art. 2157.º, in fine, resulta que o divórcio e a separação de pessoas e bens constituem causas de exclusão do chamamento legal do cônjuge sobrevivo. Notamos que isto já era assim antes da Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, que suprimiu o sistema culpabilístico do divórcio (e da separação de pessoas e bens ex vi do art. 1794.º): o cônjuge viúvo já era afastado da sucessão legal do seu consorte ainda que a culpa do divórcio ou da separação fosse imputada unicamente ao cônjuge defunto5. Ainda que o art. 2133.º, n.º 3 esteja consagrado para o caso de divórcio ou separação com intervenção judicial, também é aplicável, como indica o art. 1776.º, n.º 3, ao caso em que os cônjuges se divorciaram ou separaram por decisão do conservador do registo civil. Neste âmbito fazemos um parêntesis para recordar que desde o DL n.º 272/2001, de 13 de outubro, o divórcio e a separação de pessoas e bens por mútuo consentimento dos cônjuges são da competência exclusiva das conservatórias do registo civil quando o casal consiga obter os acordos exigidos pelo art. 1775.º, n.º 16 (cfr. arts. 1773.º, n.º 2, 1775.º e 1794.º). Face ao exposto, a decisão de divórcio ou separação de pessoas e bens, seja ela judicial ou administrativa, já transitada em julgado no momento da abertura da sucessão, determina a privação dos direitos sucessórios viduais7. 4

Quanto à eficácia das disposições testamentárias realizadas ao cônjuge nos casos de crise conjugal rege o artigo 2317.º alínea d) que em relação ao divórcio e à separação de pessoas e bens vai encontro com o art. 2133.º, n.º 3. No que respeita à sucessão contratual, ou seja, em relação às doações para casamento com eficácia mortis causa rege o art. 1760.º, alínea d), que estabelece a caducidade “se ocorrer divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado”. 5 Cfr. art. 2148.º na redação originária. Não foi seguida aquando dos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966 a proposta apresentada por um dos membros da Comissão Codificadora, em concreto do Conselheiro Mário Cardoso, que propugnava que a exclusão do cônjuge só deveria ser admitida se este tivesse culpa na separação. Em oposição, manifestou-se, por exemplo, Pires de Lima, segundo o qual se deveriam “afastar todas as soluções em que não haja reciprocidade”; e Vaz Serra que afirma que em alguns casos se apresenta “como culpado um cônjuge que o não é, de sorte que só com uma regulamentação da separação em que o juiz se pronunciasse acerca da culpa, tendo em conta as consequências legais desta, é que seria de admitir a solução proposta”. Vid. GALVÃO TELLES, I., Direito das Sucessões - Trabalhos preparatórios do Código Civil e documentos, Coletânea organizada em colaboração com o Dr. Bigotte Chorão, Lisboa, 1972, p. 239. 6 Por exemplo quanto ao exercício das responsabilidades parentais quando existam filhos menores e não tenha previamente havido regulação judicial ou quanto ao destino da casa de morada de família (alíneas b) e d) do n.º 1 do art. 1775.º). 7 “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da propositura da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges” (art. 1789.º, n.º 1). O número 2 do artigo 1789.º admite que os efeitos do divórcio retroajam à data do início da separação de facto, fixada na sentença, caso a separação esteja provada no processo, e qualquer um dos cônjuges o requeira. Quanto a terceiros, os efeitos patrimoniais só são oponíveis após o registo da sentença do divórcio (art. 1789.º, n.º 3).

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O fim do caminho sucessório entre os cônjuges por efeito do divórcio está especialmente justificado pela perda do título que daria o direito a suceder (a condição de cônjuge do de cuius): por efeito do divórcio, o casamento dissolve-se e os cônjuges perdem a condição de tais, situação que não se altera em caso de posterior reconciliação (art. 1788.º). Isto leva-nos a evidenciar a falta de rigor técnico que existe na letra do art. 2133.º, n.º 3, pois esta norma conjuga os termos “cônjuge” e “divórcio”, quando os mesmos são absolutamente incompatíveis. Não obstante, outros efeitos produzidos pelo divórcio justificam a eliminação da expetativa sucessória conjugal. Ora vejamos. O divórcio faz cessar as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges (art. 1688.º). Com a cessação das relações patrimoniais conjugais extingue-se o regime de bens do casamento e pode surgir a necessidade de realização da partilha do casal (art. 1689.º). No que concerne à cessação das relações pessoais conjugais, esta implica a extinção dos deveres conjugais entre os quais o dever de coabitação e o de cooperação (art. 1672.º). Conforme resulta do aludido art. 1688.º (“sem prejuízo das disposições deste Código relativas a alimentos”), o dever de assistência não é afetado pelo divórcio no que respeita ao dever de prestar alimentos, extinguindo-se apenas a outra vertente deste direito: a obrigação de contribuir para os encargos da vida familiar (art. 1675.º, n.º 1). Porém, ainda que o ex-cônjuge seja um dos obrigados a prestar alimentos, aparecendo inclusivamente em primeiro lugar na ordem de vinculação do art. 2009.º, n.º 1, essa obrigação reveste carácter excecional. De acordo com o art. 2016.º, na atual redação (introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro), “cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio” (n.º 1); e “o direito a alimentos pode ser negado, por razões manifestas de equidade” (n.º 2)8. No que respeita à separação de pessoas e bens, que como já dissemos supra, é equiparada ao divórcio para efeitos de exclusão do chamamento legal do cônjuge sobrevivo (art. 2133.º, n.º 3), salientamos que o vínculo conjugal não é destruído9. Apesar disso, a inexistência de laços afetivos e de convivência entre os cônjuges no momento em que um deles falece justifica que a sucessão conjugal não tenha lugar. Nos termos do art. 1795.º-A, “a separação judicial de pessoas e bens não dissolve o vínculo conjugal, mas extingue os deveres de coabitação e assistência, sem prejuízo do direito a alimentos; relativamente aos bens, a separação produz os efeitos que produziria 8

Vid. por exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.10.2012, processo n.º 320/10.6TBTMR.C1.S1 (Hélder Roque) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.01.2014, processo n.º 2489/11.3TBBRR.L1-7 (Cristina Coelho). Para desenvolvimentos sobre o direito a alimentos entre ex-cônjuges e na pendência de ação de divórcio vid. LOBO XAVIER, R., Recentes alterações ao regime jurídico do divórcio e das responsabilidades parentais, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 38-45. 9 PEREIRA COELHO, F. M. e OLIVEIRA, G., op. cit., pp. 663-664, escrevem que “os cônjuges separados não podem contrair um novo e válido casamento, sob pena de bigamia”.

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a dissolução do casamento”. Portanto, além da cessação das relações patrimoniais entre cônjuges, a separação em causa produz importantes efeitos pessoais, reconduzindo-se na sua essência a uma situação de suspensão da vida conjugal10. No que respeita ao dever de assistência, a obrigação de prestar alimentos subsiste (arts. 1795.º-A, 2009.º, n.º 1, al. a)), mas esta obrigação tem carácter subsidiário nos termos que expusemos supra a propósito do divórcio (2016.º, n.º 4). Aclarámos que no caso de simples separação judicial de bens, regulada nos arts. 1767.º e seguintes, a conservação dos direitos sucessórios viduais (art, 2133.º, n.º 3 a contrario) está justificada: considerando o fundamento desta separação (perigo de um dos cônjuges perder o que é seu pela má administração do outro), ela tem apenas como finalidade produzir efeitos sobre o regime de bens do casamento e património comum do casal11. Em suma, nos casos de divórcio ou separação de pessoas e bens não estão verificados os pressupostos cumulativos da existência de um vínculo conjugal (válido) e estabilidade da relação conjugal em que assenta a atribuição legal de direitos sucessórios ao cônjuge viúvo12. Neste sentido, podemos afirmar que a expetativa sucessória entre cônjuges depende do desejo de ambos em prolongar o casamento e a comunhão de vida, tendo, no entanto, presente que o divórcio e a separação de pessoas e bens por vontade unilateral dependem da constatação da rutura da vida conjugal com base numa das causas objetivas previstas na Lei (arts. 1781.º e 1794.º). II. A solução legal prevista para a situação em que um dos cônjuges falece estando pendente ação de divórcio ou separação de pessoas bens A situação em que o falecimento de um dos cônjuges ocorre estando pendente ação de divórcio ou separação de pessoas e bens não é de tratamento sucessório linear, pois nesse caso os cônjuges não estão, no momento da abertura da sucessão, divorciados ou separados por sentença transitada em julgado. 10

Os cônjuges continuam vinculados aos deveres de fidelidade conjugal, de respeito e de cooperação. Cfr. PEREIRA COELHO, F. M. e OLIVEIRA, G., op. cit., p. 664. 11 Nos termos do art. 1767.º, n.º 1, “qualquer dos cônjuges pode requerer a simples separação judicial de bens quando estiver em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro cônjuge”. Os efeitos desta separação resultam do art. 1770.º e correspondem à modificação do regime de bens do casamento, que passa a ser o da separação, e à realização da partilha do património comum como se o casamento tivesse sido dissolvido. Segundo PEREIRA COELHO e OLIVEIRA “A simples separação de bens ou simples separação judicial de bens, caracteriza-se, como as palavras estão a dizer, por ser uma separação restrita aos bens, que deixa imperturbados os efeitos pessoais do casamento”. Cfr. Curso de Direito da Família, I, Introdução, Direito matrimonial, 5.a ed, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2016, p. 650. 12 Contudo, os cônjuges separados de pessoas e bens podem restabelecer a vida conjugal com o que mantêm a expetativa de suceder entre si: é-lhes permitido “a todo o tempo restabelecer a vida em comum e o exercício dos direitos e deveres conjugais” (art. 1795.º-C, n.º 1). No caso de divórcio, os direitos e deveres conjugais não podem ser restabelecidos, uma vez que o divórcio dissolve o vínculo conjugal (art. 1788.º), restando aos ex-cônjuges a celebração de novo casamento.

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Sabendo de antemão que a morte de um dos cônjuges determina a extinção da ação de divórcio ou separação devido à natureza pessoal desta ação (é relativa ao estado das pessoas) e ao carácter intransmissível do direito ao divórcio ou separação (arts. 1785.º, n.º 3, 1.ª parte, e 1794.º)13, cumpre-nos descortinar se em tal situação o cônjuge viúvo é ou não contemplado na sucessão do seu consorte defunto. Para isso, temos de ter em conta duas situações possíveis à data da abertura da sucessão: existe sentença de divórcio ou separação não transitada em julgado; ou não existe sequer sentença de divórcio ou separação. a) Existe sentença de divórcio ou separação não transitada em julgado: O art. 2133.º, n.º 3 exclui o chamamento ex lege do cônjuge viúvo se no momento da abertura da sucessão existe sentença de divórcio ou separação de pessoas e bens já transitada em julgado, ou que venha ainda a transitar. Desta forma, a sentença de divórcio ou separação não transitada em julgado à data do falecimento de um dos cônjuges implica, tal como a sentença de idêntica matéria que esteja definitiva nessa data, a privação dos direitos sucessórios legais viduais. A este propósito GOMES DA SILVA escreve que “no divórcio, não transitado em julgado, é certo que ainda existe vínculo; mas é um vínculo que está a caminho de ser destruído e compreende-se, bem, que, nesta hipótese, o (ainda) cônjuge perca a sua qualidade de herdeiro”14. Ainda que em termos processuais esta solução seja adequada, julgamos que o mesmo não acontece em termos substantivos, atendendo aos moldes vigentes do sistema do divórcio (e da separação de pessoas e bens). Ora vejamos. Na ação de divórcio ou separação sem mútuo consentimento, frustrado o acordo dos cônjuges para o divórcio ou separação por mútuo consentimento (arts. 931.º e 932.º do Código de Processo Civil, doravante CPC)15, como a decisão judicial de divórcio ou separação não está transitada em julgado à data da abertura da sucessão, não pode haver certeza jurídica de que efetivamente aquela rutura se verificou. A invocação e a prova de uma causa de rutura conjugal continuam a ser indispensáveis para que o tribunal declare a procedência do pedido, e a atribuição à decisão de divórcio ou separação do grave efeito de exclusão do cônjuge viúvo da sucessão ex lege do seu consorte defunto implica conferir carácter definitivo ao facto da rutura do casamento. Desta forma, estamos em crer que a solução que vigora apenas se compatibiliza com o sistema atual de divórcio (ou separação) em dois casos. Um desses casos é quando foi

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SANTOS, E., Direito da Familia, Coimbra, Almedina, 1999, p. 388. GOMES DA SILVA, N., “Posição sucessória do cônjuge sobrevivo”, in Reforma do Código Civil, Lisboa, Ordem dos Advogados, 1981, p. 64. 15 Apresentada a petição de divórcio ou separação sem mútuo consentimento do outro cônjuge, se a ação estiver em condições de prosseguir, o juiz designa dia para uma tentativa de conciliação, na qual os cônjuges podem chegar a acordo para o divórcio ou separação por mútuo consentimento. 14

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iniciado processo de divórcio ou separação por mútuo consentimento, estando os cônjuges dispensados de revelar ao tribunal a causa que originou a crise matrimonial (art. 994.º CPC); o outro é quando a causa invocada se tornou irrelevante, o que sucede quando a ação foi proposta por um dos cônjuges sem o consentimento do outro mas os cônjuges chegaram a acordo para o divórcio ou separação por mútuo consentimento (art. 931.º, n.º 2 CPC). b) Não existe sentença de divórcio ou separação: A análise da situação em que não existe sentença de divórcio ou separação aquando do falecimento de um dos cônjuges implica saber se a ação de divórcio ou separação extinta poderá ser continuada post mortem com a finalidade de privar o cônjuge sobrevivo dos seus direitos sucessórios. Se a resposta for em sentido negativo os direitos sucessórios viduais são conservados em todo o caso, sem que a circunstância de os cônjuges estarem separados de facto à data da abertura da sucessão conduza a solução diversa: a separação de facto não é equiparada à separação de pessoas e bens (cfr. art. 2133.º, n.º 3)16. A verdade é que a continuação da ação de divórcio ou separação já não poderia ter a finalidade de dissolver ou modificar o vínculo conjugal, respetivamente, pois esse vínculo já se encontra dissolvido por razão da morte de um dos cônjuges. Desta forma, a admissibilidade da sucessão processual, que só faz sentido num sistema de divórcio (ou separação) como o que vigora entre nós que não é a pedido mas sim causal (constatação da rutura da vida conjugal com base nalgum das causas objetivas previstas na Lei), só seria viável para efeitos patrimoniais. É precisamente essa a solução que o nosso legislador acolhe no art. 1785.º, n.º 3, cujo teor é o seguinte: “O direito ao divórcio não se transmite por morte, mas a ação pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a ação prosseguir contra os herdeiros do réu”17. Nesta senda, como os direitos sucessórios revestem natureza patrimonial, o art. 2133.º, n.º 3 estabelece que não há lugar ao chamamento legal do cônjuge viúvo se, após a morte do autor da sucessão, for proferida sentença de divórcio ou separação de pessoas e bens, nos termos do art. 1785.º, n.º 3.

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A separação de facto constitui fundamento do divórcio ou separação de pessoas e bens sem mútuo consentimento quando perdure há mais de um ano consecutivo (art. 1781.º, alínea a) e 1794.º). O art. 1782.º, n.º 1 diz o que se deve entender como tal para esse efeito: “Entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer”. 17 Esta norma foi modificada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro para eliminação da referência que nela se fazia ao anterior art. 1787.º, que impunha ao tribunal que na sentença de divórcio ou separação declarasse a culpa dos cônjuges, se a houvesse.

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É inegável que na vigência do sistema de culpa do divórcio (ou separação), suprimido pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, a continuação da ação após a morte de uma das partes, revestia manifesto interesse prático em face das sanções patrimoniais que eram imputadas ao cônjuge viúvo quando fosse declarado culpado da crise conjugal18, que também ficava (neste caso, independentemente de culpa) privado dos direitos sucessórios legais viduais. Como o art. 1785.º, n.º 3 tem a redação daquela Lei, não há dúvida quanto à intenção do legislador em manter a possibilidade de a ação de divórcio ou separação, extinta por óbito de um dos cônjuges, ser continuada para efeitos patrimoniais, pelos herdeiros do cônjuge autor ou contra os herdeiros do cônjuge réu, apesar de aquele óbito também já ter produzido o efeito da dissolução do casamento19. A prossecução post mortem da ação de divórcio ou separação de pessoas e bens mantém interesse prático para efeitos sucessórios, pois o efeito de exclusão do chamamento legal do cônjuge viúvo continua a estar associado à própria decisão de divórcio ou separação, para além de que esta decisão passou a produzir certos efeitos que antes só se produziam se o tribunal declarasse o cônjuge sobrevivo como único ou principal culpado (arts. 1790.º e 1791.º). No domínio sucessório, que é o que aqui nos interessa, como resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.12.2015, “trata-se, por um lado, de possibilitar que o cônjuge sobrevivo seja excluído como sucessor, da herança do cônjuge falecido, do mesmo modo que dela seria excluído se o falecimento se tivesse verificado já depois de decretado o divórcio” 20. III. Os problemas que consideramos existir 1. O art. 1785.º, n.º 3 não cumpre em pleno com as exigências da justiça material Apesar do esforço empenhado na adaptação do art. 1785.º, n.º 3 às novas linhas do regime do divórcio ou separação introduzidas pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, 18

ANTUNES VARELA, J., Direito da Família, vol. 1, 5.a ed., Lisboa, Livraria Petrony, 1999, p. 508. O cônjuge declarado único ou principal culpado perdia todos os benefícios recebidos ou que houvesse de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação fosse anterior ou posterior à celebração do casamento; enquanto o cônjuge inocente ou não principal culpado conservava todos os benefícios recebidos ou que houvesse de receber do outro cônjuge ou de terceiro, ainda que tivessem sido estipulados com a cláusula de reciprocidade (anterior art. 1791.º). O anterior art. 1790.º estabelecia que o cônjuge declarado único ou principal culpado não podia, na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos. 19 Neste sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.03.2007, processo n.º 2980/05.0YRCBR (Garcia Calejo), disponível em www.dgsi.pt. 20 Processo n.º 29/11.3TBMMV.C1 (Fonte Ramos), disponível em www.dgsi.pt. Este acórdão também esclarece que os “herdeiros do cônjuge autor” para os efeitos do disposto no art. 1785.º, n.º 3, são aqueles que “no caso de a ação proceder e o divórcio vir efetivamente a ser decretado, serão chamados à sucessão do cônjuge falecido como seus herdeiros legais ou testamentários”.

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parece-nos que a norma não cumpre em pleno com as exigências da justiça material. Ora vejamos. Nos termos do art. 1785.º, n.º 3, se o cônjuge autor falecer, os seus herdeiros podem tomar o seu lugar na ação e prosseguir com a mesma; se o cônjuge réu falecer, o cônjuge autor pode prosseguir com a ação contra os herdeiros do réu. Assim, neste último caso, em que o cônjuge que faleceu foi o cônjuge demandado (réu), como os seus herdeiros não podem continuar a ação (salvo se aquele tiver deduzido reconvenção21), o cônjuge sobrevivo, que foi quem declarou ao tribunal a existência da causa de rutura da vida conjugal assim como a sua vontade em se divorciar ou separar, conserva os direitos sucessórios legais viduais. Apesar de este cônjuge estar legitimado a continuar a ação contra os herdeiros do réu, é previsível que não proceda desse modo para não ficar privado de tais direitos (art. 2133.º, n.º 3). Neste cenário, podemos até dizer, em tom sarcástico, que o momento da morte do causante veio a calhar ao cônjuge sobrevivo, pois este já não seria chamado a suceder se o seu consorte só tivesse falecido depois proferida a sentença de divórcio ou separação de pessoas e bens. Assim, ainda que esta solução esteja conforme os termos processuais da habilitação mortis causa, ela pode levar a que não seja atribuída relevância sucessória à causa de rutura da relação conjugal já levada ao conhecimento do tribunal. 2. Inviabilidade da sucessão processual se está pendente processo de jurisdição voluntária de divórcio ou separação de pessoas e bens por mútuo consentimento O art. 1785.º, n.º 3 não é passível de aplicação no caso em que um dos cônjuges falece estando pendente processo de jurisdição voluntária de divórcio ou separação por mútuo consentimento: o preceito está inserido na regulação do divórcio sem consentimento do outro cônjuge22. Isto significa que, apesar de ambos os cônjuges terem requerido em tribunal o divórcio ou separação de pessoas e bens, estando ambos cientes dos efeitos dessa crise matrimonial, entre os quais a cessação da expetativa sucessória entre si, se um deles falece antes de decretado o divórcio ou a separação, não poderá ser promovida a habilitação dos herdeiros do cônjuge defunto em vista da continuação da ação para efeitos patrimoniais.

21

De acordo com o art. 1795.º, “a separação judicial de pessoas e bens pode ser pedida em reconvenção, mesmo que o autor tenha pedido o divórcio; tendo o autor pedido a separação de pessoas e bens, pode igualmente o réu pedir o divórcio em reconvenção” (n.º 1); e “nos casos previstos no número anterior, a sentença deve decretar o divórcio se o pedido da ação e o da reconvenção procederem” (n.º 2). 22 Cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15.06.2005, processo n.º 1975/05-1 (Gomes da Silva); e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13.05.2003, processo n.º 0220698 (Rapazote Fernandes), disponíveis em www.dgsi.pt.

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Para nós, esta solução não cumpre com as exigências da justiça material, pois num caso em que está dispensada a invocação e prova de uma causa da rutura da vida conjugal, a vontade que os cônjuges manifestaram perante o operador jurídico no sentido de cessar ou suspender a vida em comum é simplesmente ignorada para efeitos sucessórios.

A

este

propósito,

não

olvidemos

que

a

separação

de

facto,

independentemente do tempo que perdura no momento da abertura da sucessão, não determina a exclusão do chamamento legal do cônjuge viúvo (art. 2133.º, n.º 3 a contrario). 3. Inviabilidade da sucessão processual se está pendente procedimento de divórcio ou separação de pessoas e bens por mútuo consentimento Se um dos cônjuges falece depois de ter sido dado início ao procedimento de divórcio ou separação junto da conservatória do registo civil mas antes de ser proferida decisão de divórcio ou separação, o cônjuge sobrevivo mantém os seus direitos sucessórios, sem que esteja ao alcance dos demais herdeiros do cônjuge defunto fazer algo para impedir que isso aconteça. Por identidade de razão com a situação tratada no ponto anterior, observamos que o art. 1785.º, n.º 3 não é passível de aplicação nesta situação e que a separação de facto não tem a mesma relevância sucessória da separação de pessoas e bens. IV. Futuro: possíveis soluções Expostos os problemas que consideramos existir para a situação em que um dos cônjuges falece na pendência de ação ou procedimento de divórcio ou separação de pessoas e bens cumpre-nos agora indicar as soluções que, a nosso ver, poderiam ser acolhidas numa futura revisão do Código Civil com vista a ultrapassar esses mesmos problemas. A aplicação da solução que julgamos adequada para resolver o problema que apontamos supra para a situação em que o falecimento de um dos cônjuges ocorre estando pendente ação de divórcio ou separação proposta por um dos cônjuges sem o consentimento do outro pressupõe a modificação do sistema atual do divórcio por vontade de apenas um dos cônjuges, que, como já dissemos, assenta numa causa objetiva, independente de culpa, de rutura da vida em comum (art. 1781.º). Quanto a essa proposta de reforma do regime do divórcio, cuja análise exaustiva não nos é possível realizar neste estudo, indicaremos as principais razões que nos levam a defende-la, as quais estão, sobretudo, associadas às tendências atuais do individualismo e da afetividade e ao respeito do livre desenvolvimento da personalidade23. 23

Este direito está consagrado no art. 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil,

22


Para nós, não faz sentido que atualmente a relação conjugal só possa ser declarada extinta ou modificada por meio de divórcio ou separação de pessoas e bens, respetivamente, quando essa seja a vontade de um só dos cônjuges se este cônjuge logra convencer o tribunal quanto à rutura da vida em comum. Somos a favor da consagração do modelo do divórcio (ou separação) a pedido que dispensa a invocação e prova de uma causa de rutura da vida conjugal, sendo suficiente a propositura da ação tendente à declaração do divórcio ou separação de pessoas e bens pelo cônjuge que se pretende desvincular do outro mas que dele não obteve anuência24. Pensamos que o abandono do sistema de divórcio-sanção e a consagração do sistema do divórcio-constatação da rutura conjugal ‒ novidades introduzidas no regime do divórcio pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro ‒ ficam aquém da evolução dos tempos, pois o regime atual não garante que a estabilidade jurídica do casamento corresponde à efetiva estabilidade no seio conjugal, a qual depende da felicidade de ambos os cônjuges e não de um só deles25. Neste seguimento, salientamos que no Projeto de Lei n.º 509/X, que esteve na base da reforma do regime do divórcio operada pela referida Lei26, estão presentes as ideias de que “ninguém deve permanecer casado contra sua vontade ou se considerar que houve quebra do laço afetivo”, e de que a aceitação do divórcio é sinal de “valorização de uma conjugalidade feliz e conseguida”. As últimas palavras que escrevemos quanto a esta matéria respeitam àquele que nos parece que será o efeito produzido caso não venha a ser consagrado, no futuro próximo, o divórcio a pedido com vista à proteção do instituto do casamento. Temos para nós que se poderá produzir um efeito oposto ao pretendido: a circunstância de as pessoas não terem a liberdade de descasar (como têm de casar) contribui para o aumento da coabitação em união de facto, e, por conseguinte, para a diminuição da taxa de nupcialidade27. à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”. 24 Numa perspetiva de Direito comparado, salientamos que o Código Civil espanhol consagra a separação e o divórcio a pedido (arts. 81.º e 86.º): a Ley 15/2005, de 8 de julio, por la cual se modifican el Código Civil y de la Ley de Enjuiciamiento Civil en materia de separación y divorcio suprimiu as causas de separação e de divórcio e apenas estabeleceu como requisito que o casamento perdure há pelo menos três meses (com exceção do caso em que se comprove a existência de um risco para a vida, integridade física, liberdade, integridade moral ou liberdade e intimidade sexual do cônjuge demandante ou dos filhos, comuns ou de qualquer dos cônjuges). 25 A separação de facto só constitui causa de rutura da vida conjugal se perdurar há mais de um ano consecutivo (art. 1781.º, n.º 1, alínea a). Neste sentido, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07.12.2017 que decide que a violação dos deveres conjugais inerentes ao facto de os cônjuges estarem separados há menos de um ano não permite concluir pela existência de uma rutura definitiva do casamento, condição necessária para a procedência do pedido de divórcio (processo n.º 1042/17.2T8FAR.E1, Paulo Amaral, disponível em www.dgsi.pt.). 26 Este Projeto de Lei está disponível em http://app.parlamento.pt (consulta: 27.12.2019). 27 De acordo com os resultados do último Censo (realizado em 2011), o número de pessoas que vivem em união de facto aumentou consideravelmente: 381.120 em 2001 para 729.832 em 2011. Dados disponíveis em https://www.pordata.pt (consulta: 29.12.2019).

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Se numa futura revisão do Código Civil for consagrado o divórcio e a separação de pessoas e bens a pedido, sendo dispensada a invocação e prova de uma causa de rutura da vida conjugal mesmo no caso em que não há mútuo consentimento, a ação proposta por um dos cônjuges visaria apenas a apreciação judicial da vontade desse cônjuge em dissolver ou modificar o vínculo conjugal. Neste sentido, a pendência da ação no momento em que falece um dos cônjuges poderia ser bastante para determinar a exclusão do chamamento do cônjuge viúvo. A solução que propomos traria inegáveis vantagens ao nível da certeza e segurança jurídicas, porquanto os interessados na partilha e respetivos direitos hereditários ficariam definidos logo no momento da abertura da sucessão, o que não está garantido no regime atual: a exclusão do chamamento do cônjuge viúvo pode ter lugar em momento posterior à abertura da sucessão dada a possibilidade de continuação da ação de divórcio ou separação prevista no art. 1785.º, n.º 3. Quanto à situação em que o falecimento de um dos cônjuges ocorre estando pendente ação ou procedimento de divórcio ou separação de pessoas e bens por mútuo consentimento, questionamos se será adequado não atribuir relevância sucessória à vontade que os cônjuges de comum acordo manifestaram perante o operador jurídico no sentido da dissolução ou suspensão do vínculo conjugal que os une. Reconhecemos que não é possível asseverar que os cônjuges se iriam efetivamente divorciar ou separar senão ocorresse a morte prematura de um deles (antes de proferida a decisão judicial ou do conservador do registo civil consoante o caso), já que podiam não estar reunidos todos os requisitos exigidos para o efeito, ou até podiam aqueles, por vontade de ambos, restabelecer a vida conjugal28. Porém, em qualquer dos casos, isto é, de divórcio (ou separação) com ou sem intervenção judicial, os cônjuges mediante requerimento assinado por ambos ou pelos seus procuradores manifestaram intenção perante o operador jurídico (juiz ou conservador do registo civil) em dissolver ou modificar o vínculo conjugal (arts. 994.º, n.º 1 do CPC e 1775.º, n.º 1). Por esta razão, no caso em que um dos cônjuges falece estando em trâmite ação ou procedimento de divórcio ou separação, julgamos que seria mais adequado o cônjuge sobrevivo ser afastado da sucessão como se já existisse, na data da abertura da sucessão, decisão de divórcio ou separação.

Conclusão O divórcio e a separação de pessoas e bens produzem importantes efeitos quer pessoais quer patrimoniais. Entre os efeitos patrimoniais destas crises conjugais encontra-se a privação dos direitos sucessórios viduais: a atribuição destes direitos assenta na comunhão de vida entre os cônjuges, a qual não existe naqueles casos. 28

A desistência nas ações de divórcio e de separação de pessoas e bens é livre (art. 289.º, n.º 2 CPC).

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Para a situação em que um dos cônjuges falece na pendência de ação ou procedimento de divórcio ou separação de pessoas e bens, a Lei dá resposta afirmativa à questão sobre se tem lugar a sucessão conjugal. A única exceção reporta-se à possibilidade prevista no art. 1785.º, n.º 3 de a ação de divórcio ou separação sem mútuo consentimento ser continuada, para efeitos patrimoniais, pelos herdeiros do autor ou contra os herdeiros do réu. Neste estudo, de acordo com uma perspetiva presente, demonstramos que as soluções legais em vigor para a situação em análise, nas suas diferentes vertentes, não cumprem com as exigências da justiça material; numa perspetiva futura, apresentamos soluções que nos parecem viáveis de modo a cumprir com tais exigências.

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Bibliografia ANTUNES VARELA, J., Direito da Família, vol. 1, 5.a ed., Lisboa, Livraria Petrony, 1999. GALVÃO TELLES, I., Direito das Sucessões - Trabalhos preparatórios do Código Civil e documentos, Coletânea organizada em colaboração com o Dr. Bigotte Chorão, Lisboa, 1972. GOMES DA SILVA, N., “Posição sucessória do cônjuge sobrevivo”, in Reforma do Código Civil, Lisboa, Ordem dos Advogados, 1981. LOBO XAVIER, R., Recentes alterações ao regime jurídico do divórcio e das responsabilidades parentais, Coimbra, Almedina, 2010. PEREIRA COELHO, F. M. e OLIVEIRA, G., Curso de Direito da Família, I, Introdução, Direito matrimonial, 5.a ed, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2016. SANTOS, E., Direito da Familia, Coimbra, Almedina, 1999.

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A Responsabilidade Patrimonial por Dívidas de um dos Cônjuges:

A Responsabilidade Patrimonial Por Dívidas de um dos Cônjuges

Aspetos substantivos, processuais e registais da penhora do património comum conjugal e a sua importância para o comércio jurídico

Aspetos substantivos, processuais e registais da penhora do património comum conjugal e a sua importância para o comércio jurídico

Luís Manuel Pica Solicitador, Licenciado em Solicitadoria e Direito, Mestre em Direito Tributário e Fiscal e Doutorando pela Escola de Direito da Universidade do Minho e Assistente Convidado no Instituto Politécnico de Beja

Mário Filipe Borralho Solicitador, Licenciado em Solicitadoria e Assistente Convidado do Instituto Politécnico de Beja

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1. Introdução. A vida e a administração da vida familiar, desde a conceção do Código Civil de 1966, sofreu, sociologicamente, profundas e estruturais alterações, outrora competindo ao marido a administração dos bens comuns e dos próprios de cada um dos cônjuges, e à mulher

um

papel

mais

passivo

e

de

interesses

eminentemente

familiares,

nomeadamente, o cuidado dos filhos e o exercício das tarefas domésticas. Porém, tal paradigma sofreu profundas alterações durante este hiato temporal, sendo que, hodiernamente, resulta uma tarefa mais paritária e igualitária, não havendo a destrinça clara entre as tarefas que competem a cada cônjuge1. Infelizmente, o nosso Código Civil de 1966 não conseguiu acompanhar tal evolução social da vida familiar e, principalmente, do exercício de administração dos cônjuges, encontrando-se o regime da responsabilidade patrimonial das dívidas dos cônjuges ancorado em dois diplomas distintos. Dessarte, a responsabilidade patrimonial pelas dívidas dos cônjuges configura-se como um instituto que deve ser encarado numa dupla perspetiva, nomeadamente: i) uma perspetiva substantiva, o qual regula e estabelece o regime jurídico das responsabilidades patrimoniais pelas dívidas dos cônjuges; e, ii) uma perspetiva adjetiva, a qual tem em vista a operatividade do regime substantivo consagrado. 2. A responsabilidade patrimonial por dívidas de um dos cônjuges: aspetos substantivos e adjetivos. Numa perspetiva substantiva, o instituto jurídico de responsabilidade dos cônjuges encontra-se ancorado nos arts.1691.º e seguintes do Código Civil, estando o mesmo configurado, numa primeira parte, quanto às dívidas contraídas por apenas um dos cônjuges, mesmo sem o consentimento do outro, e que devem ser consideradas comunicáveis, bem como os devidos efeitos no património conjugal ou próprio dos cônjuges. Já num plano adjetivo ou processual mostra-se necessário efetivar todo o instituto substantivo de responsabilidade de um ou ambos os cônjuges, concretizando todo o regime substantivo na medida em que serão penhorados ou os bens comuns do casal ou os bens próprios, em conformidade com a mencionada responsabilidade pelas dívidas contraídas, encontrando tal instrumento processual no art.740.º do Código de Processo Civil. 1

Cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, “Responsabilidade Patrimonial dos Cônjuges e Penhora de Bens Comuns do Casal”, in Jornadas internacionais no âmbito da comemoração dos 50 anos do Código Civil Português, Braga, Universidade do Minho, 2016, p.2, disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/42750/1/Responsabilidade%20patrimonial%20dos %20cônjuges%20e%20penhora%20de%20bens%20comuns%20do%20casal.pdf, consultado a última vez em 22/12/2019; CRISTINA ARAÚJO DIAS, Do Regime da Responsabilidade [Pessoal e Patrimonial] por Dívidas dos Cônjuges, Braga, Tese Doutoramento, Universidade do Minho, 2007, pp. 109 e seguintes.

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Para o caso que os ocupa, interessa-nos abordar, principalmente, o regime adjetivo de responsabilidade pelas dívidas de apenas um dos cônjuges, nomeadamente, através da penhora de bens comuns ou bens próprios do(s) cônjuge(s) e da sua posterior transmissão para realização das pretensões do(s) credor(es), bem como o cumprimento de um dos principais requisitos formais necessários para que o credor possa, jurisdicionalmente, iniciar esta pretensão. Primeiramente, devemos mencionar que estamos a abordar situações em que a ação executiva para cumprimento coercivo da obrigação é intentada apenas contra um dos cônjuges, constando apenas este no título executivo como devedor da relação jurídica constituída. Nestas situações, em termos substantivos, diz-nos o n.º 1 do art.1696.º do Código Civil, que “pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns” (sublinhado nosso). Ou seja, estando perante uma dívida que se mostra unicamente no interesse de um dos cônjuges e não tenha sido contraída nem por ambos, nem com autorização do outro ou no interesse comum do casal, apenas o cônjuge que contraiu a dívida deverá ser responsabilizado, sendo o seu património o único que deverá responder por estas, bem como o seu direito e ação sobre os bens comuns. No entanto, as conclusões a que reportamos também são aplicáveis a situações em que a dívida seja comum mas exista apenas título executivo contra um dos cônjuges e, no âmbito da ação executiva, não tenha sido apurada a comunicabilidade da dívida através do incidente previsto no art.741.º e 742.º do CPC (quer por não ter sido instaurado, quer por não se verificarem os seus pressupostos). Ora, para efetivação deste regime de responsabilidade patrimonial do cônjuge devedor no âmbito do processo de execução cível, dispõe o art.735.º do Código de Processo Civil que “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”, ou seja, caso o credor exija judicialmente o cumprimento coercivo da obrigação devida, poderá o Agente de Execução penhorar os bens que sejam, nos termos da lei substantiva, passíveis de penhora, valendo o referido supra quanto à responsabilidade patrimonial dos cônjuges. Mas, também, deve aqui atender-se ao disposto, também, no art.601.º do Código Civil, o qual consagra que “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios” (sublinhado nosso). Esta separação de patrimónios encontra-se unicamente nos regimes de comunhão – seja de adquiridos ou geral -, distinguindo-se na esfera patrimonial dos cônjuges um património único e exclusivamente de cada um dos cônjuges, nomeadamente os bens próprios de cada um destes, e os bens que fazem parte do acervo comum de ambos, configurando-se como

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situações jurídicas ativas em contitularidade ou de mão comum, gemeinschaft zur gesamten hand23. São estes regimes de comunhão que acabam por suscitar algumas dúvidas quanto à responsabilidade patrimonial em caso de dívidas contraídas por apenas um dos cônjuges, ou seja, a execução de dívidas próprias e os seus efeitos na esfera patrimonial de ambos os cônjuges, uma vez que, havendo separação de patrimónios, existe um deles que acaba por se mostrar interligado ao do cônjuge executado. Dessarte, pode acontecer que por insuficiência dos bens próprios do cônjuge executado a penhora venha recair sobre os bens comuns do casal, incluindo na sua totalidade4. Num plano substantivo diremos que a dívida é contraída apenas por um dos cônjuges, sem o consentimento do outro, não existindo qualquer benefício que possa ser atribuído ao outro cônjuge, pelo que, conforme consagrado no art.1692.º do Código Civil, a dívida apenas pode ser exigida, judicialmente, ao cônjuge que contraiu a dívida. Já num plano processual, diremos que no documento necessário para exigir o cumprimento coercivo da obrigação – o título executivo -, apenas consta este cônjuge devedor, não podendo, no domínio passivo da relação jurídica-processual, ser alargado ao outro cônjuge, em virtude da não comunicabilidade da dívida, conforme o direito substantivo. Porém, se atendermos ao teor do n.º 1 do art.740.º do Código de Processo Civil, o qual mantém a última redação do anterior art.825.º do Código de Processo Civil de 1961, é ponto assente que “quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado…”(sublinhado nosso), verifica-se um alargamento dos bens penhoráveis quando a execução seja movida apenas contra um dos cônjuges, já que a lei adjetiva permite, assim, a penhora de bens comuns do casal e já não da meação do cônjuge executado. Numa ótica retrospetiva, verifica-se que a redação inicial do art.825.º do Código de Processo Civil de 1961, era bastante distinta, ancorando que “na execução movida contra um só dos cônjuges não podem ser penhorados senão os seus bens próprios e o direito à meação nos bens comuns” (sublinhado nosso). Verifica-se, assim, uma alteração 2

“I – O património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela. II - Os bens comuns dos cônjuges constituem objecto não duma relação de compropriedade - mas duma propriedade colectiva ou de mão comum. III - Cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum, posição que a lei tutela. Cada um dos cônjuges tem, segundo a expressão da própria lei, um direito à meação, um verdadeiro direito de quota, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar”. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/11/2001, processo 4931/10.1TBLRA.C1, Relator Desembargador Henrique Antunes, disponível em http://dgsi.pt, consultado a última vez em 22/12/2019. 3 Cfr. RUI GONÇALVES PINTO, Manual da Execução e do Despejo, Coimbra, Coimbra Editora, 2013. p.524. 4 Cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, “Responsabilidade Patrimonial Dos Cônjuges E Penhora De Bens Comuns Do Casal”… op. cit. p.12.

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de paradigma desde a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1961 até à sua reforma de 1995 e a aprovação do novo Código em 2013, sendo que entre ambos instituiu-se, do ponto de vista puramente adjetivo, a possibilidade de responderem bens comuns e não só a sua meação5. Tinha-se, assim, uma verdadeira moratória que era atribuída ao cônjuge executado, na medida em que o bem penhorado configurava-se como um verdadeiro direito de crédito, sendo apenas efetivado aquando da eventual partilha dos bens comuns do casal. Esta alteração, apesar de aparentemente inócua, trouxe várias e profundas alterações, tanto adjetivas como subjetivas, uma vez que, a operatividade da penhora de bens comuns na sua totalidade e a penhora do direito e ação sobre a meação do cônjuge nos bens comuns é bastante distinta. Assim, num plano substantivo não há uma verdadeira responsabilização do cônjuge não devedor, uma vez que, a penhora deverá incidir apenas sobre o direito e ação sobre o património comum; porém, num plano adjetivo torna-se necessário realçar dois pontos fulcrais: em primeiro lugar, a penhora que incida sobre a totalidade do bem, o qual integra o acervo de bens comuns, vai ser realizada através dos mecanismos previstos nos arts.755.º e seguintes do Código de Processo Civil, em detrimento do regime de penhora de direitos sobre patrimónios autónomos ou direitos indivisos; em segundo lugar, sendo uma penhora sobre um bem comum e estando em causa uma dívida de apenas um dos cônjuges, restará ao cônjuge não devedor requerer a separação de bens ou juntar a certidão da pendência da mesma (cf. art.740.º do Código de Processo Civil), ou, então, aguardar pelo regime de compensação consagrado no art.1697.º do Código Civil. O que resulta controverso é se tal alteração legislativa operada em 1995 (e que se manteve na reforma do Código de Processo Civil de 2013), apesar de em termos práticos ser inquestionável, se encontrará de acordo com as regras substantivas ainda vigentes, bem como a sua operatividade registal, na medida em que, como veremos infra, a publicidade e a forma de a concretizar são tratadas como duas situações distintas. Em termos puramente adjetivos, diremos que a alteração legislativa concretizada em 1995 (e seguida pelas subsequentes reformas) vai mais além do que o Código Civil determina, uma vez que a lei adjetiva acaba por admitir a penhora de bens comuns na sua totalidade, ofendendo-se, assim, o direito que o cônjuge não devedor detém sobre esses mesmos bens. Fácil é de denotar que tal alteração legislativa, como também o afirma o próprio legislador na sua exposição de motivos, procura reforçar os interesses

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“Com a supressão da moratória forçada à execução do credor, os bens comuns podem ser imediatamente penhorados, mesmo em execução instaurada só contra um dos cônjuges, para cobrança de dívida pela qual apenas este seja responsável”. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/05/2014, processo n.º 13937/04.L1-6, Relatora Desembargadora Fátima Galante, disponível em http://dgsi.pt, consultado a última vez em 23/12/2019.

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dos próprios credores6, revogando o regime moratório que existia até então, e que determinava que pela falta ou insuficiência de bens próprios apenas seria o credor ressarcido pelos bens comuns aquando da eventual partilha dos bens comuns do casal, diferindo-se, assim, para momento ulterior o ressarcimento do direito creditício. Esta revogação do regime moratório acabou por não se mostrar espelhada na nossa lei substantiva, como já tivemos ocasião de analisar, pois o mencionado art.1696.º, n.º 1 do Código Civil, acaba por remeter para “a meação nos bens comuns”, enquanto o Código de Processo Civil acaba por expressamente referir “podem ser penhorados bens comuns do casal”. Com o devido respeito, não nos parece que tal disparidade possa ser resolvida através do alargamento do objeto da penhora por via da lei adjetiva, uma vez que não cabe a esta proceder à alteração da base substantiva à qual serve de instrumento. Ou seja, não é função da lei adjetiva alterar ou alargar a lei substantiva mas, sim, servir de base à sua efetivação, in casu, jurisdicional, pelo que tal alteração deveria ter sido concretizada através da alteração ao Código Civil, nomeadamente, ao seu art.1696.º n.º1. Neste sentido, concordamos com a posição de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA7 quando afirmam que “continua, por conseguinte, a prevalecer a afectação do património comum sobre a responsabilidade própria de cada um dos cônjuges, cujos credores terão que aguardar, na falta ou insuficiência de bens próprios, a cessação da moratória que protege os bens comuns”, ou seja, o regime substantivo mantém o seu regime normativo. Sustentando esta posição, encontramos ao longo de todo o Código Civil disposições que nos permite seguir esta linha orientadora axiológica. Em primeiro lugar, verifica-se que o património conjugal constitui um acervo patrimonial integrado por um conjunto de posições ativas e passivas, não tendo qualquer dos cônjuges direito a uma quota-parte individualizada sobre cada uma destas posições que compõem a massa patrimonial, como supra referimos, em contitularidade ou em mão comum (gemeinschaft zur gesamten hand). Neste sentido, não é permitido a qualquer dos cônjuges dispor, livremente, da sua meação na constância do casamento, sob pena de ato quedar inquinado de nulidade. Também nesta linha de orientação não é permitido a qualquer dos cônjuges, por exemplo, hipotecar a meação dos bens comuns do casal (cf. art.690.º do Código Civil)8. Em segundo lugar, se aos cônjuges não é lícito onerar nem 6

“A lei sacrificou neste caso o património comum do casal em favor das expectativas do credor que confiara na solvabilidade do devedor tendo em conta os bens que ele levara para o casamento, os que adquirira mais tarde por herança ou doação ou os proventos, porventura muito elevados, que auferia do seu trabalho ou de direitos de autor”. Cfr. FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família. Vol.I – Introdução Direito Matrimonial, 4ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p.425. 7 Cfr. ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, Código Civil Anotado. Vol. IV, 2ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p.349. 8 Trata-se de uma situacao juridica que, manifestamente, nao cabe na compropriedade, dela se distinguindo de forma clara e inequivoca. Essa distincao assenta, alem do mais, no facto de o direito dos

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dispor da sua meação, acaba por se mostrar como um direito inalienável e, portanto, subtraído do elenco de bens penhoráveis, conforme disposto na alínea a) do n.º 1 do art.736.º do Código de Processo Civil. Questão bem distinta é a situação que se apresenta após a dissolução do vínculo conjugal, isto é, no período entre a “dissolução do vínculo entre cônjuges” e a “dissolução do património conjugal”. Ora, até à data em que é decretado o divórcio (ou a separação judicial de pessoas e bens ou mera separação de bens), o património conjugal mostra-se, como temos referido supra, como um património em mão comum, onde cada um dos cônjuges tem direito a uma parte indeterminada sobre os direitos que compõem a referida massa patrimonial. Após o decretamento do divórcio, como referem PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA9, “deixa de haver um património comum como património colectivo, passando-se a uma situação idêntica a da herança indivisa, já que cada um dos ex-cônjuges pode agora dispor da sua meação e pedir a separação das meações, o que não podia fazer antes do divorcio. A situação e, ainda assim, distinta da compropriedade, já que o direito dos (ex) cônjuges continua a não incidir sobre nenhum bem em concreto, mas sobre o património comum, no seu conjunto, uma vez que, antes da partilha, não se sabe com que bens ira ser preenchida a meação de cada um dos (ex) cônjuges”. Acresce a isto que, após o decretamento do divórcio e o seu trânsito em julgado, passa a vigorar o regime previsto no art.1404.º do Código Civil, ou seja, passam a vigorar para este interregno que medeia entre o divórcio e a partilha, as regras relativas à compropriedade, com as devidas adaptações. Ou seja, aplicando as mencionadas normas, passa o ex-cônjuge a poder dispor livremente da sua quota na comunhão, conforme consagrado no n.º 1 do art.1408.º do mesmo diploma legal, como ocorre também, e a título meramente exemplificativo, com a alienação do quinhão hereditário em determinada herança aberta e indivisa. Assim, um ato que até ao divórcio tinha como principal consequência a nulidade, passa, juridicamente, a ser permitido com a dissolução do vínculo entre os cônjuges. Dessarte, sendo um ato lícito para ambos os ex-cônjuges, também à luz do art.736.º n.º1 alínea a) do Código de Processo Civil, se mostrará lícita a penhora deste direito sobre o crédito que o ex-cônjuge executado tem sobre aquela massa patrimonial, uma vez que, agora sim, se encontra na livre disponibilidade do seu titular. contitulares nao incidir sobre cada um dos elementos que constituem o patrimo nio — mas sobre todo ele, como um todo unitario. Aos titulares do património colectivo nao pertencem direitos especificos — designadamente uma quota — sobre cada um dos bens que integram o patrimo nio global, nao lhes sendo licito dispor desses bens ou onera-los, total ou parcialmente”. Cfr. DIANA RAPOSO, “Património após divórcio – Apreensão e liquidação em processo de insolvência (com meação à questão da graduação dos créditos hipotecários)”, in Revista Julgar. N.º 31 – 2017, Almedina, 2017, p.78. 9 Cfr. FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família. Vol.I.. op. cit., 2011, pp.70-71.

