Solicitadoria e Ação Executiva | Estudos #10

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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA

ESTUDOS #10

DEZEMBRO 2023 - DEZEMBRO 2024

LABOR IMPROBUS OMNIA VINCIT

FICHA TÉCNICA

Diretor

Francisco Serra Loureiro

Editora

Edite Gaspar

Colaboraram nesta edição

André Filipe Machado da Costa|Diana Leiras|Élio Renato Martins Pereira| Francisco Gomes Pereira|Isa Raquel Pinto Pereira|João da Cruz Largueiras Valadas|Maria de Belém Moreira Machado|Maria Malta Fernandes|Sara Isabel Caetano Familiar|Sara Marisa Mergulhão Pinto Ferreira|Vanessa Isabel Silva Macedo| Virgínio Santos

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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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2182-9225

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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução www.osae.pt

Os trabalhos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. ESTATUTO EDITORIAL disponível em

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #10 dezembro 2022 – dezembro 2023 04

06

Nota Introdutória

07

Responsabilidade civil pré-contratual.

Da evolução a questões conexas.

20

63

85

Bens a penhorar em execução movida contra herdeiro:

Entre o direito material e o processo.

Por: Diana Leiras

Por: Maria de Belém Moreira Machado e Maria Malta Fernandes

39

Cessação do contrato de trabalho por denúncia.

Por: Isa Raquel Pinto Pereira

A propriedade horizontal – A problemática da transmissibilidade ou intransmissibilidade das dívidas de condomínio.

Por: Élio Renato Martins Pereira

74

Inteligência Artificial e a Solicitadoria: desafios do ensino à prática profissional.

Por: Francisco Gomes Pereira

O contrato de transporte aéreo de passageiros.

Por: Virgínio Santos

116

102

A propósito da declaração do nº1 artº 1

424-A do código civil.

Por: João da CRuz Largueiras Valadas

Breve reflexão sobre a penhorabilidade da casa de morada de família em Portugal e nos principais ordenamentos jurídicos europeus e brasileiro.

Por: Vanessa Isabel Silva Macedo

128

142

A inteligência artificial e o direito.

Por: Sara Isabel Caetano Familiar

155

A responsabilidade civil dos gerentes e administradores para com a sociedade.

Por: André Filipe Machado da Costa

Direito das Sucessões.

O Direito de Representação.

Por: Sara Marisa Mergulhão Pinto Ferreira

ÍNDICE
05

NOTA INTRODUTÓRIA

Sendo uma das principais atribuições da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução colaborar na administração da Justiça, tem sido nosso objetivo diversificar essa mesma colaboração, nomeadamente através de diversos contributos que promovam um desenvolvimento técnico e intelectual de todos os profissionais desta

Ordem, tornando-os cada vez mais preparados para o auxílio ao cidadão.

É assim objetivo desta oitava edição da coletânea "Solicitadoria e Ação ExecutivaEstudos" contribuir para um maior desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional e intelectual das nossas profissões, agregando significativos contributos que fomentam o desenvolvimento de matérias jurídicas de relevo para o exercício das nossas profissões.

É já apanágio da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução a conservação destes contributos intelectuais, ambicionando que também as gerações vindouras os venham a conhecer, refletindo sobre os mesmos e criando, também elas, novas problemáticas e soluções.

Mais uma vez, e como em anteriores edições, contámos com trabalhos de diversos associados, bem como de estudantes de diversas instituições de Ensino Superior, os quais enriqueceram, de sobremaneira, esta nova edição e a quem muito agradecemos.

Esta coletânea enquadra-se plenamente nos desígnios avançados pela Ordem e, em particular, pelo seu Instituto de Formação Botto Machado, sendo um marco na consolidação da qualidade das nossas publicações que permite, indubitavelmente, um acréscimo qualitativo à formação inicial e contínua da nossa classe.

Diretor do Instituto de Formação Botto Machado

2º Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

07

BENS A PENHORAR EM EXECUÇÃO MOVIDA CONTRA

HERDEIRO:

ENTRE O DIREITO MATERIAL E O PROCESSO

DIANA LEIRAS

Doutora em Direito

Professora Adjunta Convidada do Instituto Politécnico do Cáva do e do Ave Investigadora do Instituto Jurídico Portucalense

1. Satisfação dos encargos da herança

O art. 2025.º, do Código Civil (doravante CC) prevê que o objeto da sucessão é composto pelas relações jurídicas de que o de cujus era titular, desde que não excetuadas por lei. Tais relações jurídicas respeitam a bens e direitos, mas podem, igualmente, respeitar a obrigações e a dívidas¹, pelo que se o falecido deixou dívidas por pagar, em princípio, com a abertura da sua sucessão, foram as mesmas transmitidas para a universalidade da herança².