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Contudo, não podemos deixar de admitir que o regime adjetivo vigente, bem como a prática judiciária, acabam por se mostrar bastante mais práticos e céleres, principalmente para os interesses dos credores, consagrando um regime muito mais expedito no cumprimento coercivo do seu direito de crédito. Foi nesta linha axiológica que se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto no seu aresto de 11/03/201410 - e que se aplica, mutatis mutandis, ao processo executivo -, afirmando que se trata “de um património [comum] que pertence em comum a varias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. Como tal, e nao possuindo cada um dos cônjuges uma quota-parte sobre cada um dos bens que fazem parte do patrimonio comum, sendo titulares de um unico direito, que nao suporta divisao, nem mesmo ideal, não sera admissivel a penhora ou a apreensao do ‘direito a meacao’ em cada um desses bens, por tal direito nao existir, enquanto tal, no patrimonio de cada um dos conjuges. Assim sendo, havendo bens comuns do casal, deverao ser os mesmos apreendidos na sua totalidade para a massa insolvente”. Em suma, podemos dizer que tal entendimento, como referimos supra, apesar de apoiado no direito processual vigente, não nos parece o mais adequado face ao plasmado no direito substantivo, já que não nos parece que tenha sido essa a ratio legis do legislador, pois o regime da compensação devido aos cônjuges e consagrado no art.1697.º do Código Civil, configura-se como um instituto que foi adoptado para os regimes excepcionais em que a moratória consagrada não tinha aplicabilidade. Ora, a moratória na penhora do direito à meação ainda se encontra vigente no nosso Código Civil, pelo que o instituto jurídico da compensação devida a um dos cônjuges não deveria, aqui, operar sob pena de contradição entre os institutos em causa. Também, como veremos, no âmbito do direito registal a destrinça entre a penhora do direito à meação e a penhora do bem comum na sua totalidade não se mostra, também, isenta de dúvidas, tendo sido alvo de inúmeras opiniões e pareceres por parte das entidades com competência para tal. 3. Tratamento processual e registal da penhora de bem imóvel comum por dívidas de um dos cônjuges e da penhora da meação no património comum. Importa, neste momento, à luz do antedito, proceder, à análise do tratamento registal a conferir à penhora de bens comuns destinada a garantir dívidas próprias de um dos cônjuges, mais concretamente, quanto aos efeitos do registo da mesma, aos modos pelos quais a técnica registal determina que seja levada às tábuas e, ainda, segundo dos ditames do princípio da legalidade, quais as diversas qualificações - e subsequentes

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Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/03/2014, processo 3471/13.1TBVNG-C.P1, Relator Desembargadora Maria João Areias, disponível em http://dgsi.pt, consultado a última vez em 22/12/2019.

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vicissitudes - que a mesma pode merecer por parte de quem tem competência para a feitura do registo. Tal análise será acompanhada, por da mesma não poder prescindir, da averiguação dos vários modos pelos quais a lei processual determina que se realizam as penhoras a que aludimos. No entanto, considerando a importância de tais bens (para exequentes, para o executado, para o outro cônjuge, para terceiros e, em geral, para o comércio jurídico) e o facto de comporem frequentemente a quase totalidade dos ativos patrimoniais integrantes do património comum conjugal (no que a bens sujeitos a registo concerne), circunscrevemos a nossa análise aos preceitos atinentes ao tratamento registal das penhoras sobre bens imóveis (constantes do Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224/84, de 6 de julho, e adiante designado por “CRPredial”) e de veículos (constantes do Código do Registo Automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro – adiante designado “CRAuto” – e do Regulamento do Registo Automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro – adiante designado por “RRAuto”) – principiaremos pela análise da penhora da totalidade do bem imóvel comum por dívidas de um dos cônjuges e pela sequente destrinça do normativo atinente à penhora da meação em tal património comum (do qual façam parte bens daquela natureza), para depois nos determos em semelhante exercício relativamente aos veículos. Público na sua essência, sendo o seu conteúdo cognoscível por qualquer pessoa independentemente da alegação de qualquer motivo que fundamente a sua consulta, o referido registo foi instituído de modo a cumprir uma função fundamental de publicitação de factos jurídicos que determinem a constituição, reconhecimento, aquisição, modificação de direitos, ónus ou encargos sobre imóveis, bem como de ações, decisões, procedimentos e providências que os atinjam, factos, estes, taxativamente enumerados nos arts.2.º e 3.º do CRPredial (princípio da tipicidade ou numerus clausus) e que no seu conjunto compõem a situação jurídica dos bens sobre os quais versam. A positivação de normas atinentes aos modos e efeitos da publicitação de tais factos tem na sua base, no plano axiológico, valores como os da confiança e da previsibilidade, tudo em vista os interesses públicos da proteção de terceiros e da segurança do comércio jurídico dos bens, desiderato, este, expressamente declarado no primeiro preceito da mencionada codificação. Uma completa e taxativa enumeração de factos sujeitos a registo não poderia prescindir, pelos efeitos que a mesma projeta no comércio jurídico, da tipificação da penhora como um dos factos sujeitos a registo predial. Com efeito, é de elementar importância dar a conhecer a terceiros a existência de uma penhora sobre um determinado prédio, bem como a data em que foi registada, uma vez que dela decorrem vários efeitos: primo, quaisquer atos de disposição, oneração ou arrendamento de bens

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penhorados são, nos termos do art.819.º do Código Civil (adiante, CC), inoponíveis à execução, isto é, são “válidos e eficazes em todas as direções menos em relação à execução, para a qual são havidos como se não existissem”11, continuando afetos aos fins do processo e como tal, podendo ser vendidos para que com o respetivo produto sejam pagos os credores; secundo, os imóveis transmitidos no âmbito de processo executivo “são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo” (art.824.º do CC); tertio, em caso de concurso de créditos no âmbito de uma execução, a data do registo da penhora irá influir na ordem de graduação dos créditos, fazendo com que o mesmo seja graduado sobre os demais créditos, com exceção dos que estejam garantidos por privilégio imobiliário, direito de retenção ou que beneficiem de garantia com registo anterior ao da penhora. A penhora de bens imóveis encontra-se prevista no art.2.º, n.º 1, al. n) do CRPredial como um dos factos sujeitos a registo predial, o qual é, de modo a fazer coincidir a realidade física e substantiva com a realidade registal, em regra, obrigatório, devendo ser promovido pelo agente de execução no prazo de dois meses, sob pena de pagamento de quantia igual à prevista a título de emolumento (sendo o Agente de Execução o responsável pelo pagamento de tal quantia) – neste sentido dispõem os arts.8.º-A, n.º 1 do CRPredial, 8.º-B, n.º 3, al. c), 8.º-C, n.º 1, e 8.º-D, n.ºs 1 e 3, todos do CRPredial. A referida penhora realiza-se por comunicação eletrónica do agente de execução ao serviço de registo cometente, a qual vale como pedido de registo, ou com a apresentação naquele serviço de declaração por ele subscrita – neste sentido dispõe o artigo 755.º, n.º 1 do CPC, bem como o art.48.º do CRPredial -, tendo o seu registo efeito constitutivo12. O registo da penhora de bem imóvel será lavrado por inscrição, que terá como requisito especial a identificação do processo, a data do facto, e a quantia exequenda (art.92.º, n.º 1, al. l) do CRPredial). Uma vez registada, a data do seu registo – que é a da apresentação, nos termos do art.77.º, n.º 1 do CRPredial – confere-lhe existência, prioridade (na aludida graduação de créditos, com as referidas exceções) e marca o início da sua oponibilidade em relação a terceiros – assim dispõem os arts.5.º e 6.º do CRPredial. Após o registo da penhora, o Agente de Execução deve citar os credores que sejam titulares de direito real de garantia, registado ou conhecido, sobre os bens penhorados, incluindo penhor cuja constituição conste do registo informático de

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ANSELMO CASTRO, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1977, p. 156, apud Parecer do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado, proferido no Processo n.º R.P. 46/2010 SJCCT, disponível em www.irn.mj.pt, consultado a última vez em 22/12/2019. 12 J.A. MOUTEIRA GUERREIRO, Temas de Registos e de Notariado, Coimbra, Almedina, 2010, p.31; RUI GONÇALVES PINTO, Manual da Execução e Despejo…, op. cit, p.601.

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execuções, para reclamarem o pagamento dos seus créditos (art.786.º, n.º 1, al. b) do CPC). Como anteriormente referido, e segundo o art.740.º do CPC, a lei processual permite que, em caso de execução movida contra um só dos cônjuges, sejam penhorados bens comuns do casal, penhora, esta, que observa as disposições que antecedem. Assim, subsistindo o matrimónio, permite-se o registo de penhora da totalidade de um bem comum para garantir o pagamento de dívida da responsabilidade de um dos cônjuges, em ação executiva movida apenas contra o cônjuge devedor, sendo ulteriormente feita a citação do cônjuge não devedor para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendencia de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns. Face à opção legislativa concretizada no mencionado preceito, admite-se o registo definitivo da referida penhora mesmo que o imóvel se encontre inscrito a favor de ambos os cônjuges e ainda que a intervenção do cônjuge não devedor no respetivo processo executivo ocorra apenas após a feitura do registo da mesma, o que se apresenta em potencial conflito com o princípio do trato sucessivo, um dos princípios estruturantes do registo predial. Com efeito, encontrando-se o imóvel inscrito a favor de ambos os cônjuges, o referido princípio demanda, de modo a impedir a existência de cadeias tabulares divergentes sobre determinado prédio, que haja uma continuidade de inscrições, exigindo-se a intervenção dos respetivos titulares (leia-se, de todos os sujeitos ativos da inscrição de aquisição que subsista sobre o prédio) para que possa ser lavrada nova inscrição com caráter definitivo (art.34.º, n.º 4 do CRPredial) -, a qual não se encontra assegurada caso, aquando do pedido de registo da penhora, se verifique que a ação foi movida apenas contra um dos seus titulares e na mesma não tenham intervindo os demais. No entanto, a doutrina registal entendeu que não deverá o registo ser qualificado em termos desfavoráveis, uma vez que a intervenção do restante titular da inscrição fica assegurada, para efeitos de cumprimento do princípio do trato sucessivo, através da sua ulterior citação (prevista no referido art.740.º do CPC), sendo o controlo da sua realização e das consequências da falta de tal formalidade processual exclusivamente judicial13. Tem, ainda, sido defendida a aplicabilidade do referido art.740.º do CPC a situações de penhora que tenha por executado pessoa que já se encontre divorciada, separada judicialmente de pessoas e bens ou separada judicialmente de bens, quanto a 13

Pareceres do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado (adiante, IRN), proferidos nos Processos n.º 25/93 R.P.4, publicado no BRN 7/2001, e 1/66-RP.94, publicado no BRN 5/95, disponíveis em www.irn.mj.pt, consultado a última vez em 22/12/2019, proferidos com base no art.825.º do pretérito CPC, a que corresponde o atual art.740.º do CPC, mantendo-se os fundamentos que determinam a aplicação das respetivas conclusões.

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bens que ainda se encontrem inscritos a favor dos cônjuges, i.e., a favor de pessoa diversa do executado. Neste sentido, alguma jurisprudência tem perfilhado o entendimento de que, no âmbito do referido preceito, “estão contemplados, para além dos casos de sociedade conjugal em vigor, também aqueles em que o executado tenha sido membro de uma tal sociedade e já o não seja por a mesma se ter dissolvido, desde que permaneça o património comum do casal, por ausência de partilha.”14 Em sentido contrário, os arautos da inaplicabilidade do mencionado preceito a tais situações sustentam tal posição no facto de o mesmo se referir expressamente a “cônjuges” – qualidade que o divórcio extingue – e, principalmente, no facto de nos arts.1688.º, 1689.º, 1770.º e 1795.º-A, todos do CC, se estipular que após o divórcio, a separação judicial de pessoas e bens ou a separação judicial de bens, os cônjuges procedem à partilha do património comum conjugal. Assim, defendem que será necessário aquilatar da existência da partilha, fazendo depender o registo definitivo da referida garantia do registo da partilha na qual os bens a penhorar tenham sido adjudicados ao executado. Não tendo a partilha ingressado no registo predial, o bem, ainda inscrito a favor do património conjugal, considera-se, nos termos e para os efeitos do supramencionado 34.º, n.º 4 do CRPredial, registado a favor de pessoa diversa do executado, o que determina a provisoriedade por natureza da inscrição de penhora, nos termos do art.92.º, n.º 2, al. a) do CRPredial. Quando tal se verifique, a intervenção do remanescente sujeito ativo da inscrição de aquisição será assegurada através do mecanismo de suprimento previsto no art.119.º do CRPredial, isto é, efetuando-se no respetivo processo a citação do mesmo para este declarar, no prazo de dez dias, se o prédio ou direito lhe pertence, ficando a qualificação da penhora dependente do sentido da mencionada declaração: se o citado declarar que os bens lhe não pertencem ou não fizer nenhuma declaração, o tribunal ou o agente de execução comunica o facto ao serviço de registo para conversão oficiosa do registo (da penhora); se o citado declarar que os bens lhe pertencem, o juiz remete os interessados (o exequente e o citado que se arroga titular do bem) para os meios processuais comuns, comunicando-se o facto ao serviço de registo, bem como a data da notificação da declaração (ao exequente) para ser anotada no registo15. Numa posição conciliatória, o Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado defendeu a posição que o registo de penhora que incida sobre bens ou direitos inscritos a favor de pessoa diversa do executado deve ser efetuado como provisório por

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Acórdão da Relação do Porto, de 13-06-2018, Processo 8031/14.7T8PRT-E.P1, Relator Desembargador Manuel Domingos Fernandes, disponível em www.dgsi.pt, consultado a última vez em 22/12/2019. 15 A referida inscrição de penhora provisória por natureza, prevista no art.92.º, n.º 2, al. a) mantém-se em vigor pelo prazo de um ano salvo o disposto no n.º 5 do art.º 119.º e caduca se a ação declarativa não for proposta e registada dentro de 30 dias a contar da declaração prevista no nº 4 do art.º 119.º neste sentido dispõe o art.92.º, n.º 5, todos do CRPredial.

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natureza, nos termos do art.92.º, n.º 2, al. a) do CRPredial, entendendo que "está nessas condições a penhora que tenha por executado uma pessoa separada judicialmente de bens ou separada de pessoas e bens e que incida sobre bens ou direitos que ainda se encontrem registados como fazendo parte da comunhão conjugal, salvo quando expressamente se declare, no título para registo, que os bens ou direitos ainda não foram partilhados e que os mesmos são penhorados como bens comuns do casal."16 Assim, não tendo havido partilha, a definitividade da inscrição da penhora sobre a totalidade do bem comum à declaração, fica dependente da declaração, prestada pelo Agente de Execução aquando do pedido de registo, de que “não houve lugar à partilha, e de que, portanto, o bem ou direito é penhorado como bem comum do casal”. Importa, neste momento, indagar sobre o registo da penhora que incida não sobre a totalidade dos bens comuns, mas apenas sobre a meação no património comum. Em primeiro lugar, relembramos que o direito à meação no património comum conjugal não incide sobre bens em concreto, não conferindo ao seu titular metade indivisa de cada um desses bens, tratando-se de um direito sobre bens indeterminados, sobre uma metade ideal de tal património comum. Acresce que o referido direito apenas pode ser objeto de penhora após a dissolução do casamento (p.ex., por divórcio ou morte) ou após a separação judicial de pessoas e bens ou separação judicial de bens, pois só a partir deste momento o ex-cônjuge ou o cônjuge separado pode dispor livremente da sua meação no património comum – neste sentido dispõem os arts.1688.º, 1689.º, 1770.º e 1795.º-A, todos do CC. Até lá, não é lícito onerá-la nem dela dispor, de onde decorre a aludida impenhorabilidade (art.736.º, n.º 1, al. a) do CPC). Tratando-se, como anteriormente mencionado, da penhora de um direito e não de um bem imóvel, a mesma é realizada nos termos do art.781.º do CPC, consistindo tal diligência “unicamente na notificação do facto (…) aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efetuada”. Uma vez que a meação, até ser realizada a partilha, não se concretiza em bens determinados, defendeu-se que a penhora da meação no património comum (de que fizessem parte imóveis) não estaria sujeita a registo predial, uma vez que o mesmo apenas se ocupa de bens determinados (realidades como a herança indivisa e o património comum conjugal não constituem objeto do registo, não sendo objeto de descrição)17. Somos, no entanto, pela posição contrária, que sustenta que tal não equivale a negar a sua registabilidade, i.e., a sua sujeição a registo, 16

Parecer do Conselho Técnico do IRN, proferido no Processo n.º R.P. 200/2008 SJC-CT, disponível em www.irn.mj.pt, consultado a última vez em 22/12/2019. 17 Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-05-2012, Processo 1718/03.1TBILH.C1.S1, Relator Conselheiro Salazar Casanova, e Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.04.2019, Processo 171/17.7T8MFR.L1-6, Relatora Desembargadora Cristina Neves, disponíveis em www.dgsi.pt, consultados a última vez em 22/12/2019, embora por referência à penhora do quinhão hereditário (a qual segue o mesmo regime da penhora da meação nos bens comuns).

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uma vez que os bens imóveis que compõem o património comum são suscetíveis de individualização para efeitos do respetivo predial18. Sendo a penhora da meação no património comum realizada através de notificação19, nos termos supramencionados, o seu registo não tem efeito constitutivo, nem é condição de eficácia do facto perante terceiros (art.5.º, n.º 2, al. c) do CRPredial. “A publicidade que daí dimana é meramente enunciativa: o registo informa, divulga, dá notícia do facto - e é tudo.”2021 Acresce que, ao contrário do que sucede com a penhora de imóveis, penhorado o direito à meação no património comum, e “ainda que dele façam parte bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, não há que proceder à citação dos credores que sejam titulares de direito real de garantia, registado ou conhecido sobre estes bens”22. O registo da penhora da meação no património comum apresenta como especificidade o facto de ser realizado por subinscrição23, isto é, por averbamento à inscrição de aquisição em vigor a favor do casal (ora dissolvido), nos termos do art.101.º, n.º 1, al. e) do CRPredial, cumprindo os requisitos e sendo suscetível de ser qualificada 18

Conclusão, esta, implícita no Parecer do Conselho Técnico do IRN, proferido no Processo R.P. 148/2009 SJC-CT, disponível em www.irn.mj.pt, consultados a última vez em 22/12/2019. 19 A qualificação definitiva do pedido de registo da penhora não prescinde, nestas situações, da prova de que a referida notificação já se encontra realizada, aceitando-se que "a efectiva junção dos elementos documentais pertinentes (as cópias certificadas do expediente de notificação) se substitua por declaração do agente de execução de que a penhora se realizou numa certa data que, repete-se, será a da 1.ª notificação efectuada" – neste sentido, Parecer do Conselho Técnico do IRN, proferido no Processo R.P. 148/2009 SJC-CT, disponível em www.irn.mj.pt, consultado a última vez em 22/12/2019. 20 Parecer do Conselho Técnico do IRN, proferido no Processo R.P. 148/2009 SJC-CT, disponível em www.irn.mj.pt, consultado a última vez em 22/12/2019. 21 Produzindo efeitos em relação a terceiros independentemente do respetivo registo, encontram-se presentes os fundamentos que determinam a não obrigatoriedade do seu registo (a qual se encontra sediada, por identidade de razão, no art.8.º-A, n.º 1, al. a), subal. iii) do CRPredial). 22 Acórdão da Relação de Coimbra, de 28-06-2017, Processo 947/15.0T8CBR-B.C1, Relatora Desembargadora Maria João Areias, disponível em www.dgsi.pt, consultado a última vez em 22/12/2019. Segundo o referido aresto, “sendo penhorado o ‘direito do executado à meação nos bens comuns’, é este direito que é executado e, eventualmente vendido, no processo executivo, deixando intocados os bens que em concreto compõem esse património comum e as respetivas garantias.” 23 Seguimos, ainda, o Parecer do Conselho Técnico do IRN, proferido no Processo R.P. 148/2009 SJC-CT; no mesmo sentido, o Parecer do Conselho Técnico do IRN, proferido no Processo 39/96 RP-4, in BRN de fevereiro de 1997, a propósito de um pedido de arresto sobre meação, entendeu que o mesmo não incide “directamente sobre os bens que integram o dissolvido casal, mas antes sobre o direito de um dos consortes, o ex-cônjuge requerido. E, quando o direito que, do ponto de vista tabular, se pretende definir incide não directamente sobre os bens mas sobre direitos (na hipótese, o direito à meação), então o registo do facto efectiva-se por meio de averbamento, e não pela via da inscrição”. No mesmo sentido, o referido Conselho Técnico já se pronunciara, a propósito da alienação feita por um dos excônjuges ao outro da sua meação nesse casal, tendo firmado a conclusão de que “a) a inscrição de aquisição em comunhão conjugal passou, com a dissolução da comunhão, a comportar o registo de factos relativos ao direito de qualquer dos seus titulares, e b) embora o caso não figure no elenco do nº 1 do artigo 101º do C.R.P., está, por identidade de razão, abrangido no espírito desta norma, que, na alínea e), considera a hipótese da herança indivisa englobando, igualmente, como à sabido, os factos relativos à meação.” Cfr. Parecer do Conselho Técnico do IRN, proferido no Processo nº 55/96 R.P.4, apud Parecer do referido órgão, proferido no Processo 39/96 RP-4, in BRN de fevereiro de 1997, todos disponíveis em www.irn.mj.pt, e consultados a última vez em 22/12/2019.

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do mesmo modo que o seria se o facto fosse registado por inscrição – neste sentido, dispõem os arts.101.º, n.º 3, 102.º e 103.º, n.º 1, todos do CRPredial. Faltando suporte tabular para a referida subinscrição, isto é, faltando a inscrição de aquisição em vigor a favor do casal ao qual o averbamento à inscrição se deve ancorar, a referida penhora da meação deverá ingressar no registo predial através de inscrição de penhora de meação no património comum, a qualificar como provisória por dúvidas24. Mister é que se comprove a dissolução da comunhão conjugal ou a separação judicial de pessoas e bens ou apenas de bens, sob pena de a referida meação não poder ser, nos termos já aludidos, objeto de penhora (art.736.º, n.º 1, al. a) do CPC). Tais factos, sujeitos a registo civil obrigatório (quando referentes a portugueses ou, quando respeitantes a estrangeiro, ocorram em território nacional), apenas podem ser invocados depois de registados (arts.1.º, n.ºs 1, al. q) e 2, e 2.º do Código do Registo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 131/95, de 06 de Junho, adiante “CRCiv”), pelo que, não 24

Tratando-se de uma penhora, não de um bem, mas de um direito, será imprescindível que tal registo encontre suporte tabular numa inscrição de onde resulte inequívoca a titularidade do bem como pertencente ao património comum conjugal, ao qual esse direito se reporta, a qual funciona como sua base e seu pressuposto. Será, deste modo, necessário assegurar o trato sucessivo (da propriedade) até ao registo a favor do património conjugal, i.e., até que a inscrição a favor dos cônjuges se mostre lavrada, uma vez que é a partir desta que se vai fundar o (sub)trato sucessivo respeitante à meação (e onde serão, de acordo com a técnica registal, subinscritos ou averbados apenas factos relativos a tal direito, numa lógica de continuidade de subinscrições). A quebra no trato sucessivo que a ausência de tal inscrição comporta tem como principal efeito constituir um óbice ao nascimento do (sub)trato sucessivo imprescindível ao registo da penhora sobre a meação, a falta de um lógico pressuposto prévio que, não constando entre os motivos de recusa do registo (taxativamente enumerados no art.69.º do CRPredial), deve determinar a provisoriedade por dúvidas da inscrição que se faça da penhora da meação e não a provisoriedade por natureza a que alude o art.92.º, n.º 2, al. a) do CRPredial. O escopo do art.92.º, n.º 2, al. a) do CRPredial é o de impedir a feitura, em termos definitivos, da penhora da totalidade do prédio, de quota-parte do mesmo ou de direitos quando aquele prédio, a quota-parte do mesmo ou direito, respetivamente, se encontrem registados a favor de pessoas diversas do executado, uma vez que em tais situações falta a intervenção do respetivo titular exigida pelo art.34.º, n.º 4 do CRPredial. A continuidade dos registos deve, deste modo, verificar-se dentro de cada trato ou subtrato sucessivo. Assim, a título de exemplo, se A, enquanto titular inscrito, alienar um prédio a B e não for promovido o registo a favor do adquirente, sendo movida ação executiva contra B e, no âmbito da mesma, o imóvel penhorado, a inscrição de penhora deverá ser qualificada como provisória por natureza; no mesmo sentido, se A, titular de direito a meação em determinado património comum (inscrito a favor de A e B, seu ex-cônjuge), alienar a sua meação a C e não for promovido o registo desta aquisição, sendo movida ação executiva contra C e, no âmbito da mesma, o referido direito penhorado, a subinscrição de penhora deverá também ser qualificada como provisória por natureza; em ambos os casos, tentar-se-á suprir a intervenção do executado através dos mecanismos previstos no art.119.º do CRPredial. Na ausência da mencionada “inscrição-base”, à qual se irá ligar o averbamento de penhora da meação, permitir o funcionamento dos mecanismos previstos no art.119.º do CRPredial - no seguimento de uma qualificação da referida penhora como provisória por natureza - poderia ter, quando o titular inscrito declarasse não lhe pertencer o bem ou não fizesse nenhuma declaração, o efeito pernicioso de criar duas cadeias tabulares paralelas e divergentes, sobre um mesmo prédio, uma referente à propriedade do bem, outra referente a um direito a meação (resultante da conversão da penhora em definitiva), sem que tivessem qualquer ligação entre ambas. Por último, a qualificação como provisório por dúvidas do registo da penhora de meação (quando falte a inscrição a favor do património comum), e consequente aplicação de um prazo de vigência de seis meses – não renovável – não deve suscitar impedimentos ao entendimento sufragado: lembramos que tal registo não tem efeito constitutivo, pelo que uma eventual caducidade do mesmo não afeta a existência da penhora.

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resultando comprovados no âmbito do processo de registo (através, p.ex. da junção de certidão de assento de casamento a que se encontrem averbados ou da identificação de tal assento para efeitos de consulta da base de dados do registo civil – os únicos meios de prova admitidos em sede de registo civil – art.211.º do CRCiv), e da consulta à base de dados do registo civil, em sede de suprimento oficioso de deficiências (nos termos do art.73.º, n.º 1 do CRPredial), resulte não se encontrarem registados – resulta manifesta a nulidade do facto, o que deve motivar a recusa do referido registo (art.69.º, n.º 1, al. d) do CRPredial)25. No que ao registo automóvel concerne, a penhora de bens encontra-se prevista no art.5.º, n.º 1, al. h) do CRAuto como um dos factos sujeitos a registo predial, embora não seja obrigatório (art.5.º, n.º 1, al. h) e 2 do CRAuto). O registo deve ser promovido pelo Agente de Execução nos termos enunciados do art.755.º, n.º 1 (aplicável ex vi do art.768.º, n.º 1 do CPC), bem como o art.48.º do CRPredial (aplicável ex vi do art.29.º do CRAuto), tendo efeito constitutivo. Ao registo da penhora do veículo aplicam-se, quanto a requisitos, o antedito quanto ao registo da penhora sobre o prédio, bem como as conclusões a que nos referimos aquando do estudo da penhora da totalidade do imóvel que constitua bem comum para garantia de pagamento da dívida de um só dos cônjuges, nomeadamente, a análise que fizemos do art.740.º do CPC e do art.92.º, n.º 2, al. a) do CRPredial. No entanto, tratando-se de registo de penhora da meação sobre o património conjugal, quando atinja veículos, deverá o mesmo sofrer qualificação desfavorável quando se verifique a ausência de registo a favor dos cônjuges: a falta de tal “inscriçãobase” deverá determinar a recusa do registo da penhora, uma vez que, no âmbito do registo automóvel, a qualificação como provisório por dúvidas de tal registo não é admitida2627. Semelhante qualificação deverá ser dada à penhora de meação, quando não 25

Admitimos, no entanto, que a solução pode passar pela provisoriedade por dúvidas de tal registo, nomeadamente, quando, dos elementos carreados ao processo de registo não resulte provado o divórcio, a separação judicial de pessoas e bens ou a separação de bens e tal prova não seja possível através da referida consulta à base de dados (nos termos do art.73.º, n.º 1 do CRPredial) por tais factos não se encontrarem sujeitos a registo em território nacional, o que sucederá relativamente a factos relativos a estrangeiro ocorridos no estrangeiro. 26 Em sede de registo automóvel a regra é a de que os direitos ou factos “só podem ingressar no registo quando este deva ser efetuado com caráter definitivo”, sendo que apenas “podem ser objeto de registo provisório por natureza o arrolamento, a penhora, o arresto, a declaração de insolvência e as ações” (nos termos do art.92.º do CRPRedial) – neste sentido dispõe o art.7.º do CRAuto. 27 Atualmente, tal registo da penhora de meação não é realizado através de subinscrição, mas de um registo autónomo. Embora o Decreto-Lei n.º 111/2019, de 16 de agosto, tenha vindo estabelecer para o registo automóvel “uma estrutura de descrição do objeto do registo, assente na matrícula e nas características do veículo consideradas essenciais, e uma estrutura de inscrições e averbamentos assente na identificação dos titulares de direitos e ónus, bem como noutros elementos a prever em sede regulamentar.” (a qual, pressupondo que a sua regulamentação não se afastaria da técnica do registo predial, permitiria a referida subinscrição), tal ato legislativo ainda não se encontra em vigor (a qual terá lugar na data em que estejam reunidas as condições de operacionalidade do novo sistema informático para o registo automóvel, a publicitar em despacho do membro do Governo responsável pela

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se comprove a dissolução da comunhão conjugal ou a separação judicial de pessoas e bens ou apenas de bens. 4. Conclusão. Ao longo da análise que antecede procurámos colocar em evidência as incongruências existentes entre a lei substantiva e a lei processual no que à sujeição do património comum conjugal ao pagamento de dívidas próprias de um dos cônjuges concerne. Se o legislador substantivo, ao estabelecer que, na falta de bens próprios do cônjuge devedor, responde a sua meação nos bens comuns – que como tal deveria ser penhorada - construiu tal regime com base na moratória que protegia os bens comuns e indiretamente o cônjuge não executado (a meação penhorada configurava um verdadeiro direito de crédito, efetivado aquando da eventual partilha dos bens comuns do casal), avultam atualmente na lei processual mecanismos que permitem, em prol de uma maior facilidade no ressarcimento dos credores, atingir a totalidade do bem integrante do património comum, assim extravasando ostensivamente o regime substantivo. Mesmo em notória contradição com a lei substantiva, é manifesta a abertura do legislador processual reformador à penhora da totalidade dos bens integrantes do património, quer pela criação do mecanismo previsto no art.740.º do CPC, quer pela de tornar absolutamente impenhoráveis, além das coisas, os direitos inalienáveis (onde se inclui a meação no património comum conjugal durante a vigência do matrimónio ou até à modificação de tal vínculo pelos regimes da separação judicial de pessoas e bens ou apenas da separação de bens). Cientes da incompletude de um estudo que abstraísse do atual regime, propusemo-nos, com base na lei processual e registal atualmente vigentes, a analisá-lo e às disposições registais concernentes à penhora de bens imóveis ou de veículos integrantes de patrimónios comuns conjugais não partilhados, bem como à penhora do direito à meação em tais patrimónios. Quanto a esta, pretendemos demonstrar que, embora tenha por objeto um direito num património composto por várias situações ativas e passivas, se afigura a opção mais conforme ao ordenamento substantivo, sendo que a sua venda executiva, permitindo o pagamento ao exequente, deixa intocados os direitos de credores titulares de direito real de garantia sobre os bens, sendo menos prejudicial para o restante titular de tal

área da justiça, sob proposta do conselho diretivo do IRN, I. P.,– neste sentido, art.13.º do referido Decreto-Lei - sendo que, na presente data, tal despacho ainda não foi proferido). Ainda que o registo dos factos atualmente não siga, em sede de registo automóvel, o binómio inscrição-averbamento à inscrição, entendemos que a inscrição a favor dos cônjuges será essencial para a criação de um subtrato que consideramos crucial para registar a penhora da meação, que tem naquela o seu pressuposto e a sua base.

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património (que terá, inclusivamente, de direito de preferência na venda da restante meação – art.1408.º, n.º 1, cjg.art.1404.º do CC).

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Perda de Chance: Considerações Gerais

Perda de Chance: Considerações Gerais

Andreia Fabiana Alves Moreira Estagiária

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Introdução A presente exposição incide sobre o tema da Perda de Chance. Figura jurídica que, apesar de não possuir legislação própria, ao longo dos anos tem merecido crescente atenção, quer ao nível da doutrina, quer ao nível da jurisprudência dos Tribunais portugueses. Também conhecida como perda de oportunidade, a perda de chance, consubstancia a perda da possibilidade de obter um resultado favorável ou de evitar um resultado desfavorável. A extensão da sua definição torna a sua aplicação transversal em diversos domínios jurídicos. Assim, poderemos verificar que a perda de chance aplica-se, por exemplo, nos casos da responsabilidade civil do mandato forense (no caso em concreto abordada ao nível dos atos praticados por advogado, podendo perfeitamente transpor-se para o plano de atuação dos solicitadores, enquanto profissionais devidamente habilitados ao serviço do direito), da responsabilidade civil do Estado e de outras entidades públicas, da responsabilidade civil por ato médico, entre outras. No entanto, apesar de a sua abrangência possuir um aspeto restritivo, uma vez que, a sua aplicação se encontra limitada pela verificação de certos e determinados pressupostos, maxime, os pressupostos da responsabilidade civil. Nestes termos, uma das principais questões que se coloca é saber até que ponto deve ser valorado o facto ilícito e culposo que lhe deu origem, para efeitos de ressarcimento do lesado. A proposta de autonomização do dano da perda de chance assume aqui especial relevo. Proposta essa que será analisada no decorrer desta explanação. Ao longo desta exposição, iremos abordar o conceito e as características da perda de chance, o seu enquadramento jurídico, a sua influência e consequente aplicação no instituto da responsabilidade civil, a sua autonomização do dano da perda de chance e determinação do montante indemnizatório a atribuir ao lesado em face do dano causado. Por fim, olharemos para a perda de chance como uma figura jurídica adotada pela jurisprudência nas diferentes áreas de atuação.

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1. A Perda de Chance 1.1. Noção e Enquadramento Jurídico A perda de chance1 (perte d’une chance, perdida de oportunidade, lossof a chance, perdita di chance) consubstancia a perda da possibilidade de obter um resultado favorável ou de evitar um resultado desfavorável2. Aos olhos do direito, a noção de perda de chance surgiu no âmbito da responsabilidade civil, “por causa da dificuldade verificada na afirmação do nexo de causalidade entre um determinado ato que se equaciona ser fundante da responsabilidade do seu autor e a frustração da concretização, em detrimento da pessoa que se apresenta como lesado, de um determinado resultado futuro. Por o resultado ser de consecução incerta, não se consegue afirmar que, sem aquele ato, este resultado se teria efetivamente produzido. Não é possível, pois, dar por assente que o ato é condição necessária da produção do dano (da perda do resultado final) e, aceitando a vigência, entre nós, da exigência da condicionalidade3, o direito à reparação do dano é afastado”4. 1.2.Características da Chance A chance caracteriza-se por um determinado conjunto de particularidades:

1

Na linguagem comum, a perda de chance também é conhecida como perda de oportunidade. A sua inspiração jurídica é encontrada na fórmula francesa “perte de chance”e, embora pressuponha a existência de uma possibilidade de alcançar algo, tem associada desde logo a imprevisibilidade de determinado acontecimento futuro e incerto se verificar. LEITÃO, António Pedro Santos - Da Perda de Chance: Problemática do Enquadramento Dogmático, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,. Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas Menção em Direito Civil, Coimbra, 2016, pp. 36-37. 2 SAMÕES, Fernando Augusto, Indemnização por Perda de Chance, Universidade Portucalense, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Processuais, Porto, 2015,p.17. 3 Qualquer que seja a teoria que se adote para afirmar o liame causal (teoria da causalidade adequada, teoria do fim de proteção da norma, teoria da adequação social, entre outras), os Autores partem sempre da afirmação do nexo de condicionalidade. Ainda que não seja condição bastante é condição necessária da afirmação jurídica da causalidade. Assim, veja-se CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil, Volume. VII., Direito das Obrigações. Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa. Responsabilidade Civil, reimpressão da edição de 2010, Almedina, Coimbra,, 2017, pp. 531 e ss, em especial pp. 549 e 550; VARELA ANTUNES, Das Obrigações em Geral, Volume I, Reimpressão da10.ªEd., Almedina, Coimbra, 2015, pp. 881 e ss; FARIA, JORGE RIBEIRO, Direito das Obrigações., Vol. I, pp. 494 e ss; LEITÃO MENEZES, Direito das Obrigações, I. Introdução da Constituição das Obrigações, 13.ªEd., Almedina, 2016, pp. 313 e ss. A contrario sensu, a matéria da causalidade pode constituir uma alternativa à noção que se encontra em análise, vide BARBOSA, Mafalda Miranda, Responsabilidade Civil extracontratual. Novas Perspetivas em matéria de nexo de causalidade, Principia, 2014, em especial pp. 199 e ss. 4 PEDRO, Rute Teixeira – (2018), Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_2018.pdf, p. 187.

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Neutralidade e aleatoriedade: a chance é neutral na medida em que contém, em potência, um enlace favorável e outro desfavorável, derivando tal neutralidade da natureza aleatória do decurso dos factos5;

Autonomia e atualidade: “a chance é uma realidade em si mesma, um valor atual e autónomo distinto da utilidade final que potencia. É ainda uma realidade presente. A chance representa não uma vantagem possível, mas uma possibilidade de uma vantagem. Possibilidade essa que aparece como uma entidade economicamente avaliável, dotada de existência atual”. A chance será merecedora da tutela do direito, nos atos, em que por exemplo, o ato do agente ofende

posições

jurídicas

subjetivas

do

lesado6.

Para a perda de chance ser considerada uma realidade autónoma, esta tem que ser sempre perspetivada em destaque, relativamente ao restante processo em que se engloba. Conforme iremos ver, a sua autonomia acaba por ser uma autonomia meramente relativa, mas estritamente necessária7. 

Seriedade: Esta exigência visa garantir, desde logo, a verificação de uma das notas caracterizadoras do dano reparável – a sua certeza. Assim, “se, em juízo, o lesado provar8, através de uma demonstração probabilística objetiva, que o resultado que esperava obter (ou evitar) tinha alguma (qualquer) probabilidade de se vir a realizar (ou a evitar) e que essa probabilidade foi destruída pelo facto ilícito e culposo de terceiro, então o dano daí resultante (que é o dano da perda de chance), deve ser indemnizável na medida da seriedade da chance perdida”9.

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LEITÃO, António Pedro Santos, Da Perda de Chance: Problemática do Enquadramento Dogmático. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Dissertação em Ciências Jurídico-Civilísticas Menção em Direito Civil, 2016, Coimbra, pp. 36-37. 6 COSTA, Patrícia Helena Leal Cordeiro da, Dano da Perda de Chance e a sua Perspetiva no Direito Português, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Dissertação de Mestrado, 2010, p. 79. 7 LEITÃO, António Pedro Santos - Da Perda de Chance…Op.Cit, pp. 36-37. 8 É ao lesado que cabe o ónus de provar a existência da chance e a sua consequente perda. “Na verdade, tendo presente o teor do número 1º do artigo 342.º do Código Civil, que preceitua que aquele que invoca um direito tem o encargo de provar os factos constitutivos do seu direito. Conclui-se que aquele que invoca o direito a ser ressarcido pela perda de uma chance terá, pois, o ónus de provar os factos constitutivos desse direito. Desde logo sobre ele recairá o ónus de provar a existência da chance cuja perda consubstanciará o dano a ressarcir”. A afirmação de que o ónus recai sobre o lesado não merece discussão. Tal afirmação encontra-se, por exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de abril de 201678,que o mesmo cita o caso jurídico relativo ao dano da perda de chances profissionais num caso de assédio moral. A jurisprudência afirmava que competia ao lesado (ao autor) “alegar e provar esses danos, descrevendo, para tal, o referido processo evolutivo, as perdas registadas e os ganhos que poderia ter auferido caso não tivesse ocorrido o facto por aquele considerado impeditivo de usufruir os aludidos ganhos, inerentes à categoria profissional aduzida”. A sentença deste acórdão afirma que o autor não conseguiu provar, ditando assim, a improcedência do pedido no que respeitava à reparação da perda de chance. Para isso ver, PEDRO, Rute Teixeira, Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos /ebooks/civil/eb_ReponsCivil _2018.pdf, , 2018, p. 204. 9 LEITÃO, António Pedro Santos, Da Perda de Chance.. Op…Cit, p.40.

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Consistência e pessoalidade: quer isto dizer que, mesmo que se recorra ao arrimo providenciado pelas presunções naturais ou hominis (artigo 351º Código Civil, doravante CC) e com apelo a provas de primeira aparência, a consideração de informações que se retiram do curso natural dos acontecimentos, e se carreiem a prova pericial (artigo 388º CC), os dados colhidos no corpo científico que subjaz ao exercício profissional numa dada área de actividade, é necessário averiguar se os contornos particulares da situação concreta a distanciam da regularidade constatada10.

Contudo, se não ficar demonstrada a existência de chance pelas características elencadas o pedido será indeferido e, consequentemente, a sua perda não será suscetível de reparação e de indemnização. Neste seguimento, atente-se ao seguinte: O artigo 342º número 1.º do Código Civil preceitua que “aquele que invoca um direito tem o encargo de provar os factos constitutivos do seu direito. Conclui-se, assim, que aquele que invoca o direito de ser ressarcido pela perda de uma chance terá, pois, o ónus de provar os factos constitutivos desse direito2”11. A afirmação de que o ónus recai sobre o lesado não merece discussão. Tal afirmação encontra-se, por exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de abril de 201612, que aborda o caso jurídico referente ao dano da perda de chances profissionais num caso de assédio moral. Ora, a jurisprudência afirmava que competia ao lesado “alegar e provar esses danos, descrevendo, para tal, o referido processo evolutivo, as perdas registadas e os ganhos que poderia ter auferido caso não tivesse ocorrido o facto por aquele considerado impeditivo de usufruir os aludidos ganhos, inerentes à categoria profissional aduzida”. O presente acórdão esclarece que o autor da ação não conseguiu provar este facto, pelo que o pedido referente à reparação da perda de chance foi julgado improcedente. É certo que não basta a identificação de uma chance séria, consistente e pessoal e que seja merecedora de tutela jurídica para que todo e qualquer ato que importe a sua destruição constitua fundamento de responsabilização da pessoa causadora dessa

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PEDRO, Rute Teixeira, Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil _2018.pdf, 2018, p. 202. 11 Ibidem, p. 204. 12 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº 79/13.5TTVCT.G1.S1, de 21 de abril de 2016. Relatora Ana Luísa Geraldes.

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destruição. Por isso, é indispensável que se demonstre a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil fundantes da obrigação de indemnizar por parte de um terceiro13. 1.3.Pressupostos da responsabilidade civil Os pressupostos da responsabilidade civil traduzem os elementos cuja verificação é indispensável à ocorrência da obrigação de indemnizar. São eles: o facto, a ilicitude, a culpa (nexo de imputação do facto ao agente), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano14 causado. O termo “facto” é usualmente utilizado para designar o ato ou evento humano subjacente a qualquer imputação delitual. O facto pode consistir tanto numa ação como numa omissão por parte do agente, mas quanto a este último, o mesmo só resulta quando o dever de praticar o ato omitido, decorra da lei15 ou do negócio jurídico16 (artigo 486.º do Código Civil). Contudo, é necessário, que o facto praticado tenha sido voluntário17 e não um mero facto natural causador de danos18, “pois só o homem, como destinatário dos comandos emanados da lei, é capaz de violar direitos alheios oude agir contra disposições (…violar ilicitamente…), que infrinja objetivamente qualquer das regras disciplinadoras da vida social”19. Note-se que, neste contexto, facto voluntário significa apenas, facto controlável ou dominável pela vontade. Logo, o facto voluntário é suficiente para fundamentar a responsabilidade civil, bem como controlar o próprio ato ou omissão (aqui não é necessária a verificação de conduta predeterminada e orientada para certo fim)20. A “ilicitude” traduz-se na reprovação da conduta do agente de forma geral e abstrata (ao nível da lei)21. A mesma advém da violação de direitos subjetivos e de normas de 13

COSTA, Patrícia Helena Leal Cordeiro da,Dano da Perda de Chance…Op...cit.,p. 13. Nos casos de responsabilidade civil pelo risco, prescindimos do pressuposto da culpa, mas na responsabilidade civil contratual a culpa presume-se (artigo 799º n.º do CC). 15 Segundo o autor FERNANDO AUGUSTO SAMÕES, “decorre da lei, quando haja inobservância de obrigações legais explícitas, como é o caso dos “delitos tipificados” (artigos 491.º, 492.º e 493.º), que preveem uma presunção de culpa, ou quando ocorram situações de negligência em que “a omissão é determinada pela violação, por um agente, de um direito subjetivo ou de uma norma de proteção” (art.º 483.º n.º 1 do CC) ou, ainda, da violação de deveres de tráfego, isto é, de “deveres que protegem certos bens delicados ou que impendem sobre quem tenha o controlo de fontes de perigo” que podem integrar a denominada “terceira via”. SAMÕES, Fernando Augusto, Indemnização por Perda de Chance. Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Processuais, Universidade Portucalense, Porto, 2015.p.12. 16 “A responsabilidade obrigacional por omissão deriva do negócio jurídico, quando seja desrespeitada alguma obrigação nele prevista, como acontece, por exemplo, na inobservância do mandato forense.” SAMÕES, Fernando Augusto – Indemnização por Perda de Chance..Op. Cit.., p.12. 17 Não quer isto dizer que o facto tem de partir diretamente da vontade do agente em praticá-lo. Quer dizer, isso sim, que a ação deve ser ao menos controlável ou dominável pela vontade humana, LEITÃO, António Pedro Santos - Da Perda de Chance...Op..Cit., p. 13. 18 Por exemplo, catástrofes naturais. 19 VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10ª Edição, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 525-526. 20 VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações..Op..cit.. p. 529. 21 Ibidem, p.543. 14

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proteção ou, pura e simplesmente, da inobservância do direito e respetivamente, postula que não existam causas de justificação22. Por sua vez, a “culpa” relaciona-se com a conduta reprovável do agente. Este pressuposto configura-se como o juízo de censura dirigido pelo direito a determinado comportamento ilícito23. Em sentido amplo, a culpa, abrange “o dolo em qualquer das suas modalidades – direto, necessário ou eventual – e a negligência, quer a consciente, quer a inconsciente”24. Para que haja obrigação de indemnizar e a responsabilidade civil exerça a sua função reparadora é necessária a existência de dano25. O “dano” é entendido como a supressão ou diminuição de uma situação favorável26; é o prejuízo que resulta da ofensa de um bem juridicamente tutelado. Esta noção “encontra apoio direto no n.º 1 do artigo 483.º, na medida em que nele não se comina uma obrigação de indemnizar prejuízos, mas tão-só a obrigação de os indemnizar quando, em determinadas circunstâncias, tenha sido violado “… o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios …””27. 22

SAMÕES, Fernando Augusto, Indemnização por Perda de Chance..Op…Cit, p.13.

Para que o facto seja considerado ilícito, no âmbito da “responsabilidade civil extracontratual, deverá consistir na violação de um direito de outrem ou de uma norma que proteja interesses alheios (artigo 483º do Código Civil) ou terá de constituir abuso de direito (artigo 334º do Código Civil). Já, no âmbito da responsabilidade civil contratual, a ilicitude reside no incumprimento do contrato (artigo 798º do Código Civil)”. LEITÃO, António Pedro Santos - Da Perda de Chance..Op..Cit, pp. 13-14. 23 ALARCÃO, Rui de, Direito das Obrigações, Coleção Faculdade de Direito UAN, Luanda, 1999, p. 173. 24 SAMÕES, Fernando Augusto, Indemnização por Perda de Chance, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Processuais, Universidade Portucalense, Porto, 2015, p.13. Note-se, porém, que a “distinção entre o dolo e a negligência tem pouca relevância, para efeitos de imputação delitual, já que o n.º 1 do art.º 483.º estabelece a imputação de forma indiferenciada, por dolo ou mera culpa. Mas já pode relevar na determinação do montante da indemnização, atento o disposto no art.º 494.º que permite ao juiz, em caso de negligência, fixar, equitativamente, uma indemnização inferior à que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”. SAMÕES, Fernando Augusto, Indemnização por Perda de Chance..Op..cit., p.13. 25 LEITÃO, António Pedro Santos, Da Perda de Chance…Op…cit, p. 89. 26 SAMÕES, Fernando Augusto, Indemnização por Perda de Chance…Op..cit,, p.13. 27 Ibidem, p.13. Neste contexto enunciam-se as diferentes espécies de dano: - o dano real e o dano de cálculo: o dano real é o prejuízo correspondente às vantagens (materiais ou imateriais) que foram desviadas do seu destinatário jurídico; o dano de cálculo é a expressão monetária do dano real, CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, Vol. II, Tomo III, Edições Almedina, Coimbra, p. 513. - danos patrimoniais e danos não patrimoniais (ou morais): os primeiros, por serem suscetíveis de avaliação pecuniária, podem ser reparados diretamente (restauração natural ou específica) ou indiretamente (através de equivalente). Os segundos (artigo 496.º do Código Civil), por não serem suscetíveis de avaliação pecuniária ou não estarem presentes no património do lesado, são compensados através de uma quantia pecuniária imposta ao agente, v. VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral..Op…cit,, p. 601. No âmbito do dano patrimonial cabe ainda a distinção entre danos emergentes e lucros cessantes. O“dano emergente é o prejuízo causado em bens ou valores dos quais o lesado era já titular à data da lesão; o lucro cessante é, por sua vez, o benefício patrimonial ao qual o lesado não tinha direito no momento da lesão, e que esperava obter, mas não alcançou, em virtude da lesão”. “É importante realçar que esta distinção não constitui um critério de determinação da medida do dano ou do

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Quanto ao pressuposto do “nexo de causalidade entre o facto e o dano causado”, o problema que aqui se coloca é, precisamente, o de saber, quais são os danos indemnizáveis, em virtude do facto ilícito; isto é, quais os danos que se podem ter, juridicamente, como causa do facto ilícito. Pois não interessará para o Direito que, de um ponto de vista estritamente naturalístico se possa considerar que determinado evento seja a causa mais próxima do dano para que se deva responsabilizar alguém por esse mesmo dano28. À primeira vista, parece-nos que a questão referente à causalidade encontra-se resolvida nos dispostos legais dos artigos 536º29 e 483º30 do Código Civil, mas é possível retirar que “não basta que os danos sejam cronologicamente posteriores à lesão para que recaia sobre o agente a obrigação de indemnizar, sendo necessário que tenham sido produzidos por aquela”31. No entanto, são muitas as situações em que nem sempre é fácil determinar o nexo causal (seja para a parte sobre quem recai o ónus da prova, seja sobre o juiz que julga o caso), na medida em que se impõe saber quais os danos que podem ser considerados provocados por certo facto ilícito, tendo sempre em consideração a diversidade de fatores e condicionantes ocorridos (sejam eles anteriores ou posteriores)32. 2. Âmbito de Aplicação da Perda de Chance Após a longa análise dos pressupostos da responsabilidade civil, verificamos que os mesmos se integram na figura jurídica da perda de chance. Ora, ao olharmos para o pressuposto do dano poderemos retirar que este demonstra uma grande influência na figura da perda de chance. Esta figura destaca-se em diversas matérias da área jurídica, legal e jurisprudencial. São elas: a responsabilidade civil do mandato forense, a responsabilidade civil por ato do médico, a responsabilidade do Estado e de outras entidades públicas (principalmente na

montante da indemnização, correspondendo tão-somente à determinação legal da amplitude do conceito de dano, identificando prejuízos como danos ressarcíveis”.v. LEITÃO, António Pedro Santos Da Perda de Chance..Op..cit, p. 17. - danos presentes e danos futuros, consoante já se tenham ou não verificado no momento da fixação da indemnização, sendo estes atendíveis “desde que sejam previsíveis” (art.º 564 n.º 2). 28 LEITÃO, António Pedro Santos - Da Perda de Chance..Op..cit, p. 18. 29 A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sorrido se não fosse a lesão. 30 1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. 2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei. 31 LEITÃO, António Pedro Santos, Da Perda de Chance..Op..cit. 18. 32 Notemos, agora a seguinte situação: um serralheiro é agredido e durante essa agressão parte uma das mãos. Mas imagine-se que o serralheiro, durante o transporte em ambulância, sofre um acidente a caminho do hospital, acabando por falecer em virtude desse mesmo acidente. Será que o dano morte pode ser considerado como provocado pela agressão?

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contratação pública, em contextos laborais, que se encontra associada à perda de oportunidade de obter uma promoção profissional ou mesmo de perda de possibilidade ou oportunidade profissional, em casos de oportunidade de vitória em concursos, e, mais raramente, à revogação ilícita de cheque)33. Atentemos, por exemplo, aos seguintes casos: - A típica circunstância em que o advogado, através do cumprimento defeituoso do mandato, deixa passar um prazo, por exemplo, para apresentação de algum elemento probatório ou para interposição de recurso, impossibilitando o seu cliente de poder evitar uma condenação ou fazendo-o perder a possibilidade de ganhar uma ação34. “A falta de obtenção do resultado pretendido com a propositura da ação, com a apresentação da contestação ou do recurso pode ser imputada ao ato desvalioso daquele profissional? Se ele tivesse atuado como lhe era exigível, a ação era julgada procedente? Teria provimento o recurso? Uma resposta afirmativa a estas questões é frequentemente difícil de alcançar na medida em que existe um conjunto de fatores que podem influenciar o resultado final e que não são (nem podem ser) controlados pelo advogado: desde a conduta processual da outra parte, à (restante) atividade probatória que tenha sido desenvolvida, ao grau de convencimento que a mesma tenha logrado gerar no magistrado, até ao entendimento que o concreto juiz acolha sobre uma dada questão controvertida que seja decisiva para o sentido da decisão a proferir, passando pelo estado da doutrina e da jurisprudência no tempo e no lugar em que o juiz é chamado a pronunciar-se. São, aliás, também estes fatores que explicam que a obrigação assumida pelo advogado seja, em regra, uma mera obrigação de meios ou de diligência. Na falta de afirmação do nexo de condicionalidade inexiste fundamento para a tutela indemnizatória pela perda do resultado que se pretendia obter com recurso à atividade do advogado”35. - A hipótese em que ocorre uma falha no cumprimento de um contrato de instalação de um dispositivo de alarme no estabelecimento comercial. Seguidamente o assalto ocorre e o alarme não funciona, pelo que se nota uma notória falha. Não se sabe, porém, se o funcionamento desse mecanismo seria suficiente para afastar os intrusos, uma vez que impedia a consumação dos seus intentos e os valores subtraídos poderiam ter sido menores.

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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº 4591/06.4TBVNG.P1.S1, de 21 de março de 2013. Relator Oliveira Vasconcelos. SAMÕES, Fernando Augusto, v. Indemnização por Perda de Chance..Op..cit, p. 42. 34 ROCHA, Nuno Santos, A “Perda de Chance como uma espécie de dano”, Edições Almedina, S.A, Coimbra, 2017, p. 21. 35 PEDRO, Rute Teixeira, Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil _2018.pdf, 2018, p. 188.

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- No âmbito dos procedimentos concursais em que um candidato "é indevidamente excluído da participação nos mesmos. Não sendo possível determinar se, não tendo sido excluído36 o candidato teria sido o escolhido (ou um dos escolhidos), não se pode afirmar o nexo causal entre a exclusão e a não obtenção do resultado que a participação no concurso poderia propiciar (um prémio monetário, uma promoção profissional, a celebração de um contrato de trabalho, por exemplo) e, consequentemente, a pretensão reparatória pela perda desse resultado é denegada”37. - No âmbito da atividade de prestação de cuidados de saúde, destaca-se o profissional médico, por um ato ilícito e culposo, erra num diagnóstico38, prescreve uma terapia incorreta ou adia a implementação da terapia adequada. Será que poderemos afirmar, que se o médico tivesse atuado como lhe era exigível, a cura ou a sobrevivência teriam ocorrido? “Em regra, à luz da natureza (em larga medida probabilística) dos conhecimentos médicos e às dificuldades daí decorrentes no que respeita ao desenvolvimento da atividade probatória, não se alcança uma resposta positiva e a pretensão ressarcitória não merece acolhimento”39. - Nos casos de oportunidade de vitórias em concursos desportivos, relembremos o “famoso caso do maratonista brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima, que estava em primeiro lugar na maratona olímpica de 2004, quando a seis quilómetros do final, foi agarrado temporariamente por um homem, que o projetou contra o público fazendo-o perder preciosos segundos, Já que, após o incidente, o brasileiro acabou por ser ultrapassado, terminando a prova em terceiro lugar. Não se pode tomar por garantido que, não fora o empurrão e consequente tempo perdido, este teria ganho a medalha de ouro, já que os dois atletas que o ultrapassaram vinham poucos segundos atrás e ainda faltava uma distância considerável para o final. No entanto, podemos certamente afirmar que, por força da atuação ilícita de um terceiro, o maratonista perdeu efetivamente algumas possibilidades de ganhar aquela prova olímpica”40. Face ao exposto, aferimos que, em qualquer das situações enunciadas, falhando o nexo de causalidadenão se consegue reconhecer a tutela indemnizatória àquele que se 36

Não sendo possível repetir o procedimento concursal as consequências decorrentes do ato censurável seriam corrigidas in natura ou pelo menos parte dessas consequências seriam suscetíveis de reparação. É certo que, da dilação temporal gerada pelo ato desvalioso seguido de um novo concurso podem resultar danos que, pela mera repetição do mesmo, não são reparados (art. 566.º, n.ºs1 e 2). Vide nota de rodapé nº 8, PEDRO, Rute Teixeira, (2018), Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_2018.pdf, p. 187. 37 Ibidem, pp. 187-188. 38 ROCHA, Nuno Santos, “A Perda de Chance como uma espécie de dano”, Edições Almedina, S.A, Coimbra, 2017, pp.21-22. 39 PEDRO, Rute Teixeira,Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil _2018.pdf, 2018, pp. 188-189. 40 ROCHA, Nuno Santos – A “Perda de Chance..Op..cit.., pp.19-20.

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apresenta como lesado, mesmo que este seja bem-sucedido na demonstração da verificação dos demais pressupostos da sua pretensão ressarcitória. Foi, precisamente, neste seguimento, e tendo em consideração a posição desfavorável em que se encontrava o lesado, que se tornou imperativa a procura de soluções adequadas com vista à sua maior proteção. A proposta de solução passa pela autonomização do dano da perda de chance. 3. Autonomização do Dano da Perda de Chance Em conformidade com supra referido anteriormente, a noção de perda de chance refletese, como um mecanismo de resolução de um problema que se detetou na aplicação do instituto da responsabilidade civil a determinadas situações fáticas, tais como aquelas que foram reveladas no seu âmbito de aplicação. Note-se que, “apesar de o problema a que a figura veio dar resposta se reportar à afirmação do nexo de causalidade, a resolução opera ao nível de outro pressuposto da responsabilidade civil: o dano. Identifica-se, para o efeito, um dano novo, distinto do dano da perda do resultado final (também denominado dano final)”41. Este dano final não passará portanto, “de um dano incerto, já que ninguém está em condições de saber se o lesado conseguiria obter a vantagem pretendida ou evitar o prejuízo verificado. Certo é que, por força de um ato ilícito de terceiro, existiu um prejuízo traduzido na perda de possibilidade de se obter o resultado esperado”. Porém, esta autonomia será uma autonomia relativa, uma vez que não será possível ignorar a relação delicada existente entre ambos os danos. Por conseguinte, o dano da perda de chance terá, quanto à sua existência, de ser obrigatoriamente analisado em função do resultado final esperado, já que as chances terão necessariamente de ser, sempre, chances de alguma coisa42. A avaliação do dano resultante da perda de chance assume especial relevância no que respeita ao cálculo de indemnização. Para o efeito teremos sempre de partir de uma avaliação prévia do dano final para conseguirmos proceder a uma correta quantificação do mesmo. 4. Determinação do quantum respondeatur referente ao Dano da Perda de Chance Assegurada a existência de uma chance e efetivada a prova da sua perda em função de um facto ilícito e culposo, surge a obrigação de indemnizar, e consequente determinação do valor a atribuir à chance perdida43. 41

PEDRO, Rute Teixeira, Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência, [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_ 2018.pdf, 2018, pp. 192-193. 42 ROCHA, Nuno Santos, A Perda de Chance..Op..Cit, p.63. 43 LEITÃO, António Pedro Santos, Da Perda de Chance…Op..cit, p.64.

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É certo que no quantum reparatório, vai repercutir-se o grau de consistência que a chance perdida apresentava44. Nestes termos, quanto maior for a chance, maior será o montante de indemnização a atribuir. Face ao exposto, será necessário que se proceda a três operações distintas. Em primeiro lugar, define-se o valor que seria atribuído ao dano final, avaliando o estado em que o lesado se encontra em virtude do resultado final pretendido e consequentemente frustrado45. Em segundo lugar, calcula-se a probabilidade de obtenção da vantagem perdida ou de evitamento do prejuízo, que em regra, é traduzida num valor percentual46. Finalmente importará articular os valores encontrados. Assim, por exemplo, “se os danos decorrentes da perda do resultado final forem quantificados em 200 e se a consistência da chance em 60%, o quantum reparatório da perda de chance será igual a 120. Quando não for possível levar a cabo a apreciação do montante reparatório nos termos acabados de referir, o tribunal deve recorrer à equidade, lançando mão do disposto no número 3º do artigo 566.º do Código Civil, que preceitua que “Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.”. Ora, dada a impossibilidade de concretizar a operação supra descrita, a análise da jurisprudência portuguesa permite-nos concluir que o recurso à equidade tem sido o instrumento mais utilizado pelos nossos Tribunais. O recurso à equidade reflete-se por exemplo nos seguintes acórdãos: Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 8 de setembro de 201147 relativo a um procedimento concursal48 e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto49, de 30 de junho de 2015, referente à perda de chance processual50.

44

PEDRO, Rute Teixeira, Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_ 2018.pdf, p. 208. 45 ROCHA, Nuno Santos, A “Perda de Chance..Op..cit, p.66. 46 SAMÕES, Fernando Augusto, Indemnização por Perda de Chance..Op..cit, p. 64. 47 Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Processo nº 6762/10, de 08 de Setembro de 2011, Relator José Francisco Fonseca da Paz. 48 Este acórdão afirma que, não podendo ser quantificado o dano “com exatidão, deverá ser fixado com recurso à equidade, tomando como referentes a vantagem económica final que poderia ter sido obtida e a possibilidade que o lesado teria de a alcançar”. 49 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo nº 320/11.9TJLSB.L1-1, de 30 de junho de 2015, Relatora Maria Adelaide Domingos. 50 No qual, dada a dificuldade de aferição da consistência das possibilidades de procedência da ação, cifra-as em metade para cada parte. Assim, “Na determinação da medida da perda de chance deve, em regra, estabelecer-se uma indemnização por recurso à equidade, fixando-se em 50%, para cada parte, a probabilidade de obtenção de ganho de causa na ação originária, sob pena de se estar a indemnizar o lesado por valor superior àquele que resultaria, em abstrato da possibilidade de ganho de causa, ou em valor inferior, fixado com recurso ao puro arbítrio do tribunal, sem possibilidade de real sindicabilidade desse juízo”.

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Quanto às posições doutrinárias, “ há quem sustente que para efeitos do valor da chance perdida se deve recorrer a uma percentagem do dano final, calculada com base na diferença entre as probabilidades existentes antes e depois da intervenção ilícita e culposa do agente51, sem deixar de apresentar logo críticas à regra da diferença, por permitir reduções que podem conduzir à privação total da indemnização pela perda de chance”52. 5. Posição da Jurisprudência A figura da Perda de Chance tem merecido um principal destaque por parte da jurisprudência portuguesa. Note-se que, a partir de 2006, esta figura foi convocada para fundamentar

decisões

em

vários

domínios

jurídicos,

ora

aceitando-se

a

sua

ressarcibilidade face ao ordenamento português, ora rejeitando-a expressamente e criticando a sua aplicação. Ainda que a aceitação não seja, ainda hoje, pacífica53, é possível, detetar-se uma alteração da perspetiva sobre a figura, como se pode, aliás, verificar no recente Acórdão da Relação do Porto de 28 de novembro de 201754. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto afirma estar “praticamente superada alguma resistência, em especial na jurisprudência no reconhecimento da validade desse instituto como possível fundamento da responsabilidade civil ”. São diversas as áreas jurídicas em que se faz “referência à teoria das oportunidades perdidas, desde a perda da possibilidade de ganho em concursos à perda de chance de obter uma promoção profissional”55, passando pela perda de chance processual, entre outras. Na perda de chance processual, assiste-se a um crescimento muito acentuado do número de acórdãos em que é discutida a sua ressarcibilidade. Segundo a autora RUTE PEDRO TEIXEIRA, “percebe-se que há nos tribunais superiores portugueses, uma aceitação muito

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RAPOSO, Vera Lúcia, Em busca da chance perdida: O dano da perda de chance, em especial na responsabilidade médica, pág. 37. 52 SAMÕES, Fernando Augusto, Indemnização por Perda de Chance..Op..Cit, , p.64. 53 Não possuindo, no entanto, aceitação pacífica, é possível encontrar “decisões que negam a sua aplicação, essencialmente por entenderem que a teoria da perda de chance poderia contrariar o princípio da certeza dos danos e as regras da causalidade adequada ou por apenas se poder justificar para punir o agente e a indemnização não ter, como regra, função punitiva, bem como decisões que admitem a ressarcibilidade, face ao direito constituído, da perda de chance e outras que, sem a negarem nem a referirem expressamente, acabaram por atribuir indemnização em situações que se enquadram nessa figura”v. Ibidem, p. 64. 54 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 287/13.9T2AND.P1, de 28 de novembro de 2017, Relator Rui Moreira 55 ROCHA, Nuno Santos – A “Perda de Chance como uma Espécie de Dano”, Edições Almedina, S.A, Coimbra, 2017, p.80.

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consistente da suscetibilidade de reparação de tal dano no que respeita à responsabilidade civil do advogado”56. Apesar do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de novembro de 201757, aceitar o ressarcimento da perda de chance processual e que considera ser hoje a tendência primordial na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, é certo que não ponderou que, in casu, houvesse lugar ao ressarcimento pela sua perda, dada que o Autor não conseguiu provar “a suficiente probabilidade do sucesso do recurso deixado de interpor” a que acresceu a “própria improbabilidade de tal sucesso ajuizada pela Relação (…) sem que se evidencie, minimamente, erro de direito na apreciação das provas ou na interpretação e aplicação do quadro normativo convocado”. Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de janeiro de 201758 trata de uma situação em que se discute o dano da perda de chance como uma decisão mais favorável em processo penal, por aplicação da suspensão da execução da pena de prisão em que o autor havia sido condenado. Entretanto, podemos verificar, que para além dos acórdãos acima mencionados, o Supremo Tribunal de Justiça recorreu cada vez mais à figura jurídica da perda de chance. Falemos, então nos seguintes casos: - Acórdão de 05 de maio de 201559, no qual “a questão a apreciar, face ao teor das conclusões das alegações do recorrente, consiste em saber se o primeiro réu deve ser condenado a indemnizar o recorrente pelo facto de, como mandatário forense constituído pelos autores, não ter proposto as ações de despejo em causa no prazo de um ano a contar do conhecimento, por estes, dos factos fundamentadores da resolução dos respetivos contratos de arrendamento, assim originando a probabilidade de invocação vitoriosa de caducidade do direito de resolução pelos inquilinos e a consequente provável improcedência daquelas ações, com prejuízos consistentes no menor valor do prédio, enquanto arrendado, em relação à situação de devoluto em que ficaria se as ações de despejo tivessem êxito”. Concluímos que “não se pode fundadamente

afirmar

que

a

conduta

omissiva

do

R.

tenha

acarretado

irremediavelmente a perda do direito de acionar de forma vitoriosa os inquilinos com vista ao despejo, pelo que, para além de não se poder considerar demonstrada a verificação do denominado prejuízo final, do que resultaria, por falta de prova do

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PEDRO, Rute Teixeira, Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_ 2018.pdf, p. 196. 57 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 12198/14.6T8LSB.L1.S1, de 30 de novembro de 2017, Relator Tomé Gomes. 58 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 540/13.1T2AVR.P1.S1, de 11 de janeiro de 2017, Relator Alexandre Reis. 59 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 614/06.5TVLSB.L1.S1, de 05 de maio de 2015, Relator Silva Salazar.

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requisito “dano”, a improcedência da presente ação também não se pode entender verificado o dano consistente na própria perda de chance autonomamente considerada, o que exclui o direito dos autores a indemnização”. - Acórdão de 30 de setembro de 201460, relata que “ no caso concreto mostrando-se violados deveres resultantes do contrato na exata medida em que, com o resultado provado, no exercício do mandato a R/recorrente deixou ultrapassar os prazos para propositura da ação sem apresentar justificação válida e atempada que configurasse um justo impedimento com a consequente caducidade do direito da A. É obviamente aplicável o instituto da responsabilidade contratual, precisamente porque tal responsabilidade decorre, da violação do dever de jurídico referente ao contrato de mandato celebrado entre as partes, e posteriormente, abrange esta responsabilidade do dano da perda de oportunidade ou de chance”. Assim, ficou demonstrado que a A sofreu danos não patrimoniais que devem ser considerados graves em termos de justificarem “a tutela do direito”, com consequente atribuição de direito de indemnização. - Acórdão de 06 de março de 201461, que depois de afirmar que no contexto do contrato de mandato forense a obrigação a cargo do mandatário é uma obrigação de meios, considerou que “é admitida a ressarcibilidade do dano da perda de chance ou de oportunidade, que pressupõe: a possibilidade real de se alcançar um determinado resultado positivo, mas de verificação incerta; e um comportamento de terceiro, susceptível de gerar a sua responsabilidade, que elimine de forma definitiva a possibilidade de esse resultado se vir a produzir.” - Acórdão de 14 de março de 201362, refere que “com o acórdão recorrido e na linha da orientação seguida pelo acórdão deste Supremo Tribunal nele citado, de 28 de Setembro de 2010, está em causa um dano – perda da oportunidade de procedência da exceção de incumprimento da parte contrária, e do direito à restituição em dobro do sinal prestado – cujo “valor exato” se não consegue averiguar, cumprindo determinar o montante indemnizatório segundo critérios de equidade; e que os elementos disponíveis aconselham a que se repartam igualmente as hipóteses de ganho de causa”. Admite-se, assim, no caso presente, que a chance de vencimento é suficiente para que a consistência da oportunidade perdida justifique uma indemnização, a calcular segundo a equidade (nº 3 do artigo 566º do Código Civil)63.

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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 739/09.5TVLSB.L2-A.DS1, de 30 de setembro de 2014, Relator Mário Mendes. 61 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº 23/05.3TBGRD.C1.S1, de 06 de março de 2014, Relator Pinto de Almeida. 62 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº 78/09.1TVLSB.L1.S1, de 14 de março de 2013, Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza. 63 Vide note de rodapé nº 47 de PEDRO, Rute Teixeira – (2018) – Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_2018.pdf, p. 196.

63


Notemos que na responsabilidade civil por ato de médico, encontra-se pouca jurisprudência referente à mesma. Maioritariamente, a jurisprudência ainda não aceita a ressarcibilidade do dano da perda de chance de cura ou sobrevivência. De qualquer modo, “há que recordar uma decisão que mereceu muito destaque e que constituiu, no nosso ponto de vista, um caso paradigmático de uma boa aplicação da noção no âmbito agora em referência”. Falamos da Sentença da 1.ª Seção Cível da Instância Central do Tribunal da Comarca de Lisboa de 23 de julho de 201564. “Na situação em causa, uma doente desloca-se à urgência de uma instituição hospitalar privada, verificando-se, como ficou provado em juízo, uma omissão culposa de diagnóstico de uma pneumonia por parte do médico que a observou. O diagnóstico correto faz-se várias (cerca de 9) horas mais tarde, mas a doente falece dezasseis dias depois, por choque séptico. Os dados fornecidos pela ciência médica e carreados para o processo permitem concluir que a septicemia tem um desenvolvimento muito rápido, sendo fatal se não for tratada a tempo e que o principal fator que determina a evolução da mesma é o diagnóstico atempado. Fica também demonstrado que as possibilidades de sobrevivência diminuem com o decurso do tempo: numa septicemia grave diagnosticada na primeira hora, a probabilidade de sobrevivência é de quase 80%; passadas 3 horas, essa probabilidade desce para cerca de 40%; e ao fim de 12 horas reduz-se para apenas 20%. Munido destes dados, o tribunal chamou à colação a figura da perda de chance, aplicando-a por entender que estavam verificados os requisitos de ressarcimento deste dano intermédio, nomeadamente por se ter verificado o nexo causal entre o facto ilícito e culposo e o dano da perda de chance de sobrevivência. Assim, condenou o Autor a pagar uma indemnização, com base em responsabilidade contratual, por cumprimento defeituoso causador do dano da perda de chance de sobrevivência”65. No que toca à matéria da perda de chance de um ganho, podemos aferir que a mesma se enquadra em dois grandes grupos: o primeiro referente à questão da determinação da indemnização por inexecução de sentença; e o segundo grupo que versa no tema da indemnização em ambiente concursal. Para este ponto, consultemos os seguintes acórdãos: - o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de abril de 201666 retrata uma “situação, em que se provou que, no âmbito de um contrato individual de trabalho, se verificou assédio moral sobre um trabalhador que experimentou longos períodos de 64

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo.º 1573/10.5TJLSB, de 23 de julho de 2015, Relatora Higina Castelo. 65 PEDRO, Rute Teixeira, Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019], Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil _2018.pdf, 2018, pp. 197-198. 66 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 79/13.5TTVCT.G1.S1, de 15 de dezembro de 2011, Relatora Ana Luísa Geraldes.

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inatividade e transferências sucessivas de gabinete. Para além da compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, o trabalhador pretendia ser indemnizado pelo dano da perda de ganho por não ter podido ascender na carreira, por não ter sido promovido a uma categoria profissional superior o que, segundo ele, teria acontecido em condições normais, se lhe tivesse sido atribuída a realização de atividades consentâneas com a função

para

que

fora

contratado.

Como

a

referida

promoção

não

operava

automaticamente, cabia ao lesado (art. 342.º do Código Civil) alegar e provar o dano referido, nomeadamente as possibilidades perdidas, à luz do processo evolutivo de acontecimentos que hipoteticamente teria ocorrido não fosse o assédio moral”67. Em conformidade com o acórdão supra referido, a jurisprudência condenou a ré a pagar uma indemnização por danos não patrimoniais, que lhe é devida em consequência do assédio moral de que foi vítima por parte da Ré. Mas, foi absolvida do demais peticionado: da atribuição ao autor da categoria superior (consultor) e da correspondente retribuição ou indemnização por perda de ganho. - No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de julho de 201568, conclui-se, que “apesar de não ser possível afirmar que o funcionamento do alarme evitaria a ação (furto), ficou certo que a conduta omissiva da ré fez perder a autora a chance de, através do acionamento do alarme, evitar um prejuízo, isto é, a concretização do furto ou pelo menos evitar a extensão dos danos. - o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 29 de novembro de 201269, aceitou o ressarcimento da perda de chances, no plano profissional, por exclusão indevida, por razões de saúde, com base numa deliberação proferida por Junta médica homologada pelo Comando Geral da GNR que não foi convenientemente impugnada através dos serviços da Associação dos Profissionais da Guarda70. - o Acórdão Tribunal Central Administrativo Sul de 8 de setembro de 201171, refere que “o afastamento ilegal de um candidato a um concurso com perda da oportunidade de nele poder obter um resultado favorável constitui um dano indemnizável”. - Por fim, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24 de outubro de 200672, no qual ficou “provado nos autos que, por força de afastamento compulsivo ilegal durante dez anos, o Autor, então soldado da Guarda Fiscal, viu irremediavelmente perdida a 67

PEDRO, Rute Teixeira. Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência. [Consult. 12 jun. 2019]. disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil _2018.pdf, p. 195. 68 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo nº 6987/13.6TBOER.L1-1, de 14 de julho de 2015, Relator Manuel Marques. 69 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº 29/04.0TBAFE.P1.S1, de 29 de novembro de 2012, Relator Oliveira Vasconcelos. 70 PEDRO, Rute Teixeira – (2018) – Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance..Op..cit., p. 198. 71 Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Processo n.º 06762/10, de 08 de Setembro de 2011, Relator Fonseca da Paz. 72 Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo nº 0289/06, de 24 de outubro de 2006, Relatora Fernanda Xavier.

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possibilidade de ser promovido a cabo e afastada a possibilidade ulterior de progresso na carreira, e, consequentemente, de poder vir a usufruir de estatuto e remunerações superiores, tal constitui um dano indemnizável, verificados que estão os pressupostos do art. 483º do CC (o facto ilícito e culposo, o dano e o nexo de causalidade)”. Conclusão A perda de chance constitui um instrumento privilegiado para a aplicação justa e equitativa do direito no domínio da responsabilidade civil. A sua noção surgiu por causa da dificuldade verificada na afirmação do nexo de causalidade

entre

um

determinado

ato

que

se

equaciona

ser

fundante

da

responsabilidade do seu autor e a frustração da concretização, em detrimento da pessoa que se apresenta como lesado, de um determinado resultado futuro e de consecução incerta. Assim, não será possível afirmar com convicção que, sem aquele ato de terceiro frustrador de chances, o resultado se teria efetivamente produzido. A dificuldade sentida a este nível justifica-se pela diversidade de factores intervenientes no processo causal. Note-se que, a aplicação prática da perda de chance nem sempre foi unânime, uma vez que existem inúmeras decisões divergentes, no plano jurisprudencial. Atualmente é possível detetar-se, uma possível alteração da perspetiva jurídica desta figura. Ao abrigo da leitura do Acórdão da Relação do Porto de 28 de novembro de 2017, podemos esclarecer o seguinte: está “praticamente superada alguma resistência, em especial na jurisprudência no reconhecimento da validade desse instituto como possível fundamento de responsabilidade civil”. A proposta de autonomização do dano da perda de chance, surge como uma solução que tem por finalidade dar relevância, à perda de chance ou de oportunidade para efeitos ressarcitórios. O reconhecimento do “direito à indemnização pelo dano assim autonomizado pressupõe a reunião de um conjunto de pressupostos que impedirão um excessivo alargamento da tutela reparatória que a figura propícia. Conforme analisamos anteriormente, é indispensável a existência de uma chance, quid cuja perda será ressarcida. Acresce que, para que o seu desaparecimento mereça reparação, necessário se torna que essa chance se revele séria, consistente, pessoal e merecedora de tutela jurídica, o que só, à luz do caso particular, poderá ser averiguado. Para que um tal dano seja ressarcido deverão, também, estar verificados os demais requisitos de que depende o nascimento de uma obrigação de indemnizar”73.

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PEDRO, Rute Teixeira, Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência, [Consult. 12 jun. 2019]. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_ 2018.pdf, 2018, p. 210.

66


A perda de chance é um exemplo claro de como a prática jurisprudencial pode levar o Direito a trilhar novos caminhos, bem como aproximar o mundo jurídico ao mundo social, com vista a uma maior proteção dos direitos da pessoa lesada.

Bibliografia ALARCÃO, Rui de - Direito das Obrigações. Luanda: Colecção da Faculdade de Direito UAN, 1999. BARBOSA, Mafalda Miranda - Responsabilidade Civil extracontratual. Novas Perspetivas em matéria de nexo de causalidade, Principia, 2014. CORDEIRO, António Menezes - Tratado de Direito Civil. Vol. VII., Direito das Obrigações. Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa. Responsabilidade Civil, reimpressão da edição de 2010. Coimbra: Almedina, 2017. ISBN: 9789724042213. COSTA, Patrícia Helena Leal Cordeiro da - Dano da Perda de Chance e a sua Perspetiva no Direito Português. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2010. Dissertação de Mestrado. FARIA, Jorge Ribeiro - Direito das Obrigações. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2005. ISBN: 9789724025827. LEITÃO, António Menezes - Direito das Obrigações. Vol. I. Introdução da Constituição das Obrigações. 13.ªEd. Coimbra: Almedina, 2016. ISBN: 9789724073484. LEITÃO, António Pedro Santos - Da Perda de Chance: Problemática do Enquadramento Dogmático. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016. Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas Menção em Direito Civil. PEDRO, Rute Teixeira – (2018), Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance à Luz da Jurisprudência.

[Consult.

12

jun.

2019].

Disponível

em

http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil /eb_ReponsCivil_2018.pdf. RAPOSO, Vera Lúcia - Em busca da chance perdida: O dano da perda de chance, em especial na responsabilidade médica. Revista do Ministério Público n.º138, Abril/Junho2014. ROCHA, Nuno Santos, A “Perda de Chance como uma espécie de dano”. Coimbra: Edições Almedina, S.A, 2017. ISBN: 9789724054438. SAMÕES, Fernando Augusto - Indemnização por Perda de Chance. Porto: Universidade Portucalense, 2015. Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Processuais. VARELA, João de Matos Antunes - Das Obrigações em Geral. 10ª Ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2010. ISBN: 9789724013893.

67


Jurisprudência Consultada em www.dgsi.pt: Supremo Tribunal de Justiça: 

Acórdão de 29-11-2012 (processo nº 29/04.0TBAFE.P1.S1);

Acórdão de 14-03-2013 (processo nº 78/09.1TVLSB.L1.S1);

Acórdão de 21-03-2013 (processo nº 4591/06.4TBVNG.P1.S1);

Acórdão de 06-03-2014 (processo nº 23/05.3TBGRD.C1.S1);

Acórdão de 30-09-2014 (processo n.º 739/09.5TVLSB.L2-A.DS1);

Acórdão de 05-05-2015 (processo n.º 614/06.5TVLSB.L1.S1);

Acórdão de 21-04-2016 (processo nº 79/13.5TTVCT.G1.S1);

Acórdão de 11-01-2017 (processo n.º 540/13.1T2AVR.P1.S1);

Acórdão de 30-11-2017 (processo n.º 12198/14.6T8LSB.L1.S1);

Tribunal Central Administrativo: 

Acórdão de 24-10-2006 (processo nº 0289/06);

Tribunal Central Administrativo Sul: 

Acórdão de 08-09-2011 (processo nº 06762/10);

Tribunal da Relação de Lisboa: 

Acórdão de 14-07-2015 (processo nº 6987/13.6TBOER.L1-1);

Acórdão de 23-07-2015 (processo.º 1573/10.5TJLSB);

Tribunal da Relação de Porto: 

Acórdão de 30-06-2015 (processo nº 320/11.9TJLSB.L1-1);

Acórdão de 28-11-2017 (processo n.º 287/13.9T2AND.P1);

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O Arresto: Distinção de Figuras Afins

O Arresto Distinção de Figuras Afins

Ana Isabel Guerra Professora Adjunta Convidada da ESTG – Felgueiras - IPP

Beatriz Coelho, Catarina Alves e Patrícia Ferreira Alunas do Mestrado em Solicitadoria na ESTG

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Resumo: As providências cautelares, enquanto medidas resultantes dos procedimentos cautelares visam tornar efetiva a tutela judicial dos direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos, combatendo o periculum in mora. Desta forma, o arresto, enquanto providência cautelar de natureza provisória conservatória, visa evitar a dissipação dos bens do património do devedor, garantindo, assim, o direito de crédito do credor. Apesar de se tratar de uma providência cautelar autónoma, o arresto apresenta algumas semelhanças com outras figuras do Direito Processual Civil, nomeadamente, o arrolamento e a penhora. O presente trabalho pretende analisar este procedimento cautelar, explicitando as suas principais caraterísticas, requisitos e a sua tramitação, bem como, distingui-lo de outros meios de tutela que a si se assemelham, como é o caso do arrolamento e da penhora. Palavras chave: Providências Cautelares, Arresto, Arrolamento, Penhora Abstract: Precautionary measures, as measures resulting from precautionary procedures aim to enforce the judicial protection of subjective rights or legally protected interests, combating the periculum in mora.Thus, the forfeiture, as a provisional precautionary measure of conservative nature, aims to prevent the dissipation of assets of the debtor's assets, thus guaranteeing the creditor's right to credit. Although it is an autonomous precautionary measure, the arrest bears some similarities with other figures of Civil Procedural Law, namely, the arrest and attachment. The present work intends to analyze this precautionary procedure, explaining its main characteristics, requirements and its procedures, as well as to distinguish it from other means of guardianship that resemble it, such as the arrest and attachment. Keywords: Precautionary Provisions, Arrest, Enforcement, Attachment

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Siglas e Abreviaturas Al./als. – alínea/s Art./arts. – artigo/s CC – Código Civil Cfr. – confrontar CPC – Código de Processo Civil CRP – Constituição da República Portuguesa CRPred. – Código de Registo Predial Nº/nos – número/s p./pp. – página/s ss. - seguintes

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Introdução Nos termos do artigo art.º 20º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual consagra o Princípio da Tutela Jurisdicional Efetiva, ”(…) a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”. Tendo em vista evitar-se o periculum in mora, a lei permite que, através de uma summaria cognitio, o tribunal possa decretar uma tutela provisória, como prevê o nº 2 do art.º 2º do Código de Processo Civil (CPC) a existência de “procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação”.1 A tutela cautelar tem em vista evitar a ocorrência de prejuízos graves e irreversíveis decorrentes da demora necessária e natural de uma decisão final dotada de todas as garantias processuais e fundamentais, decidida em prol da equidade e segurança jurídica.2 Desta forma, os procedimentos cautelares, regulados nos artigos art.º 362º a 409º do CPC, justificam-se por uma questão de ordem temporal, uma vez que o proferimento de uma decisão final é algo que poderá demorar bastante tempo, colocando em perigo a reparação de um direito violado, por entretanto se ter alterado a situação que permitiria a sua reparação. Dos procedimentos cautelares resultam as providências cautelares que nos mesmos são decretadas, enquanto medidas que procuram tornar efetiva a tutela judicial dos direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos em conformidade com o Princípio da Tutela Jurisdicional Efetiva acima referido. Neste contexto, com o presente trabalho, pretendemos abordar o procedimento cautelar do arresto, bem como a distinção das suas figuras afins, o arrolamento e a penhora. O presente trabalho irá centrar-se no procedimento cautelar especificado do arresto, enquanto tema principal, desde a sua previsão legal aos bens suscetíveis de arresto, finalidades, legitimidade e requisitos, bem como os princípios da proporcionalidade e do contraditório. Analisaremos também a distinção de duas figuras afins do arresto, sendo estas o arrolamento e a penhora, explicitando no que cada uma delas consiste e confrontando os aspetos diferenciadores destas figuras em relação ao arresto. Prevê o artigo 391.º n.º 1 do CPC: “O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.” O 1

Sousa, Miguel Teixeira (dezembro de 2013) – As providências cautelares e a inversão do contencioso. [Consultado a 2 de outubro de 2019]. Disponível em: https://www.academia.edu/5973963/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M._As_provid%C3%AAncias_cautelares_e_a_in vers%C3%A3o_do_contencioso_12.2013_ 2 CASTANHEIRA, Joana Maria Coimbra – As Providências Cautelares e os Requisitos para o seu Decretamento: Confronto entre o Processo Administrativo e o Processo Civil. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2018. Tese de Mestrado, p. 9.

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arresto é por isso mesmo uma providência cautelar especificada conservatória. É uma providência cautelar especificada porque se encontra prevista e regulada pela lei, mais concretamente pela lei substantiva no art.º 619º do Código Civil (CC), sendo que o seu regime legal está consubstanciado pela lei processual nos art.º 391º e seguintes (ss.) do CPC. É também uma providência cautelar conservatória porque visa a frustração de graves prejuízos decorrentes da demora até à decisão final3. Assim, do ponto de vista substantivo, o arresto consiste num meio conservatório da garantia patrimonial do credor, na medida em que visa prevenir a ocorrência de graves prejuízos decorrentes da demora até à decisão final. Por sua vez, do ponto de vista processual, o arresto é um procedimento cautelar especificado porquanto o seu regime está disciplinado pela lei processual. Quanto aos bens suscetíveis de arresto, por força do art.º 391º, nº 2 do CPC, ao arresto são aplicáveis subsidiariamente as normas legais relativas à penhora, previstas nos art.º 735º e ss. do CPC. Deriva do exposto que podem ser arrestados todos os bens suscetíveis de penhora4. Assim, não podem ser arrestados os bens absolutamente ou totalmente impenhoráveis (art.º 736º do CPC) e os bens relativamente impenhoráveis (art.º 737º do CPC). Além destes bens, também não podem ser arrestados os bens parcialmente penhoráveis, previstos no art.º 738º do CPC. O arresto “visa assegurar o efeito útil da respetiva ação contra o alegado devedor”5. Deste modo, quando requerida, esta providência cautelar impossibilita o devedor de “ocultar, dissipar6, alienar e onerar7” os bens que constituam garantia patrimonial do cumprimento do seu crédito. Deste modo, o arresto constitui um meio de conservação do património do devedor e em consequência de tal traduz-se na “garantia patrimonial do credor”8, uma vez que sendo garantida a preservação do património do devedor, ao credor é garantido o cumprimento do crédito que invocou9 contra o devedor. Assim sendo, podemos afirmar assertivamente que esta providência cautelar é um mecanismo de defesa do credor perante o devedor, uma vez que o requerente do arresto vê os bens do requerido preservados até à decisão da ação que confirme a existência do crédito e condene o réu (requerido) ao seu pagamento. Esta providência cautelar não é um garante direto do crédito, sendo antes um meio de conservação do património do devedor, para que numa fase posterior (a penhora e

3

AMARAL, Jorge Augusto Pais de – Direito Processual Civil. 13ª Ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2017, pp. 38-39. 4 IDEM - Ibidem, p. 70. 5 GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 222. 6 IDEM – Ibidem. 7 AMARAL, Jorge Augusto Pais de – Direito Processual Civil. 13ª Ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2017, p. 69. 8 IDEM – Ibidem. 9 GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 219.

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consequente venda judicial), o credor possa ver satisfeito o cumprimento do crédito que invocou. Assim, pode concluir-se que o arresto tem um caráter preventivo uma vez que a sua finalidade é, exatamente, evitar que o devedor dissipe o património que constitua a garantia patrimonial do credor. Deste modo, o arresto visa, precisamente, que os bens do devedor, uma vez apreendidos, permaneçam na sua esfera jurídica até ao momento da respetiva penhora. No que concerne à legitimidade é necessário distinguir dois conceitos: legitimidade ativa e legitimidade passiva. A primeira diz respeito à parte que requer o arresto, sendo que a segunda se refere à parte contra quem o mesmo é requerido. A este respeito, é importante referir que nesta providência cautelar, o devedor é designado de requerido e o credor de requerente, por ser do interesse deste último requerer o arresto. Como já verificamos, prevê o art.º391º, nº 1 do CPC que “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”. Tendo em linha de conta este preceito legal, podemos concluir que a legitimidade ativa, ou seja, a legitimidade sobre quem recai a possibilidade de requerer o arresto, está atribuída ao credor. Relativamente à legitimidade passiva, para além da observância pelo art.º 391º, nº 1 in fine do CPC, há ainda que atender ao art.º 392º, nº 2 do mesmo diploma legal que prevê a possibilidade de o arresto ser requerido contra “o adquirente de bens do devedor”. Esta questão remete-nos para a impugnação pauliana, prevista no art.º 619º, nº 2 do CC. “O problema central da impugnação pauliana é um devedor fazer sair do seu património bens, em nítida violação do princípio de garantia patrimonial, através de alienação fraudulenta acordada entre si e terceiro”10. Assim sendo, o arresto pode ser requerido contra o devedor, podendo-o ser também contra o adquirente dos bens deste. Apesar de os requisitos do arresto já terem sido enunciados, ainda que de forma sumária, cumpre-nos agora passar a explanar cada um deles. Os artigos. 392º, nº 1 e 391º, nº 1 do CPC preveem os requisitos “cumulativos”11 desta providência cautelar: se por um lado o requerente tem de deduzir os fatos que provem a existência do seu crédito, por outro tem ainda de provar o fundado receio de perda da garantia patrimonial do crédito, o que se traduz este último no “periculum in mora”12. A falta de um dos pressupostos invalida o 10

Cfr. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo nº 272/11.5GDCBR-B.C1, de 5 de junho de 2019. Relator Brizida Martins. [Consultado a 15 de dezembro de 2019]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/644a564cfe290e5a80258412003832f5 ?OpenDocument 11 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA – Processo nº 57/16.2T8ORM.E1, de 19 de maio de 2016, Relator Albertina Pedroso. [Consultado a 15 de dezembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b9fb42c01b0f50af80257fc400340435? OpenDocument 12 AMARAL, Jorge Augusto Pais de – Direito Processual Civil. 13ª ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2017, p. 70.