Sobre a responsabilidade pelos encargos da herança, o art. 2068.º, do CC dispõe que “[a] herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados”³. A ordem por que estão indicados tais encargos deve ser aplicada na satisfação dos mesmos, conforme estabelece o n.º 2 do art. 2070.º, do CC.

O art. 2070.º, do CC consagra também a preferência da satisfação dos credores da herança sobre os legatários e, destes últimos, sobre os credores pessoais dos herdeiro (n.º 1), e, ainda, que esta preferência (assim como a que consta do n.º 2 do mesmo artigo) se mantém nos cinco anos após a abertura da sucessão ou a constituição da dívida, se esta é posterior, ainda que a partilha da herança já tenha sido realizada, e ainda que algum credor preterido tenha adquirido garantia real constituída sobre os bens hereditários (n.º 3).

Dos arts. 2068.º e 2071.º, ambos do CC (e, ainda, dos arts. 2097.º e 2098.º do mesmo diploma legal), resulta que são os herdeiros, e não os legatários, que respondem pelos encargos da herança, o que se justifica com o facto de ser o herdeiro o sucessor universal, isto é, aquele que sucede na totalidade ou numa quota do património hereditário (o legatário sucede a título particular, em bens ou valores determinados), cfr. art. 2030.º, do CC, em especial, n.º 2⁴ . Além disso, sendo os legados considerados encargos da herança (art. 2068.º, do CC, in fine), o legatário é, ele próprio, um credor da herança, tal como é confirmado pelo art. 2265.º, n.º 1, do CC⁵

1 “A aquisição do herdeiro é unitária”; [a]través da aquisição, o herdeiro torna-se titular imediato de todas as situações jurídicas”. Cfr. SILVA, J. Gomes da, Herança e sucessão por morte, A sujeição do património do de cuius a um regime unitário no Livro V do Código Civil, Universidade Católica, 2002, p. 54.

2 “A morte do de cuius não extingue as suas obrigações, acontecendo que a posição jurídica no lado passivo das relações jurídicas é ocupada pelos seus sucessores”. Vide SOUSA, R. Capelo de, Lições de Direito das Sucessões, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 310-311.

3 Para efeito da satisfação dos encargos da herança, para além dos bens deixados pelo de cujus à data da sua morte, também fazem parte do acervo hereditário os bens sub-rogados no lugar dos bens da herança por meio de troca direta, o preço dos alienados, os bens adquiridos com dinheiro ou valores da herança, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição e, por fim, os frutos percebidos até à partilha (art. 2069.º, do CC). Portanto, existindo encargos a satisfazer pela herança, considera-se que esses bens e valores integram a comunhão hereditária. Cfr. SOUSA, M. Teixeira de (et. al.), O novo regime do processo de inventário e outras alterações na legislação processual civil, Coimbra, Almedina, 2020, p. 38. No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de janeiro de 2013, Processo n.º 2174/09.0TBVNG.P (Relator: José Barros), disponível em www.dgsi.pt, decidiu-se que esta extensão da herança não abrange “as obrigações assumidas ex novo pelos herdeiros, mesmo que visem a beneficiação da herança”.

⁴ Nas palavras de SILVA, J. Gomes da, ob. cit., pp. 203, os herdeiros são “os únicos sucessores no património, aqueles em que se verifica a successio in universum ius”.

⁵ PINHEIRO, J. Duarte, O Direito das Sucessões contemporâneo, 3.ª ed., Lisboa, AAFDL, 2019, p. 47.

08

Contudo, como os legados apenas têm de ser cumpridos após serem satisfeitos os credores da herança (arts. 2070.º, n.º 2, e 2068.º, ambos do CC), os legatários podem ter de responder pelas dívidas da herança, sendo reduzidos e até mesmo esvaziados⁶. Por conseguinte, no âmbito de processo de inventário é atribuída legitimidade aos legatários para deliberar sobre o passivo e a forma do seu pagamento no caso em que da aprovação das dívidas resulte a redução de legados (cfr. art. 1107.º, do Código de Processo Civil, CPC)⁷ .

Por regra, a satisfação dos encargos da herança tem de ser efetuada conjuntamente por todos os herdeiros (arts. 2097.º e 2091.º, n.º 1, do CC), ocupando estes o lugar do de cuius e podendo ser demandados enquanto representantes da herança. Contudo, certos encargos da herança podem e devem ser satisfeitos pelo cabeça de casal no âmbito do exercício das suas funções de administração da herança indivisa (arts. 2079.º e ss., do CC), rectius as despesas do funeral, sufrágios e de administração (art. 2090.º, do CC).