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decretamento do arresto. Sendo certo que cabe sempre ao requerente fazer prova da verificação destes requisitos, sendo que estes se devem verificar “no momento em que o arresto é pedido e decretado”13. Quanto à probabilidade da existência de um crédito, o art.º 392º, nº 2 do CPC, prevê desde logo que o requerente do arresto deve deduzir “os factos que tornam provável a existência do crédito”. Apesar da lei não tornar exigível que o crédito seja líquido, é sempre necessário ao requerente indicar uma estimativa do valor pecuniário deste14. A este respeito o Tribunal da Relação de Évora decidiu que “não é necessário que se prove que o crédito seja certo, líquido e exigível, bastando tão somente que se prove indiciariamente a probabilidade séria da sua existência”15. Conclui-se, assim, que a lei não exige a existência de um título executivo como requisito do arresto. De forma sucinta, o requerente tem apenas de exteriorizar o “fumus boni júris”16 da sua pretensão, não lhe sendo exigível demonstrar mais do que a provável existência do crédito17. Se for provada a inexistência do crédito, o arresto deve ser tido como “injustificado”18. Quanto ao justificado receio de perda da garantia patrimonial o art.º 391º, nº 1 do CPC prevê como outro requisito do arresto que o credor “tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito”. Este requisito constitui o “periculum in mora”, que se traduz no perigo que a demora na obtenção da decisão final traz para a pretensão do credor. Este perigo pode traduzir-se em atos de “ocultação, disposição, alienação, ou oneração”19 do património do devedor que constitui a garantia patrimonial do credor. O coletivo de juízes do Tribunal da Relação de Évora, determinou que o justificado receio (muitas vezes apelidado pela jurisprudência como fundado receio) não se pode basear em “conjeturas, suspeições, simples juízos de valor, ou temores de índole subjetiva do requerente do arresto”20. Assim sendo, para

13

GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 225. 14 IDEM - Ibidem, p. 228. 15 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA – Processo nº 57/16.2T8ORM.E1, de 19 de maio de 2016, Relator Albertina Pedroso. [Consultado a 15 de dezembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b9fb42c01b0f50af80257fc400340435? OpenDocument 16 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo nº 0414532, de 13 de dezembro de 2004. Relator Ferreira da Costa. [Consultado a 15 de dezembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/3383546dc4ecf9e580256f8c0058209c? OpenDocument 17 AMARAL, Jorge Augusto Pais de – Direito Processual Civil. 13ª ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2017, p. 70. 18 GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 228. 19 IDEM – Ibidem, p. 229. 20 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo nº 0414532, de 13 de dezembro de 2004. Relator Ferreira da Costa. [Consultado a 15 de dezembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/3383546dc4ecf9e580256f8c0058209c? OpenDocument

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aferir o justo receio da perda da garantia patrimonial deve ser tido em conta o “critério do bom pai de família”21. Como vemos, a lei não exige como requisito do arresto a perda da garantia patrimonial, antes impondo que haja justificado receio desta. Para aferir este receio é necessário ter em conta fatores como os determinados pela jurisprudência que assentam na “forma de atividade do devedor, a sua situação económica e financeira, a maior ou menor solvabilidade, a natureza do património, a dissipação ou extravio de bens, a adoção de procedimentos anómalos que permitam inferir o propósito de não cumprir o pagamento do crédito”22. Muitos mais critérios são aplicáveis para aferir deste requisito, sendo que a sua verificação depende de cada julgador e de cada caso em particular. De notar que, o art.º 396º do CPC afasta a verificação do justo receio de perda da garantia patrimonial quando o requerente seja o Ministério Público. Nos termos do nº 3 deste preceito legal, também “o credor pode obter, sem necessidade de provar o justo receio de perda da garantia patrimonial, o arresto do bem que foi transmitido mediante negócio jurídico quando estiver em dívida, no todo ou em parte, o preço da respetiva aquisição”. Devemos ter ainda em conta que na providência cautelar de arresto, o requerente não deve propor-se a arrestar bens de valor desproporcional ao valor do crédito, o que quer dizer que deve limitar-se a bens de valor suficiente que garantam a “satisfação do crédito”23. Tal não significa que não possam ser arrestados bens de valor superior ao crédito que se pretende acautelar. O que não é aceitável é, por exemplo, no caso de um crédito de 5.000,00€, em que o devedor possua dois bens penhoráveis, um no valor de 10.000,00€ e outro no valor de 50.000,00€, o credor pretender arrestar ambos os bens. Em relação ao valor dos bens a arrestar é necessário ter em conta que o julgador deve aferir vários critérios como o valor de desvalorização dos mesmos, a demora até à decisão final, os encargos que sobre os mesmo recaiam, entre outros24. Assim sendo, não deve ser só atendido o valor de mercado desses mesmos bens. Ainda relativamente ao princípio da proporcionalidade é fundamental referir que o arresto pode ser recusado sempre que se comprove que os danos que advêm do seu decretamento sejam superiores aos que se pretendem impedir25, constituindo esta a maior manifestação do princípio da proporcionalidade. Por tudo o que foi exposto acerca deste princípio, podemos entender que o mesmo poderá constituir um terceiro requisito para o decretamento do arresto, 21

GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 231. 22 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL – Processo nº 2222/16.3BELRS, de 8 de maio de 2019, Relator Patrícia Manuel Pires. [Consultado a 15 de dezembro de 2019]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/c7635d2c5897a4e3802583f50027de3 d?OpenDocument 23 GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 239. 24 IDEM – Ibidem, p. 240. 25 IDEM - Ibidem, p. 241.

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uma vez que não basta que exista fummus boni iuris e periculum in mora, porquanto o arresto não é decretado se não houver proporcionalidade entre o crédito e o pedido. Relativamente ao princípio do contraditório é necessário atender ao que dispõe o art.º 393º, nº 1 do CPC. Este preceito legal prevê que sendo verificado o cumprimento dos requisitos do arresto, este é decretado sem audição do requerido, o que significa que há uma clara preterição ao princípio do contraditório prévio. Assim será por se entender que no caso do requerido ser ouvido antes do decretamento do arresto, se frustraria o objetivo desta providência cautelar, dado que aquele ao saber da pretensão do requerente em arrestar os seus bens, teria tempo suficiente para dispor destes e assim sendo o respeito por este princípio poderia cominar no “insucesso da providência”26. Esta preterição resulta do art.º 366º, nº 1 do CPC que dispõe que o tribunal “ouve o requerido, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência”. Segundo prevê o nº 6 do art.º 366º do CPC, o requerido é ouvido após o decretamento do arresto. Pela análise dos art.º 393º, nº 1 e 366º, nº 6 do CPC se pode concluir que, pese embora, haja preterição do princípio do contraditório prévio, não há preterição do princípio contraditório, uma vez que o requerido não é ouvido antes do decretamento do arresto, mas sim numa fase posterior a esta. Não se poderia admitir que não houvesse observância do princípio do contraditório, na medida em que tal situação violaria o princípio da igualdade das partes no que toca ao exercício da faculdade da defesa, previsto no art.º 4º do CPC. A tramitação do arresto tem início, como qualquer outro processo, com um requerimento, no qual devem ser expostas as razões de fato e de direito terminando o requerente por formular a sua pretensão.27 Pelo que, o requerente no seu requerimento oferecerá a prova sumária do direito ameaçado e justificará o receio da lesão, tal como decorre do nº 1 do art.º365º do CPC. Ao procedimento é aplicável, por remissão do nº 3 do art.º 365º do CPC, o disposto nos art.º 292º a 294º do mesmo diploma legal. Após a distribuição, efetuada de acordo com os termos dos art.º 16º e ss. da Portaria nº 280/2013, a secretaria faz a autuação e não havendo motivo de recusa (cfr art.º 552º e 558º do CPC) conclui o processo ao juiz. Concluído o processo para o juiz, este profere um de três possíveis despachos: de indeferimento liminar, caso verifique que o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias

26

AMARAL, Jorge Augusto Pais de – Direito Processual Civil. 13ª ed. Coimbra: Almedina, S.A., 2017, p. 71. 27 MENDES, António Alfredo & PROENÇA, Carlos (2014) – Procedimentos Cautelares: Noção e Requisitos. Um Olhar Possível com a Reforma Processual Civil de 2013. [Consultado a 29 de novembro de 2019] Disponível em: http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/6395/jurismat4_339-367.pdf?sequence=1

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insanáveis de que o juiz deva conhecer oficiosamente (cfr art.º 186º, 569º, 590º, nº 1 e 629º, nº 3, al. c) do CPC); de aperfeiçoamento (cfr art.º 6º, 411º e 560º do CPC); ou, a designar o dia para a inquirição das testemunhas do requerente (cfr art.º 378º do CPC). O arresto, após o seu decretamento, está sujeito a registo, nos termos do art.º 3º do Código de Registo Predial (CRPred.). Sendo vários os bens suscetíveis de arresto, designadamente, bens imóveis, bens móveis, veículos automóveis, direitos, bens indivisos e de quotas em sociedade, estabelecimentos comerciais, depósitos bancários e títulos de crédito, compete à secretaria proceder ao registo dos mesmos (cfr art.º 8º-A, nº 3, al. a) do CRPred.). Nos termos do nº 1 do 755º do CPC, estabelece-se que na penhora de bens imóveis, tal como sucede para a de bens móveis sujeitos a registo (cfr art.º 768º, nº 1 do CPC), se efetua por comunicação eletrónica à respetiva Conservatória. Junta a certidão comprovativa de registo, é elaborado o auto de arresto e afixado o edital (cfr art. º391º, nº 2 e 755º, nº 3 do CPC). Mais concretamente quanto aos bens móveis, o arresto é efetuado através da apreensão dos bens indicados, os quais serão entregues a um depositário, aplicando-se as regras relativas à penhora de bens móveis sujeitos ou não a registo, conforme previsto nos art.º 391º, nº 2 e 764º e ss. do CPC. Quando em causa esteja o arresto de um veículo, segundo o nº 2 do art.º 768º do CPC, pode ser precedido da imobilização do mesmo. Relativamente ao arresto de depósitos bancários, o arresto é efetuado mediante uma comunicação à entidade bancária de que o saldo fica à ordem do tribunal, devendo aquela no prazo de 2 dias comunicar o montante arrestado, de acordo com o estabelecido nos art.º 391º, nº 2 e 780º-A do CPC. Se se tratar de títulos de crédito efetua-se o arresto mediante o disposto no art.º 774º do CPC, ou estando estes depositados em instituição de crédito efetua-se mediante a comunicação à mesma, conforme os termos como do anteriormente referido quanto aos depósitos bancários. Posteriormente, o requerido é notificado da decisão que ordenou o arresto, aplicando-se o disposto quanto à citação pessoal segundo os art.º 366º, nº 6, 376º, nº 1 e 393º, nº 1 do CPC. Após a notificação, acompanhada do duplicado do requerimento inicial, das cópias dos documentos juntos, da decisão de decretamento do arresto e do respetivo auto (cfr art.º 227º do CPC), o requerido, querendo, tem o prazo de 10 dias para deduzir oposição (aplicando-se o previsto no art.º 245º quando haja lugar a dilações), ou de 15 dias para interpor recurso, segundo os art.º 372º e 638º, nº 1 do CPC. Optando pela via da oposição, prevista na al. b) do nº 1 do art.º 372º do CPC, o requerido tenta “alegar e provar factos que invalidem os fundamentos da decisão ou, pelo menos, determinem a sua redução”. Na oposição, o requerido impugna a matéria de facto, alegando novos

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factos para que o tribunal aprecie a sua pretensão.28 Segundo o art.º 372º, nº 1, al. a) do CPC, o requerido opta pela via do recurso quando entende que o arresto não deveria ter sido decretado. No recurso, embora não impugnando a prova produzida, o requerido pode alegar não existir fundado receio na pretensão do autor, podendo ainda defender-se, tentando comprovar que o requerente não prestou prova suficiente para a existência do crédito invocado.29 No que concerne ao depositário dos bens arrestados, quando seja o próprio requerido, este pode logo ser notificado aquando a citação do arresto de que fica depositário, ou, no caso de não ser o requerido, passa a ser notificada a pessoa nomeada através de carta registada. Por fim, havendo oposição por parte do requerido, abre-se conclusão para o juiz, que, por sua vez, irá proferir um despacho, a notificar o requerente e o requerido, da decisão ou um despacho a designar data da audiência para a posterior decisão. Da decisão final, é também admissível recurso, de acordo com os termos do art.º 638º do CPC. O valor deste procedimento cautelar é determinado pelo montante do crédito que se pretende garantir, segundo a al. e) do nº 3 do art.º 304º do CPC. No que respeita à caducidade, o arresto fica sem efeito nas situações previstas no art.º 373º do CPC, bem como quando obtida na ação de cumprimento sentença com trânsito em julgado, o credor insatisfeito não promova a execução nos dois meses subsequentes, ou se, promovida a execução, o processo ficar sem andamento durante mais de 30 dias, por negligência do exequente, conforme dispõe o art.º 395º do CPC. Podemos assim concluir que um dos maiores problemas, senão o maior, no que toca ao decretamento do arresto é a aferição pelo julgador da verificação ou não dos requisitos cumulativos exigidos para esta providência cautelar. Após

o

exposto,

resta-nos

efetuar

explicitar

duas

figuras

afins

do

arresto,

designadamente, o arrolamento e a penhora, e salientar os seus aspetos diferenciadores entre estas figuras e o arresto. Pois, devido a existirem entre estas figuras e o arresto pontos de convergência, convém mencionar quais as diferenças entre estas e a providência cautelar analisada anteriormente. Começando pelo arrolamento, este é um procedimento cautelar especificado, cujo regime jurídico se encontra previsto nos art.º 403º a 409º do CPC, o qual detém uma natureza provisória conservatória. De acordo com o Tribunal da Relação de Lisboa, este “visa conferir tutela urgente e acauteladora a direitos a brandir ulteriormente em

28

AMARAL, Jorge Augusto Pais de – Direito Processual Civil. 13ª ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2017, p. 72. 29 IDEM – Ibidem.

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situações de «receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos»”30. Desta forma, de acordo com o art.º 403º, nº 1 do CPC, este procedimento cautelar destina-se a garantir a conservação de determinados bens litigiosos enquanto se discute a titularidade de direitos sobre os mesmos na ação principal, bem como, a salvaguardar a subsistência de documentos e a sua conservação, os quais fazem prova da titularidade de um direito.31 O arrolamento consiste assim numa inventariação dos bens, efetuando-se a sua descrição e avaliação num auto, e posteriormente o seu depósito junto do depositário nomeado para o efeito ou outro destino diverso, de acordo com o art.º 405º, nº 3 e 406º, nos 1 a 3 do CPC, é possível assegurar que o bem ou o documento se encontrava num dado estado, devendo o depositário diligenciar a conservação do mesmo no estado descrito. Note-se que, no arrolamento de documentos apenas não se efetua a avaliação do mesmo (art.º 406º, nº 4 do CPC). Convém salientar que, segundo o nº 2 do art.º referido anteriormente, «o arrolamento é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas», verificando-se, assim, o caráter instrumental pleno entre o arrolamento e a ação principal. Esta providência cautelar não é suscetível de ser objeto da inversão do contencioso (art.º 376º, nº 4 a contrario do CPC), não sendo assim possível converter a tutela provisória conferida pelo decretamento da providência cautelar numa tutela definitiva, o que é compreensível pelo fato de os pedidos no procedimento cautelar e na ação principal serem distintos32. Por um lado, no arrolamento, pretende-se assegurar a conservação de um bem litigioso ou de um documento durante a subsistência da ação principal. Por outro lado, na ação principal, o pedido subjacente trata-se de o reconhecimento de um direito sobre os bens. Por

fim,

convém

salientar

que

existem

duas

modalidades

de

arrolamentos,

designadamente, o arrolamento geral e o arrolamento especial. Enquanto que, os arrolamentos especiais encontram-se previstos no art.º 409º do CPC, sendo estes, nomeadamente, o arrolamento preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento (art.º 409º, nº 1 do CPC) e o arrolamento de bens abandonados por fato imputável à ausência do seu titular, de a herança se encontrar jacente ou por outro motivo, manifestando-se necessário assegurar a sua perda ou deterioração (art.º 409º, nº

30

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 3376/14.9T8FNC-A.L1-6, de 23 de abril de 2015. Relator Carlos Marinho. [Consultado a 17 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/fd1e1d69e8c79d3180257e54004aab39 ?OpenDocument 31 GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 255. 32 IDEM – Ibidem, pp. 122-125.

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2 do CPC). Neste último caso, estes bens são arrecadados judicialmente por intermédio do arrolamento, conforme dispõe o art.º 409º, nº 2 do CPC. Todos os restantes arrolamentos que não se enquadram nas situações previstas nos nos 1 e 2 do art.º 409º do CPC, consideram-se subsidiariamente como consistindo num arrolamento geral. Relativamente à legitimidade ativa, isto é, quem pode requerer, nos termos do art.º 404º, nº 1 do CPC, a regra geral é que a providência cautelar em apreço pode ser interposta por qualquer pessoa que detenha um interesse na conservação dos bens ou dos documentos, devendo o requerente alegar e provar que possuí determinado interesse sobre esses mesmos bens. De acordo com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, “é condição de legitimidade ativa para o requerimento da providência cautelar do arrolamento ter o requerente direito certo ou eventual aos bens a arrolar”33. Contudo, no nº 2 do mesmo art.º delimita-se o âmbito da legitimidade ativa, dado que, quanto aos credores, apenas aqueles que sejam credores nas situações de arrecadação da herança. Segundo José Alberto dos Reis, essas situações consistem apenas nos casos em que “a herança está jacente, ou seja, quando a herança está aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado”. O credor, nestes casos, deverá alegar e provar que tem a qualidade de credor e que a herança se encontra jacente.34 Note-se que, convém aqui referir que nos casos de arrolamento especial do art.º 409º, nº 1 do CPC, a legitimidade ativa pertence a qualquer um dos cônjuges, o qual pode requerer o arrolamento dos bens comum ou próprios que estejam sujeitos à administração do outro cônjuge. Reiterando o que foi dito anteriormente na parte introdutória,

os

procedimentos

cautelares,

estes

detêm

essencialmente

dois

pressupostos, designadamente, o periculum in mora e o fumus boni juris, de acordo com o art.º 362º do CPC. Apesar de serem mais específicos, os requisitos da providência cautelar de arrolamento possuem o mesmo espírito dos requisitos das providências cautelares comuns, anteriormente referidos. O art.º 405º, nº 1, parte inicial do CPC dispõem que o requerente deve alegar e fazer prova sumária do seu direito sobre os bens que pretende arrolar, ou seja, o interesse na sua conservação, e dos factos que fundamentam o seu receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens. Mediante a análise desta disposição legal, verifica-se que os requisitos subjacentes ao arrolamento são, nomeadamente, a probabilidade da existência

33

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo nº 885/10.2TBMAI-B.P1, de 14 de julho de 2010. Relator Guerra Banha. [Consultado a 17 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/59caa6bf843e8430802577c0005811b 0?OpenDocument 34 IDEM – ibidem.

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de um direito sobre os bens ou documentos (art.º 403º, nº 2 do CPC) e o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou documentos (art.º 403, nº 1 do CPC).35 De acordo com José Alberto dos Reis, a situação que justifica o requerimento da providência cautelar de arrolamento quando “uma pessoa tem ou pretende ter direito a determinados bens e mostra que certos factos ou circunstâncias fazem nascer o justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens”.36 No mesmo sentido, o Tribunal da Relação de Évora afirma que são pressupostos cumulativos do arrolamento, designadamente a probabilidade da existência do direito relativo ao bem e o justificado receio do seu extravio, ocultação ou dissipação.37 No que concerne à probabilidade da existência de um direito sobre os bens ou documentos (art.º 403º, nº 2 do CPC), o requerente deverá possuir “interesse jurídico relevante” na manutenção dos bens ou documentos num dado estado (art.º 405º, nº 1, parte inicial do CPC), demonstrando ao tribunal a provável procedência da ação principal proposta ou a propor em que se pede o reconhecimento desse direito (art.º 405º, nº 1, segunda parte do CPC).38 No entanto, tal como afirma o Tribunal da Relação do Porto, “não se exige a certeza da propriedade do bem a arrolar, mas a aparência da titularidade do direito”39. Assim, o requerente deve deter um “direito aparente” sobre os bens ou documentos a arrolar.40 Relativamente à existência de justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou documentos (art.º 403º, nº 1 do CPC), o requerente deverá se encontrar numa situação em que corra um risco sério de os bens ou os documentos serem extraviados, ocultados ou dissipados, devendo alegar e provar sumariamente os fatos concretos que traduz a existência de receio sério e real (art.º 405º, nº 1, parte inicial do CPC).41 Neste âmbito, Abrantes Geraldes afirma que considera suficiente “a prova da existência de atos 35

GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 256. 36 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 5053/13.9TBOER-A.L1-2, de 11 de novembro de 2013. Relatora Maria João Mouro. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/67d544ba863a14a780257c2f005e738f? OpenDocument 37 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE EVÓRA – Processo nº 2020/06-3, de 25 de janeiro de 2007. Relator Almeida Simões. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/25fda55a33759f8680257de1005749e7? OpenDocument 38 GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, pp.256-257. 39 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo nº 9150386, de 10 de outubro de 1991. Relator Mário Cancela. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6d09bea43878244a8025686b00662a9 5?OpenDocument 40 GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 257. 41 IDEM – Ibidem, p. 258.

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de delapidação de bens, a transferência de bens móveis para locais desconhecidos, a apropriação ilegítima de valores depositados, a intenção de vender bens” para provar o justo receio.42 Para além disso, de acordo com o Supremo Tribunal de Justiça, este justo receio consiste num “temor, acompanhado de incerteza, o qual se trata um facto a ocorrer no futuro, sendo presumível a sua verificação”.43 Assim, tal como saliente Marco Carvalho Gonçalves, este medo fundamentado de extravio, de ocultação ou de dissipação não se deve ter verificado, sendo presumível a sua verificação, ou se o extravio, ocultação ou dissipação de bens ou documentos já tiver ocorrido ainda subsistir um perigo de outros bens serem extraviados, ocultados ou dissipados.44 Destarte, em regra, para que a providência cautelar seja decretada devem-se verificar cumulativamente a probabilidade da existência de um direito sob os bens ou documentos a arrolar e o fundado justo receio de extravio, ocultação e dissipação dos mesmos, de acordo com o art.º 405º, nº 1 do CPC. Contudo, para os arrolamentos ditos especiais, isto é, quando este procedimento cautelar é requerido antes ou na subsistência de uma ação de separação judicial de pessoas e bens, de divórcio, de declaração de nulidade ou anulação de casamento (art.º 409º, nº 1 do CPC), e nos casos do nº 2 do art.º 409º do CPC em que os bens se encontrem abandonados,

não

é exigível

a

verificação do

segundo

requisito

mencionado

anteriormente, isto é, o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens ou dos documentos, de acordo com o art.º 409º, nº 3 do referido diploma legal. Assim, nestas situações, o requerente apenas tem que alegar e provar a provável existência de um direito sob os bens ou documentos que pretende arrolar (art.º 405º, nº 1 do CPC). De acordo com o Tribunal da Relação de Lisboa, a dispensa da verificação do justo receio do extravio, ocultação ou dissipação dos bens ou documentos, prevista no art.º 409º, nº 3 do CPC, baseia-se no facto de a natureza litígios previstos nos nos 1 e 2 do art.º 409º do CPC permitirem “presumir (iuris et de iure) que a situação pode ser favorável a atuações com pouca lisura sobre o património, agravando os motivos de discórdia entre as partes envolvidas”.45 42

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 5053/13.9TBOER-A.L1-2, de 11 de novembro de 2013. Relatora Maria João Mouro. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/67d544ba863a14a780257c2f005e738f? OpenDocument 43 ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo nº 066456, de 20 de janeiro de 1977. Relator Daniel Ferreira. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d272c16dec6f01a0802568fc00398aa6? OpenDocument 44 GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, p. 258. 45 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 2170/14.1TBSXL.L1-8, de 18 de setembro de 2014. Relatora Teresa Prazeres Pais. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em:

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Porém, o espírito da lei consagrada no art.º 409º, nº 1 é mais ampla que a sua letra (art. 9º do CC), existindo assim mais situações às quais é aplicável a dispensa de verificação do justo receio, prevista no nº 3 do referido art.º. Por conseguinte, no mesmo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, entende-se que se deve estender esta dispensa aos casos em que o arrolamento é preliminar ou incidente do processo de inventário de partilha dos bens. Este entendimento é também seguido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, defendendo este que tanto no arrolamento preliminar ou incidente do processo de divórcio como no arrolamento preliminar ou incidente do processo de inventário verificase “o fundado receio de descaminho ou ocultação de bens, dada a conflituosidade dos cônjuges, tudo com vista a prevenir o desaparecimento do património conjugal e de modo a alcançar-se uma partilha justa”, o que motiva a dispensa da verificação do referido requisito. Desta forma, o arrolamento nos casos de processo de inventário para a partilha dos bens comuns do casal também é merecedor “de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência”.46 Em suma, é necessária a verificação cumulativa da probabilidade da existência de um direito sobre os bens ou documentos a arrolar e o fundado justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos mesmos, de acordo com os art.º 405º, nº 1 e 403º, nos 1 e 2, ambos do CPC. Contudo, nos casos previstos nos nos 1 e 2 do art.º 409º do CPC apenas é necessária a verificação da provável existência de um direito sobre os bens ou documentos a arrolar, nos termos do nº 3 do mesmo art.º 409º do CPC. O arrolamento apresenta várias semelhanças com o arresto, pois, para além de serem os dois procedimentos cautelares especificados de natureza provisória conservatória, tal como António Alfredo Mendes e Carlos Proença referem, ambos se tratam de “instrumentos de garantia patrimonial do titular dos direitos em perigo. Contudo, verificam-se claras distinções entre estas duas providências cautelares.47 Por um lado, o arresto se traduz numa apreensão judicial de bens, tal como dispõe o art.º 391º, nº 2 do CPC, ao passo que, o arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens ou dos documentos, de acordo com o art.º 406º, nº 1 do CPC. No que concerne ao objeto, de acordo com os art.º 391º, nº 2 e 735º do CPC e o art.º 619º do CC, o arresto incide sobre os bens suscetíveis de penhora, tal como foi mencionado http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c6e68fb56939c65980257da3003995d7? OpenDocument 46 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo nº 1515/17.7T8VCT-B.G1, de 24 de janeiro de 2019. Relator António José Saúde Barroca Penha. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c6e68fb56939c65980257da3003995d7? OpenDocument 47 MENDES, António Alfredo e PROENÇA, Carlos – Procedimentos Cautelares: Noção e Requisitos. Um Olhar Possível com a Reforma Processual Civil de 2013. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/6395/jurismat4_339-367.pdf?sequence=1

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anteriormente neste trabalho académico. Ao passo que, o arrolamento incide sob bens móveis e imóveis e sob documentos, de acordo com o art.º 403º, nº 1 do CPC. Desta forma, verifica-se que os bens que podem ser suscetíveis de arresto e de arrolamento são diferentes, sendo possível com que um bem seja objeto de arrolamento e não seja permitido arrestar o mesmo, como é o caso dos documentos. Relativamente à finalidade, nos termos do art.º 391º do CPC, o arresto visa evitar a dissipação dos bens do património do devedor, garantindo, assim, o crédito do credor. Por outro lado, de acordo com o art.º 403º do CPC, no arrolamento, mediante uma “inventariação”48 se procura garantir a persistência de documentos e conservar os bens, com o objetivo de que estes subsistam à data da instauração ou do fim da ação principal, respetivamente. De acordo com o Tribunal da Relação de Coimbra, “o arresto pressupõe uma relação bilateral entre credor e devedor”49, ao passo que, no arrolamento verifica, necessariamente, uma relação de credor e devedor. Assim, no arresto, o credor é quem detém legitimidade ativa para requerer esta providência cautelar, de acordo com o art.º 391º, nº 1 do CPC, enquanto que, no arrolamento se observa a regra geral do art.º 404º do CPC, que determina que possuí legitimidade ativa qualquer pessoa com interesse na conservação dos bens, com as ressalvas previstas no nº 2 do art.º 404º e do nº 1 do art.º 409º do CPC. Relativamente à existência de contraditório prévio, no arresto, em regra, o requerido não é ouvido antes do decretamento da providência cautelar, não se verificando o contraditório prévio, de acordo com o art.º 393º, nº 1 do CPC, sendo o exercício do contraditório assegurado num momento posterior. No caso do arrolamento, este segue a regra geral do art.º 366º aplicável subsidiariamente por força do art.º 376º, ambos do CPC, verificando-se assim a existência do contraditório prévio ao decretamento da providência cautelar. Por fim, quanto à cessação da providência, ambas são providências insuscetíveis de ser objeto de inversão do contencioso (art.º 374º, nº 4 a contrario do CPC), não se admitindo, assim, de estas proporcionarem uma tutela definitiva. Relativamente ao arresto, este cessa quando se verifica o fato extintivo do crédito, isto é, por exemplo, quando se efetua o pagamento do mesmo (art.º 373º, nº 3 do CPC – levantamento da providência), ou por conversão em penhora (art.º762º do CPC). No que concerne ao arrolamento, procede-se ao seu levantamento quando se verifica o facto extintivo, nos 48

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 21568/17.7T8SNT.L1-8, de 28 de junho de 2019. Relator António Valente. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/BB75F5E14D2B41E9802582D6004A75A4 49 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo nº 131/11.1TBVLF-B.C1, de 27 de fevereiro de 2018. Relator Vítor Amaral. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/937fa548c70085cb80258255003eb725 ?OpenDocument

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termos do art.º 373º, nº 3 do CPC, o qual em princípio ocorrerá com a sentença da ação principal pois, a conservação dos bens ou documentos visada por esta providência se circunscreve até ser reconhecido um dado direito. A penhora por sua vez está prevista nos art.º 735º e ss. do CPC e consiste na apreensão dos bens do executado, ficando este impossibilitado dos atos de disposição desses mesmos bens. A finalidade da penhora passa pela venda executiva, sendo o produto desta a garantia da dívida exequenda50. A penhora ocorre no âmbito do processo executivo, normalmente associada à ação executiva para pagamento de pagamento de quantia certa. Perante o incumprimento da obrigação de pagamento por parte do devedor, um dos modos de obter o pagamento é através do produto da venda judicial (art.º 795, nº 1 e art.º 811º e seguintes todos do CPC), sendo que, para o efeito, em primeiro lugar, penhora-se os bens para que o devedor (o executado) fique impossibilitado de exercer poderes sobre os seus bens.51 Assim, evita-se que o mesmo disponha destes para que esteja garantida a finalidade da penhora. O art.º 735º, nº 1 do CPC prevê que todo o património do devedor, desde que sujeito a penhora, responde pela dívida exequenda. Há no entanto vários pontos em que o arresto e a penhora divergem, assim como há pontos em comum. Passaremos de seguida a analisar os pontos que consideramos serem mais os pertinentes. Quanto à definição legal, o arresto “consiste numa apreensão judicial de bens capaz de antecipar os efeitos derivados da sentença de condenação a proferir”52, sendo que a penhora é “uma providência de afetação através da qual se sujeitam os bens do devedor aos fins da execução, ou seja, à satisfação do direito do credor”53. Relativamente aos intervenientes, no arresto temos o credor que assume a posição de requerente, e o devedor que assume a posição de requerido. Por seu turno, na penhora intervém o credor, designado como exequente; o devedor que é o executado; o agente de execução ou oficial de justiça. Ainda relativamente aos intervenientes, é de notar que há intervenção do agente de execução ou o oficial de justiça no arresto quando este é convertido em penhora. 50

FREITAS, José Lebre de – A ação executiva à luz do código de processo civil de 2013. 7ª Ed. Coimbra: Gestlegal, 2017, p. 233. 51 IDEM – Ibidem, p. 234. 52 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 163-E/1997.L1-7, de 15 de novembro de 2019, Relator Pimentel Marcos. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/05e6d13a3f2052038025797b003caeb3 ?OpenDocument 53 53 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 163-E/1997.L1-7, de 15 de novembro de 2019, Relator Pimentel Marcos. [Consultado a 15 de novembro de 2019] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/05e6d13a3f2052038025797b003caeb3 ?OpenDocument

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Quanto à designação do objeto, no arresto temos um crédito e na penhora uma dívida exequenda. Em relação à citação, e no que concerne ao arresto, este é decretado sem audição prévia da parte contrária por se considerar que a observância pelo princípio do contraditório nesta fase, frustraria o efeito útil da ação. Na penhora e segundo o art.º727º, nº 1 do CPC “o exequente pode requerer que a penhora seja efetuada sem a citação prévia do executado, desde que alegue factos que justifiquem o receio de perda da garantia patrimonial do seu crédito e ofereça de imediato os meios de prova”. Na penhora a invocação do fumus boni iuris “é dispensada, visto que o título executivo já presume a existência do direito exequendo”54. Assim, e por norma, ao arrestado e ao executado é dada a oportunidade de exercer o contraditório depois de decretados, respetivamente, o arresto e/ou a penhora. No tocante à finalidade, no arresto o que se pretende é preservar a garantia patrimonial do credor, retirando ao devedor o gozo dos seus bens. Decretado o arresto, o arrestado perde o pode de gozo e disposição dos seus bens. Na penhora, a finalidade prende-se em apreender os bens do executado, para posteriormente se proceder à venda judicial e com o resultado dessa venda se satisfazer a dívida exequenda. Também na penhora o executado “é esvaziado dos poderes de gozo”55 dos seus bens, contudo este não perde o poder deles dispor, ainda assim estes atos de disposição são “inoponíveis à execução”56. A finalidade é um ponto em comum do arresto e da penhora. O Tribunal da Relação do Porto considera que o arresto “constitui uma penhora antecipada”57, na medida em que depois de arrestados os bens o arresto se converte em penhora58. Relativamente aos requisitos, no arresto têm de estar verificados, cumulativamente, a provável existência do crédito, bem como o justo receio de perda da garantia patrimonial, sendo que estes têm de ser invocados pelo credor. O fundamento primordial da penhora é a existência de um dos títulos executivos presentes no elenco taxativo do art.º 703º do CPC. Como já foi referido anteriormente, ao regime legal do arresto são aplicáveis subsidiariamente as regras relativas à penhora59, assim sendo, são passíveis de serem arrestados todos os bens que forem passíveis de serem penhorados, excluindo-se deste âmbito os bens absoluta e relativamente impenhoráveis, bem como os bens parcialmente 54

FREITAS, José Lebre de – A ação executiva à luz do código de processo civil de 2013. 7ª Ed. Coimbra: Gestlegal, 2017, p. 194. 55 IDEM – Ibidem, p. 302. 56 IDEM – Ibidem, p. 305. 57 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo nº 335/12.0TYVNG-G.P1, de 21 de novembro de 2016. Relator Carlos Querido. [Consultado a 15 de novembro de 2019]. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/4c1d46de388b52728025807b0055206c ?OpenDocument 58 Cfr. art. 762º do CPC. 59 Cfr. art. 391º, nº 2 in fine do CPC.

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penhoráveis. Por seu turno além dos bens suscetíveis de penhora, podem ainda ser penhorados, dentro de certos limites os bens relativamente impenhoráveis e os bens parcialmente penhoráveis. Relativamente a este campo de análise é importante, ainda, referir que o arresto pode ser movido contra bens do devedor que estejam em posse de terceiro, nos termos do art.º 393º, nº 2 do CPC. Segundo prevê o art.º 735º, nº 2 do CPC, também a penhora pode incidir sobre bens de terceiro “desde que a execução tenha sido movida contra ele”. Para finalizar esta breve comparação, é pertinente referir que tanto o arresto como a penhora observam o princípio da proporcionalidade60. Requerente e exequente devem limitar-se a arrestar e executar, respetivamente, os bens suficientes que garantam o cumprimento do seu crédito. Este princípio está refletido para o arresto no art.º 393º, nº 2 do CPC, e para a penhora no art.º 735º, nº 3 do CPC. Conclusões Com esta análise concluímos que o arresto, enquanto providência cautelar de natureza provisória conservatória, prevista no art.º619º do CC e nos art.º 391º a 396º do CPC, visa salvaguardar o efeito útil da ação principal a tentar ou já intentada pelo credor contra o devedor, de forma a impossibilitar este último de ocultar, dissipar, alienar e onerar o seu património, o qual constitui a garantia patrimonial para o cumprimento do seu crédito. Além disso, verificamos que aferição da verificação do requisito fumus boni iuris, encontra-se sujeita à subjetividade do juiz, pois, o que pode para um julgador constituir justo receio, para outro pode não o ser. Tal como apuramos no âmbito da pesquisa e mediante a análise dos institutos jurídicos do arrolamento e da penhora, em relação às figuras afins, verificámos que apesar de existirem semelhanças entre estas figuras e o arresto, persistem inúmeras diferenças relativas ao objeto, à finalidade, à legitimidade, entre outros aspetos. Embora breve este trabalho desenvolve e explicita o procedimento cautelar de arresto e evidencia as diferenças entre este e o arrolamento e a penhora e a sua importância prática e utilidade enquanto instrumentos legais amplamente utilizados na garantia de direitos creditórios.

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MESQUITA, Lurdes; COSTEIRA DA ROCHA, Francisco – A ação executiva no Novo Código de Processo Civil. 2ª Ed. Porto: Vida Económica, 2014, p. 66.

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Bibliografia AMARAL, Jorge Augusto Pais de – Direito Processual Civil. 12ª Ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2016, ISBN: 978-972-40-5952-5. AMARAL, Jorge Augusto Pais de – Direito Processual Civil. 13ª Ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2017, ISBN: 978-972-40-7148-0. FREITAS, José Lebre de – A Ação executiva: à luz do código de processo civil de 2013. 6ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, S.A., 2014, ISBN: 978-972-32- 2224-1. FREITAS, José Lebre de – A ação executiva à luz do código de processo civil de 2013. 7ª Ed. Coimbra: Gestlegal, 2017, ISBN: 978-989-99824-3-7. GONÇALVES, Marco Carvalho – Providências Cautelares. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2015, ISBN: 978-972-40-5855-9. MESQUITA, Lurdes; COSTEIRA DA ROCHA, Francisco – A ação executiva no Novo Código de Processo Civil. 2ª Ed. Porto: Vida Económica, 2014, ISBN: 978-972-788-911-2. PIMENTA, Paulo – Processo Civil Declarativo. 2ª Ed. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2018, ISBN: 978-972-40-7204-3. Webgrafia CADERNO III – O Novo Processo Civil – Trabalhos elaborados pelos Auditores de Justiça do 30.º Curso de Formação de Magistrados do Centro de Estudos Judiciários. [Consult. 26/04/2019]. Disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Caderno_III_Novo%20_Process o_Civil.pdf CASTANHEIRA, Joana Maria Coimbra – As Providências Cautelares e os Requisitos para o seu Decretamento: Confronto entre o Processo Administrativo e o Processo Civil. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2018. Tese de Mestrado. Disponível em: https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/86628/1/Tese%20Joana%20Castanheira.pdf DIRECÇÃO-GERAL DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA (setembro 2006) – Processo Civil. Texto de apoio à formação de Oficiais de Justiça. [Consultado a 4 de outubro de 2019]. Disponível em : https://elearning.mj.pt/dgaj/dados/textos/processocivil/Texto_Apoio_Concurso_Acesso_ED_TJP_ 2006_PROC_CIVIL.pdf MENDES, António Alfredo & PROENÇA, Carlos (2014) – Procedimentos Cautelares: Noção e Requisitos. Um Olhar Possível com a Reforma Processual Civil de 2013. [Consultado a 29 de novembro de 2019] Disponível em: http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/6395/jurismat4_339367.pdf?sequence=1

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SOUSA, Miguel Teixeira (dezembro de 2013) – As providências cautelares e a inversão do contencioso. [Consultado a 2 de outubro de 2019]. Disponível em: https://www.academia.edu/5973963/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M._As_provid%C3%AAncias_ca utelares_e_a_invers%C3%A3o_do_contencioso_12.2013_ Legislação e Jurisprudência DECRETO-LEI nº 41/2013, de 26 de junho, atualizado pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro – Novo Código de Processo Civil. DECRETO-LEI nº 47344/66, de 25 de novembro, atualizado pela Lei nº 85/2019, de 03 de setembro – Código Civil. TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL – Processo nº 2222/16.3BELRS, de 8 de maio de 2019. Relator Patrícia Manuel Pires. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo nº 131/11.1TBVLF-B.C1, de 27 de fevereiro de 2018. Relator Vítor Amaral. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA – Processo nº 272/11.5GDCBR-B.C1, de 5 de junho de 2019. Relator Brizida Martins. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA – Processo nº 57/16.2T8ORM.E1, de 19 de maio de 2016. Relator Albertina Pedroso. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE EVÓRA – Processo nº 2020/06-3, de 25 de janeiro de 2007. Relator Almeida Simões. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – Processo nº 1515/17.7T8VCT-B.G1, de 24 de janeiro de 2019. Relator António José Saúde Barroca Penha. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 163-E/1997.L1-7, de 15 de novembro de 2019. Relator Pimentel Marcos. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 21568/17.7T8SNT.L1-8, de 28 de junho de 2019. Relator António Valente. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 2170/14.1TBSXL.L1-8, de 18 de setembro de 2014. Relatora Teresa Prazeres Pais. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 3376/14.9T8FNC-A.L1-6, de 23 de abril de 2015. Relator Carlos Marinho. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – Processo nº 5053/13.9TBOER-A.L1-2, de 11 de novembro de 2013. Relatora Maria João Mouro. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo nº 0414532, de 13 de dezembro de 2004. Relator Ferreira da Costa. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo nº 335/12.0TYVNG-G.P1, de 21 de novembro de 2016. Relator Carlos Querido. TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo nº 885/10.2TBMAI-B.P1, de 14 de julho de 2010. Relator Guerra Banha.

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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – Processo nº 9150386, de 10 de outubro de 1991. Relator Mário Cancela. SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo nº 066456, de 20 de janeiro de 1977. Relator Daniel Ferreira.

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Titulação de Factos Sujeitos a Registo Predial: O Documento Particular Autenticado, em especial

Titulação de Factos Sujeitos a Registo Predial O Documento Particular Autenticado, em especial

Fernanda Pereira Oficial de Registos Mestre em Solicitadoria

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Sumário: I. Nota Introdutória. II. As Diversas Formas de Titular os Negócios Jurídicos. III. Documento Autêntico versus Documento Particular. IV. Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de julho. 1. Escritura Pública versus Documento Particular. 2. Documento Particular Autenticado e as suas Vicissitudes. 2.1. Sua ulterior “modificação”. 2.2. Registo Predial online - Erro na indicação do número da descrição predial. 2.3. Falta de assinatura do termo pela entidade autenticadora – Consequências. 2.4. Certidão de documento particular autenticado por advogado/solicitador. 2.5. Possibilidade de extração de certidão em papel por serviço de registo predial. 2.6. Prazo do depósito – Dificuldades de carácter técnico. 2.7. Depósito eletrotónico. Prazo e demais requisitos legais. Liquidação do IMT/IS – Tornas Partilha extrajudicial. 2.8. Documentos instrutórios. 2.9. Título constitutivo

da

propriedade

horizontal

formalizado

em

escritura

pública

alteração/modificação – formalização através de DPA ou procedimento “Casa Pronta”. 2.10. Imperfeição do Depósito. 2.11. Consulta dos documentos instrutórios e âmbito da qualificação do registo. 2.12. Aquisição – DPA - Requisitos Legais – Forma e regularidade. 2.13. Outras Questões – Consentimento, negócio consigo mesmo, entre outras. 2.14. Repúdio de herança – Documento particular autenticado – Depósito eletrónico 2.15. Pagamento de uma quantia – Omissão – Termo de autenticação. V. Conclusões. I. Nota Introdutória A titulação de factos sujeitos a registo predial era feita, até janeiro de 2009, essencialmente, por escritura pública, que é da competência exclusiva dos notários. Tudo se alterou a partir dessa data, passando a mesma titulação a poder ser efetuada de outra forma e por outras entidades que não apenas os notários, designadamente, por solicitadores e advogados. Surgiu assim o documento particular autenticado (DPA), que jamais se pode confundir com uma escritura pública, mas que deve, igualmente, conter os requisitos legais a que estão sujeitos os negócios jurídicos sobre imóveis, aplicando-se subsidiariamente o Código do Notariado (CN). As obrigações fiscais inerentes foram reforçadas e imposto como condição de validade a este documento particular autenticado a necessidade de um depósito eletrónico do mesmo e de alguns dos documentos instrutórios. Ora, aquela data de janeiro de 2009, representou uma mudança no paradigma fiscal e uma grande mudança na forma de titular os negócios jurídicos sobre imóveis, levando até alguns autores a apelidar esta alteração de desformalização. De facto, aquela data criou um marco na titulação e um marco para quem titula. Isto porque, as entidades passaram a ser outras, mas todas elas com obrigações acrescidas. Além do cumprimento de obrigações fiscais inerentes à titulação, foi-lhes imposto mais uma obrigação – a promoção do pedido de registo predial obrigatório.