2. Legitimidade dos herdeiros em ações destinadas à cobrança de dívidas do de cujus

Se o credor ou o devedor faleceram antes de instaurada a ação executiva, os respetivos herdeiros serão parte na execução, em desvio à regra de que a execução deve ser instaurada por quem figura no título executivo como credor e contra quem figura no título como devedor (art. 53.º, n.º 1, do CPC). Neste sentido, dispõe o art. 54.º, n.º 1, do CPC que, “[t]endo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução ocorrer entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”.

Destarte, no referido caso de sucessão na obrigação por morte do devedor verificada antes da instauração da ação executiva, esta deve ser logo intentada contra os sucessores daquele, recaindo sobre o exequente o ónus de alegar no requerimento executivo os factos constitutivos da sucessão. Por conseguinte, não haverá necessidade de recurso ao incidente de habilitação, previsto nos arts. 351.º a 357.º, do CPC. Com efeito, como explicam LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHO e RUI PINTO, “[t]endo havido sucessão, entre vivos ou mortis causa, na titularidade da obrigação exequenda, entre o momento da formação do título e o da propositura da ação executiva, seja do lado activo, seja do lado passivo, devem tomar, desde logo, a posição de parte, como exequentes ou como executados, os sucessores das pessoas que figuram no título como credores ou devedores”, sendo, por conseguinte, dispensável “(…) o recurso ao incidente de habilitação (…) quando a intervenção dos sucessores tenha lugar no momento da instauração da execução. É suficiente, então, que o exequente deduza no próprio requerimento inicial os factos constitutivos da sucessão, sem que tenham lugar (…) os termos subsequentes do incidente de habilitação”⁸

⁶ O facto de a responsabilidade dos legatários ser subsidiária em relação à dos herdeiros (arts. 2070.º e 2278.º, do CC) não significa que exista preferência da satisfação dos legados em relação ao pagamento das legítimas aos herdeiros legitimários (arts. 2168.º e 2172.º, do CC). Os herdeiros legitimários preferem aos sucessores testamentários (herdeiros ou legatários) na ordem de prioridade de chamamento à sucessão. Cfr. SOUSA, Capelo de, ob. cit., I, p. 311, nota 796.

⁷ O legatário também responde por dívidas da herança no caso em que o testador tenha onerado o legado com uma dívida, mas apenas dentro dos limites do valor da coisa legada (art. 2276.º, do CC), ou, ainda, quando toda a herança tenha sido distribuída em legados, caso em que, em regra, todos os legatários respondem na proporção dos seus legados (art. 2277.º, do CC).

O art. 2072.º, do CC consagra um regime específico para a responsabilidade do usufrutuário (que é havido como legatário, nos termos do art. 2030.º, n.º 4, do CC). Verifica-se que, sobre o usufrutuário apenas recai o ónus de adiantar ao herdeiro as somas necessárias, e que, caso não proceda dessa forma, fica obrigado a pagar-lhes juros ou sujeito a que se vendam os bens usufruídos.

⁸ LEBRE DE FREITAS, J., REDINHA, J., e PINTO, Rui, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 112-113 (em anotação ao então art. 56.º, atual art. 54.º, do CPC).

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Ao contrário da herança jacente (art. 12.º, al. a), do CPC), a herança já aceite, mas ainda não partilhada, não goza de personalidade judiciária, razão pela qual os herdeiros são partes legítimas em ação destinada à respetiva cobrança, na qualidade de cotitulares da universidade que compõe esse património autónomo, sendo este um caso de litisconsórcio necessário, previsto no art. 2091.º, n.º 1, do CC⁹. Não obstante, da lei processual resulta que a ação executiva deve ser intentada contra os sucessores do devedor da obrigação exequenda (art. 54.º, n.º 1, do CPC) e, de acordo com o art. 2030.º, n.º 1, do CC, além dos herdeiros, também são considerados como tais os legatários. Neste seguimento, o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 17 de novembro de 2022, consignou que “havendo notícia da existência de herdeiros e de legatários instituídos em testamento, todos têm de ser demandados, em litisconsórcio necessário, sem prejuízo de em tempo oportuno, poderem deduzir embargos e alegarem factos suscetíveis de poderem infirmar a respetiva legitimidade”1⁰ .

No caso em que o falecimento de parte ocorre já na pendência da execução, o mesmo deve ser comunicado e provado no processo, determinando a suspensão da instância (art. 270.º,al. a), do CPC), a qual apenas cessa com a notificação da decisão de habilitação de herdeiros 11 Destarte, ocorrendo, na pendência de ação executiva, sucessão por morte em relação a qualquer uma das partes, exequente ou executado, haverá que promover a substituição dessa parte pelos respetivos sucessores, através do apropriado mecanismo processual, o incidente de habilitação.