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Assim, desde aquela data, como forma válida de titular os negócios, passou a dispor-se de documentos autênticos e documentos particulares autenticados. II. As Diversas Formas de Titular os Negócios Jurídicos A titulação de factos sujeitos a registo predial era feita, até janeiro de 2009, essencialmente, por escritura pública, que é da competência exclusiva dos notários. Tudo se alterou a partir dessa data, passando a mesma titulação a poder ser efetuada por outras entidades que não apenas os notários, designadamente, por solicitadores e advogados. Alguns autores referem-se a esta alteração como se de uma desformalização se tratasse. Pensamos, no entanto, que não há qualquer desformalização. Formalizar um negócio jurídico é sempre algo imprescindível, visto que tem obrigatoriamente de revestir uma forma externa que o torne cognoscível, sendo proveitoso que o seja de um modo quanto possível inequívoco. Daqui se infere o desígnio de verdade e exatidão da formalização dos atos1. Daí o legislador não colocar de lado a formalização dos atos, nomeadamente os referentes aos imóveis. Atribuiu sim, competências a outras entidades, o que levou a formalizá-los de um outro modo, assumidamente, como uma alternativa à escritura pública. Contudo, manteve as mesmas regras, uma vez que a titulação de atos sujeitos a registo predial deve conter os mesmos requisitos legais a que estão sujeitos os negócios jurídicos sobre imóveis, aplicando-se subsidiariamente o Código do Notariado. Reforçou, até, as obrigações fiscais inerentes e impôs como condição de validade aos documentos particulares autenticados, o depósito eletrónico desses documentos2. Entende-se que, efetivamente, a forma de titular factos sujeitos a registo predial diversificou-se, uma vez que, além da escritura pública (intrínseca a notários), passou a dispor-se de outras formas, seja dizer, documento particular autenticado (alargado a outras entidades, conservadores, oficiais de registo, advogados, solicitadores, entre outros) ou procedimentos simplificados (conservadores e oficiais de registo). Assim, para dar forma aos negócios sujeitos a registo predial, dispomos atualmente de escrituras públicas, procedimentos simplificados e documentos particulares autenticados. Ora, cada entidade e a formalização utilizada, têm as suas particularidades; todavia, jamais poderá ser posto em causa que todas elas representam uma forma válida de titular os negócios jurídicos. Sendo que, cabe às partes, em primeira linha, a escolha da entidade para a formalização do negócio jurídico e, em segunda linha, dependendo da entidade, a escolha da forma utilizada. No entanto, não restam dúvidas que, nomeadamente, os solicitadores e os

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Neste sentido GUERREIRO, José Augusto Mouteira - Temas de Registos e de Notariado, 2010, p. 569 Temática desenvolvida por FIGUEIREDO, David Martins Lopes de - Titulação de Negócios Jurídicos sobre Imóveis, 2018 2

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advogados, apenas poderão formalizar um negócio de factos sujeitos a registo predial, através de um documento particular autenticado, ao qual, por inerência, se aplica a função notarial e fica dotado de fé pública.3 III. Documento Autêntico versus Documento Particular A lei civil, na secção da prova documental, vem dizer-nos que esta é a que resulta do documento. Sendo que documento se traduz em “qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto” – artigo 362.º do Código Civil (CC). No que toca à modalidade dos documentos escritos, de acordo com o artigo 363.º do CC, existem os documentos autênticos, que são os documentos exarados com as formalidades legais, pelas autoridades públicas, nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; e, particulares, que são todos os outros documentos. O artigo 371.º do CC remete-nos para a força probatória dos documentos autênticos e diz-nos que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora. Sendo que, a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (artigo 372.º do CC). Os artigos 373.º a 377.º do CC vêm falar-nos dos documentos particulares, quer em relação à assinatura, autoria da letra e da assinatura, reconhecimento notarial, quer em relação à sua força probatória e à dos documentos autenticados.4 Ora, consta no artigo 373.º, n.º 1, do CC, que os documentos particulares devem ser assinados pelo seu autor, ou por outrem a seu rogo, se o rogante não souber ou não puder assinar. No que toca ao reconhecimento notarial, como dispõe o artigo 375.º, n.º 1, do CC, a letra e a assinatura do documento, ou só a assinatura, têm-se por verdadeiras se estiverem reconhecidas presencialmente, nos termos das leis notariais. Deste modo, este documento particular com reconhecimento notarial faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (artigo 376.º, n.º 1, do CC). Segundo o artigo 377.º do CC, os documentos particulares podem ser autenticados nos termos das leis notariais, e, neste caso, gozam da força probatória dos documentos

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Pese embora a Ordem dos Notários se ter pronunciado em sentido diverso, como consta de um comunicado por si emanado e ao qual se pode aceder no seu sítio da internet em http://www.notarios.pt/OrdemNotarios/PT/PrecisoNotario/TermosAutenticacao/, consultado em 31 de dezembro de 2019, pelas 18:22 horas. 4 Sobre estas matérias AC. n.º 8470/15.6T8CBR.C1, do TRC, consultado no dia 30 de dezembro de 2019, pelas 23:41 horas, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/-/E56B0F1F72246FCE80258221003F92DC

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autênticos, mas não os substituem quando a lei exija documento desta natureza para a validade do ato. De acordo com o estipulado no artigo 35.º do CN, os documentos lavrados pelo notário, ou em que ele intervém são autênticos, autenticados ou ter apenas reconhecimento notarial. Servem como prova documental, de acordo com os artigos 363.º e seguintes do Código Civil, como atrás foi referido. Em termos notariais, temos assim, documentos autênticos (n.º 2), que são os documentos exarados pelo notário nos livros ou em instrumentos avulsos, e, os certificados, certidões e outros documentos análogos por ele expedidos; documentos autenticados (n.º 3), que são os documentos particulares confirmados pelas partes, perante o notário; e, têm reconhecimento notarial (n.º 4) os documentos particulares cuja letra e assinatura, ou só assinatura, se mostrem reconhecidos por notário. Os atos notariais podem ser lavrados em livros, em papel avulso ou documento a que respeitam ou em folha anexa, como nos indica o artigo 36.º do CN. Ora, são lavrados nos livros de notas (n.º 1), os testamentos públicos; os atos para os quais a lei exija escritura pública; ou, que os interessados queiram celebrar por essa forma; são exarados em instrumentos fora das notas (n.º 3), os atos que devam constar de documento autêntico, mas para as quais a lei não exija ou as partes não pretendam a redução a escritura pública; e, no próprio documento a que respeitam ou em folha anexa (n.º 4), os termos de autenticação e reconhecimentos. Posto isto, importa fazer referência ao novo Código de Processo Civil, artigo 703.º, n.º 1, al. b)5 que se refere aos títulos executivos. Pela análise desta norma, percebe-se que, efetivamente, apenas documentos autênticos ou autenticados podem servir de base à execução. Consequentemente, ambas as espécies de documentos são dotados de fé pública. IV. Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de julho A grande reforma na titulação, muitas vezes impropriamente denominada de desformalização notarial, como já se referiu, aconteceu com a publicação do DL n.º 116/2008, de 4 de julho. Este Decreto-Lei encerra um ciclo de simplificação e de criação de balcões únicos, que começou em 2005, com a criação da empresa na hora (ENH). Podemos afirmar que a implementação da ENH não se limitou e reduzir a burocracia. Foi muito mais longe ao proceder a uma verdadeira mudança de mentalidades na 5

“Artigo 703.º (artigo 46.º CPC 1961) Espécies de títulos executivos 1 - À execução apenas podem servir de base: (…) b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; (…)

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administração pública, com especial enfoque no que respeita aos registos e notariado. Estamos em crer que sem a criação da ENH, as reformas que se lhe seguiram não seriam possíveis ou, pelo menos, seriam muito mais difíceis de implementar. Apesar do afirmado, pensamos que ninguém estava à espera da “revolução” provocada pela publicação do dito Decreto-Lei n.º 116/2008. Na verdade, este diploma não se limitou a atribuir novas competências à administração pública, nomeadamente às conservatórias do registo comercial, registo predial e registo civil, atribuiu aos advogados, solicitadores e câmaras de comércio indústria, se reconhecidas, nos termos do Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de outubro6 competências para efetuarem termos de autenticação em documentos particulares que contenham factos sujeitos a registo. A lógica da simplificação inspirou-se, em larga medida, nos sistemas anglo-saxónicos, evidenciando a ideia de “one stop shop”7. Confessamos que nesta matéria da titulação e registos, não vemos como aqueles sistemas possam influenciar o modelo português que apresenta níveis de confiança e segurança jurídica muito superiores. O citado Decreto-Lei veio criar condições para que advogados, câmaras de comércio e indústria, notários, serviços de registo e solicitadores prestem serviços relacionados com negócios jurídicos em regime de «balcão único», isto é, num único local e em atendimento presencial único. Para tanto, as escrituras públicas tornaram-se facultativas para a maioria dos atos respeitantes a imóveis, passando as “novas entidades” a poder realizar a maior parte dos atos notariais. O artigo 80.º do Código do Notariado foi drasticamente alterado com a revogação da maior parte das normas que o integravam. Atualmente, os notários que antes tinham o exclusivo da titulação dos atos extrajudiciais sobre imóveis, apenas têm competência exclusiva para a realização de procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro, vulgarmente designadas por “procurações irrevogáveis”, uma vez que estas devem ser lavradas por instrumento público, como determina o artigo 116.º, n.º 2, do CN; e, para a realização de testamentos, escrituras de revogação de testamentos, aprovação de testamentos cerrados e abertura de testamentos cerrados e internacionais. Apesar do legislador ter feito passar a ideia de que esta profunda reforma não punha em causa a segurança jurídica, o certo é que se rodeou de especiais cautelas quanto aos atos praticados por advogados, câmaras de comércio e indústria e solicitadores. Foi exigido, para que estes atos fossem válidos, um adicional de segurança que se traduz na obrigatoriedade de um depósito eletrónico em sítio da internet, mantido e gerido pelo Estado, através do Instituto dos Registos e Notariado e que à frente fazemos referência.

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Consultado em https://dre.pt/application/file/a/217655, no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 22:29 horas. 7 Numa tradução liberal poder-se-á traduzir como “uma paragem na loja”.

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Por outro lado, alterou o artigo 34.º, n.º 2, do Código do Registo Predial (CRPred), exigindo o registo prévio a favor do transmitente ou a apresentação, na conservatória do registo predial, do documento comprovativo do direito do transmitente, para que o registo a favor do adquirente possa ser qualificado como definitivo. A apresentação deste documento não era, até então, obrigatória. Era bastante e suficiente que o notário referisse na respetiva escritura pública o documento através do qual comprovou a legitimidade do transmitente. Ora, estas duas exigências, demonstram bem a preocupação e receio do legislador. E bem se compreendem as cautelas verificadas, uma vez que a titulação da maior parte dos negócios jurídicos respeitantes a imóveis passou a poder ser efetuada por entidades, digamos, ainda sem provas dadas nestas matérias, enquanto os notários têm um percurso secular e cuja competência e saber não são postos em causa8. O mesmo não acontece com os “novos tituladores”. As cautelas foram, ainda mais longe: por um lado o legislador delimitou, expressamente, quais os atos que podem ser realizados neste âmbito, que são apenas os que constam das alíneas a) a g), do artigo 22.º do mencionado Decreto-Lei n.º 116/2008; por outro, aplicou aos documentos particulares que titulem factos sujeitos a registo predial a mesma disciplina prevista no Código do Notariado, aplicando-se este, subsidiariamente àqueles. Ora, isto faz com que os termos de autenticação previstos no mencionado Decreto-Lei n.º 116/2008, importem para a entidade autenticadora, os mesmos deveres de verificação, qualificação e comunicação a que estão sujeitos os notários. Consequentemente, as entidades que autenticam documentos particulares, neste âmbito, devem estar preparadas juridicamente, com amplo conhecimento, quer das normas substantivas, quer adjetivas relacionadas com a formação e realização dos contratos, sobretudo, contratos que contenham factos sujeitos a registo predial9. Como bem se compreende, por se tratar de uma alteração profunda, têm surgido muitas dúvidas ao longo dos anos, que têm motivado numerosas impugnações, quer por recurso hierárquico, quer pela via judicial. O Instituto dos Registos e Notariado, I. P. (IRN) tem assumido um papel preponderante, ao moldar, densificar e adequar o novo modelo de titulação aos negócios jurídicos sobre imóveis.

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Todavia, sendo agora o notário um profissional liberal, e com todas as consequências que isso importa, poder-se-á questionar se a fé pública inerente aos documentos exarados pelos notários não fica beliscada aquando do cumprimento da função notarial. Levando-nos a deixar a seguinte questão: Não fica o notário na mesma igualdade de circunstâncias com os outros profissionais que, sendo profissionais liberais, também exerçam funções notariais com a mesma fé pública? 9 Aqui aproveitamos para lançar um desafio ao legislador e que se relaciona com a certificação de competências dos “novos tituladores”. Quanto a nós não bastou criar uma norma habilitadora de competências para estes “novos tituladores”, será ainda necessário e urgente certificar estas competências, como acontece com os notários e assim dotá-los de conhecimentos que vão para lá de uma licenciatura e de um estágio.

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São muitas as matérias ou aspetos postos em crise provocados pela reforma. Vamos elencar as que nos parecem mais importantes, seguindo de perto alguns pareceres do IRN10, por estarmos cientes que são as soluções mais acertadas, sem descurarmos, também, alguma jurisprudência11,12. Uma questão que desde logo se levantou, foi a de saber em que consistia, afinal, o documento particular autenticado que continha factos sujeitos a registo, como devia ser efetuado, que formalidades, requisitos e menções devia conter. Esta questão foi tratada no processo n.º R.P. 67/2009 SJC-CT que, com a devida vénia, vamos seguir muito de perto.13 1. Escritura Pública versus Documento Particular Como decorre dos artigos 22.º a 25.º e 36.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, desde aquela data de 1 de janeiro de 2009, que os atos elencados no referido artigo 22.º podem ser celebrados por escritura pública ou documento particular autenticado, como já se referiu. A competência para lavrar escrituras públicas continua a pertencer apenas aos notários. A competência para exarar termos de autenticação em documento particular pertence, igualmente, aos notários e, ainda, de acordo com o artigo 38.º, do Decreto-Lei n.º 76A/2006, de 29 de março, às seguintes entidades: aos conservadores; aos oficiais de registo; aos advogados; aos solicitadores; e às câmaras de comércio e indústria; Mas, as dúvidas adensam-se quando a lei não define o que são uma escritura pública e um documento particular autenticado. No que respeita à escritura pública, apesar de não existir uma definição legal, o conceito encontra-se há muito tempo firmado no ordenamento jurídico, através da caracterização dos seus elementos, entre os quais 10

Consultados no sítio http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina Acórdão do TRC, Processo: 1111/16.6T8FIG.C1, de 12/12/2017 – No qual foi decidido que “1. A confirmação do rogo perante a entidade autenticadora não tem de ser certificada através da expressão “confirmo o rogo”, bastando que da declaração aposta no documento de autenticação resulte claro que o rogante no ato declarou que o documento a autenticar foi efetivamente assinado a seu rogo. 2. A entidade que lavra o termo de autenticação de documento particular, ao abrigo do disposto no artigo 22º do DL 116/2008, embora não tendo de proceder à leitura de tal documento aos interessados, deverá explicar-lhes o conteúdo do “documento particular autenticado” no seu todo e dos seus efeitos.”, consultado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5843c387d23659f88025820a003723a e?OpenDocument, no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 22:32 horas, 12 Acórdão do TRE, Processo: 9667/15.4T8STB.E1, de 22/02/2018 – No qual concluem que não vêm que o termo de autenticação seja inválido, por faltar a assinatura dos outorgantes, uma vez que o documento particular está assinado pelos autores do negócio jurídico, representando assim a vontade negocial exteriorizada com a assinatura do documento, e a declaração de vontade confirmatória do conteúdo deste documento exteriorizada com a outorga, juntamente com a entidade autenticadora do termo de autenticação, http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/FB947DE0A5F112D88025824200331625, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 22:32 horas. 13 http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2009/p-r-p-67-2009-sjcct/downloadFile/file/intranetRP67-2009.pdf?nocache=1317388275.99, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 22:38 horas 11

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podemos evidenciar: a) A competência para lavrar escrituras públicas pertence aos notários (artigo 4.º, n.º 2, b), do CN); b) A escritura é um documento em que a declaração de vontade é consignada por forma expressa e escrita, elaborada pelo notário e subscrito pelos outorgantes; c) Na escritura pública, o papel do notário não se traduz na mera autenticação das assinaturas das partes e das suas declarações. É o notário que elabora o documento (artigo 42.º, n.º 2, do CN), exprimindo, solenizando e autenticando a vontade das partes; d) O original da escritura pública fica arquivado (artigo 36.º, n.º 1, do CN); e) A escritura pública obedece a um rigoroso procedimento, devendo a mesma ser redigida em língua portuguesa, devendo nela observar-se as exigências da simultaneidade da presença de todos os intervenientes, o controlo da identidade das partes, a validade da sua representação, a legalidade do ato. Também não existe uma definição legal de documento particular enquanto título dos atos elencados no artigo 22.º, do DL n.º 116/2008. Poder-se-ão, no entanto, considerar três momentos na formação do título: Primeiro momento: a) O documento particular é outorgado e assinado pelas partes; b) A entidade autenticadora não outorga o documento, nem consigna as declarações de vontade por forma expressa e adaptada ao normativo aplicável ao negócio jurídico; c) A entidade autenticadora não subscreve o documento com as partes; d) Pode, no entanto, enquanto profissional habilitado, auxiliar as partes na redação do documento ou redigir o próprio documento que depois será assumido e assinado apenas pelas partes. Segundo momento: a) O documento assinado pelas partes é apresentado à entidade autenticadora, para autenticação; b) Não há prazo, a partir da data da assinatura do documento, para autenticação. Há que salientar, que a função autenticadora dos documentos particulares que titulem atos elencados no citado artigo 22.º é bem mais exigente do que aquela que é exercida na autenticação dos demais documentos particulares. Antes de avançarmos para o terceiro momento convém esclarecer o conteúdo da norma do artigo 24.º, n.º 1, do DL n.º 116/2008. Esta norma refere-se aos documentos particulares que titulem atos sujeitos a registo predial, elencados no artigo 22.º, e não a todos os documentos particulares que titulem atos sujeitos a registo predial - não se aplica, p. ex. ao documento exigido para o cancelamento do registo de hipoteca – artigo 56.º, n.º 1, do CRPred. Esta norma deverá merecer uma especial atenção na elaboração do conceito de “documento particular autenticado”, enquanto título dos atos elencados no artigo 22.º, porquanto o documento deverá conter os requisitos de legalidade, formal e substantiva, do negócio jurídico e ao qual se aplicará, subsidiariamente o Código do Notariado14. 14

Temática desenvolvida por FIGUEIREDO, David Martins Lopes de - Titulação dos Negócios Jurídicos sobre Imóveis, 2018, pp. 25 e 26

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Assim, a entidade autenticadora deverá, no momento da autenticação, apreciar os requisitos de legalidade do ato, devendo recusar a autenticação do documento se o ato for nulo (artigo 173.º, n.º 1, a), do CN) ou se tiver sido violada norma imperativa (v.g. Princípio da legitimação). Deverá advertir as partes se o ato for anulável ou ineficaz (artigo 174.º do CN), bem como deve explicar às partes o conteúdo do documento por elas assinado e não apenas o conteúdo do termo de autenticação, como no “vulgar” termo de autenticação (artigos 46.º, n.º 1. l), 151.º, n.º 1 e 50.º, do CN); A confirmação do conteúdo do documento particular perante a entidade autenticadora tem de ser feita simultaneamente por todos os declarantes. No terceiro momento, o documento particular autenticado e os documentos que o instruírem e que devam ficar arquivados por não constarem de arquivo público (apenas estes, e não os que forem exibidos) devem ser depositados na plataforma informática através do sítio www.predialonline.mj.pt (artigo 24.º, do DL n.º 116/2008, de 04 de julho e Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro). Este depósito é condição de validade da autenticação do respetivo documento particular (artigo 24.º, n.º 2, do DL 116/2008). O depósito eletrónico deverá ser efetuado na data da autenticação, por razões de segurança jurídica – sobre a data em que o documento particular adquiriu a natureza de documento particular autenticado e sobre o interesse em que a forma do negócio jurídico seja completamente observada. Só excecionalmente o depósito poderá ser realizado nas 48 horas seguintes (artigo 7.º, daquela Portaria n.º 1535/2008). Se o depósito eletrónico for efetuado fora de prazo ou com violação dos requisitos de validade dos negócios jurídicos, a invalidade do depósito afetará a validade da autenticação e o documento particular não chega a adquirir a natureza de documento particular autenticado. Querendo as partes aproveitar o documento particular, terão de confirmar novamente perante entidade autenticadora, a mesma ou outra, o seu conteúdo, ou seja, terá de ocorrer nova autenticação, seguida de novo depósito eletrónico. Em face do exposto, pode concluir-se que a escritura pública continua a ser a única forma de titular determinados atos jurídicos; a competência para lavrar escrituras públicas é exclusiva dos notários; na escritura pública o notário é o autor do documento, o qual é subscrito pelas partes e por ele próprio e está sujeito a um regime especial de conservação. A escritura pública obedece a um rigoroso procedimento. O documento particular autenticado distingue-se da escritura pública pelo seguinte: é da autoria das partes; a competência para a autenticação não é exclusiva dos notários; tem um regime especial de conservação; obedece, igualmente, a um rigoroso procedimento;

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a validade da autenticação está dependente de um depósito eletrónico, que não depende das partes.15 2. Documento Particular Autenticado e as suas Vicissitudes 2. 1. Sua ulterior “modificação” Os negócios jurídicos podem ficar dependentes de retificação, podem ser alterados ou pode haver necessidade de aclaração. Apesar desta matéria estar prevista no artigo 11.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro, têm surgido muitas dúvidas, sobretudo no que respeita ao modo como estes atos devem ser efetuados. No processo 72/2009 SJCCT16 foi abordada esta matéria tendo-se aí concluído, em resumo: a) que se, no termo de autenticação, tiver sido mencionada erradamente a data, pode esta deficiência ser sanada por averbamento ao termo de autenticação, nos termos do artigo 132.º, n.º 7, do CN; b) que, pode-se aclarar o conteúdo do negócio jurídico que se tenha titulado por documento particular autenticado através de recurso à elaboração de novo documento particular; c) que, o conteúdo do negócio jurídico em que tenha intervindo gestor de negócios ou procurador sem poderes suficientes, a ratificação deve revestir uma das formas previstas no artigo 116.º, n.º 1 do CN, ou seja, pode ser feita por instrumento público, por documento escrito e assinado pelo representado, com reconhecimento presencial da letra e assinatura, ou por documento autenticado, sendo este ato averbado ao DPA, nos termos dos artigos 131.º, n.º 1, al. g) do CN; e, que omitindo-se, no termo de autenticação, a identificação de algum dos outorgantes, que porém, não obstante, apôs a sua assinatura ao ato, pode sanar-se por averbamento ao ato de autenticação de acordo o artigo 132.º, n.º 1, e 2, e) do CN; que, tendo-se indicado erradamente o valor do preço, em compra e venda de imóvel titulada por documento particular, não obstante o valor correto figurar nos documentos fiscais instrutórios (DUCs do IMT e IS17), deverá procederse à elaboração de documento particular autenticado retificativo. Sendo que em todos os casos, usando o código de acesso do depósito inicial, os documentos deverão ser associados ao depósito do DPA e este, bem como o novo, no caso do retificativo, deverá ser de novo depositado com os respetivos averbamentos18, efetuados nos termos dos artigos 131.º e 132.º do CN, procedendo-se assim como determina o artigo 11.º, n.º 2 da citada Portaria.

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FIGUEIREDO, David Martins Lopes de - Titulação dos Negócios Jurídicos sobre Imóveis, 2018, trata exaustivamente todas as matérias relacionadas com a titulação através do DPA. 16 http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2009/p-div-72-2009-sjcct/downloadFile/file/DIV72-09.pdf?nocache=1317390168.12, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 22:20 horas. 17 Documentos Únicos de Cobrança do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas sobre Imóveis e do Imposto de Selo 18 Respeitando quanto à forma, a prevista no artigo 133.º do CN

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2.2. Registo Predial online - Erro na indicação do número da descrição predial No caso de ter havido erro na indicação do número da descrição do prédio aquando do pedido de registo predial online (aplicando-se de igual forma ao pedido efetuado pessoalmente ou por correio), indicando os algarismos correspondentes à data da abertura das descrições e não ao número de ordem privativo dentro da freguesia a que pertencem (artigos 6.º, 42.º, 1, d), 61.º, 1, d) e 2, e 77.º, 1 do CRPred) e artigos 3.º e 5.º da Portaria n.º 621/2008, de 18 de julho), bem como quanto à forma do documento particular e depósito, nos Processos n.º 83/2009 SJC-CT19 e R.P. 84/2009 SJC-CT20 foi esclarecido que o registo deve ser recusado, nos termos do artigo 69.º, 1, b) do CRPred e que a autenticação dos documentos particulares que titulem atos sujeitos a registo predial, nos termos previstos nos artigos 22.º e ss. do DL n.º 116/2008, de 4 de julho, deve ser feita mediante termo de autenticação elaborado nos termos do Código do Notariado e depósito eletrónico realizado de acordo com o previsto na Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro. Ficando, neste caso, a entidade tituladora (advogado, solicitador, entre outros) dispensada de proceder ao registo em sistema informático previsto na Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de junho (reforçando assim o preceituado no n.º 2, do artigo 6.º daquela Portaria 1535/2008). 2.3. Falta de assinatura do termo pela entidade autenticadora - Consequências De forma a dar resposta à recusa de registo, em consequência da falta de assinatura do termo

pela

entidade

autenticadora,

no

documento

particular

autenticado

eletronicamente depositado, foi deliberado no Proc.º n.º R.P. 259/2009 SJC-CT21 que é nulo, por vício de forma, o termo de autenticação a que falte a assinatura do interveniente autenticador (alínea f), n.º 1, artigo 70.º do CN). Esta nulidade, porém, apenas afeta o termo de autenticação e não o documento particular propriamente dito. Este fica, no entanto, desprovido da natureza de documento particular autenticado e, consequentemente, prejudicada fica a produção do efeito jurídico-real a que tende. Esta nulidade pode ser sanada por duas formas: a) Nos termos da alínea e) do artigo 70.º e artigo 73.º do CN - sanação e revalidação – devendo retificar-se o ato titulado no documento previamente depositado, nos termos do artigo 11.º, n.º 2, da Portaria n.º 1535/2008. É de referir, porém, que a declaração feita pela entidade autenticadora, cuja

19

http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2009/p-r-p-83-2009-sjcct/downloadFile/file/ctprp083-2009.pdf?nocache=1317392432.49, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 22:50 horas. 20 http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2009/p-r-p-84-2009-sjcct/downloadFile/file/ctprp084-2009.pdf?nocache=1317393289.35, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pela 22:55 horas. 21 http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2009/p-r-p-259-2009-sjcct/downloadFile/file/ctprp259-2009.pdf?nocache=1317736059.95, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 22:59 horas.

106


assinatura falta, de que esteve presente no ato e que, na sua realização, foram cumpridas todas as formalidades legais, deve ser feita através de documento autêntico, isto é, perante notário; e, b) Nova autenticação – neste caso far-se-á um novo termo de autenticação, pela mesma entidade autenticadora ou outra e procede-se a novo depósito eletrónico, sem qualquer relação com o anteriormente efetuado. O documento particular autenticado eletronicamente depositado é genericamente suscetível de retificação, nos termos do artigo 132.º do CN, devendo o averbamento correspondente lavrar-se no original, em papel e arquivado, posto o que se procederá, usando a chave de acesso correspondente, à necessária operação de depósito eletrónico retificativo.22 Sem pretender colocar em causa a orientação emanada do IRN em relação ao averbamento, torna-se relevante deixar algumas questões, uma vez que o mesmo foi pensado para a escritura pública, que é da autoria do notário. Sendo o documento particular da autoria das partes e não do solicitador, quem é que faz este averbamento? O solicitador, à revelia ou sem o conhecimento das partes? E as partes, como, quando e onde intervêm? 2.4. Certidão de documento particular autenticado por advogado/solicitador Respondendo diretamente a uma questão colocada por uma advogada sobre a emissão de certidão de DPA por advogado e reconhecimento, ou não, a este profissional da mesma possibilidade que o artigo 8.º do Estatuto do Notariado outorga ao notário de, sob a sua responsabilidade, autorizar um ou vários trabalhadores com formação adequada a praticar determinados atos ou certas categorias de atos, o Proc.º n.º C.N. 3/2010 SJCCT23 debruçou-se exaustivamente sobre a função notarial e da competência do notário, destacando entre os atos que, em especial lhe competem, designadamente os previstos

22

Já tivemos oportunidade de o referir, o DPA resulta de três momentos: o documento particular, que é da responsabilidade das partes e subscrito por elas; o termo de autenticação, da responsabilidade do solicitador/advogado; e, o depósito que representa a condição de validade do DPA e uma obrigação imposta ao titulador. Daí, haver quem entenda que o solicitador/advogado não pode fazer qualquer averbamento no documento particular uma vez que este apenas pertence às partes. Diferente será se o averbamento tiver que ser feito no termo de autenticação. Mas, efetivamente torna-se necessário pensar se o que está ferido do vício é o documento particular ou é o termo de autenticação. Se for o documento particular, o titulador poderá retificar o documento por averbamento, ainda que este seja feito no termo de autenticação? Quanto a nós, somos tentados a dizer que sim, uma vez que o titulador poderá, ou melhor deverá auxiliar as partes na elaboração do respetivo documento, tendo em conta que a mesma exige conhecimentos jurídicos, para os quais as partes não estão preparadas. Ora, desta elaboração poderão resultar vícios que podem ser sanados nos termos do artigo 132.º do CN, através de averbamento, como determina o artigo 133.º do CC. 23 http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-c-n-3-2010-sjcct/downloadFile/file/ctcn003-2010.pdf?nocache=1317994029.79, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 23:01 horas.

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no n.º 2, do artigo 4.º do CN24. Manifestou-se o entendimento de que são estes exatamente os atos a que se refere o artigo 38.º, do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março. Pelo que, através deste preceito, foi atribuída também às câmaras de comércio e de indústria reconhecidas nos termos do Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de Outubro, a conservadores e oficiais do registo, a advogados e solicitadores a competência dos notários em matéria de reconhecimentos, autenticação de documentos, tradução de documento (e/ou sua certificação), certificação da conformidade das fotocópias com os originais, e extrair fotocópias dos originais que lhe sejam apresentados para certificação. Posteriormente, estes profissionais viram as suas competências reforçadas com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, decorrente da previsão contida no artigo 24.º, que dá como assente: os documentos particulares que titulem atos sujeitos a registo predial devem conter os requisitos legais a que estão sujeitos os negócios jurídicos sobre imóveis, aplicando-se subsidiariamente o Código do Notariado (n.º 1); a validade da autenticação de tais documentos está dependente do respetivo depósito eletrónico, bem como do mesmo depósito de todos os documentos que os instruam (n.º 2); a consulta eletrónica desses documentos eletronicamente depositados substitui, para todos os efeitos, a apresentação perante qualquer entidade pública ou privada do documento em suporte de papel (n.º 5); compete às entidades autenticadoras arquivar os originais dos documentos autenticados (n.º 6). A Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro, veio estabelecer a regulamentação dos requisitos e condições de utilização da plataforma eletrónica para o depósito de documentos particulares autenticados que titulem atos sujeitos a registo predial e dos documentos que os instruem, retirando-se assim do seu artigo 6.º, que é à entidade que efetua a autenticação que compete proceder ao depósito eletrónico. Este procedimento dispensa o registo informático previsto na Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de junho. Salienta-se, que de acordo com o previsto no artigo 8.º da dita Portaria, é às entidades autenticadoras que depositam documentos que compete arquivar os respetivos originais, assistindo às câmaras de comércio e indústria, à Câmara dos Solicitadores, à Ordem dos Advogados e à Ordem dos Notários a possibilidade de criar sistemas de arquivo centralizados que, para o efeito, serão mantidos por elas ou por entidades terceiras e para os quais é possível transferir os originais dos documentos depositados. Admitiu-se que seja a estes documentos autenticados, que devem ser arquivados pela entidade que procedeu ao depósito eletrónico, que a consulente se refere.

24

Exarar termos de autenticação em documentos particulares ou de reconhecimento da autoria da letra com que esses documentos estão escritos ou das assinaturas neles apostas; o certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos; o extrair públicas-formas de documentos que, para esse fim, lhe sejam presentes ou conferir com os respetivos originais e certificar as fotocópias extraídas pelos interessados

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Assim, concluiu-se que as novas entidades tituladoras têm legitimidade para passar certidões dos documentos por elas arquivados (ainda que o chamado documento original não comprove o facto), bem como para dos mesmos extrair públicas-formas (artigos 383.º e 386.º do CC, respetivamente), e, que a competência para extrair certidões do original arquivado

do

documento

particular

autenticado

é

reconhecida

às

entidades

autenticadoras, na qualidade de responsável pelo arquivamento e enquanto a ela pertencer a respetiva manutenção. 2.5. Possibilidade de extração de certidão em papel por serviço de registo predial Ainda relacionado com a emissão de certidões do documento particular autenticado, mas por parte do serviço de registo, no Proc. N.º C.N. 29/2010 SJC-CT25 veio esclarecer-se que qualquer serviço do registo predial pode emitir certidão a partir do documento (eletrónico) correspondente depositado (arquivado) na plataforma eletrónica que para essa finalidade específica se criou (cfr. Artigo 5.º, da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro). O IRN, I. P. é a entidade incumbida da manutenção desta plataforma, devendo, assim, esta ser considerada como “arquivo público” das conservatórias, serviços integrados no IRN. Assim, os serviços de registo predial, enquanto entidade responsável pela manutenção do arquivo eletrónico que aloja os documentos depositados têm competência para, de tais documentos, emitir certidões, sem a necessidade do código “pertença” da entidade autenticadora. De referir que o desconhecimento deste código impede a consulta eletrónica, mas não impede a passagem de certidão em papel do documento particular autenticado eletronicamente depositado por serviço de registo predial. Seria estranho que o conteúdo do documento eletrónico não pudesse ser visualizado e que só os possuidores do código (disponibilizado pela entidade autenticadora) pudessem aceder. Daí que destas certidões nunca poderá constar qualquer referência ao código de acesso ao depósito eletrónico, pertença da entidade autenticadora, devendo constar das mesmas que constituem impressão do documento particular autenticado eletronicamente depositado no sítio www.predialonline.pt, no dia tantos de tal, pela entidade autenticadora tal. Cabe depois à entidade autenticadora, se lhe for pedido, decidir se deve ou não entregar o código. 2.6. Prazo do depósito – Dificuldades de carácter técnico Apesar de o artigo 7.º, da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro, tratar do prazo do depósito do documento particular e das dificuldades de carácter técnico respeitantes ao funcionamento da plataforma eletrónica, referida no artigo 5.º da mesma, no Proc.º n.º

http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-c-n-29-2010-sjcct/downloadFile/file/CN_29-2010_corrigidas.pdf?nocache=1318002291.76, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 23:05 horas. 25

109


C.P. 40/2010 SJC-CT26 veio aclarar-se a aplicação destes preceitos. Assim, o depósito eletrónico deve ser feito no próprio dia da realização da autenticação do documento particular; a confirmação da situação de dificuldades de caráter técnico respeitantes ao funcionamento da plataforma eletrónica deverá ser oficiosamente solicitada pelo serviço de registo, ao IRN; o prazo fixado no n.º 2, do artigo 7.º, daquela Portaria é de dois dias a contar do dia da realização da autenticação do documento particular a depositar eletronicamente, e, terminando esse prazo em sábado, domingo ou dia feriado, transfere-se para o primeiro dia útil; e, se na hora (momento ou instante) em que a entidade autenticadora intentar novamente a feitura do depósito eletrónico do documento particular autenticado, novas “dificuldades de caráter técnico respeitante ao funcionamento da plataforma eletrónica” impedirem a realização do depósito, a entidade autenticadora deverá elaborar novo documento justificativo da impossibilidade da realização do depósito, dispondo a partir deste dia de um novo prazo de dois dias para a feitura do depósito eletrónico. 2.7. Depósito eletrotónico. Prazo e demais requisitos legais. Liquidação do IMT/IS – Tornas Partilha extrajudicial No Proc.º n.º R.P. 54/2010 SJC-CT27, foram abordadas diversas questões. Algumas delas já haviam sido alvo de pareceres do Conselho Técnico do IRN e por nós já referidas: i) Depósito eletrónico de documento particular – Prazo e demais requisitos legais; ii) Invalidade do depósito eletrónico e consequente invalidade da autenticação do documento particular; iii) Nova autenticação e novo depósito eletrónico do documento eletrónico – procedimentos a observar. Porém, foi ainda abordada uma questão que achamos pertinente, relacionada com a liquidação do IMT e do IS pelas tornas devidas em partilha extrajudicial – responsabilidade exclusiva do liquidatário, pelo que não compete ao conservador, no âmbito da fiscalização do cumprimento das obrigações fiscais, apreciar se a liquidação incidiu sobre o valor tributável determinado no instrumento legal que lhe serviu de base.

http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-c-p-40-2010-sjcct/downloadFile/file/ctcp040-2010.pdf?nocache=1318239788.58, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 23:10 horas 27 http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-r-p-54-2010-sjcct/downloadFile/file/ctrp054-2010.pdf?nocache=1318242460.47, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 23:25 horas. 26

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2.8. Documentos instrutórios O Proc.º n.º C.P 96/2010 SJC-CT28 veio auxiliar na interpretação do n.º 1, do artigo 4.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro29. A questão apreciada relaciona-se com a segunda parte deste preceito, de forma a se saber quais os documentos instrutórios do DPA previstos no artigo 24.º, do DL n.º 116/2008, que devem ser submetidos ao depósito eletrónico estabelecido no n.º 2 desta disposição legal e regulamentado na Portaria n.º 1535/2008, bem como o prazo para tal submissão. Já não é novidade que a validade da autenticação dos documentos particulares que titulem atos sujeitos a registo predial, está dependente do depósito eletrónico desses documentos, bem como de todos os documentos que o instruam e que estes documentos devem conter os requisitos legais a que estão sujeitos os negócios jurídicos sobre imóveis, aplicando-se subsidiariamente o Código do Notariado.30 O Código do Notariado, no seu artigo 23.º refere que “Além dos livros e dos instrumentos avulsos que não devam ser entregues às partes, ficam arquivados nos cartórios os documentos apresentados para integrar ou instruir os atos lavrados nos livros ou fora deles, salvo quando a lei determine o contrário ou apenas exija a sua exibição”. Assim, atentos ao CN, parece-nos que a regra é a de arquivar os documentos que instruam o DPA, exceto se a lei disser o contrário31. Temos então duas hipóteses. Se a entidade autenticadora arquivou o documento, este deve ser depositado eletronicamente, por não constar de arquivo público. Se a entidade autenticadora o exibiu, como determina a lei, deve restituí-lo aos outorgantes. Este parecer veio ainda dar resposta a outra dúvida, que se prende com o registo do facto titulado no DPA e com os documentos instrutórios. O qualificador do pedido de registo não poderá exigir que a entidade autenticadora deposite eletronicamente um documento que a mesma não arquivou juntamente com o DPA. Poderá exigir sim, até em 28

http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-c-p-96-2010-sjcct/downloadFile/file/ctcp96-2010.pdf?nocache=1318257691.06, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 23:30 horas. 29 “Artigo 4.º Âmbito 1 – Estão sujeitos a depósito eletrónico os documentos particulares autenticados que titulem atos sujeitos a registo predial nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, bem como os documentos que os instruam e que devam ficar arquivados por não constarem de arquivo público.” 30 Sobre esta temática, vide, desenvolvidamente FIGUEIREDO, David Martins Lopes de - Titulação dos Negócios Jurídicos sobre Imóveis, 2018, pp. 421 e ss 31 Ex.: Artigo 57.º, n.º 2 do CN – “A prova dos artigos matriciais é feita pela exibição da caderneta predial…” Artigo 49.º, n.º 2 do RJUE “Não podem ser realizados atos de primeira transmissão de imóveis construídos nos lotes ou de frações autónomas desses imóveis sem que seja exibida, perante a entidade que celebre a escritura pública ou autentique o documento particular, certidão emitida pela câmara municipal, comprovativa da receção provisória das obras de urbanização ou certidão, emitida pela câmara municipal, comprovativa de que a caução a que se refere o artigo 54.º é suficiente para garantir a boa execução das obras de urbanização.”

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sede de suprimento de deficiências, o depósito de documentos que ficaram arquivados no DPA, mas que aquando do depósito do DPA não o fez. Tendo em conta a letra da lei, o n.º 1, do artigo 7.º da Portaria 1535/2008, de 30 de dezembro refere que o depósito eletrónico de documentos particulares autenticados deve ser efetuado na data da realização da autenticação do documento particular, sob pena da sua invalidade. Porém, nada refere em relação aos instrumentos instrutórios e, como tal, não invalida o DPA. Contudo, os documentos instrutórios que fiquem arquivados devem ser depositados por não constarem de arquivo público. A plataforma eletrónica constitui assim o “arquivo público”. 2.9. Título constitutivo da propriedade horizontal formalizado em escritura pública – alteração/modificação – formalização através de DPA ou procedimento “Casa Pronta”. Entre várias questões, surgiu uma outra, relacionada com o título constitutivo da propriedade horizontal formalizado por escritura pública e a suscetibilidade de formalização de ulterior alteração no âmbito do procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis (Casa Pronta) ou mediante documento particular autenticado. De forma a dar resposta a esta questão, o Conselho Técnico do IRN pronunciou-se através do Proc.º n.º 68/2011 SJC-CT32, elucidando-nos exaustivamente sobre a matéria em questão. Começaram por referir que não foi há muito tempo que a constituição do regime da propriedade horizontal por negócio jurídico, com exceção da constituição por disposição testamentária, deixou de estar sujeita à solenidade de escritura pública. Esta alteração deveu-se à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de julho, revogando assim o n.º 1, do artigo 80.º do CN e consagrando, em alternativa à escritura pública, o documento particular autenticado como meio de os interessados formalizarem a generalidade dos atos relativos à constituição, modificação e extinção de direitos reais sobre imóveis, estabelecendo-se como requisito de validade da autenticação a submissão do documento a depósito eletrónico (cfr. artigos 22.º e 24.º do DL n.º 116/2008, de 04 de julho e Portaria n.º 1535/2008, de 20 de dezembro). Em consequência desta alteração, a lei civil também foi alterada, passando o artigo 1419.º, n.º 1 do Código Civil a dispor que “Sem prejuízo do disposto… em lei especial, o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos.” Todavia, no que toca à formalização da constituição e modificação do regime da propriedade horizontal por via negocial, as novidades não tinham o seu términus com a intervenção operada pelo DL n.º 116/2008. Surgiu, posteriormente, a Portaria n.º

http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2011/p-cn-68-2011-sjcct/downloadFile/file/CN68-2011.pdf?nocache=1340615900.19, consultado no dia 26 de dezembro de 2019, pelas 23:31 horas. 32

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1167/2010, de 10 de novembro (artigo 1.º), que veio alargar o âmbito de aplicação do procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédios (correntemente designado “Casa Pronta”) à constituição de propriedade horizontal e à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal. Isto levou a que num curto lapso de tempo, se tenha passado de um sistema de formalização “monista”, em que a constituição e a modificação da propriedade horizontal, por negócio jurídico, era efetuada por escritura pública, para um sistema de formalização “plural”, em que para a realização dos mesmos atos a lei permite, pelo menos, três diferenciadas opções de titulação. É aqui que reside a questão, apesar de ter mais ênfase em relação à escritura pública, se a constituição da propriedade horizontal for realizada por escritura pública, DPA ou procedimento “Casa Pronta”, o ato de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal tem que respeitar a forma inicial ou são os interessados livres de escolher a forma que melhor lhes interessar? Após a exposição dos motivos, concluiu que o ato modificativo do regime da propriedade horizontal cujo título constitutivo, de origem negocial, tenha revestido a forma de escritura pública, é suscetível de ser validamente formalizado quer por escritura pública, quer por documento particular autenticado, quer por documento elaborado no contexto do procedimento “Casa Pronta”. Importa reforçar que estamos perante uma exceção, pelo que nos restantes casos de formalização de negócios jurídicos, uma vez escolhida e fixada

a

forma

utilizada,

deverá

usar-se

a

mesma

forma

para

posteriores

alterações/retificações. 2.10. Imperfeição do Depósito No Proc.º n.º R.P. 75/2011 SJC-CT33 abordou-se uma questão relacionada com a imperfeição do depósito do documento particular autenticado34, inviabilizando a sua consulta e consequentemente o pedido de registo. Conclui-se, que o depósito só será válido se observar o prazo e os requisitos fixados no artigo 7.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro. Sendo efetuado fora de prazo ou violando esses requisitos, a invalidade do depósito afetará a validade da autenticação e o documento particular não chega a adquirir a natureza de documento particular autenticado. As partes poderão aproveitar o documento particular, mas terão de confirmar novamente o seu conteúdo perante entidade autenticadora (a mesma ou

33

http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2011/p-r-p-75-2011-sjcct/downloadFile/file/RP75-2011.pdf?nocache=1319712078.35, consultado no dia 28 de dezembro de 2019, pelas 14:45 horas 34 Foi digitalizado num formato que, embora permitido pelo artigo 10.º da Portaria, apenas permite a digitalização de uma página. É da responsabilidade da entidade autenticadora, neste caso da advogada, a perfeição da digitalização, devendo dar especial atenção ao processo de digitalização de forma a garantir que no momento de submeter os documentos esteja tudo correto.

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outra). Isto é, terá de haver nova autenticação, seguida de novo depósito eletrónico nos termos fixados pela lei. Equivale a falta absoluta de depósito eletrónico, o depósito que não está disponível para consulta, aplicando-se à inexistência o regime de invalidade atrás descrito; e, O pedido de registo de facto alegadamente titulado por documento particular autenticado cujo depósito eletrónico for inexistente ou inválido deve ser recusado, por ser manifesto que o facto não está titulado nos documentos apresentados (artigo 69.º, n.º 1, b) do CRPred). 2.11. Consulta dos documentos instrutórios e âmbito da qualificação do registo No Proc.º n.º R. P. 106/2011 SJC-CT35 tratou-se: i) Pedido de registo de aquisição e hipoteca via online. ii)) Documento particular autenticado e documentos instrutórios. iii) Depósito eletrónico dos mesmos e consulta. iv) Âmbito da qualificação. Ora, a questão relacionava-se com uma procuração, passada pelo vendedor para se fazer representar no contrato de compra e venda, da qual a sua assinatura não era percetível ao efetuar a consulta do depósito dos documentos instrutórios. O CT do IRN concluiu que: a) os documentos particulares autenticados que titulem atos sujeitos a registo36, bem como os documentos que os instruam e que devam ficar arquivados por não constarem de arquivo público, estão sujeitos a depósito eletrónico37; b) o depósito eletrónico do documento particular autenticado, bem como dos documentos instrutórios, é condição de validade da autenticação do documento particular38; c) apesar da submissão dos documentos instrutórios no mesmo procedimento informático de submissão do documento particular autenticado deva ser conjunta, não representa um requisito de validade do depósito eletrónico. A sua omissão ou a sua efetivação deficiente pode ser suprida posteriormente e caso o documento não esteja em condições de ser integralmente apreensível, apenas legitima a qualificação do registo como provisório por dúvidas; d) se o depósito eletrónico não permitir a apreensão integral do DPA o registo a que pretensamente sirva de título terá de ser recusado, nos termos da al. b), do n.º 1, do artigo 69.º do CRPred.; e) a assinatura do documento particular pelo representante do vendedor, em face da procuração, embora pareça não estar devidamente mandatado para o efeito, não legitima a recusa do correspondente ato de registo. Não podendo neste caso ser invocada a nulidade da venda por não se tratar de bens alheios39; f) a obrigação legal de submissão a depósito dos documentos 35

http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2011/p-r-p-106-2011-sjcct/downloadFile/file/RP106-2011.pdf?nocache=1332338574.45, consultado no dia 28 de dezembro de 2019, pelas 14:46 horas 36 Artigo 24.º, do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho. 37 Artigos 4.º, n.º 1 e 7.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro. 38 Artigo 2.º do artigo 24.º, do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho. 39 Artigo 892.º do CC.

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instrutórios em conjunto com o documento particular autenticado, ou, dentro de determinados circunstancialismos, em momento posterior, além de constituir condição de validade da autenticação, propicia a sua apreciação. Apreciação esta que cabe nos poderes do conservador por força do princípio da legalidade consagrado no artigo 68.º do CRPred. Assim com base neste princípio todos os documentos apresentados devem ser tidos em consideração na qualificação do competente ato de registo. 2.12. Aquisição – DPA - Requisitos Legais – Forma e regularidade No Proc.º n.º RP 3/2014 SJC-CC40 foi emitido parecer sobre – Aquisição – Documento particular autenticado – Requisitos Legais – Forma e regularidade, concluindo-se que o documento

particular

não

deve

conter

expressões

que

possam

conduzir

à

confundibilidade com a escritura pública, mas resultar com clareza do conteúdo do documento particular que foi assinado pelos seus autores, de forma a garantir a opção das partes na escolha do procedimento a adotar na titulação; mas quando assim suceda, o documento não deixa de ser um documento particular; no termo de autenticação deve ser consignado que foi feita a explicação às partes do conteúdo do próprio documento particular.41 2.13. Outras Questões – Consentimento, negócio consigo mesmo, entre outras No Proc.º n.º 10/2014 STJ-CC42 foram tratadas várias questões: Documento autenticado de partilha – Documento particular autenticado de retificação de partilha – Negócio consigo mesmo – Consentimento conjugal – Data do documento particular – Ressalvas – Explicação do conteúdo – assinatura – quota de herdeiro. Em resultado concluiu-se que: a) Nem a falta de consentimento especial do cônjuge, para partilha de herança celebrada pelo outro cônjuge, nos casos em que é exigível (artigo 1682.º-A/1/a) do CC), nem a falta de consentimento específico do representado, para partilha de herança celebrada pelo representante consigo mesmo (artigo 261.º do CC), constituem fundamento de invalidade dos instrumentos de consentimento e de procuração, de caráter genérico. O que a falta de qualquer daqueles consentimentos vicia ou pode viciar é a própria partilha, tornandoa ou podendo torná-la anulável, nos termos do artigo 1687.º, n.º 1 e do mencionado artigo 261.º, n.º 1 do mesmo diploma, respetivamente, de que decorre, a provisoriedade 40

https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2014/15-cc2014/downloadFile/file/15_RP3-2014SJC-CC.pdf?nocache=1399397136.64, consultado no dia 28 de dezembro de 2019, pelas 15:00 horas 41 http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5843c387d23659f88025820a003723 ae?OpenDocument, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no Proc. n.º 1111/16.6T8FIG.C1, consultado no dia 30 de dezembro de 2019, pelas 23:05 horas, que cita este parecer e vem ao encontro ao que ali foi proferido. 42 https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2014/24-cc-2014-r-p-105217/downloadFile/file/24_RP_10-2014_SJC-CC.pdf?nocache=1401455222.4, consultado no dia 30 de dezembro de 2019, pelas 23:09 horas.