Neste sentido, parafraseando MARCO CARVALHO GONÇALVES, “[s]e a sucessão se verificar na pendência da ação executiva, deve ser deduzido o incidente de habilitação, nos termos dos arts. 351.º a 357.º, por forma a fazer intervir na execução o sucessor da parte primitiva”12. A este propósito, veja-se o Acórdão do Tribunal do Tribunal da Relação do Porto, de 4 de abril de 2022, Processo n.º 540/05.5TMAVR-C.P1 (Relator: José Eusébio Almeida), que rejeitou a interpretação feita pelo tribunal de primeira instância ao disposto no art. 744.º, n.º 1, do CPC - “[n]a execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança” – no sentido de que, em sede executiva, não é admissível a habilitação dos sucessores, pelo menos enquanto não houver partilha, em sede de inventário. Entendeu, bem, o Tribunal da Relação, de que este entendimento está desprovido de qualquer fundamento, não sendo conhecida qualquer doutrina ou jurisprudência que o suporte.

Não obstante o exposto, a substituição processual, inicial ou sucessiva, do devedor pelos seus sucessores não implica que estes respondam pessoalmente pelos encargos da herança13 .

________________________________

⁹ Vide, v.g., SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., II, pp. 80-81; e AMARAL, J. A. Pais de, Direito da Família e das Sucessões, 6.ª ed., Coimbra, Almedina, 2019, p. 353. Na jurisprudência, cfr. v.g. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de novembro de 2019, Processo n.º 1418/14.7TBEVR.E1-A.S1 (Relator: Bernardo Domingos) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07 de dezembro de 2016, Processo n.º 74/15.0T8CHV-A.G1 (Relatora: Maria Purificação Carvalho), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

1⁰ Processo n.º 19480/21.4T8SNT.L1-8 (Relatora Cristina Lourenço). O Tribunal a quo decidiu que não tendo sido demandados os legatários da devedora falecida, verificou-se a falta de um pressuposto processual, de conhecimento oficioso, mas suscetível de ser suprido: o juiz da execução, em sede de despacho liminar, deveria ter convidado o exequente a aperfeiçoar o requerimento executivo, com vista à demanda daqueles sucessores, ao abrigo do art. 6.º, n.º 2, conjugado com o art. 726.º, n.º 2, al. b), a contrario, ambos do CPC.

11 Vide SOUSA, M. Teixeira de Sousa, MENDES, J. de Castro, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pp. 381 a 386.

12 GONÇALVES, M. Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, pp. 217/219.

13 Cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13 de julho de 2017, Processo n.º 559/10.4TBCSC-C.L1-6 (Relator: António Santos), disponível em www.dgsi.pt.

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3. Objeto da penhora em execução movida contra herdeiro

3.1 Separação entre o património hereditário e o património pessoal do herdeiro

Pela satisfação dos encargos da herança indivisa respondem coletivamente os bens que fazem parte desse património (art. 2097.º, do CC), e não os bens pessoais dos herdeiros1⁴

No caso de herança deferida a um único herdeiro, este é o único responsável subjetivo pelo cumprimento dos encargos da herança, mas existe, ainda assim, separação entre o património pessoal do herdeiro e o património da herança por ele adquirida, a qual responde com os seus próprios bens pelos respetivos encargos (arts. 2068.º e 2071.º, do CC)1⁵ .

Do art. 2071.º do CC, que dispõe sobre responsabilidade do herdeiro pelos encargos da herança, resulta que, para a separação entre o património hereditário e o património pessoal do herdeiro, é indiferente o modo como o sucessível aceitou a herança – a benefício de inventário ou pura e simplesmente (art. 2052.º, n.º 1, do CC)1⁶ –, sendo a herança responsável pelos seus próprios encargos. A herança constitui, assim, uma universalidade composta por um património autónomo diretamente responsável pelos seus encargos. Por estes, respondem todos e cada um dos bens da herança, como universalidade, desde que suscetíveis de penhora (cfr. arts. 601.º, do CC e 735.º e ss., do CPC), sem prejuízo, porém, da afetação de determinados bens da herança a certos encargos, como sucede no caso de dívidas garantidas por hipoteca ou penhor1⁷

Com efeito, a lei substantiva (e também a processual, cfr. art. 744.º, n.º 1, do CPC, que concretiza processualmente o disposto no art. 2071.º, do CC1⁸) consagra a desresponsabilização do herdeiro para além das forças da herança, sendo, pois, a sua responsabilidade intra vires hereditatis, e não ultra vires, na qual não opera essa limitação de responsabilidade, respondendo pelas dívidas da herança também os bens próprios do herdeiro1⁹. Posto isto, a lei determina a separação entre o património hereditário e o património pessoal dos herdeiros2⁰ , sendo esta uma solução que protege o interesse do herdeiro (e dos respetivos credores pessoais, no caso de a herança ter um passivo superior ao seu ativo), e, outrossim, dos credores da herança (no caso de insolvência do património do herdeiro)21 .

Apesar do exposto, a realização da partilha constitui um momento marcante na efetivação da responsabilidade pelos encargos da herança.