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por natureza ao abrigo da alínea e) do n.º 1, do artigo 92.º do CRPred.; b) A falta da menção da explicação do conteúdo dos próprios documentos particulares, não constitui fundamento de invalidade devendo, no entanto, o registo ser qualificado como provisório por dúvidas; c) A falta de ressalva das palavras emendadas não prejudica a validade do DPA, podendo apenas determinar a exclusão ou redução da sua força probatória – artigo 41.º, n.º 4 do CN, artigo 371.º, n.º 2 e 377.º do CC; d) A existência de duas datas diferentes, uma no início e outra no final, não prejudica a qualificação do registo, desde que, com total segurança, permitam identificar a data do facto. 2.14. Repúdio de herança – Documento particular autenticado – Depósito eletrónico No P.º C.N.9/2017 STJ-CC43 concluiu-se que ao repúdio de herança de que façam parte bens imóveis, é-lhe aplicável o disposto no artigo 24.º, n.º 2 do DL 116/2008 – depósito eletrónico como condição de validade. 2.15. Pagamento de uma quantia – Omissão – Termo de autenticação. No P.º R. P. 19/2018 STJSR-CC44 concluiu-se que sempre que em causa esteja o pagamento de uma quantia, não têm de constar as menções especiais referidas nos artigos 47.º, n.ºs 5 e 6 do Código do Notariado, do “termo de autenticação” do documento particular autenticado, depositado eletronicamente, exigido para a validade dos atos elencados no artigo 22.º do DL n.º 116/2008, de 4 de julho, quando as declarações respetivas constem do documento particular, que é apenas assinado pelas partes. V. Conclusões 1. Até janeiro de 2009, a titulação dos negócios era, essencialmente, feita por escritura pública, que é da competência dos notários; 2. Desde essa data, essa titulação pode ser feita por documento particular autenticado, que é da competência dos notários, conservadores, oficiais de registo, advogados e solicitadores; 3. Aplicam-se, aos documentos particulares, as mesmas regras que às escrituras, mas nunca se podem confundir com elas, e os outorgantes têm de estar cientes disso; 4. Quer o título seja formalizado por documento autêntico, quer por documento particular, ambos são dotados de fé pública.

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https://irn.justica.gov.pt/Portals/33/Doutrina/Pareceres%20do%20Conselho%20Consultivo/Registo%20 Predial%20Casa%20Pronta/2018/19_CC_2018-CN9-2017-STJ-CC.pdf?ver=2019-06-11-095157-537, consultado no dia 30 de dezembro de 2019, pelas 23:00 horas. 44 https://irn.justica.gov.pt/Portals/33/Doutrina/Pareceres%20do%20Conselho%20Consultivo/Registo%20 Predial%20Casa%20Pronta/2018/23_CC_2018-RP19-2018_STJ_CC.pdf?ver=2019-06-11-095157-537, consultado no dia 30 de dezembro de 2019, pelas 23:14 horas.

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5. A perfeição do título permite o registo definitivo dos factos resultantes do mesmo. Sendo que, a promoção do registo constitui uma obrigação de pedido para os tituladores.

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Legitimidade das Partes e Réus Incertos

Legitimidade das Partes e Réus Incertos

Ana Isabel Guerra Professora Adjunta Convidada da ESTG – Felgueiras – IPP

Ana Margarida de Andrade Teles e Camila Sofia Freitas Rodrigues Alunas do Mestrado em Solicitadoria na ESTG

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Resumo Este estudo versa sobre duas temáticas: a legitimidade das partes e os réus incertos, que se encontram consagrados no Código de Processo Civil. Abordaremos a temática dos pressupostos processuais, (visto que a legitimidade das partes é um pressuposto processual indispensável), explicando muito sucintamente a sua importância e identificamos cada pressuposto, com o objetivo de enquadrar a legitimidade das partes, a pluralidade das partes, o litisconsórcio, a coligação e os modos de sanar a ilegitimidade. Posteriormente, é tratada a temática dos réus incertos. Neste tema, abordamos a legitimidade dos réus incertos e a diferença entre réus incertos e ausentes de parte incerta. Por vezes verificamos que a legitimidade das partes é “esquecida” na medida em que, os restantes pressupostos processuais são as temáticas mais abordadas pela doutrina, não obstante, a legitimidade das partes ser um pressuposto de extrema importância. Quantos aos réus incertos, esta é uma temática pouco tratada no panorama jurídico nacional, apesar da sua utilidade prática. Palavras Chave: Pressupostos Processuais, Legitimidade, Litisconsórcio, Coligação, Réus incertos, Ausentes em parte incerta, Código de Processo Civil (CPC). Abstract This study deals with two themes: the legitimacy of the parties and the uncertain defendants, which are enshrined in the Code of Civil Procedure. We will address the issue of procedural assumptions (since the legitimacy of the parties is an indispensable procedural assumption), explaining their importance very succinctly, and we identify each assumption in order to frame the legitimacy of the parties, the plurality of the parties, the lisconsortium, the coalition and the ways to remedy illegitimacy. Subsequently, the subject of uncertain defendants is addressed. In this theme, we address the legitimacy of uncertain defendants and the difference between uncertain defendants and absent from uncertain parties. Sometimes we find that the legitimacy of the parties is “forgotten” in that the remaining procedural assumptions are the themes most addressed by the doctrine, however, the legitimacy of the parties is an extremely important assumption. As for the uncertain defendants, this is a subject little addressed in the national legal landscape, despite its practical utility. Key words: Procedural Assumptions, Legitimacy, Litigation, Coalition, Defendants Uncertain, Missing in Partly Uncertain, Code of Civil Procedure (CPC).

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Introdução Na temática aqui desenvolvida centramo-nos no corelacionamento de duas áreas de estudo: A Legitimidade Processual das partes e os Réus incertos. A nossa finalidade principal consiste na explicação dos conceitos relacionados com a legitimidade processual e a matéria dos Réus incertos uma vez que esta temática não é tradicionalmente muito abordada pela doutrina. Contudo, uma vez que não há de fato referencias bibliográficas relevantes relativas aos réus incertos, é explicado o conceito por si só e explora-se a evolução legislativa mais concretamente do art.º 22º do CPC. Sobre a legitimidade processual tentou expor-se a matéria de modo suficientemente abrangente e profundo, com o intuito de proporcionar uma abordagem mais prática e esclarecer eventuais dúvidas. Na elaboração do presente estudo pretendeu-se alcançar os seguinte objetivos:-reconhecimento da importância dos pressupostos processuais; -a importância da legitimidade como pressuposto processual; -esclarecimento dos modos de sanação da falta deste pressuposto processual; e clarificação do conceito de réus incertos e compreensão da evolução legislativa. No momento que se instaura uma ação, o espectável é que esta pretensão seja objeto de uma sentença. Do ponto de vista do autor, o que se espera é que a sentença julgue a ação procedente e fixe-se com efeito exatamente o que foi peticionado. O que pelo contrário, na perspetiva do réu, não é o que se espera. Neste sentido, está aqui em causa a função da apreciação do mérito da causa, que é a função natural e expectável das decisões judiciais, na exata medida em que os tribunais existem para resolver litígios (artº152 nº1 do CPC). Não obstante para que seja apreciado o mérito da causa é preciso que se verifiquem determinadas condições, nomeadamente, os pressupostos processuais. Como refere Paulo Pimento, “os pressupostos processuais são os requisitos de ordem técnica necessários ao regular desenvolvimento da instância, permitindo que esta culmine numa sentença que resolva, o litígio colocado à apreciação do tribunal, julgando a ação procedente ou improcedente.”1 Por outro lado, quando não se verifique a existência dos pressupostos processuais, o juiz fica inibido de conhecer sobre o mérito da causa e limita-se a julgar formalmente a lide, o que põe termo ao processo e culmina na absolvição do réu da instância (278º. Nº1 do CPC). Contudo, este julgamento formal da lide (absolvição do réu da instância), apenas terá lugar quando, não tenha sido possível suprir a falta de terminado pressuposto. É por isso, que o nº2 do artigo 278 do CPC estabelece que cessa a possibilidade da absolvição do réu da instância, “quando a falta ou a irregularidade tenha sido sanada”. Os pressupostos que iremos analisar respeitam às partes2 (personalidade judiciaria, capacidade judiciaria, legitimidade, patrocínio

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PIMENTA, Paulo- Processo Civil Declarativo, reimpressão da edição de junho de 2014, Almedina 2015pág.61 2 Sendo estes os pressupostos positivos.

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judiciário obrigatório e interesse em agir). Quanto à legitimidade das partes para que o juiz conheça o mérito da causa, além de as partes possuírem personalidade e capacidade jurídica, torna-se necessário que as mesmas estejam munidas de legitimidade para a ação. A legitimidade consiste na posição que as partes assumem numa determinada ação, enquanto a personalidade e a capacidade judiciária “constituem numa qualidade das partes, genericamente exigida para todos s processos ou alguns deles.”3 O artigo 30º, nº1 do CPC, cujo preâmbulo é “Conceito de legitimidade”, refere que o autor é parte legitima quando tem interesse em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direito em contradizer. Na perspetiva de Jorge Amaral, o legislador define legitimidade servindo-se do critério do direto interesse que a parte pode ter em demandar e em contradizer. Considerando que de fato existe uma determinada pretensão, a parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão perante o réuquando tem interesse direto em demandar-, e por sua vez, a parte terá legitimidade como réu, se for ela quem juridicamente se pode opor à pretensão do autor, por ser a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida pelo autor, isto claro, s e assim vier a prosseguir- interesse direto em contradizer. Se as partes forem ilegítimas, a decisão que viesse a ser proferida sobre o mérito da causa não téria eficácia, uma vez que não vinculava os verdadeiros titulares da relação jurídica em causa. De acordo com o artigo 30º, nº2 do CPC, o interesse em demandar-pertencente ao autorexprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação, e o interesse em contradizerpertencente ao réu-pelo prejuízo que advém pela procedência da ação. Na perspetiva de Jorge Amaral de forma a afastar as possíveis dúvidas sobre a legitimidade das partes, o legislador, no nº3 do artigo 30º do CPC dispõe que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como configurada pelo autor, na petição inicial. De facto, em comparação com a redação anterior à reforma do Código de Processo civil, a legitimidade dos sujeitos era aferida depois de ouvidas as partes, pelo juiz. Atualmente, e pelo disposto no nº3 supra referido, a relação controvertida tem a configuração que o autor lhe quis dar, isto é, o réu do processo é o que o autor quiser demandar na petição inicial. Como refere este Autor “(…) atualmente muito dificilmente depararemos com algum caso de ilegitimidade. A ilegitimidade surgirá naqueles casos em que se verificar divergência entre as pessoas identificadas pelo autor e as que realmente foram 3

PIMENTA, Paulo- Processo Civil Declarativo, reimpressão da edição de junho de 2014, Almedina 2015

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chamadas a juízo, isto é, quando estas pessoas não são os sujeitos da relação controvertida delineada pelo autor. Existem também situações em que existe pluralidade de partes quando, a ação é proposta por vários autores ou contra vários réus. O facto de estarmos perante uma ação proposta por vários autores significa que estamos na presença de uma pluralidade ativa. Por sua vez, se estivermos perante uma ação proposta contra vários réus, significa que estamos na presença de uma pluralidade passiva. No entanto, há ainda quem reconheça a existência de uma pluralidade mista, isto é, quando estamos perante uma ação que foi proposta por vários autores, contra vários réus. A pluralidade pode constituir-se num momento inicial, no momento da propositura da ação, ou pode constituir-se num momento posterior – nos casos previstos nos artigos 311º e 316º do CPC – intervenção de terceiros espontânea ou provocada, respetivamente. Relativamente à sua natureza, a pluralidade de partes pode originar o litisconsórcio ou a coligação. O litisconsórcio e a coligação partilham, a existência de pluralidade de partes, contudo, no primeiro, estamos perante uma unicidade quanto à relação material controvertida, e no segundo, estamos perante uma diversidade de relações materiais controvertidas. Como já foi referido, o litisconsórcio caraterize-se pela unicidade das relações materiais controvertidas. De acordo com os artigos 32º e 33º do CPC, o litisconsórcio pode ser voluntário ou necessário, respetivamente. No que concerne ao litisconsórcio voluntário, de acordo com o art.º 32º do CPC, as partes gozam de autonomia relativamente à sua intervenção no processo. Queremos com isto dizer que, é permitido ao autor/réu intervenção no processo, embora os restantes interessados também o possam fazer, se o quiserem. Os interessados não têm necessariamente que intervir na ação. Só intervêm se assim o desejaram. No Litisconsórcio Voluntário a não intervenção de diversos interessados traduz-se apenas na perda de benefícios que poderiam ser colhidos. Neste caso, a sua não intervenção não terá nenhuma influência sobre a legitimidade daquele ou daqueles que estão no processo. Nos termos do art.35º, in fine do CPC, “no litisconsórcio voluntário, há uma simples

acumulação

de

ações,

conservando

cada

litigante

uma

oposição

de

independência em relação aos seus comportes”, quer isto dizer que no litisconsórcio necessário as partes gozam de independência entre si, não comprometendo a legitimidade das restantes. De facto, o artigo referido, vem reforçar a ideia de que, neste caso, a acumulação depende unicamente da vontade das partes. Jorge Amaral, para explicar o litisconsórcio apresenta como o exemplo das obrigações solidárias, uma vez que perante tal situação o credor pode, “em vez de propor a ação apenas contra um, demandar conjuntamente os devedores” (artº. 517º, nº1 do Código Civil (CC)). Contudo, caso o credor demande apenas contra um dos devedores, não deixa de estar assegurada a

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legitimidade ao abrigo do art.32º, nº1 do CPC. É ainda de salientar que, em harmonia com artigo 32º, nº1 do CPC “(...) mas, se a lei ou o negócio for omisso, a ação pode também ser proposta por um só ou contra um só dos interessados, devendo o tribunal, nesse

caso,

conhecer

apenas

da

respetiva

quota-parte

do

interesse

ou

da

responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade.”, se o credor, no exemplo supra, instaurar a ação apenas contra um dos devedores, só poderá obter decisão respeitante à sua quota-parte da dívida. No que diz respeito ao litisconsórcio necessário ou forçoso, este esta previsto no art.33º do CPC. Contrariamente do litisconsórcio voluntário, este corresponde a uma pluralidade de partes obrigatória, pois não depende da simples vontade dos interessados, isto é, todos os interessados devem estar em juízo sob pena de ilegitimidade das partes. Esta imposição pode resultar da lei, do negócio ou da natureza da relação controvertida. Assim sendo, pela análise do art.º 33º, nº1e 2 do CPC, podemos dividir o litisconsórcio necessário em legal, convencional ou natural. Relativamente ao litisconsórcio necessário legal, como o próprio nome indica, resulta de exigência legal, como acontece no caso das obrigações indivisíveis com pluralidade de devedores ( que só de todos eles podem ser exigidas- art.535º, nº1 CC), ou então no caso de direito de preferência pertencente simultaneamente a vários titulares (art.419º, nº1 do CC) ou ainda, nos casos de indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima- art.º 496º, nº2 CC). Além destes, o art.º 34º, nº 1 do CPC, apresenta diversas situações de litisconsórcio necessário legal que resultam do casamento: “Devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.”. Relativamente ao litisconsórcio necessário convencional, este resulta de uma prévia convenção ou negócio jurídico entre as partes. Por exemplo, duas ou mais pessoas efetuam um depósito no valor de 1.000€, e convencionam que o mesmo só poderá ser levantado na presença de todos os depositantes. Em resultado desta convenção, a ação deve ser proposta por todos os depositantes em relação da quantia (1.000€) depositada. Em concordância com Paulo Pimenta “É de admitir que várias pessoas celebrem determinado negócio e, ao mesmo tempo (ou até posteriormente), convencionem que devem estar presentes todos os interessados/outorgantes em eventual discussão judicial relativa a esse negócio.”4 Quanto ao litisconsórcio necessário natural, de acordo com o preceituado no art.33º, nº 2, “É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria 4

PIMENTA, Paulo- Processo Civil Declarativo, reimpressão da edição de junho de 2014, Almedina 2015pág.74

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natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.”, sendo certo que, de acordo com o nº3 do mesmo art.º a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que possa regular a situação concreta (definitivamente) das partes relativamente ao pedido formulado, desde que não vincule os restantes interessados. O litisconsórcio natural ocorre por exemplo, na ação de divisão de coisa comum que pertence a A, B e C. Neste caso, se A instaurar a ação apenas contra B, a ação não teria nenhum efeito útil definitivo, uma vez que, se lei não exigisse o chamamento de C, este posteriormente e em defesa do seu direito, deveria instaurar uma ação contra A e B e, neste sentido, as concretizações feitas entre estes últimos, não seriam desrespeitadas. Perante isto, entende-se que ação instaurada por A é um ato inútil, preceituado no art.130º do CPC. O litisconsórcio por sua vez, partilha com a coligação a pluralidade de partes, contudo, na coligação associado a uma pluralidade de partes corresponde uma pluralidade de pedidos. Assim sendo, a coligação, assenta numa faculdade e não numa imposição, à semelhança do litisconsórcio voluntário em que as partes assumem um papel autónomo relativamente à sua participação na ação. Deste modo, nos termos do art.36º do CPC, “É permitida a coligação de autores contra um ou vários réus e é permitido a um autor demandar conjuntamente vários réus, por pedidos diferentes, quando a causa de pedir seja a mesma e única (...)”, isto é, a causa de pedir é o resultado da pretensão do autor (581º, nº4 CPC). Em que situação é que a causa de pedir é a mesma e única, contudo há uma pluralidade de autores com pretensões diferentes? Este fenómeno jurídico é regular nas ações demandas pelos lesados contra a seguradora, nos acidentes de viação, uma vez que, apesar da causa ser a mesma e única (acidente), cada lesado apresenta danos diversos dos restantes. Continuando a análise deste artigo , “quando os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade (quando a decisão de um pode influenciar a decisão do outro.) ou dependência (quando o conhecimento de um deles só pode ter lugar no caso de se verificar a procedência do outro)”. Em harmonia com o artº36º nº2 do CPC “É igualmente licita a coligação quando, sendo embora diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito ou de cláusulas de contratos perfeitamente análogas.”. Acrescenta ainda o nº3 do artigo supracitado que ainda possível a coligação “(...)quando os pedidos deduzidos contra os vários réus se baseiam na invocação da obrigação cartular, quanto a uns, e da respetiva relação subjacente, quanto a outros.”, por exemplo, sendo réus numa ação, uns são demandados como subscritores de um título de crédito e outro(s) são demandados com base na obrigação subjacente que deu origem ao título. Por fim, importa referir que para que seja possível a coligação é necessário que não se verifiquem “Obstáculos à coligação”, preceituados no art.º 37º do CPC. Ao

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analisarmos a legitimidade das partes na ação, quer enquanto autor, quer enquanto réu e nesse sentido, podemos concluir que pelo disposto no art.º 278º, nº1, d) do CPC, a ilegitimidade singular é insanável e que, por sua vez a ilegitimidade plural, quando falamos no litisconsórcio necessário, é sanável. Mas afinal como é se pode sanar a ilegitimidade singular? A ilegitimidade singular pode ser sanada mediante a intervenção de terceiros espontânea, consagrada no art.º 311º do CPC, ou através da intervenção de terceiros provocada. Relativamente à intervenção de terceiros espontânea, é de referir o exposto no art.º 316º do CPC, isto é, quer o réu, quer o auto podem requerer a intervenção de terceiros a juízo, desde que este tenha legitimidade para tal, seja como associado ou associado da parte contrária. No entanto, esta intervenção pode ainda ser requerida pelo juiz, caso este julgue necessário. Mas qual será o fundamento para proferirmos tal afirmação? Por norma, temos tendência a associar a falta de pressupostos processuais à verificação de uma exceção dilatória que culmina com a absolvição do réu da instância. Contudo, nem sempre isto acontece. Há situações em que a falta de pressupostos processuais pode ser suprida e como tal, não se pode culminar de imediato com absolvição do réu da instância. Nesta matéria importa referenciar o princípio da relevância do conteúdo sobre a forma, consagrado no artº.278º, nº3 do CPC, “As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º (...)”. Conjugando o artigo supra referido com o dever de gestão processual (artigo 6º, nº2 do CPC): “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”, depreendemos que, sempre que for possível o juiz deve agir, oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, quando estes sejam suscetíveis de ser sanados. Por vezes, a absolvição do réu da instância leva a que uma das partes intervenientes seja beneficiada, já que, sendo o réu absolvido, a ação finda. Neste sentido, o princípio da relevância do conteúdo sobre a forma deve ser entendido em sentido amplo, aplicandose não só as exceções dilatórias- que conduzem à absolvição do réu da instância- mas a outras exceções que origem outras consequências, no sentido de a parte ser beneficiada pela apreciação do mérito da causa e não pela falta de um pressuposto. Com a absolvição do réu da instância, o mérito da causa não será apreciado, culminando com o caso julgado- art.º 619º CPC. Posto isto, concluímos que a solução referida visa evitar processos frustrados e permite às partes uma segunda oportunidade para que a ação continue e estas vejam os seus direitos acautelados. No que aos réus incertos diz respeito, numa situação dita “normal”, a ação desenrola-se em duas partes, em que consta a cooperação e diálogo entre estas e o tribunal.

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O autor da ação apresenta uma petição inicial no tribunal, um articulado do processo onde expõe os motivos de facto e de direito, da ação e desse modo, formula o pedido correspondente. Assim, dá-se início à instância. Como é sabido, a petição inicial consiste no ato processual do autor no exercício do direito de ação. Isto é, trata-se do único articulado absolutamente indispensável à existência do processo, visto que é através da petição inicial que sabemos a pretensão do autor. Após a petição inicial, segue-se a citação, sendo esta o ato processual pelo qual se dá conhecimento ao réu ou ao executado que foi proposta contra si proposta determinada ação. Através da citação, o réu é chamado ao processo para exercer a sua defesa, contestando o pedido feito pelo autor. Este consiste no meio privilegiado para a concretização de um dos princípios do processo civil - princípio do contraditório-, proporciona ao réu a possibilidade de deduzir oposição ao pedido do autor. No entanto, imaginemos que a petição inicial dá entrada no tribunal, mas não existe nenhuma alusão à determinação das partes, porque o autor desconhece quem demandar, ou seja, o autor sabe que o seu direito foi lesado, fundamenta essa lesão com factos e com o direito, pede defesa, mas no entanto, não sabe contra quem deve propor a ação. Na verdade, e em concordância com o art.º7 do CPC “ na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judicias e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litigio.”, ou seja, o autor deve de acordo com o artigo supra, dar todas as informações que possui acerca do paradeiro do réu, e ao abrigo do 552º, n.º1, alínea a) do CPC deve o autor indicar o nome, domicilio e sempre que possível o número de identificação fiscal, profissões e locais de trabalho. Deste modo, colocamos a seguinte questão- O desconhecimento da contraparte inviabiliza a propositura da ação? A resposta é não. Analisando o art.º 22 nº1 do CPC “Quando a ação seja proposta contra incertos, por não ter o autor possibilidade de identificar os interessados diretos em contradizer, são aqueles representados pelo Ministério Público.”, isto é, analisando este artigo, poderemos verificar que a lei reconhece a legitimidade processual dos réus incertos, assegurando ainda a sua representação e possibilidade de defesa, pelo Ministério Público ou por defensor oficioso, se o Ministério Público representar o autor (art.22º nº2 do CPC). Podemos, deste modo, considerar que, havendo uma situação de fato merecedora de tutela, deve a sua instauração ser aceite pelo tribunal, apesar da incerteza subjetiva relativa à contraparte, seja ela em relação ao número ou à identidade da mesma. Importa referir que ao abrigo do nº3 do artigo supra, a representação do Ministério Público cessa quando os citados como incertos se apresentarem para intervir como réus e a sua legitimidade se encontre devidamente reconhecida.

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Anteriormente à revisão de 1995/96 bastava que o autor afirmasse que as pessoas a citar eram incertas ou que não havia interessados certos para que o juiz ordenasse a citação edital destes incertos, dispensando a justificação dessa incerteza por parte do autor. Porém, após esta revisão, foi aditada a expressão “por não ter o autor possibilidade de identificar os interessados diretos em contradizer”. Assim sendo, atualmente, impõem-se ao autor o ónus de provar que efetuou todas as diligências possíveis, no sentido de identificar os interessados. A diferença entre réu incerto e ausente em parte incerta é importante uma vez que o réu incerto e a ausente em parte incerta por vezes estes são confundidos. Deste modo, começando pelo ausente em parte incerta, este encontra-se previsto no artº.236 nº1 do CPC “Quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta, a secretaria diligencia obter informação sobre o último paradeiro ou residência conhecida junto de quaisquer entidades ou serviços, designadamente, mediante prévio despacho judicial, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres e, quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da realização da citação edital, junto das autoridades policiais.” , ou seja, nestes casos, o autor sabe a identificação do réu porém a sua localização é desconhecida. Nestes casos prevê O artigo 89.º do código civil prevê que poderá ser considerado como ausente “…aquele que desapareceu sem que dele se saiba parte e sem ter deixado representante legal ou procurador…”. Assim sendo deveria ser nomeado um curador para administrar o património e interesses do ausente, nos termos dos artigos 89.º n.º 1, 92.º n.º1 e 99.º do Código Civil5, devendo existir remuneração pela curadoria nos termos do previsto no artigo 96.º do Código Civil. Esta curadoria exercida deve cessar em caso de localização dos ausentes, devendo aplicar-se aqui também o previsto nos artigos 112.º e 119.º do Código Civil. Ao passo que, no caso de existirem réus incertos o autor não sabe nem a identificação nem a localização do réu. Para melhor compreensão, sobre esta temática, parece-nos pertinente analisar o Ac. TRL de 29-06-20066. Neste caso, com a morte de José X, o Banco S.A veio deduzir a habilitação da sua viúva Maria e dos demais herdeiros incertos. Desta forma, o tribunal convidou o Banco S.A, autor, a apresentar um novo requerimento inicial justificando a incerteza dos sucessores de José X.

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Inicialmente essa curadoria seria provisória, transformando-se posteriormente em definitiva caso tivessem passados 2 anos sem se saber do ausente se este não tivesse deixado representante legal ou procurador, ou passados 5 anos após a ausência nos casos de existir um representante legal ou um procurador, nos termos do previsto no artigo 99.º do Código Civil, existindo assim uma justificação da ausência. 6 Cfr. Ac. Do TRL de 26-09-2006, Proc. nº5228/2006-8 (Salazar Casanova)

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No entanto, nos termos do art.º 552º, nº1a) (artigo 467º, nº1) do CPC o tribunal considerou que incumbe ao Banco, enquanto autor, identificar os herdeiros da parte falecida, pois como referimos anteriormente o Banco sendo autor da ação tem o ónus de provar que efetuou diligências no sentido de identificar os interessados. Inconformado, o Banco S.A recorre da decisão, sustentando que:“ o despacho recorrido, ao não ordenar assim, face ao que dos autos consta, o normal e regular prosseguimento do incidente de habilitação de herdeiros em que sobe o presente recurso, violou o disposto no artigo 156.º,n.º 1 do Código de Processo Civil, o disposto também, face ao prévio convite, do artigo 508.º,n.º1, alínea b) e nºs 2 e 3 do Código de Processo Civil e, também e sempre, o disposto no artigo 64.º da Lei Geral Tributária, donde impor-se a procedência do presente recurso e, assim, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por acórdão que determine o normal e regular prosseguimento dos autos, ou seja, consequentemente, a notificação e citação que requeridas foram no requerimento ou petição inicial do incidente de habilitação.”7 Isto é, o Banco S.A pretendia que o Tribunal, perante a situação ordenasse a citação edital dos sucessores incertos. Assim, a questão a resolver passa por saber se o tribunal deve ordenar a citação edital de sucessores incertos da parte falecida com base na declaração do Banco, que diz ignorar se o falecido deixou descendentes ou ascendentes vivos, bem como se faleceu ou não com testamento. Entende-se que não, uma vez que o autor deveria efetuar todas as diligências necessárias para identificar os descendes e ascendentes, neste caso de José X. Deste modo, se este caso fosse anterior a 1995/1996, bastava que o autor as afirmasse pessoas a citar são incertas, ou não há interessado certos, ou a ação é dirigida contra a incertos - para o que o juiz se ordena a citação por éditos, pois a lei dispensava a justificação, por parte do autor. Por sua vez, o caso em apreço é de 2006 e como foi referido, em 1995/1996 foi aditado ao art.º 16, nº1 do CPC (atual artigo 22º.nº1 do Novo CPC), a expressão “por não ter o autor possibilidade de identificar os interessados diretos”, e deste modo, o Banco não bastava invocar o desconhecimento da identidade dos incertos. Ou seja, é imposto ao Banco o ónus de provar que efetuou todas as diligências de tais interessados, e isso não aconteceu. Desta forma, o Tribunal decidiu que: “Nega-se provimento ao recurso salvo no que toca à decisão em si de indeferimento liminar que se substitui por esta outra de os autos ficarem a aguardar que o ora recorrente comprove as diligências pertinentes tendo em vista a identificação dos demais sucessores sem prejuízo dos atos consequenciais, designadamente a interrupção da instância.” Conclusões 7

Cfr. Ac. Do TRL de 26-09-2006, Proc. nº5228/2006-8 (Salazar Casanova)

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Os pressupostos processuais são sem sombra de dúvida os requisitos necessários para que o processo atinja o seu objetivo. Deste modo, a legitimidade é um pressuposto processual que consiste na posição que as partes assumem numa determinada ação. É notório que é um pressuposto muito importante, na medida em que sem ele, o processo não atinge o seu fim. No que concerne aos réus incertos, sabemos que, com a entrada da petição inicial no tribunal, o autor pretende defender algo seu, e, claramente, por outro lado, em alguém que se opõe, defendendo a sua própria natureza. E se o autor não saber quem é a outra parte? – Esta foi a questão que nos ocorreu e que nos deixou com interesse em abordar esta temática, que a nosso ver não é muito estudada.

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Bibliografia AMARAL, Jorge Augusto Pais - Direito Processual Civil, 12ª edição, Almedina 2015 PIMENTA, Paulo- Processo Civil Declarativo, reimpressão da edição de junho de 2014, Almedina 2015 CUNHA, António- Direito Processual Civil Declarativo- 2º edição (Revista atualizada e ampliada) Quid Iuris FREITAS, José Lebre-Introdução ao processo civil declarativo, conceito e principios gerais à luz do novo código- 4º edição Gest Legal Webgrafia http://www.lucianorossato.pro.br/legitimidade-processual/ http://www.rkladvocacia.com/curadoria-especial-para-pessoas-incertas-oudesconhecidas-no-processo-civil/ https://eg.uc.pt/bitstream/10316/85945/1/Tese%20Incertos%20no%20Processo%20Civil.p df

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A Garantia Voluntária na Venda de Bens de Consumo

A Garantia Voluntária na Venda de Bens de Consumo

Isa Raquel Pinto Pereira Jurista e Mestranda em Direito – Especialização em Ciências Jurídico-Administrativas e Tributárias

João Vasco Loureiro Advogado e Formador

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I – Introdução O Direito do Consumo constitui atualmente um ramo do Direito relativamente recente e em progressivo desenvolvimento, pelo que se revela apelativo e interessante o estudo de questões problemáticas que se colocam no âmbito desta área, de modo a contribuir para a densificação deste ramo jurídico. A compra e venda de bens de consumo é, provavelmente, o contrato que com maior frequência é celebrado e, consequentemente, analisado pelos tribunais. Os litígios nas relações entre consumidores e agentes económicos têm vindo a aumentar, face à desigualdade entre as partes, por exemplo, na celebração de contratos. O Direito do Consumo visa, assim, atenuar essa desigualdade e repor o equilíbrio contratual entre as partes, acautelando e favorecendo a posição do consumidor1. No nosso ordenamento jurídico, os direitos dos consumidores possuem mesmo dignidade constitucional, encontrando-se previstos no artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa2. Reconhecendo esta importância, o legislador comunitário estabeleceu um regime de regras sobre certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas. A opção do legislador comunitário foi a de aproximar as legislações dos Estados Membros sobre esta matéria, pelo que, o ato normativo adotado foi a Diretiva3, no caso a Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Maio4, cabendo a cada Estado Membro escolher a forma jurídica de alcançar o resultado pretendido pela Diretiva. Neste sentido, o Estado Português escolheu transpor a Diretiva para o direito interno através do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril5, também designado como o diploma que regula a “Venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas”.

1

Com o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21/05, foi incluído no ordenamento jurídico português distinguindo-se do regime civil, exatamente para fazer face às necessidades específicas de proteção dos consumidores, considerados a parte contratual mais fraca na relação jurídica de consumo, de forma a reequilibrar as posições jurídicas das partes e atenuando esse desequilíbrio entre a posição do vendedor e a do consumidor. Tal como alude o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05/05/2015, “a razão de ser da introdução desta regulamentação mais protetora do comprador consumidor consiste em haver o legislador considerado o comprador - que seja consumidor – a parte mais fraca no respetivo negócio de compra e venda.” 2 Diz-nos o artigo 60.º, n.º 1 da CRP que “os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços, à formação e à informação, à proteção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos” 3 Nos termos do artigo 249.º do Tratado da Comunidade Europeia, a Diretiva obriga os Estados Membros a interpretarem o direito nacional à luz do texto e da finalidade da diretiva, para que seja atingido o resultado pretendido. Diferentemente, o Regulamento, outro ato normativo possível adotar pelo legislador comunitário, tem caráter geral, é obrigatório em todos os seus elementos e é aplicável diretamente em todos os Estados Membros. 4 Como refere Paulo Mota Pinto, “constitui a mais importante incursão imperativa das instâncias comunitárias, até à data, no direito contratual interno dos Estados-Membros”, PINTO, Paulo Mota, Conformidade e Garantias na Venda de Bens de Consumo, a Diretiva 1999/44/CE e o Direito Português, EDC, n.º 2, Coimbra, 2000, pág. 201. 5 Alterado pelo DL n.º 84/2008, de 21/05.

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A Diretiva em análise representou um impulso marcante para a harmonização do direito civil dos países membros da UE, pois versa sobre pontos nucleares do regime da compra e venda entre consumidores e profissionais, que, por sua vez, representa um dos contratos, senão mesmo o contrato mais importante para a “vida quotidiana do cidadão comum”6, visto que constitui a maioria das relações do seu dia-a-dia. Logo no preâmbulo deste diploma, é feita referência às garantias voluntárias, referindo que “Adotam-se, ainda, pela primeira vez, medidas jurídicas relativas às «garantias» voluntariamente

oferecidas

pelo

vendedor,

pelo

fabricante

ou

por

qualquer

intermediário, no sentido de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo da coisa defeituosa, estabelecendo-se o efeito vinculativo de tais declarações” Cinco anos mais tarde, o legislador Português entendeu ser necessário “(…) introduzir novas regras que permitam ajustar o regime à realidade do mercado e colmatar as deficiências que a aplicação daquele diploma revelou7.”. Assim e fazendo uso da mesma Diretiva, o legislador Português redigiu o Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio. Neste diploma, manteve-se o artigo 9.º sob a epígrafe de “Garantias voluntárias”, sendo certo que foi revogado o n.º 1 deste artigo, mas aditado o artigo 1º- B, nomeadamente a alínea f), que nos dá uma definição de garantia legal. Assim, nos termos da alínea f), do artigo 1.º - B, garantia legal é definida como “qualquer compromisso ou declaração, de carácter gratuito ou oneroso, assumido por um vendedor, por um produtor ou por qualquer intermediário perante o consumidor, de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de um bem de consumo, no caso de este não corresponder às condições enumeradas na declaração de garantia ou na respetiva publicidade”. Outro aspeto relevante quanto às garantias voluntárias instituído com a aprovação do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, prende-se com o facto de se preverem, agora, sanções administrativas para a violação da forma como a garantia deve ser redigida e as menções que obrigatoriamente devem constar. Propomo-nos, assim, com este estudo, clarificar qual a importância da garantia voluntária, tendo necessariamente como contraposição a garantia legal. II – Venda de bens de consumo Conforme se referiu já na introdução do presente estudo, a venda de bens de consumo é, com grande probabilidade, o contrato com maior apreciação pelos tribunais dada a frequência da sua celebração. Reflete, aliás, um modelo económico e social da União Europeia8. 6 7

A expressão é de PINTO, Paulo Mota, Conformidade e Garantias…, ob. cit., p. 204. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio.

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Trata-se então de um contrato, ou seja, de duas ou mais declarações negociais opostas, mas convergentes para a realização de um objetivo comum. Um contrato, em que uma das partes quer comprar e outra quer vender, portanto, um contrato de compra e venda. O contrato de compra e venda encontra-se regulado, em termos gerais, no Código Civil nos artigos 874.º a 939.º. É um contrato típico, integrado no título II do Código Civil, destinado aos contratos em especial, e para o qual é concedido todo o capítulo I deste título II. Encontra-se assim aqui toda a regulação geral do contrato de compra e venda, seja de bens de consumo ou outros. Desta parte geral importa destacar que se trata de um contrato mediante o qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou de um direito, mediante um preço (Cfr. artigo 874.º e alínea a) do artigo 879.º do Código Civil), gerando assim a obrigação de uma das partes, o vendedor, de entregar a coisa, e a obrigação da outra parte, o comprador, de pagar o preço (Cfr. artigo 879.º, alíneas b) e c) do Código Civil, respetivamente). Para o presente trabalho, fixar-nos-emos apenas na compra e venda de “bens”, termo que é utilizado tanto pela doutrina como pela lei como sinónimo de “coisa”, podendo também ser utilizado pela lei com todos os elementos integrantes de um património, como por exemplo sucede no caso do artigo 1678.º do Código Civil, sob a epígrafe de “Administração de bens do casal.”9 Ora, diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas (Cfr. n.º 1 do artigo 202.º do Código Civil). Assim, para efeitos de venda de bens de consumo não interessa qualquer “coisa”, mas sim e apenas “coisas” que se possam considerar de consumo. Nos termos da alínea b) do artigo 1.º-B do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, define-se bem de consumo como “qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão”. Podem ser então quaisquer bens imóveis, que se encontram definidos no artigo 204.º do Código Civil e, quanto aos móveis, que se encontram definidos no artigo 205.º do mesmo diploma, apenas os corpóreos, ou seja, aqueles que têm substância, são uma realidade sensível10. Porém, estes bens imóveis ou móveis, têm que ser de consumo, conceito que não se alcança na sua plenitude pela definição dada pela alínea b), do artigo 1º-B do Decreto-Lei

8

Neste sentido ver TENREIRO, Mário, Estudos de direito de Consumo - Homenagem a Manuel Cabeçadas Ataíde Ferreira, DECO, págs. 396 a 410. 9 Cfr. PRATA, Ana, Dicionário Jurídico – 3ª Edição Revista e Atualizada, 1995, Almedina, pág. 119. 10 Noção que se pode completar por oposição à noção de coisa incorpórea, ou seja, aquela cuja realidade é meramente ideal, jurídica ou social, não tendo realidade sensível, como, por exemplo, os bens intelectuais (obras literárias, artísticas, inventos), os direitos, os bens de personalidade… (Neste sentido ver PRATA, Ana, Dicionário Jurídico – 3ª Edição Revista e Atualizada, 1995, Almedina, pág. 221.

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n.º 84/2008, de 21 de Maio, pois nem todos os imóveis e móveis corpóreos podem ser qualificados como bens de consumo. Ora, os bens de consumo terão que ser aferidos pela relação jurídica da qual são objeto. Portanto, só se estivermos perante uma relação jurídica de consumo, é que os bens objeto dessa relação jurídica serão, também, bens de consumo. Assim e na falta de uma definição legal de relação jurídica de consumo, para se aferir da mesma, é necessário que uma das partes seja um consumidor. Ora, consumidor é uma figura jurídica com uma definição legal não consensual. Considera o artigo 2.º n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, com as alterações introduzidas até à Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto“(…) consumidor é todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”. Igual definição adotou o Decreto-Lei da venda de bens de consumo, na alínea a) do artigo1º-B. Nesta noção, cabem além de pessoas singulares, também as pessoas coletivas, como aliás era claro na redação da Lei n.º 29/81, de 22 de Agosto11, onde definia consumidor no seu artigo 2.º como “(…) todo aquele a quem sejam fornecidos bens ou serviços destinados ao seu uso privado por pessoa singular ou coletiva que exerça, com caráter profissional, uma atividade económica.” Porém, em nossa opinião, o direito a constituir vai no sentido de uma noção mais restrita de consumidor, onde não existe lugar para as pessoas coletivas. Na verdade, este tem sido o sentido constante da legislação que resulta da transposição de diretivas comunitárias12 e também tem sido esse o entendimento dos tribunais superiores13. Sendo 11

Lei que se poderá apelidar como sendo a primeira Lei de Defesa do Consumidor, revogada entretanto pelo artigo 24.º da Lei 24/96, de 31 de Julho. 12 Com exemplo de legislação resultante da transposição de diretivas comunitárias onde é adotada a noção restrita de consumidor, podemos encontrar, a título de exemplo, o Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/29/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, relativa às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores no mercado interno (alínea a) do artigo 3.º); o Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, alterando a Diretiva n.º 93/13/CEE do Conselho, e a Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, e revogando ainda a Diretiva n.º 85/577/CEE, do Conselho e a Diretiva n.º 97/7/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, tendo por objetivo contribuir, graças à consecução de um elevado nível de defesa dos consumidores, para o bom funcionamento do mercado interno, aproximando as legislações dos Estados Membros, em especial, nas matérias relativas à informação pré-contratual, aos requisitos formais e ao direito de livre resolução nos contratos celebrados à distância, e nos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial (alínea c) do artigo 3.º); A Lei n.º 144/2015, de 8 de Setembro, que transpõe a Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, estabelecendo o enquadramento jurídico dos mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo, e revogando os Decretos-Leis n.ºs 146/99, de 4 de maio, e 60/2011, de 6 de maio (alínea c) do artigo 3.º), para citar as mais recentes. 13 Neste sentido ver o acórdão do STJ de 16/06/2016 em que foi relator Tavares de Paiva (processo n.º 2188/14.4TBVNG.P1.S1 e consultável em linha em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-

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certo que também a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Maio de 1999 relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas (que foi transposta para o direito Português pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril), a qual considera consumidor “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional”. (Cfr. alínea a), do n.º 2 do artigo 1.º). Porém existem autores14 que defendem a posição de que a LDC (Lei de Defesa do Consumidor) adota, deliberadamente, um conceito mais amplo de consumidor, nomeadamente um conceito onde cabem também as pessoas coletivas. Não é esta, porém, a ideia que perfilhamos, tendendo a adotar uma noção restrita de consumidor onde apenas se incluam as pessoas singulares. Para além de ser então uma pessoa singular, o consumidor, para o ser, terá também que fazer um uso não profissional do bem adquirido. Terá, portanto, que estar a agir fora do exercício da sua atividade profissional. Finalmente, depende ainda o consumidor da outra parte do contrato, onde terá que estar presente um profissional, um vendedor profissional, “(…) encontrando-se, deste modo, excluídas quaisquer vendas feitas entre consumidores, entre vendedores profissionais ou por um consumidor a um vendedor profissional15”. Sintetizando, consumidor é uma pessoa singular que adquire um bem (imóvel, ou móvel corpóreo), para dele fazer um uso não profissional, sendo certo que tal bem lhe foi vendido por um profissional, visando este a obtenção de benefícios. Conceito este suficiente também para entender do que se trata a venda de bens de consumo. III – Garantias A garantia é a obrigação que resulta para o vendedor de garantir o bom funcionamento da coisa vendida, devendo aqui o termo bom funcionamento ser entendido num sentido lato, englobando, entre outras, as caraterísticas atinentes ao funcionamento, durabilidade, capacidade, produtividade, consumo da coisa vendida16. Assim, “a garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado, na medida em que, durante a sua vigência, o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida; por isso, dessa garantia resulta uma /93E2A36AB705659880257FD8005A7C11 e ainda o acórdão uniformizador de jurisprudência AUJ n.º 4/2014 de 20/03/2014, em que foi relatora Clara Sottomayor. 14 Tais como OLIVEIRA, Fernando Batista de, O Conceito de Consumidor, Perspectivas Nacional e Comunitárias, Almedina). 15 1Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (Processo 0456404), de 07/03/2005, em que foi relator Santos Carvalho. 16 Cfr. BRAGA, Armando, A Venda de Coisas Defeituosas no Código Civil – A Venda de Bens de Consumo, Vida Económica, 2005, pág. 56.