14 Isto é assim ainda que se trate de dívida solidária (a solidariedade do devedor originário entretanto falecido não se estende aos seus herdeiros, cfr. art. 515.º, n.º 1, do CC). Cfr. v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de maio de 2022, Processo n.º 1791/04.5TBPBL-C.C1.S1 (Relatora: Maria da Graça Trigo), disponível em www.dgsi.pt.

1⁵ Cfr. SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., II, pp. 82-83.

1⁶ A vocação sucessória culmina com a atribuição do direito de aceitar ou não a sucessão. Com efeito, a aquisição da herança não se processa ipso iure, antes se baseia na manifestação de vontade do sucessível, embora com retroação dos efeitos do ato jurídico de aceitação (máxime a aquisição o domínio e posse dos bens da herança) ao momento da abertura da sucessão (arts. 2050.º, do CC). Cfr. SILVA, J. Gomes da, ob. cit., p. 72, que afirma que o Direito português segue um sistema de aditio (assim também, por exemplo, no Direito italiano) e não de aquisição ipso iure da herança. Vide também neste sentido, SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., II, pp. 5, 12 e 13. Todavia, há uma exceção: a aquisição da herança pelo Estado, como sucessor legítimo, opera de direito, sem necessidade de aceitação e sem possibilidade de repúdio (art. 2154.º, do CC).

1⁷ SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., I, p. 81, nota 213.

1⁸ O art. 744.º, n.º 1, do CPC visa processualizar o princípio da limitação da responsabilidade do herdeiro pelas dívidas da herança. Vide FREITAS, J. Lebre de, A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra, Gestlegal, 2017, p. 270.

1⁹ Vide, v.g., CORTE-REAL, C. Pamplona, Direito da Família e das Sucessões, vol. II Sucessões, Lex – Edições Jurídicas, 1993, p. 146; e SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., II, pp. 80-81.

2⁰ O Direito português afasta-se do regime tradicional dos direitos hereditários de inspiração romana ao limitar a responsabilidade do herdeiro (art. 2071.º, do CC). Como veremos, a eventual diferença entre as formas de aceitação da herança é relegada para o domínio probatório. Cfr. infra, 3.2.

21 Vide COELHO, F. M. Pereira, Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, pp. 85 e 271 a 273; LIMA, F. Pires de, e VARELA, A. Antunes, Código Civil anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, p. 124; e SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., II, pp. 77 e 78. Este último autor explicita que esta separação de patrimónios também se consolida no facto de o herdeiro conservar “em relação à herança até à sua integral liquidação e partilha, todos os direitos e obrigações que tinha para com o falecido à exceção dos que se extinguem por efeito da morte deste” (art. 2074.º, n.º 1, do CC).

11

Se a liquidação dos encargos da herança é feita antes da realização da partilha, esta apenas incidirá sobre o saldo que houver depois de pagas as dívidas da herança22. Já se a partilha for realizada sem que os direitos dos credores da herança tenham sido satisfeitos, os mesmos subsistem, e os herdeiros passam a ser responsáveis pelo pagamento das dívidas da herança, na proporção da quota que a cada um deles tenha cabido na herança (art. 2098.º, n.º 1, do CC). Este é o único critério aplicável para determinar a medida de responsabilidade dos herdeiros, não relevando qualquer outro, designadamente o valor de adjudicação dos bens23

3.2 Espécie de aceitação da herança e responsabilidade do herdeiro pelos encargos da herança

A existência de uma relação entre a espécie de aceitação da herança – aceitação a benefício de inventário e aceitação pura e simples (art. 2052.º, n.º 1, do CC) – e a responsabilidade do herdeiro pelos encargos da herança é inegável em face do disposto no art. 2071.º, do CC. Dessa norma decorre que se o herdeiro aceitou a herança pura e simplesmente, caberá ao mesmo fazer a prova de que, no acervo hereditário, não estão contidos bens de valor suficiente para pagamento da dívida (n.º 2); por sua vez, se a herança foi aceite a benefício de inventário, ocorre a inversão do ónus da prova, sendo aos credores da herança que caberá fazer a prova de que, para além dos bens descritos no inventário, a herança tem outros bens, que podem responder pela dívida (n.º 1). Ora, este regime substantivo tem enquadramento e suporte na lei adjetiva, rectius no art. 744.º, do CPC, relativo à penhora em execução movida contra herdeiro. Vejamos.

No âmbito de uma execução desse tipo, tendo a penhora recaído sobre bens próprios do herdeiro (e não sobre bens que este tenha recebido do autor da herança, como impõe o n.º 1 do art. 744.º do CPC), pode ele deduzir oposição à penhora, por simples requerimento, dirigido ao agente de execução, requerendo o levantamento dessa penhora, e indicando os bens da herança que tem em seu poder (art. 744.º, n.º 2, do CPC). Se, ouvido o exequente, este não se opuser, o agente de execução procede em conformidade com o pedido do executado (art. 744.º, n.º 2, in fine, do CPC)2⁴ .