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presunção ilidível de que o vício ou defeito, que a coisa venha a revelar após a entrega, já existia nessa data, circunstância que tem importantes reflexos na questão do ónus da prova: para o exercício dos direitos cobertos pela garantia, o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo de garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega17”. A garantia surge já no regime geral da compra e venda plasmado no Código Civil, nomeadamente no artigo 921.º, sendo de seis meses18 caso as partes não tenham estabelecido um prazo diferente. Na venda de bens de consumo, mais uma vez o artigo 1º-B, agora nas suas alíneas f) e g), apresenta-nos as noções de garantia legal e garantia voluntária, respetivamente. Assim, garantia legal consiste em ”(…) qualquer compromisso ou declaração assumido por um vendedor ou por um produtor perante o consumidor, sem encargos adicionais para este, de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de um bem de consumo, no caso de este não corresponder às condições enumeradas na declaração de garantia ou na respetiva publicidade” enquanto a garantia voluntária consiste em “ (…) qualquer compromisso ou declaração, de carácter gratuito ou oneroso, assumido por um vendedor, por um produtor ou por qualquer intermediário perante o consumidor, de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de um bem de consumo, no caso de este não corresponder às condições enumeradas na declaração de garantia ou na respetiva publicidade”. Desta forma, a garantia legal prevista na venda de bens de consumo, trata-se, no fundo, de uma presunção de conformidade do bem com o contrato de compra e venda (Cfr. artigo

2.º

n.º

1),

presumindo,

de

forma não

taxativa,

várias

situações

de

desconformidade do bem com o contrato (artigo 2.º n.º 2), e que essa falta de conformidade, a ser demonstrada, se presume que já existia no momento em que o bem é entregue ao consumidor, desde que tal falta de conformidade se manifeste num prazo de dois anos, no caso de bens móveis, ou de cinco anos, no caso de bens imóveis (artigo 3.º n.º 1 e n.º 2). A verificarem-se todos estes requisitos, fica conferido ao consumidor o direito de reposição do bem com o contrato, sem encargos, por via de reparação19, substituição,

17

Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (Processo 0456404), de 07/03/2005, em que foi relator Santos Carvalho. 18 “No silêncio do contrato, o prazo da garantia expira seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabelecerem prazo maior”, Cfr. n.º 2, do artigo 921.º do Código Civil. 19 O direito à reparação do bem tem subjacente o princípio do favor negotti (princípio da conservação ou aproveitamento do negócio jurídico) que devemos considerar um princípio geral do ordenamento jurídico português. Pode-se indicar como afloramentos deste princípio, o art. 292.º relativo à redução de negócios jurídicos parcialmente inválidos, o art. 293.º relativo à conversão de negócios nulos ou

139


redução adequada do preço20, ou resolução do contrato21, sem que exista qualquer hierarquia nestes direitos22, apresentando-se apenas como limite para o exercício daqueles direitos, o abuso de direito, ou a sua impossibilidade de exercício – Cfr. artigo 4.º do regime jurídico da venda de bens de consumo. Diz-nos o n.º 5 do artigo 4.º que o consumidor pode exercer qualquer um dos direitos supra elencados, salvo se tal se manifestar impossível23 ou constituir abuso de direito24. No que concerne ao n.º 2 do artigo 4.º a reparação ou a substituição devem ser realizadas dentro de um prazo razoável e sem inconveniente para o consumidor, tendo em conta a natureza do bem e o fim a que o consumidor o destina, sendo que no caso de bens móveis esse prazo é de 30 dias. Importa ainda salientar que o n.º 4 do artigo 4.º, faz menção ao facto de os direitos de resolução do contrato e da redução do preço poderem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador. Por sua vez, os direitos referidos transmitem-se a um terceiro que adquira o bem (Cfr. n.º 6, do artigo 4.º). IV – As garantias voluntárias A garantia voluntária, também designada como garantia comercial, como já supra se pôde constatar, existe também no regime geral dos contratos de compra e venda regulados no Código Civil (Cfr. artigo 921.º), mas em nosso entender, assume também uma importância relevante no regime jurídico da venda de bens de consumo, e que justifica o presente estudo. Assim, é certo que a garantia voluntária dispõe apenas de um artigo para si concedido no regime jurídico da venda de bens de consumo, o artigo 9.º. Porém, a garantia voluntária veio paulatinamente a ser considerada pelo ordenamento jurídico Português que visa tutelar os direitos dos consumidores. anuláveis e ainda, no âmbito do direito internacional privado, o art. 19.º, n.º 1 e o art. 36.º, n.º 2, todos do CC. 20 Este direito corresponde, à antiga actio quanti minoris. 21 Consiste no direito à resolução do contrato, que corresponde à antiga actio redhibitoria. Aqui, a resolução do contrato terá que ser entendida com alguma habilidade para concluir pela reposição do bem com o contrato. Sendo resolvido o contrato, os efeitos dessa resolução são equiparados à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (cfr. artigo 433.º do Código Civil) e, assim, tudo aquilo que tiver sido prestado deverá ser restituído (Cfr. artigo 289.º do Código Civil), pelo que o consumidor não ficará na posse do bem, já que o devolveu mediante a restituição do preço pago e, assim, não existe, na verdade, uma reposição do bem com o contrato. 22 Ao contrário que acontece na Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Maio de 1999 que no seu artigo 3.º estabelece uma hierarquia, podendo em primeiro lugar o consumidor exigir a reparação ou substituição e só se tal exigência for desproporcionada ou impossível, a redução adequada do preço ou a resolução do contrato. 23 O primeiro critério limitador da liberdade de escolha no exercício dos direitos conferidos ao consumidor, referido pelo n.º 5 do art. 4.º, refere-se à impossibilidade. 24 O segundo critério limitador do exercício dos direitos conferidos ao consumidor em caso de desconformidade do bem com o contrato, referido expressamente pelo n.º 5 do art. 4.º, é o instituto do abuso de direito que consiste num limite jurídico.

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Desta forma, e tendo sempre presente a noção de garantia voluntária resultante da alínea g) do artigo 1.º-B do regime jurídico da venda de bens de consumo, a sua alusão, ainda que ténue, era já feita na Lei n.º 29/81, de 22 de Agosto, no artigo 9.º n.º 2 desse diploma, ao referir que, “As informações afixadas em rótulos, prestadas nos locais de venda ou divulgadas por meio de publicidade devem ser rigorosamente verdadeiras, precisas e esclarecedoras quanto à natureza, composição, quantidade, qualidade, prazo de validade, utilidade e forma de utilização, preço e demais características relevantes dos respetivos bens e serviços.” Esta ideia passou para a Lei de Defesa do Consumidor, nomeadamente para o artigo 7.º n.º 5 onde nos diz que “As informações concretas e objetivas contidas nas mensagens publicitárias de determinado bem, serviço ou direito consideram-se integradas no conteúdo dos contratos que se venham a celebrar após a sua emissão, tendo-se por não escritas as cláusulas contratuais em contrário.” Ficando porém mais clara a opção do legislador em começar a abrir caminho para autonomizar as garantias voluntárias na redação dada ao n.º 2 do artigo 4.º deste diploma, quando refere que “Sem prejuízo do estabelecimento de prazos mais favoráveis por convenção das partes ou pelos usos, o fornecedor de bens móveis não consumíveis está obrigado a garantir o seu bom estado e o seu bom funcionamento por período nunca inferior a um ano”. Posteriormente, só com a publicação do Decreto-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril, é que as garantias voluntárias alcançaram um estatuto capaz de lhes garantir todo um artigo a elas destinado, nomeadamente o 9.º. Artigo este que veio a ser mantido no atual Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, mas é também verdade que, neste diploma, o legislador sentiu já a necessidade de dar outro estatuto às garantias voluntárias, estabelecendo por isso sanções de caráter administrativo para os agentes económicos que não respeitem a forma como a garantia voluntária deve ser redigida e as menções que esta deve conter. Assim, prescreve o artigo 9.º n.º 2 que “A declaração de garantia deve ser entregue ao consumidor por escrito ou em qualquer outro suporte duradouro a que aquele tenha acesso”25. Portanto, sendo escrita, estabelece o n.º 3 do mesmo preceito que “A garantia, que deve ser redigida de forma clara e concisa na língua portuguesa…”, e define em cinco alíneas as menções que deve conter obrigatoriamente e que são: “a) Declaração de que o consumidor goza dos direitos previstos no presente decreto-lei, e na demais legislação aplicável, e de que tais direitos não são afetados pela garantia;

25

O suporte duradouro a que o consumidor tenha acesso poderá consistir em CD-Rom, DVD, disco duro do computador do consumidor (Neste sentido ver CALVÃO DA SILVA, João, Venda de Bens de Consumo, Comentário 2ª edição, 2004, Almedina, pág. 127).

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b) A informação sobre o carácter gratuito ou oneroso da garantia e, neste último caso, a indicação dos encargos a suportar pelo consumidor; c) Os benefícios atribuídos ao consumidor por meio do exercício da garantia, bem como as condições para a atribuição destes benefícios, incluindo a enumeração de todos os encargos, nomeadamente aqueles relativos às despesas de transporte, de mão-de-obra e de material, e ainda os prazos e a forma de exercício da mesma; d) Duração e âmbito espacial da garantia; e) Firma ou nome e endereço postal, ou, se for o caso, eletrónico, do autor da garantia que pode ser utilizado para o exercício desta.” A não observância deste n.º 3, ou seja a não redação da garantia voluntária em linguagem clara concisa e em língua portuguesa, bem como a falta de qualquer uma das menções obrigatórias, é punida com uma coima de € 250 a € 3500 e de € 3500 a € 30 000, consoante o infrator seja pessoa singular ou pessoa coletiva (Cfr. alínea b), do n.º 1, do artigo 12.º-A do regime jurídico da venda de bens de consumo). A tudo isto acresce ainda que, o artigo 8.º alínea m) do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março, considera enganosa em qualquer circunstância, a prática comercial que consiste em “Apresentar como característica distintiva da oferta do profissional direitos do consumidor previstos na lei.”, Neste seguimento, refere Jorge Morais de Carvalho26 que “As práticas comercias enganosas são desleais (art.º 6.º), e «os contratos celebrados sob a influência de alguma prática comercial desleal são anuláveis a pedido do consumidor, nos termos do artigo 287.º do CC», além de se encontrar prevista a possibilidade de sanções contraordenacionais ao infrator”. A sanção contraordenacional aqui referida resulta do disposto no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 7/2008, de 26 de Março. Resulta também que este preceito, emanado do regime jurídico das práticas comerciais desleais, vai de encontro ao referido na alínea a) do n.º 3 do artigo 9.º do regime jurídico da venda de bens de consumo, que prescreve que a garantia voluntária deverá mencionar obrigatoriamente a “Declaração de que o consumidor goza dos direitos previstos no presente decreto-lei, e na demais legislação aplicável, e de que tais direitos não são afetados pela garantia”. Ainda assim, quando a garantia voluntária não cumprir os requisitos impostos pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 9.º e apesar de gerar responsabilidade contraordenacional para o seu emitente nos termos acima explanados, isso não afeta de forma alguma a validade da garantia, podendo o consumidor, a quem a mesma foi prestada, continuar a invoca-la e exigir a sua aplicação, tudo conforme resulta do exposto no n.º 5 do artigo 9.º. Realçada esta importância da garantia voluntária, poderemos ainda concluir, pela leitura da alínea g), do artigo 1.º-B do Regime Jurídico da Venda de Bens de Consumo, que a garantia voluntária, ao contrário da garantia legal, pode ser gratuita, como onerosa. 26

CARVALHO, Jorge Morais, Manual de Direito do Consumo, Almedina, 2013, pág. 233.

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Aquela, a garantia legal, será sempre gratuita. Por outro lado, e ainda pela leitura do preceito atrás citado, a garantia voluntária poderá ser prestada por um vendedor, por um produtor ou por qualquer intermediário perante o consumidor, enquanto a garantia legal é prestada, obrigatoriamente, pelo produtor e pelo vendedor, sendo opção do consumidor, qual deles demandar27. Daqui resulta outra diferença importante entre as garantias legais e as garantias voluntárias, ou seja, aquelas vinculam tanto o produtor como o vendedor, enquanto estas, as voluntárias, vinculam apenas o seu emitente. A informação do caráter gratuito ou oneroso da garantia é também uma menção obrigatória da garantia voluntária, conforme decorre da alínea b) do n.º 1 artigo 9.º do regime jurídico da venda de bens de consumo, sendo certo que “(…) se não constar, deve entender-se que é gratuita28”. A garantia poderá também ser transmitida para o adquirente da coisa, salvo convenção em contrário (Cfr.º 4 do artigo 9.º). Note-se ainda que, de extrema importância, na prestação de uma garantia voluntária podem ser impostas certas condições pelo emitente, cabendo ao consumidor cumprir as mesmas para beneficiar da garantia. É o que resulta do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 9.º. Assim é pacífico que, para o consumidor beneficiar de uma garantia voluntária, lhe seja exigível, por exemplo, entregar o bem juntamente com a embalagem, apresentar a fatura de compra, entre outros, o que já não será exigível quanto às garantias legais. Posto isto, restará então referir que a disposição em foco, o artigo 9.º do regime jurídico da venda de bens de consumo, não qualifica a relação existente entre o emitente da garantia e o consumidor. Na verdade, ocorre em grande parte dos casos que o garante não tem qualquer relação comercial com o consumidor, uma vez que este adquire um bem de consumo num estabelecimento mas, quem presta a garantia voluntária (uma garantia comercial) é a marca. Portanto, aqui o garante é um terceiro em relação ao contrato de compra e venda. Neste caso, defende CARVALHO29 que se trata de um negócio jurídico unilateral, na modalidade de promessa pública, ficando o terceiro vinculado por prometer uma prestação a quem se encontre em determinada situação ou pratique certo facto, consistindo esse facto na celebração do contrato de compra e venda de um bem de determinada marca, eventualmente associado a qualquer outra condição, desde que seja mencionada na garantia.

27

Esta opção do consumidor em demandar o vendedor ou o produtor nas garantias legais resulta do disposto no artigo 6.º n.º 1 do regime jurídico da venda de bens de consumo. 28 Cfr. CARVALHO, Jorge Morais, Manual de Direito do Consumo, Almedina, 2013, pág. 234. 29 Cfr. CARVALHO, Jorge Morais, Manual de Direito do Consumo, Almedina, 2013, pág. 235.

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V – Conclusão Consideramos assim que a garantia voluntária assume um papel de especial relevo no regime jurídico da venda de bens de consumo, uma vez que, através dela, podem os agentes económicos tornarem-se mais apetecíveis para o consumidor, num mercado concorrencial cada vez mais exigente. Na verdade, será diferente para um consumidor adquirir um bem do qual poderá contar com mais garantias de bom funcionamento, em relação a outro bem que se limita a cumprir os ditames legais. Um automóvel com uma garantia de cinco anos é, certamente, mais desejável ao consumidor, do que um outro com uma mera garantia legal de dois anos. Mas não só por este facto que julgamos ser a garantia legal um ponto decisivo. Na verdade, todo o modelo europeu do mercado único assenta num princípio de mais consumo, sustentável, é certo, mas mais consumo. Este consumo deverá assim ser obtido não à custa de exigir mais aos consumidores, ou seja, que a cada ciclo de vida da garantia legal de bens de consumo se vejam obrigados a adquirir outro bem para os mesmos fins porquanto, o fim do bom funcionamento é quase um dado adquirido. Na verdade, o mais e melhor consumo deverá ser alcançado por existirem no mercado bens capazes de conferir aos consumidores maior confiança na aquisição de bens, e que os mesmos serão capazes de desempenhar os fins para que foram adquiridos num período que seja o mais dilatado possível. Isto de forma que o consumidor não esteja recorrentemente a gastar os seus recursos em bens sempre do mesmo tipo, mas sim em bens diferentes, que permitam alargar também o leque de mercado de bens de consumo. Na verdade, quantos mais variados bens a produzir, maior será o mercado, maior será o número de empresas a surgir, maior será o número de trabalhadores, maior será o rendimento disponível para gastar em bens de consumo, tudo num ciclo que o sistema capitalista em que a europa, e em regra o mundo ocidental, vai vivendo. Incluímos aqui nesta noção de leque alargado de mercado de bens de consumo, o facto de os bens de consumo serem também suscetíveis de evolução e inovação, pois esta evolução e inovação fazem criar outras necessidades aos consumidores que, necessariamente, alargam também os mercados, onde emergem assim empresas para satisfazer essas novas necessidades. Por exemplo, a evolução das comunicações eletrónicas que fez surgir um mercado de telemóveis até há bem pouco tempo desconhecido, ou então mercado automóvel, que também fez nascer um mercado de sistemas de segurança cada vez mais sofisticados só possíveis de alcançar com a especialização de empresas na produção desses bens. A garantia voluntária será assim o acrescento que o consumidor espera dos bens de consumo que adquire, e impulsiona as empresas a evoluírem e inovarem de tal forma que

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possam garantir por mais tempo o bom funcionamento dos seus produtos, de forma a tornarem os mesmos mais apetecíveis. Seguindo este rumo, será pelo menos percetível que o desenvolvimento económico em que assenta o modelo europeu possa ser sustentável. BREVE NOTA: Este trabalho encontra-se redigido de acordo com as regras do novo acordo ortográfico e de acordo com a norma internacional para a elaboração de referências bibliográficas, ISO 690:1987. Bibliografia - MOTA PINTO, Carlos Alberto, Teoria Geral do Direito Civil – 3ª Edição Actualizada, 1993, Coimbra Editora. - PRATA, Ana, Dicionário Jurídico – 3ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, 1995. - ALMEIDA, Teresa, Lei de Defesa do Consumidor – Anotada, Instituto do Consumidor, 1997. - CARVALHO, Jorge Morais, Manual do Direito do Consumo, Almedina, 2013 - MOTA PINTO, Alexandre, I Congresso de Direito do Consumo, Coordenação: Jorge Morais de Carvalho, Almedina, 2016 - DA SILVA, João Calvão, Venda de Bens de Consumo, Revista, Aumentada e Actualizada – 4ª Edição, Almedina, 2010. - BRAGA, Armando, A Venda de Cosias Defeituosas no Código Civil – A Venda de Bens de Consumo, V ida Económica, 2005. Fontes Online http://www.dgsi.pt/ http://www.pgdlisboa.pt

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A Declaração de Insolvência e o Crédito Tributário: Subsídio à sua compatibilização.

A Declaração de Insolvência e o Crédito Tributário Subsídio à sua compatibilização

Cláudio Cardoso Solicitador, Licenciado em Solicitadoria e em Contabilidade, Mestre em Direito Tributário e Doutorando em Direito Público

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1. Considerações introdutórias A crise económico-financeira que recentemente atravessou o país reproduziu um significativo crescimento das insolvências de empresas e famílias portuguesas e concomitante incumprimento das suas obrigações fiscais. Pese embora o clima económico venha alterar-se desde os últimos anos a esta parte, a verdade é que regista-se, ainda, um assinalável lastro dos tempos da assistência financeira externa ao país, nomeadamente no que à instauração de novos processos de insolvência concerne, como se corrobora do gráfico infra. À estatística não será, certamente, alheia a elevada carga fiscal sobre as empresas que, em conjugação com a sua tradicional deficitária estrutura de capitais, não raras vezes, se não maior delas, desagua no encerramento das entidades insolventes. Contrariando-se, inexoravelmente, a teleologia da evolução do direito falimentar, no sentido da deslocalização da finalidade do processo de insolvência do ato de liquidação e extinção do sujeito insolvente, para a promoção da sua recuperação, seja pela antecipação do momento de intervenção (pré-insolvência), seja pela natureza dos meios utilizados (extrajudiciais ou híbridos)1.

Considerando-se assim a atualidade do tema, este breve escrito procurará determinar os efeitos da declaração da insolvência no crédito tributário à luz de uma adequada, mas difícil, compatibilização entre os fins próprios da relação jurídica tributária e os fins do processo de insolvência. Dificuldade que em muito fica a dever à desarmonização entre os textos normativos fiscais e o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE).

1

Assim Vide SERRA, Catarina, A Evolução Recente Do Direito Da Insolvência em Portugal – Enquadramento Para Uma Discussão Sobre o Tema “Insolvência E Contencioso Tributário”, Insolvência e Contencioso Tributário, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa 2017, pág. 12.

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2. Situação de insolvência e alguns brevíssimos conceitos teoréticos Pode dizer-se que a situação de insolvência comporta, em si mesma, dois pressupostos: um objetivo e um subjetivo. Relativamente ao primeiro, dispõe genericamente o número 1 do artigo 3.º do CIRE que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de comprimir as suas obrigações vencidas. No que tange a dimensão subjetiva descrimina positivamente o artigo 2.º, n.º 1 daquele diploma que é sujeito passivo da declaração de insolvência: as pessoas singulares ou coletivas, a herança jacente, as associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais, as sociedades civis, as sociedades comerciais e civis sob forma comercial até ao registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, as cooperativas antes do registo da sua constituição, os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada e quaisquer outros patrimónios autónomos2. Isto é, à imagem do Direito tributário, parece adotar-se um conceito de substrato económico do sujeito passivo da declaração da insolvência em detrimento da sua consideração estritamente jurídica3. Condensando, o conceito de situação insolvência reconduz-se à impossibilidade de fazer face às obrigações vencidas por parte dos sujeitos tipificados pela lei falimentar – qual incidência pessoal. Com efeito, em termos conceptuais e normativos, o processo de insolvência caracterizase por ser um processo de execução universal4, pelo qual se visa a satisfação dos credores, seja pela aprovação de um plano de insolvência em sede de assembleia de credores, visando a recuperação da entidade, seja através pela liquidação total do património da insolvente, com o subsequente rateio do produto da liquidação pelos credores da insolvência5. Nos termos do artigo 141.º do CSC a declaração da insolvência implica a dissolução imediata da entidade a ela sujeita. Há que acautelar, porém, o alcance e destrinça dos conceitos normativos avançados. É que, se no âmbito da dissolução de uma sociedade nos demais casos legal e contratualmente previstos, inexistirem dívidas sociais poder-se-á avançar, imediatamente, para a partilha do património societário6, no âmbito da insolvência, pela sua própria natureza executiva, assim não sucede. Havendo, necessariamente uma fase de liquidação7, pelo que se devem distinguir os conceitos de insolvência, dissolução e liquidação. Nos termos do artigo 91.º do CIRE, a declaração de insolvência tem como um dos seus mais distintos e visíveis efeitos o vencimento imediato das obrigações do sujeito insolvente cujo fundamento se situe em momento anterior à prolação da referida 2

O número 2 do mesmo artigo delimita negativamente o âmbito subjetivo da declaração de insolvência. Cfr. artigo 5.º do CIRE. 4 Cfr. art. 1.º, n.º 1 do CIRE. 5 Cfr. artigo 182.º do CIRE. 6 Cfr. artigo 156.º do CSC. 7 Conquanto que não se verifique insuficiência da massa insolvente nos termos dos artigos. 39.º e 232.º do CIRE. 3

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sentença8, ficando a satisfação e exercício dos direitos dos credores adstritos ao preceituado no CIRE. Mas, a declaração da insolvência não tem como efeito, muito menos finalidade, a extinção e paralisação da atividade da empresa. Pelo que, a declaração da insolvência não significa a perda de personalidade jurídica, podendo esta prosseguir a sua atividade normalmente, com capacidade de gozo e exercício (agora através da figura do administrador da insolvência) e, consequentemente, suscetibilidade de ser sujeito passivo e ativo relações creditícias ou obrigacionais9. O que, desde já se chama à atenção, pode acontecer ainda que haja sido deliberado o encerramento da atividade do ou dos estabelecimentos contidos na massa insolvente da empresa, como decorre dos artigos 156.º, n.º 2 e 65.º, n.º 3 do CIRE e da Circular n.º 10/2015 emitida pela Autoridade Tributária. Bom, aqui chegados, impõe-se a questão de saber como serão qualificados e tratados os créditos cujo fundamento preceda ou transponha a data da declaração da insolvência. Aliás, aqui reside a vexata quaestio do problema que este trabalho procura, na medida do possível, esclarecer. Define o artigo 91.º, n.º 1 do CIRE que com a declaração da insolvência se vencem os créditos sobre a empresa com origem anterior àquela data. Estatui, ainda, o artigo 47.º, n.º 1 do mesmo diploma que os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, com fundamento anterior à declaração da insolvência, são considerados credores da insolvência, independentemente da sua nacionalidade e domicílio, sendo que ditos direitos denominam-se créditos sobre a insolvência. A satisfação dos créditos sobre a insolvência, no âmbito do respetivo processo, encontra-se dependente da sua reclamação a endereçar para o administrador da insolvência no prazo fixado pela sentença, nos termos do disposto no artigo 128.º do CIRE. Por outro lado, a insolvência tem, também, como imediata consequência, a entrega dos elementos contabilísticos ao administrador da insolvência e a apreensão de todo o património do devedor à data daquela declaração, destinado à satisfação dos direitos dos credores da insolvência: daqui decorre o conceito e finalidade da massa insolvente10. Destarte, a massa insolvente consubstancia-se um património autónomo que visa a satisfação dos créditos da insolvência, seja através da sua exploração, seja através do produto da sua liquidação. Pelo que, a contrario do artigo 46.º, n.º 1 do CIRE, consideram-se credores e créditos da massa insolvente aqueles cujo fundamento seja posterior à declaração da insolvência, prevendo o artigo 51.º um elenco meramente

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Assim como a sustação de todos os processos executivos pendentes e a impossibilidade da instauração de novos contra o insolvente. 9 Com interesse a este respeito Vide a Circular n.º10/2015 emitida pela Direção Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, relativa às obrigações fiscais e personalidade tributária dos sujeitos passivos insolventes. 10 Cfr. artigo 46.º, n.º 1 do CIRE.

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exemplificativo deste tipo de créditos. Mas, o que é verdadeiramente de assinalar é que os créditos sobre a massa insolvente gozam de satisfação prioritária sobre o pagamento dos créditos graduados no processo de insolvência – créditos sobre a insolvência. A este respeito não será despiciendo relembrar, por transcrição, a noção normativa de massa insolvente do número 1 do artigo 46.º do CIRE: “A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”, sublinhado nosso. Devendo estes créditos, nos termos do disposto no artigo 172.º do CIRE, ser pagos pelo administrador da insolvência nas datas dos respetivos vencimentos, previamente aos créditos sobre a insolvência. O que, pese embora bem se compreenda à face da necessidade de garantir o normal funcionamento mercantil da empresa insolvente11, não deixa de representar um grave risco para os interesses e pagamento das dívidas dos credores da insolvência, na medida que podem frustrar-se as expectativas da recuperação dos seus créditos12. 3. Projeção dos efeitos da declaração de insolvência sobre o crédito tributário À luz das citadas considerações facilmente se depreendem as diferentes dimensões e interseções operadas entre o Direito tributário e o Direito da insolvência13 e, no que ao objeto do trabalho concerne, o núcleo problemático do vencimento do crédito tributário no seio do processo de insolvência e respetivas consequências substantivas e adjetivas. Como se disse, nos termos da legislação falimentar, a prolação da sentença da declaração de insolvência tem por efeito o vencimento de todos os créditos com fundamento em momento anterior a esta. Colocando-se a questão de saber se o artigo 91.º do CIRE é aplicável às obrigações tributárias. Isto é, se à luz da unidade teleológica do Direito fiscal e da irrenunciabilidade do crédito tributário14, é concebível que a posição da autoridade tributária encontre-se adstrita ao mesmo regime dos demais credores da insolvência.

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Caso contrário ninguém venderia bens ou serviços a uma empresa nesta condição sem a garantia que os cobraria com preferência sobre os demais credores. 12 Razão pela qual, muitas das vezes os credores sentem-se compelidos a optar pelo encerramento do estabelecimento da empresa compreendido na massa insolvente, pois que assim certamente gerar-se-ão menos dívidas da massa insolvente, e uma satisfação menos precária dos seus créditos. 13 Por exemplo: como toma o Fisco conhecimento do decretamento de uma situação jurídica de insolvência? Quem o representa no âmbito do processo respectivo? Como se articula esse processo com a execução fiscal? Pode a situação de insolvência constituir facto extintivo das obrigações tributárias (principais e acessórias), cfr. ROCHA, Joaquim Freitas da, “A blindagem dos créditos tributários, o processo de insolvência e a conveniência de um Direito tributário flexível”, in I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, coordenação SERRA, Catarina, Almedina, Coimbra, 2015. Também disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/62136. 14 Cfr. arts. 30.º, n.º 2 e 36.º, n,º 3 da LGT.

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A jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Administrativo (STA)15, apoiada no artigo 180.º do CPPT, nomeadamente na ressalva do seu número 6, tem vindo a entender pela inaplicabilidade do artigo 91.º, n.º 1 do CIRE à relação jurídica tributária. Possuímos as maiores reservas quanto à adesão a um tal entendimento de coisas. É que, sem embargo à natureza publicista e blindada da obrigação tributária, o próprio legislador tributário fixa como elemento temporal constitutivo da obrigação tributária o facto tributário, ao estabelecer no artigo 36.º, n. º 1 da LGT que “a relação jurídica tributária constitui-se com o respetivo facto tributário” – isto é, facto material que, previsto na lei, determina o nascimento da obrigação tributária. Destarte, a consideração do fundamento de um crédito tributário como precedente à declaração de insolvência afere-se em função do elemento temporal do respetivo facto constitutivo, conforme estatuído na lei fiscal. E, daqui em diante, não podemos ignorar ou deturpar como sendo este o fundamento ou ponto âncora legal do nascimento qualquer crédito tributário. Aliás, como argumentam Diogo Leite Campos e Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa: “o acto ou procedimento de liquidação terá eficácia meramente declarativa e não constitutiva, pois não é ele que dá origem à obrigação. Serve unicamente para tornar esta certa e, consequentemente, exigível”16. Por outro lado, nos termos do artigo 48.º, n.º 1 da LGT, as dívidas tributárias prescrevem no prazo de oito anos, contados, nos impostos periódicos, a partir do ano em que se verificou o facto tributário, e nos impostos de obrigação única, a partir da concreta data em que ocorreu o facto tributário. Pelo que, também daqui decorre que a obrigação tributária nasce, fundamenta-se, no momento da verificação do correlato facto tributário. De modo diverso não se compreenderia, à luz da unidade sistemática prevista artigo 9.º do CC, que a contagem do tempo de prescrição constasse a partir deste momento da relação jurídica tributária. Assim entendidas as coisas, o fundamento temporal do crédito tributário encontra-se no momento em que se regista a utilização da infraestrutura da autoestrada no caso das taxas de portagem, no último dia do período de tributação no caso do IRS e IRC 17, no momento da outorga do título de transmissão onerosa de imóvel no caso do IMT 18 e no momento em que são realizadas as operações que dão origem ao apuramento fiscal positivo no caso do IVA, nos termos do artigo 7.º, n.º 1 do respetivo código, etc. Diferentemente, ensinava o saudoso professor Saldanha Sanches: “importa distinguir entre a existência de uma obrigação na forma de mera pretensão fiscal e uma obrigação que atingiu a fase da exigibilidade, sendo que esta só ocorre depois de se ter verificado 15

Por todos Vide Acórdão do STA de 15/04/2015, no processo n.º 01087/14. Cfr. CAMPOS, Diogo Leite de, RODRIGUES, Benjamim Silva e SOUSA, Jorge Lopes de, Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, 4.ª Edição, Encontro da Escrita, Lisboa 2012, pág. 295. 17 Cfr. artigos. 8.º, n.º 9 do CIRC e 1.º, n.º 1 e 143.º do CIRS. 18 Cfr. artigo 5.º do CIMT. 16

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momento do vencimento dessa mesma obrigação; ou seja enquanto a obrigação não se encontrar se não encontra vencida, aquilo que existe é uma mera pretensão fiscal – na altura, ainda destituída de exigibilidade. O facto legalmente previsto para o nascimento dessa pretensão já se verificou, mas não decorreu ainda o prazo legalmente previsto ou o facto exigido por lei para que se dê o vencimento desta obrigação”19. Entendimento ao qual aderiu tout court a citada jurisprudência. Concedemos que a aludida doutrina encontra coerência e legitimidade na unidade teleológica do Direito Fiscal e na finalidade última da obrigação tributária: arrecadação de receitas para a satisfação das necessidades e do Interesse público. Mas, contudo, a tarefa da interpretação de qualquer instituto ou preceito normativo, fiscal ou não fiscal, não poderá operar de modo individual e estanque relativamente às outras áreas do direito positivo, público ou privado. Por essa ordem de razão possuímos dúvidas quanto a uma tal composição do problema. É que a admitir-se um tal estado de coisas, a interpretação do preceito sempre colidiria com o princípio do par condicio creditorum ou da igualdade entre credores no processo de insolvência. Pois, deve ter-se presente o estatuído no artigos 1.º, n.º 1 e 2.º da LGT, na medida que a lei tributária “regula as relações jurídico-tributárias, sem prejuízo do disposto (…) em legislação especial” [no caso vertente o CIRE] e que “[d]e acordo com a natureza das matérias, às relações jurídico-tributárias [se] aplicam [para lá da lei tributária leis como] o Código Civil e o Código de Processo Civil”. Até porque, de outro modo, todas as deliberações quanto à eventual viabilidade de uma empresa seriam, injustificadamente, provisórias e condicionais. Porquanto, para serem rigorosas, todas as avaliações de risco que porventura os demais credores tivessem suportado, nomeadamente as de outros incumprimentos, deveriam considerar uma margem de erro, fatores aleatórios introduzidos pela hipótese de débitos desconhecidos, que muito dificultariam a opção pela recuperação, como seria o caso da imputação à massa insolvente das dívidas tributárias cujo facto constitutivo se situasse a montante da declaração de insolvência. Contrariando-se, inexoravelmente, os fins e valores sociais e económicos subjacentes ao processo de insolvência. A partir deste ponto desvelar-se-á inútil indagar sobre a pretensa inaplicabilidade do artigo 91.º do CIRE aos créditos tributários com fundamento em momento anterior à data da declaração da insolvência. Pelo que, quando os respetivos factos tributários precedam o momento da declaração de insolvência, ainda que o crédito não se encontre vencido, isto é, liquidado e validamente notificado ao sujeito passivo nos termos dos artigos 77.º, n.º 6 e 36.º, n.º 1 da LGT e CPPT, respetivamente, este vencer-se-á com a declaração de insolvência. Devendo a autoridade tributária, através do seu Representante ou do Ministério Público, proceder à reclamação dos mesmos nos termos gerais do artigo 128.º 19

Cfr. SANCHES, Saldanha, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 255.

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do CIRE ou, quando tal não seja tempestivamente possível, através de ação de verificação ulterior de créditos ao abrigo do disposto no artigo 146.º do mesmo diploma legal. 4. O caso particular dos créditos provenientes de impostos autoliquidados Mas o problema coloca-se com particular melindre no âmbito dos créditos emergentes de impostos autoliquidados, como sejam o IRC, IVA ou as contribuições para a Segurança Social. Pois que, tratando-se de impostos cuja quantificação dependa de declaração na qual o mesmo é liquidado pelo próprio sujeito passivo, fácil fica de entrever que, aquando da prolação da sentença da declaração da insolvência, a autoridade tributária desconhecerá as operações tributáveis praticadas pelo insolvente, encontrando-se impossibilitada, a maior das vezes, de proceder à reclamação tempestiva dos seus créditos. Dispõe o artigo 88.º do CIRE que, com a declaração de insolvência, se suspendem todas as diligências executivas ou providencias instauradas pelos credores da insolvência sobre os bens integrantes da massa insolvente, ou seja, suspendem-se todos os processos de execução movidos contra o insolvente, incluindo os processos de execução fiscal. Simetricamente ao CIRE, estatui o artigo 180.º, n.º 1 do CPPT que com a declaração de insolvência serão sustados os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes e todos os que vierem a ser instaurados contra a mesma empresa, logo após a sua instauração. Não obstante a aparente articulação entre os textos normativos, tributário e falimentar, o número 6 do normativo em apreço, constituindo uma ressalva à norma geral do número 1, vem instalar a confusão... Sinteticamente, estatui-se que não serão sustados nem apensos ao processo de insolvência os processos de execução fiscal relativos a créditos vencidos após a declaração de insolvência, prosseguindo os seus normais termos até à extinção da execução. Importa, por isso, aclarar o sentido e alcance da norma. Ora, no que toca aos créditos cujo vencimento e facto tributário transponham a declaração de insolvência inexistem dúvidas quanto ao seu tratamento como acima já ficou exposto: considerar-se-ão créditos sobre a massa insolvente e, como tal, pagos prioritariamente pelo produto da sua exploração ou liquidação face aos créditos sobre a insolvência. No que tange aos créditos cujo facto tributário preceda da declaração de insolvência também a resposta também já fora avançada: vencer-se-ão como os demais créditos tributários, devendo a Fazenda Pública proceder à sua reclamação nos termos gerais. Sucede, porém, que sob esta aparente facilidade de arrumação de ideias, subjazem difíceis problemas de interpretação do preceito. Com efeito, no caso dos impostos autoliquidados, com referência ao número 6 do artigo 180.º do CPPT, alguma jurisprudência tem vindo a entender, embora não expressamente, que estes créditos devam ser pagos prioritariamente. É o caso do acórdão do STA de

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15/04/2015 no processo n.º 01087/14: “ (…) as dívidas provenientes de coimas e IVA em causa nos autos se venceram no momento em que o credor adquiriu o direito a exigir o pagamento ao devedor, momento que não pode deixar de referir-se ao termo final do prazo para o seu pagamento voluntário (…), altura em que a sociedade executada já fora judicialmente declarada insolvente”. Reforçando, por outro lado, o acórdão de 29/05/2012 no processo n.º 0885/11 do mesmo Tribunal que: “pese embora a relação jurídica tributária se constitua com o facto tributário (cfr. art. 36.º, n.º 1 da LGT), a correspondente obrigação tributária só se torna certa com a liquidação e exigível com o conhecimento da mesma, sendo que a liquidação só produz efeitos relativamente ao contribuinte após lhe ter sido validamente notificada”. Sendo que, tratando-se de imposto autoliquidado, o decurso do prazo previsto na lei para a formação do facto tributário importa o vencimento da obrigação de liquidar o montante devido e enviar o respetivo meio de pagamento, sem qualquer necessidade de interpelação, conforme acórdão do TCAN de 12/10/2011 no processo 01096/11. Não podemos aderir a este correr de ideias pelas razões cima aduzidas. Ora, uma classificação dos créditos tribuários (ainda que autoliquidados) com base no exclusivo critério do seu vencimento implicaria, em primeiro lugar, uma injustificada violação do princípio da igualdade em face do regime de periodicidade do IVA, mensal ou trimestral, nos termos do artigo 41.º do CIVA. Facilmente se antevê o sentido discriminatório: os credores dos sujeitos passivos enquadrados no regime de liquidação e pagamento trimestral do IVA tenderiam a ficar prejudicados na medida em que o vencimento do crédito tributário transporia mais facilmente a data da declaração da insolvência. Em segundo lugar, no limite e tratando-se de impostos sujeitos a declaração e liquidação pelo sujeito passivo, na circunstância deste não cumprir as correspondentes obrigações acessórias, a autoridade tributária poderia atrasar e protelar a instauração da competente liquidação oficiosa para momento posterior à declaração da insolvência para assim, ardilosamente, classificar o seu direito como crédito sobre a massa insolvente e beneficiar do pagamento prioritário em detrimento da satisfação dos direitos dos credores da insolvência. Sublinhe-se, por outro lado, que o artigo 180.º do CPPT regula os efeitos do processo de insolvência no processo de execução fiscal, uma questão diversa, portanto, do estabelecimento do fundamento ou vencimento dos créditos tributários. Ainda a este propósito, entende Jorge Lopes de Sousa20 que a interpretação mais razoável deste normativo e que se compagina com a unidade do sistema jurídico, é a de que só será viável o prosseguimento dos processos de execução fiscal por créditos vencidos após a declaração de insolvência ou do despacho de prosseguimento de ação de recuperação da 20

Cfr. SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e Processo Tributário – Vol. III, 6.ª Ed., Áreas Editora, Lisboa, 2011, pág. 324.

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empresa se forem penhorados bens não aprendidos naqueles processos de insolvência ou recuperação. Ressalvada melhor opinião, não nos parece, por inocuidade prática, ser esta a ratio legis do preceito. É que, como é sabido, a declaração de insolvência implica a apreensão à ordem do processo falimentar a totalidade do património do devedor à data da declaração, assim como os bens e direitos por este adquiridos na pendência do processo21. Não se alcançando, pois assim, sobre que bens do insolvente poderão incidir futuras penhoras e, por conseguinte, prosseguir os correspondentes processos de execução fiscal. Dito isto, parece-nos que, sem prejuízo do estatuído pelo artigo 7.º, n.º 3 do CC, foi intenção do legislador de 2004 (que aprovou o CIRE) que sobreveio à publicação do CPPT, proceder à revogação daquele número 6, porquanto não estipulou nenhum regime excecional quanto aos créditos tributários, encontrando-se aquele normativo esvaziado de utilidade prática. Não ignorando que a reclamação de créditos não liquidados por parte da autoridade tributária se revista de tarefa de particular dificuldade, na medida que não disporá dos elementos necessários exigidos pelo CIRE, nomeadamente o quantificativo do seu crédito. Julgamos que no caso dos tributos autoliquidados poderá (e deverá) a autoridade tributária22 liquidar provisoriamente o tributo em questão, nos mesmos termos do artigo 90.º, n.º 1, al. b) e c) do CIRC, do artigo 76.º, n.º 1, al. b) e c) do CIRS e do artigo 88.º do CIVA, vendo assim os seus créditos reconhecidos e graduados no processo de insolvência. Alternativa ou cumulativamente poderá também notificar o sujeito passivo ou o administrador da insolvência para proceder à liquidação dos impostos de acordo com os elementos disponíveis à data na sua contabilidade. É possível, portanto, encontrar uma solução equitativa e compatível entre os diferentes interesses dos diferentes tipos de credores da insolvência, e entre os fins e interesses próprios do Direito tributário e do processo da insolvência, que não inviabilize logo à partida a viabilidade da recuperação económica da insolvente quando assim seja determinado, ou, por outra, o esforço de recuperação equilibrada dos créditos dos credores do insolvente. 5. Conclusões O presente trabalho não teve por pretensão a resolução de todos os problemas emergentes da falta de articulação entre os textos normativos tributários e a legislação da insolvência, tão pouco da fiscalidade das empresas insolventes. Pretendeu-se, “somente” e por referência à problemática da qualificação créditos sobre a 21

Cfr. artigo 46.º, n.º 1 do CIRE.

22

Considerando que, acautelando eventuais responsabilidades subsidiárias, os administradores da insolvência continuam a dar cumprimento ao disposto no revogado número 1 do artigo 181.º do CPPT, que estipulava: “Declarada a insolvência, o administrador da insolvência requer, no prazo de 10 dias a contar da notificação da sentença, a citação pessoal dos chefes dos serviços periféricos locais da área do domicílio fiscal do insolvente ou onde possua bens ou onde exista qualquer estabelecimento comercial ou industrial que lhe pertença, para, no prazo de 15 dias, remeterem certidão das dívidas do insolvente à Fazenda Pública, aplicando-se o disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo 80.º”.

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insolvência/massa insolvente, fornecer um contributo para uma adequada determinação do efeito da declaração da insolvência sobre os créditos tributários não vencidos. Assim, condensa-se: 1. Os créditos não vencidos com fundamento anterior à declaração de insolvência vence-se, automaticamente, com a prolação da respetiva sentença. 2. O crédito tributário constitui-se com o respetivo facto tributário: facto material ou ficcionado previsto na lei, revelador de índice de capacidade contributiva. 3. A liquidação do tributo consubstancia-se ato meramente declarativo da obrigação tributária, previamente constituída com a verificação do respetivo facto constitutivo. 4. O ato de liquidação serve, apenas, para tornar a obrigação tributária certa e exigível. 5. Os créditos tributários e não tributários com fundamento anterior à declaração de insolvência consideram-se créditos sobre a insolvência, devendo ser reclamados e posteriormente graduados no processo de insolvência. 6. Os créditos tributários, incluindo os autoliquidados, cujo fundamento/facto constitutivo preceda a data da declaração de insolvência e, relativamente aos quais, o seu [normal] vencimento ocorra na pendência do processo de insolvência qualificam-se créditos da insolvência, não beneficiando do seu pagamento prioritário face aos demais credores da insolvência. 7. Relativamente aos créditos tributários autoliquidados cujo período de declaração, liquidação e pagamento transponha a data da sentença da declaração de insolvência, deverá a autoridade tributária proceder à sua liquidação oficiosa ou alternativamente notificar o administrador da insolvência ou o sujeito passivo, consoante aquele seja investido ou não nos poderes de administração do insolvente, para proceder à sua liquidação com base nos elementos contabilísticos disponíveis à data da declaração de insolvência.