22 Se os direitos de terceiro sobre determinados bens da herança forem de natureza remível (isto é, de natureza resgatável ou expurgável, cfr. arts. 721.º e ss., do CC) e houver na herança dinheiro suficiente, “pode qualquer dos co-herdeiros ou o cônjuge meeiro exigir que esses direitos sejam remidos antes de efetuada a partilha” (art. 2099.º, do CC). O interesse é de qualquer dos herdeiros, porque antes da partilha nenhum deles “tem um efetivo e exclusivo direito sobre os bens certos onerados e porque há um interesse legal em que o problema não passe para a partilha, evitando desigualdades reais e não procedendo às complexas, e por vezes questionadas, operações previstas no art. 2100.º”. Cfr. SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., II, p. 81, notas 212 e 213.

23 Cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de setembro de 2006, Processo n.º 365-B/1998.C1 (Relator: Artur Dias).

24 Se o herdeiro executado nada fizer, ou seja, não proceder nos termos do n.º 2 do art. 744.º, do CPC, o seu património pessoal vai responder por uma dívida da herança que, não sendo sua, lhe é alheia. Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 25 de novembro de 1998, Processo n.º 98B1008 (Relator: Dionísio Correia), disponível em www.dgsi.pt.

A oposição por simples requerimento a que se refere o art. 744.º, n.º 2, do CPC constitui o meio de reação que o herdeiro executado tem ao seu dispor contra a penhora do seu património pessoal, e não a impugnação da habilitação em recurso deduzido contra a decisão final do incidente de habilitação. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14 de dezembro de 2020, Processo n.º 3836/18.2T8CBR-B.C1 (Relator: Luís Cravo), disponível em www.dgsi.pt.

Em sentido próximo, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de janeiro de 2007, Processo n.º 9459/062 (Relator: Francisco Gagueijo), disponível em www.dgsi.pt, no qual se decidiu que a limitação da responsabilidade dos herdeiros pelos encargos para além do valor dos bens herdados, só poderá ser efetuada em sede de processo de inventário ou de processo executivo (por oposição à penhora, com a justificação de que os bens penhorados não integram o acervo da herança, nos termos do art. 827.º, do CPC – atual art. 744.º), e nunca por meio de ação que visa unicamente declarar a existência de um direito de crédito de alegado credor da herança.

12

Já se opondo o exequente ao levantamento da penhora, que é a situação mais recorrente na prática (a lei não exige que esta oposição seja fundamentada), o herdeiro, se aceitou a herança pura e simplesmente, só conseguirá eximir-se a essa penhora, obtendo o seu levantamento, se alegar e provar perante o juiz (art. 744.º, n.º 3, do CPC): “a) Que os bens penhorados não provieram da herança”; e “b) Que não recebeu da herança mais bens do que aqueles que indicou ou, se recebeu mais, que os outros foram todos aplicados em solver encargos dela”2⁵

Por sua vez, da conjugação deste preceito (art. 744.º, n.º 3, do CPC) com o art. 2071.º, n.º 1, do CC, resulta que ao herdeiro que aceitou a herança a benefício de inventário bastará alegar e provar, mediante a apresentação da certidão do respetivo processo de inventário, que os bens penhorados não pertencem à herança, e indicar os que, desta, se encontram em seu poder, havendo-os. Por sua vez, ao credor caberá o ónus da prova relativamente à existência de outros bens que não foram inventariados ou que os bens penhorados provieram efetivamente da herança.

Ficando provado que o bem penhorado não proveio da herança, o mesmo não responde pela dívida da herança, razão pela qual a penhora realizada deverá ser levantada2⁶ .

Desta forma, se é certo que quando os herdeiros não realizam a partilha da herança por meio de inventário não ficam sujeitos às incomodidades próprias do contencioso, e que a partilha amigável se realiza, em princípio, com maior celeridade e economia de custos, também o é que esta última forma de partilha não implica aceitação beneficiária, e esta, como vimos, devido a uma diferença de domínio probatório, protege mais os herdeiros perante os credores da herança do que a aceitação pura e simples2⁷. Considerando que essa proteção abrange todos os encargos da herança, também abrange os que não eram conhecidos dos herdeiros aquando da realização da partilha, mas cuja satisfação lhes pode ser exigida posteriormente (art. 2098.º, n.º 1, do CC).