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A Tramitação do Processo Especial de Revitalização (Até à fase das negociações)

A Tramitação do Processo Especial de Revitalização (Até à fase das negociações)

Paulo Sérgio de Sousa Magalhães Solicitador Estagiário, Mestrando em Solicitadoria na ESTG/P. Porto e Licenciado em Solicitadoria pelo Instituto Politécnico do Cávado e do Ave

Florbela Teixeira Agente de Execução e Solicitadora, Assistente Convidada na ESTG/P. Porto, Mestranda em Solicitadoria na ESTG/P. Porto e Licenciada em Solicitadoria pela ESTG/P. Porto

Maria João Machado Professora Adjunta da ESTG/P. Porto e Docente do Mestrado em Solicitadoria da ESTG/P. Porto 159


Resumo O Processo Especial de Revitalização (PER) é um processo judicial especial, préinsolvencial, concursal, urgente, híbrido e recuperatório, que entrou em vigor a 20 de maio de 2012, tendo como intuito constituir um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência atual. Com o estudo que se segue pretendemos analisar, em especial, a tramitação do PER e, simultaneamente, refletir sobre algumas questões que têm sido levantadas na doutrina e jurisprudência portuguesas. Palavras chave Processo Especial de Revitalização; Tramitação

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Notas introdutórias Com o presente estudo, pretendemos abordar e desenvolver alguns aspetos que julgamos pertinentes, acerca do Processo Especial de Revitalização1, dando especial importância à sua tramitação até à fase das negociações (arts. 17º-A a 17º-E do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas2), onde aportaremos diversas questões, a saber: - Será o despacho de admissão do PER recorrível? - Poderá o juiz controlar os requisitos materiais de que depende o recurso ao procedimento e, assim, proferir um despacho de indeferimento liminar, ou até um despacho de correção (art. 27º n.º 1 do CIRE), ou, pelo contrário, deve necessariamente proferir um despacho de nomeação de administrador judicial provisório? - A ação para cobrança de dívidas abrange apenas as ações executivas ou, também, as ações declarativas? Esta última questão está relacionada com a prolação do despacho de nomeação do administrador judicial provisório e com os efeitos que deste advêm, efeitos estes que também merecerão especial atenção do presente estudo. A análise das questões enunciadas proporcionará, sempre que possível, um périplo sobre as posições assumidas pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas. Tramitação do PER3 1. Requerimento O PER tem início com a apresentação de um requerimento pela empresa no tribunal competente para declarar a sua insolvência (cfr. arts. 17º-C, n.º3 e 7º do CIRE, e ainda o 128º nº1 a), da LOSJ4). Este requerimento deve ser acompanhado de : - Declaração escrita assinada pela empresa e por credor ou credores que preencham três requisitos

cumulativos,

ou

seja,

credor(es)

que,

não

estando

especialmente

5

relacionado(s) com a empresa, seja(m) titular(es), pelo menos, de 10% de créditos não subordinados6 (Cfr. art. 17º-C n.º 1, 2 e 3 a) do CIRE);7 1

Doravante designado apenas por PER. Doravante designado apenas por CIRE. 3 Para mais desenvolvimentos sobre o tema vd. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito da Insolvência, 8ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 339 e ss. e EPIFÂNIO, Maria do Rosário, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2019, págs. 417 e ss. 4 Lei da Organização do Sistema Judiciário. 5 Este montante pode em certas situações ser reduzido para 5%, conforme previsto no n.º6 do art. 17º-C do CIRE. 6 Não relevam para esta situação os credores subordinados (art. 48º do CIRE). 7 A exigência simultânea de créditos não subordinados de credores sem uma relação especial com a empresa, parece redundante, mas, efetivamente, não o é, pois os créditos titulados por pessoa especialmente relacionada com a empresa não constituem necessariamente créditos subordinados, conforme resulta do preceituado no art. 47º nº 4 b) do CIRE- Cfr. EPIFÁNIO, Maria do Rosário, ob. cit., págs. 417 e 418. 2

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- Declaração subscrita, há não mais de 30 dias, por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas8, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual, à luz do art. 3º ex vi art. 17º-A, nº2, ambos do CIRE9; - Declaração escrita e assinada pela empresa que ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação (Cfr. art. 17º-A, n.º 2 do CIRE)10; - Cópia dos documentos previstos no n.º 1 do art. 24º ex vi art. 17º-C, n.º3 b) do CIRE; - Proposta de plano de recuperação acompanhada, pelo menos, da descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia da empresa (cfr. art. 17º-C, n.º3 c) do CIRE). 2. Despacho liminar Após a entrega do requerimento ocorre a distribuição, de seguida o juiz deve de imediato proferir o despacho liminar, nos termos e para os efeitos do art. 17º-C, n.º 4 do CIRE, ou seja, nomeando o administrador judicial provisório11, nos termos dos arts. 32º a 34º do CIRE. Em princípio, este despacho liminar terá o conteúdo de despacho de admissão do PER12. Não obstante, o despacho liminar erige alguma divisão doutrinal e jurisprudencial, levantando MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO13 a questão de saber se “poderá (deverá) o juiz controlar os requisitos materiais14 de que depende o recurso ao procedimento, e, assim, proferir um despacho de indeferimento liminar, ou até um despacho de correção, ou,

8

Aparentemente, fruto da atual redação, o CC ou o ROC não têm de ser independentes. Este certificado deve ser emitido há não mais de 30 dias, sendo o seu subscritor responsável pelas informações nele vertidas (Cfr. art. 485º CC e ainda art. 186º e 189º, n.º2 a) do CIRE). Esta exigência legal de certificação foi introduzida pelo DL n.º 79/2017, de 30 de junho. 10 A este respeito, vd. EPIFÂNIO, Maria do Rosário, ob. cit., pág. 419, que se refere a esta como “uma espécie inútil de “auto-atestado”” e, ainda, LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Anotado, 10ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pg. 78, que refere que não há qualquer sanção processual para o caso de a declaração ser incorreta. De referir, ainda, que nos parece não haver qualquer inconveniente em que esta declaração seja prestada no próprio requerimento. 11 Doravante designado apenas por AJP. 12 Autores como CASANOVA, Nuno Salazar e DINIS, David Sequeira, ob. cit., pág. 41 e 42, entendem que este despacho é irrecorrível pelos credores ou outros interessados, porque estes ainda não são sujeitos processuais. O mesmo se passa em relação aos embargos, cuja existência a lei não prevê. 13 Para mais desenvolvimentos sobre o tema, vd. EPIFÂNIO, Maria do Rosário, ob. cit., pág. 420, que admite a existência de despacho liminar, com um de três conteúdos: despacho de indeferimento liminar, despacho de correção e despacho de admissão. 14 A este respeito vd. o acórdão do TRC de 10/07/2013, Proc. n.º 754/13.4TBLRA.C1 (Carlos Moreira), que defende que “se o juiz concluir que não está preenchido nenhum destes requisitos - vg. por anterior atuação processual do requerente que três meses antes tinha requerido a sua insolvência alegando que esta era atual e real -, pode e deve, à míngua de justificação para a alteração da posição/pretensão, rejeitar liminarmente o pedido”. 9

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pelo contrário deve necessariamente

proferir um despacho de nomeação de

15

administrador judicial provisório?” . Parece-nos que faz todo o sentido que o juiz controle os requisitos materiais de que depende o recurso ao procedimento, caso contrário, qual seria o seu papel? Apenas proferir despacho de nomeação do AJP? Se a intervenção do juiz não envolver um controlo de legalidade, será desqualificada, até mesmo menorizada, uma vez que aquela tarefa pode muito bem ser realizada pela secretaria do tribunal. E, por outro lado, se assim não for, porque é que o legislador, no n.º 2 do art. 17º-E, utiliza a expressão “caso o juiz nomeie administrador judicial provisório (…)”? Parecenos, portanto, que é aqui que reside a solução. O legislador prevê nesta norma, a hipótese de o juiz não nomear o AJP. Seguimos o entendimento de que o despacho liminar pode ter um de três conteúdos: - Despacho de indeferimento liminar, nomeadamente quando a empresa se apresentou a um PER que terminou nos dois anos anteriores16; - Despacho de correção, quando falte alguma da documentação instrutória do PER17, podendo o Juiz instar a empresa a juntá-lo no prazo de 5 dias, à semelhança do que acontece no Processo de Insolvência (cfr. art. 27º do CIRE); - Despacho de admissão do PER. Acompanhamos, assim, o entendimento de MARIA DO ROSÁRIO EPIFÁNIO18, de que a expressão “de imediato” lhe confere um caracter urgentíssimo, mas que a nosso ver, não pode dispensar a existência dos despachos de indeferimento liminar ou de correção, quando se justifiquem. 3. Despacho de admissão do PER 3.1 Nomeação do administrador judicial provisório Sendo proferido pelo juiz despacho de admissão do PER, neste nomeia sempre o AJP, nos termos do n.º 4 do art. 17º-C do CIRE, sendo-lhe aplicável com as devidas adaptações, o disposto nos arts. 32º a 34º do mesmo diploma. Dispõe o n.º 1 do art. 32º do CIRE, que “a escolha do administrador judicial provisório recai em entidade inscrita na lista oficial de administradores de insolvência (cfr. art. 13º, n.º 1 do EAJ), podendo o juiz ter em conta a proposta eventualmente feita na petição inicial no caso de processos em que seja previsível a existência de atos de gestão que 15

No sentido oposto, o acórdão do TRG de 16/05/2013, Proc. 284/13.4TBEPS-A.G1 (Conceção Bucho), na parte em que refere, “apresentado o requerimento inicial pelo devedor nos termos do artigo 17º- C do CIRE, ao juiz compete averiguar se o mesmo foi apresentado em conformidade com o disposto nos artigos 17º-A e B, e proferir o despacho a que alude o n.º 3 do citado artigo 17º-C, não lhe competindo averiguar se materialmente se verificam os requisitos de que depende o procedimento”. 16 Nos termos do preceituado no n.º 6 do art. 17º-G do CIRE. 17 Nomeadamente, aquela que consta no ponto 1 18 Cfr. EPIFÂNIO, Maria do Rosário, ob. cit., pág. 421.

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requeiram especiais conhecimentos19 ou quando o devedor seja uma sociedade comercial em relação de domínio ou de grupo com outras sociedades cuja insolvência haja sido requerida e se pretenda a nomeação do mesmo administrador nos diversos processos”. 3.2 Notificações, citações, registo e publicidade Nos termos do disposto no n.º 5 do art. 17º-C do CIRE, o despacho de admissão é notificado de imediato à empresa, sendo-lhe aplicável com as devidas adaptações, o disposto nos arts. 37º (quanto às notificações e citações) e 38º (relativo ao registo e publicidade) do CIRE. A publicidade deste processo opera, assim, através do registo, e, por isso, o despacho é registado: a) Na conservatória do registo civil, se o devedor for uma pessoa singular; b) Na conservatória do registo comercial, se houver quaisquer factos relativos ao devedor insolvente sujeitos a esse registo; c) Na entidade encarregada de outro registo público a que o devedor esteja eventualmente sujeito (conservatória do Registo Predial). 3.3 Efeitos da nomeação do administrador provisório Quanto aos efeitos da nomeação do administrador provisório, temos de considerar os efeitos substantivos e processuais dessa nomeação. Os efeitos substantivos estão relacionados com a proibição de prática, pela empresa, de atos de especial relevo; com a proibição de suspensão de prestação de certos serviços públicos essenciais e, ainda, com a suspensão de todos os prazos de caducidade e prescrição oponíveis pela empresa aos seus credores. Já os efeitos processuais, dizem respeito às ações para cobrança de dívidas e aos processos de insolvência. 3.3.1 Efeitos substantivos Nos termos do art. 17.º-E, n.º 2 do CIRE, a nomeação do AJP tem como efeito o impedimento, por parte do devedor, de praticar atos de especial relevo, tal como definidos no art.º 161.º do CIRE, sem que previamente obtenha autorização do administrador para a operação pretendida. 19

Cfr. SILVA, Fátima Reis, Processo Especial de Revitalização, Notas Práticas e Jurisprudência Recente, Porto, Porto Editora, 2014, págs. 27 e 28, que defende que o juiz pode (não está obrigado) atender à indicação do revitalizado e que, por isso, não se aplica a parte final do art. 32º n.º1 ao PER. A este respeito, veja-se o acórdão do TRP, de 13/11/2017, Proc. n.º 2556/17.0T8STS-A.P1(Jorge Seabra), que refere: “ I- A decisão de nomeação do administrador provisório em processo de revitalização que não atenda a indicação efetuada na petição inicial carece de ser fundamentada fáctica e juridicamente”. Entendimento diverso tem MARTINS, Alexandre Soveral, Um curso de Direito da Insolvência, 2ª edição, revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2016, págs. 517 e 518, nota 24, que considera que a autorização para a prática de atos de especial relevo pode também pressupor esses especiais conhecimentos, sendo por isso aplicável a parte final do referido preceito.

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Outro efeito substantivo que advém da prolação do referido despacho é a proibição de suspensão de prestação à empresa de certos serviços públicos essenciais. Este é um efeito novo, introduzido pelo D.L. n.º 79/2017, de 30 de junho. Nos termos do disposto no n.º 8 do art. 17º-E do CIRE, “a partir da decisão a que se refere o número anterior (despacho de nomeação do AJP) e durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, não pode ser suspensa a prestação dos seguintes serviços públicos essenciais: a) Serviço de fornecimento de água; b) Serviço de fornecimento de energia elétrica; c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados; d) Serviço de comunicações eletrónicas; e) Serviços postais; f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais; g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos. Parece que o legislador quis, com este efeito da aceitação do PER, garantir o funcionamento da empresa durante o período das negociações, mas é legítimo perguntar: se a empresa suspende os pagamentos destes serviços não estará já insolvente e, portanto, não devia apresentar-se à insolvência nos termos previstos no art. 18º do CIRE? A forma que o legislador encontrou para compensar as entidades obrigadas a manter a prestação dos referidos serviços públicos essenciais foi a de considerar “o preço dos serviços públicos essenciais prestados durante o período referido no número anterior que não sejam objeto de pagamento pela empresa” como “ dívida da massa insolvente em insolvência da mesma que venha a ser decretada nos dois anos posteriores ao termo do prazo de negociações”, conforme prevê o n.º 9 do referido preceito. Finalmente, o último efeito substantivo, que também é um efeito novo ex vi do DL 79/2017, é a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade nos termos do n.º 7 do art. 17º-E do CIRE. Para MARIA DO ROSÁRIO EPIFÁNIO20 “este novo efeito veio corrigir um manifesto desequilíbrio processual que existia, até então, entre a empresa, por um lado, e os credores, por outro lado”, já que, até à entrada em vigor deste DL, o entendimento era de que o despacho de nomeação do AJP não suspendia os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pela empresa aos seus credores21.

20

Cfr. EPIFÂNIO, Maria do Rosário, ob. cit., pág. 436. A este respeito, vd. o acórdão do TRL de 27/01/2016, proc. n.º 213/14.8TTFUN-4 (José Eduardo Sapateiro), na parte em que refere : “ Não existe ao nível do Processo Especial de Revitalização uma regra idêntica à contida no artigo 100.º do CIRE, que implique a suspensão dos prazos de caducidade e prescrição durante a vigência do PER e do dito Plano”. 21

165


A referida suspensão inicia-se na data do despacho de nomeação do AJP e finda num dos seguintes momentos, a saber: - Prolação do despacho de homologação; ou - Prolação do despacho de não homologação; ou - Apuramento do resultado da votação, caso não seja aprovado o plano de recuperação; ou - Encerramento das negociações (cfr. art. 17º-G n.ºs 1 a 5 do CIRE). 3.3.2 Efeitos processuais 3.3.2.1 As ações para cobrança de dívidas Com a prolação do despacho de nomeação do AJP, fica impedida a instauração de quaisquer ações propostas contra a empresa para cobrança de dívidas. Se estas mesmo assim forem intentadas, deve ser proferida decisão de absolvição da instância, com fundamento em exceção dilatória inominada22. Prescreve, ainda, o n.º 1 do artigo 17.º-E que, “durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”. Neste preceito, a dúvida é compreender a expressão “ações para cobrança de dívidas”, sendo certo que a doutrina e a jurisprudência portuguesas se têm dividido entre o entendimento de que esta expressão abrange apenas as ações executivas ou também as ações declarativas. Na jurisprudência, a favor de que a expressão “ações para cobrança de dívidas” abrange também as ações declarativas, encontrámos, por exemplo, o acórdão do STJ, de 17/11/2016, Proc. n.º 43/13.4TTPRT.P1.S1 (Ana Luísa Geraldes), quando refere : “No conceito de “ações para cobrança de dívidas” estão abrangidas não apenas as ações executivas para pagamento de quantia certa, mas também as ações declarativas em que se pretenda obter a condenação do devedor no pagamento de um crédito que se pretende ver reconhecido”23. Ainda na jurisprudência, mas agora a favor de que a expressão “ações para cobrança de dívidas” abrange apenas as ações executivas, encontrámos, por exemplo, o acórdão do TRL de 27/01/2016, Proc. nº 213/14.8TTFUN-4 (José Eduardo Sapateiro), na parte em que refere: “As ações para cobrança de dívidas do devedor a que se refere o n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE são apenas as de natureza executiva e de índole cautelar, quando 22

Cfr. acórdão do TRP de 07/04/2014, proc. n.º 344/13.1TTMAI.P1(João Nunes), na parte em que refere, “tendo intentado a ação, deve a Ré ser absolvida da instância, por verificação de uma exceção dilatória inominada.” 23 Na doutrina, encontramos a defender esta perspetiva, entre outros, FERNANDES, Luís A. Carvalho; LABAREDA, João, ob. cit., págs.160 e 161, nota 4.

166


nestas últimas estejam em causa providências que impliquem a apreensão judicial de bens pertencentes ao requerido“24. No nosso entender, e também no de MARIA DO ROSÁRIO EPIFÁNIO25, apenas se encontram abrangidas, pela referida expressão, as ações executivas ou as diligências executivas e, ainda, as providências cautelares de natureza executiva, propostas contra a empresa. Isto parece-nos de todo evidente, já que uma ação de cobrança de dívida visa o cumprimento de uma obrigação que já foi previamente verificada. Ora, uma ação declarativa (de condenação ou de simples apreciação), tem em vista, neste contexto, o reconhecimento de um crédito e, simultaneamente, a obtenção de um título executivo, ex vi art. 703º nº1 a) do CPC, que possa posteriormente ser executado em sede de uma ação executiva, não tendo aquelas

quaisquer consequências

nefastas

para o

prosseguimento normal do PER. Não faz, por isso, qualquer sentido paralisar ou impedir a propositura das ações declarativas, muito menos que estas se extingam nos termos do preceituado no n.º1 do art. 17º-E do CIRE, se vier a ser homologado o plano de recuperação, até porque nos parece que estará aqui em causa uma violação do princípio da economia processual. 3.3.2.2 O Processo de insolvência Dispõe o n.º 6 do art. 17º-E do CIRE que “os processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência da empresa suspendem-se na data de publicação no portal Citius do despacho a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C, desde que não tenha sido proferida sentença declaratória da insolvência, extinguindo-se logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação.” A este respeito, o acórdão do TRC de 16/10/2012, Proc. n.º 421/12.6TBTND.C1 (Carlos Moreira) refere que “Considerando a finalidade recuperatória do devedor do novo processo especial de revitalização – PER – introduzido pela Lei 16/2012 de 20.04, o mesmo prevalece sobre a tramitação de quaisquer outras ações contra aquele instauradas, exceto o processo de insolvência e apenas se neste já tiver sido prolatada sentença, transitada ou não, declaratória da mesma”. O PER deve ser suspenso, se a sentença da insolvência ainda não tiver transitado, ou extinto/encerrado, se já tiver transitado. 4. Dever de Comunicação Nos termos do disposto no n.º1 do art. 17.º-D do CIRE, “logo que seja notificada do despacho a que se refere o n.º 4 do artigo anterior, a empresa comunica, de imediato e

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Na doutrina, neste sentido, encontrámos P.e. CASANOVA, Nuno Salazar e DINIS, David Sequeira, ob. cit., págs. 97 e ss. 25 Para mais desenvolvimentos sobre o tema, vd. EPIFÂNIO, Maria do Rosário, ob. cit., págs. 428 e ss.

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por meio de carta registada, a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração mencionada no n.º 1 do mesmo preceito, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o n.º 1 do artigo 24.º e a proposta de plano se encontram patentes na secretaria do tribunal, para consulta”. Pode, então, acontecer que algum ou alguns dos credores decidam participar nas negociações em curso e, para isso, nos termos do preceituado no n.º 7 do referido preceito, devem-no declarar à empresa por carta registada, podendo fazê-lo durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, sendo tais declarações juntas ao processo. Na falta ou incorreção das comunicações anteriormente referidas, a empresa, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquela ser uma pessoa coletiva, são solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorreção das comunicações ou informações a estes prestadas, correndo autonomamente ao presente processo a ação intentada para apurar as aludidas responsabilidades – cfr. art. 17.º-D n.º 11 do CIRE. 5. Reclamação de créditos, lista provisória de créditos e impugnação Nos termos do disposto no n.º 2 do art. 17-D do CIRE, qualquer credor dispõe de 20 dias, contados da publicação no portal Citius do despacho a que se refere o nº4 do artigo 17ºC26 (despacho de nomeação do AJP), para reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao AJP que, no prazo de cinco dias, elabora uma lista provisória de créditos. A lista provisória de créditos é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis27, contados a partir do fim dos 20 dias referidos no n.º 2, dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas. Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva, conforme plasmado, respetivamente, nos n.ºs 3 e 4 do referido artigo.

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E não da alínea a) do n.º 3 do art. 17º-C, conforme refere a lei. Parece-nos, portanto, que com a redação dada com o D.L. nº 79/2017, de 30 de junho, o legislador se esqueceu de atualizar a referência que faz a este despacho. 27 Não se aplica a este prazo o disposto no n.º 5 do art. 139º do CPC, relativo à prática do ato nos três dias subsequentes com multa. A este respeito, vd. o acórdão do TRC de 02/02/2016, proc. n.º 2935/15.7T8CBR.C1 (Maria João Areias), na parte onde refere: “a faculdade de apresentação da peça processual nos três dias seguintes, prevista no artigo 139º, nº5 do CPC, não é aplicável ao prazo para dedução de impugnações à lista de credores provisória no âmbito do PER”.

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6. Negociações Findo o prazo para impugnações, os declarantes dispõem do prazo de dois meses28 para concluir as negociações encetadas, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez e por um mês, mediante acordo prévio e escrito entre o AJP nomeado e a empresa, devendo tal acordo ser junto aos autos e publicado no portal Citius (cfr. nº5 do art. 17º-D do CIRE). Durante as negociações a empresa presta toda a informação pertinente aos seus credores e ao AJP que haja sido nomeado para que as mesmas se possam realizar de forma transparente e equitativa, devendo manter sempre atualizada e completa a informação facultada ao AJP e aos credores (cfr. nº6 do art. 17º-D do CIRE). As negociações encetadas entre a empresa e os seus credores regem-se pelos termos convencionados entre todos os intervenientes ou, na falta de acordo, pelas regras definidas pelo AJP nomeado, nelas podendo participar os peritos que cada um dos intervenientes considerar oportuno, cabendo a cada qual suportar os custos dos peritos que haja contratado, se o contrário não resultar expressamente do plano de recuperação que venha a ser aprovado (cfr. nº8 do art. 17º-D do CIRE). O AJP participa nas negociações, orientando e fiscalizando o decurso dos trabalhos e a sua regularidade, e deve assegurar que as partes não adotam expedientes dilatórios, inúteis ou, em geral, prejudiciais à boa marcha daquelas (cfr. nº9 do art. 17º-D do CIRE). Durante as negociações os intervenientes devem atuar de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de outubro. Conclusão O PER foi apenas introduzido no CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, entrando em vigor a 20 de maio de 2012, assumindo-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilita a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência atual. Este é um processo judicial especial, pré-insolvencial, concursal, urgente, híbrido e recuperatório. Relativamente às “ações para cobrança de dívidas”, como vimos, a doutrina e a jurisprudência portuguesas têm-se dividido entre o entendimento de que apenas são abrangidas as ações executivas e o de que também considera as ações declarativas. Não obstante, o nosso entendimento é o de que apenas se encontram abrangidas as ações executivas ou as diligências executivas e, ainda, as providências cautelares de natureza executiva, propostas contra a empresa.

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Contados do fim do prazo de impugnação, e não da decisão final destas, se a elas houver lugar.

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Como vimos, isto parece-nos de todo evidente, já que uma ação de cobrança de dívida visa o cumprimento de uma obrigação que já foi previamente verificada. Ora, uma ação declarativa (de condenação ou de simples apreciação) tem em vista, neste contexto, o reconhecimento de um crédito e, simultaneamente, a obtenção de um título executivo, ex vi art. 703º nº1 a) do CPC, que possa posteriormente ser executado em sede de uma ação executiva, não tendo estas quaisquer consequências nefastas para o prosseguimento normal do PER. Não faz, por isso, qualquer sentido paralisar ou impedir a propositura das ações declarativas, muito menos que estas se extingam nos termos do preceituado no n.º1 do art. 17º-E do CIRE, se vier a ser homologado o plano de recuperação, até porque nos parece que estará aqui em causa uma violação do princípio da economia processual. Porém, lamenta-se, sobretudo, que o legislador não tenha aproveitado as alterações efetuadas pelo D.L. n.º 79/2017 para pôr cobro a esta situação. Finalmente, relativamente à questão que se coloca sobre o conteúdo do despacho liminar, ficou claro que acompanhámos o entendimento de que o despacho liminar pode ter um de três conteúdos: despacho de indeferimento liminar, despacho de correção e despacho de admissão do PER. Acreditamos que a expressão “de imediato” confere ao PER um carácter urgentíssimo, mas que, a nosso ver, não pode dispensar a existência dos despachos de indeferimento liminar ou de correção, quando se justifiquem, até porque no n.º 2 do art. 17º-E o legislador utilizou a expressão “caso o juiz nomeie administrador judicial provisório (…)” , prevendo, assim, a hipótese de o juiz não nomear o AJP. Estamos, finalmente, em condições de concluir que, pese embora as alterações já levadas a cabo no regime jurídico do PER, este ainda necessita de correções. Bibliografia CASANOVA, Nuno Salazar; DINIS, David Sequeira, PER- O Processo Especial de Revitalização- Comentário aos artigos 17º-A a 17º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra, Coimbra Editora, 2014. EPIFÂNIO, Maria do Rosário, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2019. FERNANDES, Luís A. Carvalho; LABAREDA, João, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado,3ª edição, Lisboa, Quid Juris Editora, 2015. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 10ª edição, Coimbra, Almedina, 2018. ____________, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Anotado, 6ª edição, Coimbra, Almedina, 2012.

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____________, Direito da Insolvência, 8ª edição, Coimbra, Almedina, 2018. MARTINS, Alexandre Soveral, Um curso de Direito da Insolvência, 2ª edição, revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2016. SILVA, Fátima Reis, Processo Especial de Revitalização, Notas Práticas e Jurisprudência Recente, Porto, Porto Editora, 2014 Jurisprudência (Fonte: www.dgsi.pt) Ac. do STJ, de 17/11/2016, proc. n.º 43/13.4TTPRT.P1.S1 (Ana Luísa Geraldes). Ac. do TRC de 16/10/2012, proc. n.º 421/12.6TBTND.C1 (Carlos Moreira). Ac. do TRC de 10/07/2013, proc. n.º 754/13.4TBLRA.C1 (Carlos Moreira). Ac. do TRC de 02/02/2016, proc. n.º 2935/15.7T8CBR.C1 (Maria João Areias). Ac. do TRG de 16/05/2013, proc. 284/13.4TBEPS-A.G1 (Conceção Bucho). Ac. do TRL de 27/01/2016, proc. n.º 213/14.8TTFUN-4 (José Eduardo Sapateiro). Ac. do TRP de 07/04/2014, proc. n.º 344/13.1TTMAI.P1(João Nunes). Ac. do TRP, de 13/11/2017, proc. n.º 2556/17.0T8STS-A.P1(Jorge Seabra).

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A Titulação no Âmbito do Processo Executivo

A Titulação no Âmbito do Processo Executivo

Susana Pereira Solicitadora

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1. Resumo: No âmbito do processo executivo também existe titulação. Já pensaram nisso? Quando o Agente de Execução emite o título de transmissão está a fazer exatamente isso, a emitir o documento1 que se destina a comprovar um facto jurídico e que consubstanciará título bastante para efeitos de registo de transmissão da propriedade do bem penhorado, mormente de um imóvel, a favor do adquirente. Se assim é, porque será que o “peso” que sobre o Agente de Execução recai é, aparentemente, reduzido, quando comparado com a autenticação por advogado ou solicitador de um negócio sujeito a registo, designadamente um contrato de compra a venda mediante documento particular autenticado2? Crê-se que concordarão quando se refere que o peso da responsabilidade parece superior quando, enquanto solicitadores ou advogados, estamos a redigir o documento particular da compra a venda, por exemplo, e posteriormente a elaborar o respetivo termo de autenticação. As exigências legais são tantas, e de vária ordem, no âmbito da titulação de negócios jurídicos sujeitos a registo predial, que se calhar nem paramos para pensar que na ação executiva o Agente de Execução também exerce uma função tituladora, parecendo neste caso tão mais simples o processo conducente à obtenção do título. Poderá esse menor peso da responsabilidade resultar da própria Lei, que reduz as obrigações de verificação de documentos, de advertências, de arquivo e de conduta no que à venda executiva diz respeito na ótica da titulação?3 2. Enquadramento A venda executiva poderá revestir uma das modalidades previstas no artigo 811º do CPC4. Nesta sede têm particular relevância as modalidades de venda mediante abertura de

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Frequentemente utilizamos os termos Título e Documento como que se de sinónimos se tratassem. No entanto, para a ciência jurídica não significam exatamente o mesmo. Mouteira Guerreiro, em “Temas de registos e de notariado”, Almedina, Janeiro de 2010, página 580, defende que, “…poderá dizer-se que o documento tem um sentido formal, isto é a declaração escrita destinada a comprovar um facto, ao passo que o título tem um significado substantivo, visto que é a razão jurídica ou a causa desse facto, que está traduzida no documento. Nesta perspetiva dir-se-á que o documento contém o título ou ainda….para titular atos e contratos é necessário dar-lhes forma através de documentos, pelo que, sem estes, não ficam titulados”. 2 Torna-se ainda mais curiosa, parece-nos, esta questão, se se recordar que, o título de transmissão que o Agente de Execução emite consubstancia um documento autêntico, nos termos dos artigos 362º, 363º e 369º e ss, do Código Civil, ao passo que enquanto advogados ou solicitadores estar-se-á sempre a falar, “apenas”, da autenticação de um documento particular. 3 É sobre este aspeto que o presente artigo pretende versar, sem, contudo, representar uma análise exaustiva ao regime da venda em processo de execução, dado que se assim não fosse estaria a retirar-se a ótica eminentemente prática da abordagem do tema. 4 Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 811º do CPC, “a venda pode revestir as seguintes modalidades: a) venda mediante propostas em carta fechada; b) venda em mercados regulamentados; c) venda direta a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens; d) venda por negociação

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propostas em carta fechada (alínea a) do nº 1 do artigo 811º do CPC) e a venda em leilão eletrónico (alínea g) do nº 1 do artigo 811º do CPC), na medida em que no âmbito destas que o Agente de Execução emite o título de transmissão. Até à reforma da ação executiva em 2013, a regra geral, relativa à venda de imóveis, era a de que a fase da venda principiava com a venda mediante abertura de propostas em carta fechada. Com a entrada em vigor, a 1 de setembro de 2013, do novo Código de Processo Civil, nos termos do seu artigo 837º, a venda de bens penhorados passaria a ser feita preferencialmente em leilão eletrónico. Tendo em conta a mudança de paradigma a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), após autorização do Ministério da Justiça, desenvolveu a plataforma eleilões.pt (doravante designado e-leilões), aprovada pelo Despacho n.º 12624/2015, de 9 de novembro de 2015, que entrou em pleno funcionamento em 06 de abril de 2016. Assim, até ao estabelecimento como modalidade de venda preferencial dos imóveis penhorados a venda mediante leilão eletrónico, a primeira diligência de venda era realizada no Douto Tribunal, mediante a abertura de propostas em carta fechada, nos termos previstos nos artigos 816º a 828º do CPC. Com a entrada em funcionamento do e-leilões, a primeira diligência de venda de bens imóveis, nos termos legalmente definidos, deverá realizar-se, preferencialmente, mediante leilão eletrónico (artigo 837º do CPC e Portaria nº 282/2013, de 29 de Agosto). Realizando-se a venda mediante abertura de propostas em carta fechada ou mediante leilão eletrónico incumbe ao Agente de Execução lavrar o competente título de transmissão. O título de transmissão, conforme resulta do nº 2 do artigo 827º do CPC, é o instrumento de venda que serve de base ao registo da venda executiva e transmissão do prédio a favor do adquirente5. O Agente de Execução, uma vez efetuado o depósito do preço e cumpridas as obrigações fiscais inerentes à aquisição, emite o título de transmissão a favor do proponente (ou preferente ou remitente). Na emissão deste título de transmissão, o Agente de Execução está a titular (através da elaboração do documento escrito bastante para) a transmissão do direito de propriedade do imóvel, até então pertencente ao executado, a favor do adquirente.

particular; e) venda em estabelecimento de leilões; f) venda em depósito público ou equiparado; g) venda em leilão eletrónico”. 5 Conforme se referiu em momento anterior do presente artigo, o título é considerado como documento bastante para efeitos de registo. A propósito, o nº 1 do artigo 43º do CRPredial diz-nos que os factos são registados com base nos “documentos que legalmente os comprovem”, remetendo aqui para a lei substantiva.

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Conforme dispõe o nº 1 do referido preceito, o título de transmissão deve: 1) identificar o(s) bem(ns) transmitido(s); 2) certificar o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do preço; 3) declarar o cumprimento das obrigações fiscais (designadamente, no que respeita aos imóveis, liquidação e pagamento do IMT e IS) ou a isenção das obrigações fiscais; e, 4) a data em que o(s) bem(ns) foi(foram) adjudicado(s). Acresce que, para a elaboração do título de transmissão deverão, ainda, ser tidas em conta as normas aplicáveis do Código de Notariado, designadamente os artigos 39º, 40º, 41º, 42º, 46º, 47º, 57º e 58º. Assim, e no respeita aos requisitos referidos nos preceitos supra indicados aplicáveis à redação do título de transmissão, podemos sintetizar como principais: 1. Deve ser de cor preta (artigo 39º, nº 1 do CN); 2. Devem ser escritos os dizeres por extenso (artigo 40º, nº 1 do CN); 3. Deve conter a designação do dia, mês, ano e lugar em que é assinado (artigo 46º, n º1, alínea a) do CN); 4. Identificação do Agente de Execução, bem como do adquirente (artigo 46º, nº 1, alínea c) do CN); 5. Identificação do prédio transmitido (artigos 57º e 58º do CN); 6. A assinatura do Agente de Execução (artigo 46º, nº 1, alínea n) do CN). Note-se que, para além do cumprimento das regras supra enunciadas na elaboração do título de transmissão propriamente dito, farão parte integrante do respetivo título os seguintes documentos:  Auto de Abertura de Propostas, nos casos da venda mediante abertura de propostas em carta fechada, ou Declaração, nos casos da venda mediante leilão eletrónico (que é composta, como o próprio nome indica, por uma declaração emitida pelo Agente de Execução nos termos da qual declara que o imóvel foi adjudicado ao proponente em causa, a qual é acompanhada da decisão de adjudicação lavrada no âmbito dos autos, da prova de legitimidade do Agente de Execução, e da certidão de encerramento do leilão emita pelo e-leilões);  DUC’s de IMT e IS e comprovativos de pagamento6. Como se verifica, não são nesta sede aplicáveis, como sucede com o solicitador aquando da autenticação de um contrato sujeito a registo predial do qual resulte a transmissão do

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A este propósito cumpre referir que, habitualmente, em contexto prático, o Agente de Execução, aquando da notificação ao proponente para efeitos de depósito do preço nos termos do nº 2 do artigo 824º do CPC, remete desde logo ao proponente uma certidão para efeitos de auxílio na liquidação das obrigações fiscais junto da AT. Deste modo, após a liquidação e pagamento dos impostos, o proponente remete ao Agente de Execução os respetivos DUC’s, acompanhados dos comprovativos de pagamento.

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direito de propriedade, mormente a compra e venda, o artigo 1º do DL nº 281/997 (referente à licença de utilização), o artigo 9º do DL nº 68/20048 (referente à ficha técnica de habitação) e/ou o artigo 3º, alínea c) do DL nº 78/20069 (referente ao certificado energético). Acresce que, o nº 6 do artigo 833º do CPC, relativo à venda mediante negociação particular10, mas igualmente aplicável nesta sede da venda executiva, vem ainda, expressamente, admitir a dispensa da exibição da licença de construção ou utilização, sendo da responsabilidade do adquirente a respetiva legalização do imóvel. Resulta assim do supra exposto que, a titulação levada a cabo pelo Agente de Execução no exercício das suas funções, no âmbito do processo executivo, aquando da emissão do título de transmissão para efeitos de transferência do direito de propriedade sobre o imóvel penhorado nos autos, acarreta uma menor exigência no que respeita a obrigações legais de verificação da legalidade/viabilidade do ato, advertências às partes, verificação e arquivo de documentos, entre outros, quando comparada com a titulação no âmbito de negócios jurídicos dos quais resulte a transferência do direito de propriedade sobre imóveis. E bem se compreende. Não se coadunaria com os princípios da celeridade e eficácia processual a exigência ao Agente de Execução do cumprimento de um conjunto de obrigações, designadamente a prévia verificação da existência de licença de construção ou de utilização, certificado energético, ficha técnica de habitação, previamente à emissão do título de transmissão. 7

Nos termos do qual, “1 - Não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas frações autónomas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, ou da respetiva participação para a inscrição, e da existência da correspondente licença de utilização, de cujo alvará, ou isenção de alvará, se faz sempre menção expressa na escritura. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, nos prédios submetidos ao regime de propriedade horizontal, a menção deve especificar se a licença de utilização foi atribuída ao prédio na sua totalidade ou apenas à fração autónoma a transmitir.” 8 Nos termos do qual, “1 - Sem prejuízo de outras normas aplicáveis, não pode ser celebrada a escritura pública que envolva a aquisição da propriedade de prédio ou fração destinada à habitação sem que o notário se certifique da existência da ficha técnica da habitação e de que a mesma é entregue ao comprador. 2 - Não pode ser celebrado o contrato de compra e venda com mútuo, garantido ou não por hipoteca, nos termos do Decreto-Lei n.º 255/93, de 15 de Julho, sem que a instituição de crédito assegure a entrega da ficha técnica da habitação ao comprador no momento em que é preenchido o modelo a que se refere a Portaria n.º 669-A/93, de 16 de Julho, alterada pela Portaria n.º 882/94, de 1 de Outubro.” 9 Nos termos do qual, “1 - Estão abrangidos pelo SCE, segundo calendarização a definir por portaria conjunta dos ministros responsáveis pelas áreas da energia, do ambiente, das obras públicas e da administração local, os seguintes edifícios:….. c) Os edifícios existentes, para habitação e para serviços, aquando da celebração de contratos de venda e de locação, incluindo o arrendamento, casos em que o proprietário deve apresentar ao potencial comprador, locatário ou arrendatário o certificado emitido no âmbito do SCE.” 10 No âmbito da venda mediante negociação particular, fase que, em regra, se segue à frustração da venda mediante abertura de propostas ou mediante leilão eletrónico, a transmissão do imóvel terá de ser titulada mediante escritura pública ou documento particular autenticado, segundo a forma legalmente prevista para os contratos de compra e venda nos termos do artigo 875º do CC.

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Aliás, a ser assim, tal poderia, no limite, inviabilizar desde logo o registo de penhora sobre os imóveis que não cumprissem esses requisitos de ordem substantiva. Pois poderia admitir-se a possibilidade de o legislador impor, previamente ao registo da penhora, a verificação da conformidade do imóvel com as exigências legais para a sua transmissão. O que iria inquinar todo o quadro do regime da ação executiva, e obstar à satisfação dos interesses dos credores que se pretende célere. Ou, noutro cenário, poderia implicar que, entre o registo de penhora e a apreensão judicial do bem penhorado e a venda tivesse o Agente de Execução de diligenciar no sentido de legalizar conveniente o imóvel visado. E nesse caso, é bom de ver, que não haveria facilmente a colaboração do executado/proprietário. Uma vez mais, também nesta hipótese académica, estar-se-ia a inquinar todo o regime processual da ação executiva. Não sendo exequível. Na prática, o único aspeto que é comum ao Agente de Execução e ao solicitador na autenticação de um contrato de compra a venda é a verificação da observância do princípio da legitimação de direitos11, na medida em que, no caso do Agente de Execução, aquando da realização do registo de penhora e apreensão do bem garante que apenas é penhorado, e subsequentemente vendido, um prédio do qual seja efetivamente proprietário o executado nos autos; enquanto que no caso do solicitador irá observar esse mesmo princípio previamente à elaboração do documento particular ou (apenas) do termo de autenticação, através da descrição e caderneta prediais do imóvel. Uma vez elaborado o título de transmissão, nos termos do nº 2 do artigo 827º do CPC, o Agente de Execução tem a obrigação de comunicar a venda ao registo predial12, juntando o respetivo título, e a Conservatória do Registo Predial irá promover o registo de aquisição a favor do adquirente, no âmbito da venda executiva, e, oficiosamente, procede ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado nos termos do nº 2 do artigo 824º do CC. 3. Questão para Reflexão - O registo de penhora tem natureza constitutiva? – - Poderá ser vendido um imóvel, no âmbito de um processo executivo, sem o prévio registo de penhora a favor do Exequente? 11

O princípio da legitimação de direitos resulta da conjugação dos artigos 9º do CRPredial com o artigo 54º CNotariado. Segundo este princípio, que é particularmente dirigido às entidades que titulam atos e tem em mente a atualização da situação jurídica e material dos prédios, não podem ser titulados (salvo as exceções expressamente previstas na Lei) os factos de que resulte a transmissão de direitos ou a constituição de encargos sobre imóveis sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo. 12 Quanto a este ponto, habitualmente, em contexto prático, o Agente de Execução, aquando da notificação ao proponente para efeitos de depósito do preço nos termos do nº 2 do artigo 824º do CPC, remete desde logo ao proponente um pedido de provisão para efeitos de pagamento do emolumento predial referente ao registo de aquisição (250,00Euros, caso o registo seja apresentado presencialmente numa CRP, ou 225,00Euros, caso o registo seja apresentado através do Predial Online.

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Estas são daquelas questões a que o nosso íntimo quer desde logo responder “claro que não poderá um imóvel ser vendido no âmbito de um processo executivo sem o prévio registo de penhora a favor do Exequente”. Certo é que, nunca ou raramente se vê tal acontecer. É verdade. Mas já se parou para pensar na questão? A prática corrente está de tal forma enraizada (e bem) que nem paramos para pensar no porquê das coisas, essa é a verdade. Começa-se por referir a propósito que, não há uma solução unanime, quer na doutrina quer na jurisprudência existem posições num e noutro sentido, isto é, há quem entenda que não existe penhora sem o registo da mesma (tendo o registo da penhora um efeito constitutivo de direitos) e, por seu turno, há quem entenda que a penhora existe, ou pode existir, sem o registo da mesma (tendo o registo da penhora um efeito declarativo). Neste âmbito pretende-se apenas levantar a questão, como se fez, e chamar à colação os critérios que podem ajudar a ajuizar num ou noutro sentido. Doutro modo, pretende-se fazer pensar nas coisas. O nosso sistema de registo predial é, pela maioria, classificado, no que respeita aos seus efeitos, como um sistema declarativo, isto é, o registo predial visa publicitar a situação jurídica dos prédios através dos factos inscritos relativamente a cada prédio. Significa assim que, o direito existe independentemente do registo13. A penhora consiste na apreensão judicial dos bens do executado/devedor, tendo em visa a transmissão desses bens, para satisfação do direito de crédito do exequente pelo produto da venda. Sendo que, pelo cumprimento da obrigação respondem, à partida, todos os bens do devedor suscetíveis de penhora (artigo 601º do CC). Centremos a nossa atenção, uma vez mais, na penhora de imóveis. Diz-nos o nº 1 do artigo 755º do CPC que, “a penhora de coisas imóveis realiza-se por comunicação eletrónica do agente de execução ao serviço de registo competente, a qual vale como pedido de registo…”. Acrescenta o nº 2 do referido preceito que “seguidamente, o agente de execução lavra o auto de penhora e procede à afixação, na porta ou noutro local visível do imóvel penhorado, de um edital…”. A utilização da expressão “a penhora de coisas imóveis realiza-se…” leva-nos, quase que de imediato, para uma ideia de efeito constitutivo do registo de penhora. Isto é, se a letra da Lei diz que a penhora se realiza por aquele meio, então se assim não for, se não for promovido o registo da penhora, não temos a penhora do imóvel, logo não pode avançar a ação executiva quanto àquele bem. Aliás, o disposto no nº 3 daquele preceito vem ainda reforçar aquele entendimento, ditando que, a penhora principia pelo seu registo e só após a feitura do registo é que

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Há quem entenda que o registo predial é constitutivo de direito no caso da hipoteca; há quem entenda que existem outros casos, para além da hipoteca em que o registo tem um efeito constitutivo; e ainda há quem entenda que nem no caso da hipoteca será verdadeiramente constitutivo.

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deverá o Agente de Execução avançar com as diligências, designadamente de elaboração do auto de penhora e afixação do edital de imóvel penhorado. Agora recorde-se o que supra se refere acerca da noção de penhora. Ab initio refere-se que “a penhora consiste na apreensão judicial dos bens do executado…”. O direito de penhora é garantia geral das obrigações – artigo 601º do CC. A penhora de quaisquer bens ou de direitos constitui garantia real – artigo 822º, nº 1 do CC14. Nos termos do n.º 1 do artigo 822º do CC, “ o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior”. Esta regra prevê a hipótese de existirem, além do exequente, outros credores com garantias reais sobre os bens e destina-se a hierarquizar o crédito do exequente na sua relação com os créditos que beneficiam dessas garantias ou daquela penhora. A penhora, desde logo, desempenha uma função individualizadora dos bens que irão ser submetidos ao poder de execução do credor, do mesmo passo que constitui uma garantia real sobre o bem penhorado. Efetivamente, enquanto que o credor, antes da penhora, dispõe apenas da garantia geral incidente sobre o património do devedor (artigo 601º do CC), após a penhora adquire uma garantia especial incidente sobre bens determinados. Muito embora “o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes”, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do CRP, a penhora existe independentemente de ter sido levada, ou não, ao registo predial. Como ensina Lebre de Freitas, “a penhora é dirigida aos atos ulteriores de transmissão de direitos do executado para, através deles, direta ou indiretamente, ser satisfeito o interesse do exequente”. Decorre, sim, do registo da penhora, a inoponibilidade à execução dos atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados, como resulta do preceituado no artigo 819º do CC. Dir-se-á que o registo da penhora constitui o guardião dos atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados. Posto isto, questiona-se: será que a penhora não existe sem o registo? Terá o registo da penhora um efeito constitutivo? Ou antes, terá o registo um efeito meramente declarativo, dando a conhecer o ónus que impende sobre o imóvel (artigo 1º do CRP), produzindo efeitos entre as partes independentemente do registo (artigo 4º do CRP), sendo apenas registada a penhora para que seja oponível a terceiros (artigo 5º, nº 1 do CRP)?

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Sobre esta questão da caracterização da penhora como garantia real muito se discute igualmente na doutrina. Mas, e para este efeito, vamos admitir que se trata efetivamente duma garantia real de índole processual.

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Certo é, que, a penhora de bens imóveis só fica concluída com a realização do registo, nos termos do nº 1 do artigo 755º do CPC. O registo da penhora é um pressuposto daquele ato processual. Porém, se nos tentarmos abstrair do processo, como que “sair para fora de cena e ver as coisas do outro lado”, parece possível concluir-se que, o registo da penhora sobre o imóvel não tem um efeito constitutivo da própria penhora. A penhora, enquanto apreensão judicial de bens do executado para satisfação do direito do exequente, manifesta-se com a efetiva apreensão do bem que se dá com a afixação do edital de imóvel penhorado pelo Agente de Execução. Aí sim se verifica a apreensão judicial do bem. Aí sim temos penhora. Todavia, um pressuposto processual para aquela apreensão consiste no registo da penhora sobre o imóvel, de modo a que a mesma possa ser oponível a terceiros. Dizer que, o registo é um pressuposto do ato processual da penhora parece o mesmo que dizer que o registo de penhora é constitutivo do direito de garantia sobre aquele bem. Mas não é líquido que assim seja. Tanto mais que, o nº 2 do artigo 58º do CRPredial, expressamente refere que, poderá ser cancelado o registo de penhora nos casos em que não tenha ocorrido a apreensão do bem. Ou seja, a penhora, enquanto apreensão judicial do bem do executado, dá-se com, e passa-se a redundância, a apreensão do bem, com a afixação do edital de imóvel penhorado e, se possível nos termos legalmente definidos, com a tomada de posse do imóvel pelo Agente de Execução. O registo da penhora em sede de registo predial visa publicitar aquele encargo, salvaguardando o Exequente/credor de atos de disposição, oneração ou arrendamento relativamente aos bens penhorados. Nesta senda será possível admitir-se a venda de um imóvel no âmbito de um processo de execução, sem o prévio registo de penhora? Imagine-se o seguinte cenário: a) O prédio x está inscrito definitivamente a favor de A; b) Sobre o referido imóvel, após a inscrição do registo de aquisição, está inscrita uma hipoteca a favor do Banco Y; c) O proprietário do imóvel, por variadas razões, incumpriu com o pagamento do crédito ao Banco Y, e este promoveu pela respetiva ação executiva para cobrança do crédito, indicando à penhora precisamente o imóvel sobre o qual incide a sua garantia real; d) O Agente de Execução não efetuou o registo de penhora sobre o imóvel, avançou normalmente com o processo, e realizou a venda; e) Em face de tal, procede à emissão do respetivo título de transmissão e apresenta o pedido de registo de aquisição do imóvel a favor do adquirente.

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Quid iuris? Uma vez mais importa referir que, qualquer posição aqui defendida é, obviamente, suscetível de discussão/desacordo. Claro está que estamos perante uma hipótese, quase, meramente académica. Mas isso não retira, a nosso ver, interesse na análise da temática. Retomando o exemplo vemos que, a posição a adotar para resposta estará intimamente ligada com a posição aditada na questão anterior, ou seja, quanto à natureza constitutiva ou declarativa do registo de penhora. Dado que, se acolhermos a primeira posição crê-se que não poderá admitir-se a venda de um imóvel sem o prévio registo de penhora a favor do Exequente, precisamente porque a venda executiva versa sobre um imóvel penhorado à ordem dos autos e sem o registo não há penhora. Já, se acolhermos a segunda posição crê-se que poderá, eventualmente, admitir-se a venda de um imóvel sem o prévio registo de penhora a favor do Exequente por se considerar que, se houve apreensão judicial/material do bem há penhora e, como tal, nada obsta à venda do imóvel e registo de transmissão a favor do adquirente. A nosso ver, e acolhendo a posição que atribui ao registo de penhora uma natureza declarativa, considerando que o registo é um “mero” pressuposto processual da penhora, e que, consistindo a penhora na apreensão judicial do bem do devedor, há penhora desde que se verifica a efetiva apreensão judicial/material do bem, nada obstaria, no caso em apreço, à inscrição em definitivo do registo de aquisição do imóvel a favor do adquirente no âmbito do processo executivo, com o consequente cancelamento do registo da hipoteca nos termos do nº 2 do artigo 824º do CC. Note-se, entende-se assim analisando unicamente os dados que são apresentados no exemplo. E por se entender que, no caso, não estava em causa uma violação de um qualquer princípio de registo predial. Já assim não seria, por hipótese, se o imóvel em causa estivesse registado a favor de pessoa diversa do executado, por violação do princípio basilar do trato sucessivo (artigo 34º CRPredial). No caso em questão, e que, como supra se refere, poderá ser difícil de conceber para lá de uma hipótese meramente académica, entende-se que nenhum justificado impedimento existia para a realização do registo de aquisição, em definitivo, a favor do adquirente. Mas isto é Direito, e o Direito é, e aí assenta a sua beleza, discutível.

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