Face ao exposto, verifica-se que, com a aceitação a benefício de inventário é estabelecida uma separação patrimonial perfeita entre a herança e o património pessoal do herdeiro, que assenta na declaração deste que aceita a herança, mas com reserva do direito de só receber o seu valor líquido, depois de pagos os encargos (responsabilidade cum viribus), e que, embora essa separação também exista em caso de aceitação pura e simples, a mesma é imperfeita ao ser difícil para o herdeiro demonstrar quais são os bens que integram essa massa patrimonial e afastar as agressões ao seu património pessoal por parte dos credores da herança2⁸ .

2⁵ Cfr. v.g., GONÇALVES, M. Carvalho, ob. cit., p. 359.

2⁶ Vide FREITAS, J. Lebre de, ob. cit., p. 271; e GONÇALVES, M. Carvalho, ob. cit., p. 359.

2⁷ Associando essa função de proteção ao processo de inventário, vide SÁ, D. Carvalho de, Do inventário descrever, avaliar e partir, Coimbra, Almedina, 2014, p. 25.

A função do inventário de limitar a responsabilidade do herdeiro quanto às dívidas da herança está expressamente indicada no Regulamento Europeu (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu (cfr. Considerando n.º 33).

2⁸ Cfr. DIAS, C. M. Araújo, Lições de Direito das Sucessões, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2021, p. 162; e SILVA, J. Gomes da, ob. cit., pp. 161-163.

13

No âmbito de execução movida contra herdeiro que não aceitou a herança a benefício de inventário e na qual foram penhorados bens próprios dele, se o exequente tiver deduzido oposição ao levantamento da penhora, não bastará ao herdeiro (na sua posição de executado) demonstrar que a penhora recaiu sobre bens da sua titularidade e indicar os bens da herança que tem em seu poder. Cumulativamente, terá de demonstrar que não existiam na herança valores suficientes para pagamento da dívida, fazendo prova de que não recebeu da herança mais bens do que aqueles que indicou ou, se recebeu mais, que os outros foram todos aplicados em solver encargos dela, e tendo de indicar os meios de prova logo no requerimento em que suscita o incidente (arts. 744.º, n.º 3, e 293.º, ambos do CPC)2⁹. Destarte, se o herdeiro não cumpre o ónus da prova que legalmente lhe é imposto, com a acrescida dificuldade inerente à prova do facto negativo de que não recebeu mais bens do que aqueles que indicou, a penhora que tenha incidido sobre bens próprios seus, não será levantada. Conforme explica GOMES DA SILVA, “[p]rovar que numa herança não existem valores suficientes para o cumprimento dos encargos, imagina-se uma prova difícil. A lógica leva-nos a pressupor que só é possível demonstrar esse facto negativo, se o ou os herdeiros conseguirem provar a existência de todos os bens que compõem a herança”3⁰ .

Pese embora a responsabilidade do herdeiro não seja ultra vires hereditatis, no caso de aceitação pura e simples da herança, por motivo de contingências de prova, a limitação de responsabilidade ao valor dos bens da herança pode não operar e, por conseguinte, pode aquele ter de pagar dívidas da herança com bens próprios31. A este propósito, chama-se à colação o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de novembro de 2019, proferido no Processo n.º 1418/14.7TBEVR.E1-A.S132, no qual se consignou:

- “Os autores não estão impedidos de formular um pedido contra a herança indivisa, representada por todos os herdeiros, de valor superior ao acervo hereditário, o que sucede é que os herdeiros estão salvaguardados de responder para além dos bens que constituem a herança, ou do valor dos bens herdados por cada um, se esta foi aceite a benefício de inventário. Sendo a herança aceita pura e simplesmente, a responsabilidade do herdeiro também não deve exceder o valor recebido da herança, mas, nesse caso, incumbe ao herdeiro fazer a prova de que os valores recebidos são insuficientes para cumprir o encargo, ou seja, trata-se de matéria de exceção a alegar e provar por parte do herdeiro que não teve o cuidado de exigir a partilha em benefício de inventário. Se o não fizer pode ter de satisfazer um encargo de valor superior ao valor dos bens herdados, daí que não seja ilícito pedir e obter uma condenação em valor superior às forças da herança”33

2⁹ Conforme decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 13 de julho de 2017, Processo n.º 559/10.4TBCSCC. L1-6 (Relator: António Santos), disponível em www.dgsi.pt, a este incidente é aplicável o disposto nos arts. 293.º a 295.º, do CPC (ex vi do art. 292.º, do CPC, e n.º 2 do art. 785.º, do CPC, este último por analogia), e, portanto, o executado deve indicar os meios de prova logo no requerimento em que suscite o incidente.

3⁰ SILVA, J. Gomes da, ob. cit., pp. 157-159, alude a uma prova que não é diabólica, mas impossível. Não indo tão longe, FERNANDES, L. Carvalho, Lições de Direito das Sucessões, 4.ª ed., Coimbra, Quid Iuris, 2012, p. 336, e ASCENSÃO, J. Oliveira de, ob. cit., p. 516, referem-se à dificuldade de realização da prova pelo herdeiro.

31 Cfr. neste sentido, SILVA, J. Gomes da, ob. cit., p. 159; e SOUSA, R. Capelo de, ob, cit., I, p. 77.

32 (Relator: Bernardo Domingos), disponível em www.dgsi.pt.

33 No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06 de julho de 1981, Processo n.º 069276 (Relator: Joaquim Figueiredo), disponível em www.dgsi.pt, decidiu-se que “[o] facto de se ter procedido a escritura pública em que, com a intervenção de herdeiro e de legatário, se declarou serem os bens aí descritos os únicos que constituíam a herança, não integra nenhuma das causas de inversão do ónus da prova previstas no artigo 344.º, do Código Civil”.

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3.3 Casos na jurisprudência de responsabilidade pessoal do herdeiro - aceitação pura e simples

A jurisprudência dá-nos a conhecer diversos casos de execuções movidas contra herdeiros em que estes, tendo aceitado a herança pura e simplesmente, e não com o benefício de inventário, acabaram por responder com património pessoal por dívidas da herança devido ao facto de não terem cumprido de forma plena o ónus da prova imposto pelo art. 744.º, n.º 3, do CPC:

- O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13 de julho de 2017 (Processo n.º 559/10.4TBCSC-C.L1-63⁴) decidiu revogar a decisão do tribunal de primeira instância que ordenou “o levantamento imediato das penhoras de saldos bancários titulados pelos habilitados”, uma vez que, como estes aceitaram a herança pura e simplesmente, era ónus deles alegar e provar que os bens penhorados (as quantias depositadas) não provieram da herança; não era a exequente que tinha de alegar e provar que tais quantias eram provenientes da venda pelos executados de bens móveis pertencentes à herança;

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06 de abril de 2020 (Processo n.º 7303/18.6T8LRS-A.L1-23⁵) decidiu pela improcedência da oposição à penhora realizada sobre um terço do vencimento mensal auferido por uma das executadas herdeiras do devedor, por esta não ter feito, no requerimento em que suscitou o incidente, prova de que não recebeu outros bens da herança além daqueles que indicou ou, se recebeu mais, que os outros foram todos aplicados em solver encargos dela. Da fundamentação desta decisão judicial consta ainda que “o art. 744.º do CPC foi corretamente aplicado com respeito do pressuposto de que a herdeira só responde na proporção e até ao limite da sua quota, independentemente dos concretos bens que foram penhorados”; e o

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04 de maio de 2022 (Processo n.º 8791/06.9YYPRT-E.P13⁶) no qual não foi concedido provimento ao pedido do herdeiro de levantamento da penhora sobre o prédio que recebeu em partilha da herança, pelo facto de aquele não ter aceitado a herança a benefício de inventário e, por essa razão, ter ficado onerado com o ónus da prova da insuficiência de bens da herança, não ter feito prova de que o valor desse bem, deduzido o valor dos encargos da herança já satisfeitos, é negativo3⁷ .

4. Notas finais. A respeito da aceitação da herança a benefício de inventário

A aceitação da herança a benefício de inventário, que, como já se referiu, constitui, a par da aceitação pura e simples, uma espécie de aceitação (art. 2052.º, n.º 1, do CC), faz-se requerendo inventário ou intervindo em inventário pendente (art. 2053.º, do CC), estando, pois, absolutamente dependente desse processo3⁸. Esta espécie de aceitação não se confunde, pois, com a aceitação pura e simples, que se faz sem mais, isto é, sem necessidade de requerer ou intervir em qualquer processo3⁹ .

3⁴ (Relator: António Santos), disponível em www.dgsi.pt.

3⁵ (Relator: Nelson Borges Carneiro), disponível www.dgsi.pt.

3⁶ (Relator: Paulo Duarte Teixeira), disponível em www.dgsi.pt.

3⁷ No mesmo segmento, vide os seguintes arestos: Tribunal da Relação de Guimarães, de 01 de julho de 2021, Processo n.º 997/04.1TBVVD-F.G1 (Relator: Jorge Santos); Tribunal da Relação de Évora, de 28 de outubro de 2021, Processo n.º 4029/04.1TBSTB-C.E1 (Relatora: Maria Adelaide Domingos); e TRG, de 31 de outubro de 2012, Processo n.º 2072/09.3TBVCT-B.G1 (Relator: Ramos Lopes), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

3⁸ Já o Código Civil de 1867, da autoria de Visconde de Seabra (conhecido, por isso, como Código de Seabra), seguindo o modelo sistemático do Código Civil francês (1804), estruturava o inventário como uma mera modalidade de aceitação da herança, a qual se encontrava regulada de forma pormenorizada (arts. 2044.º a 2063.º). Nesse processo, que estava sujeito a determinados prazos e formalismos, era relacionado todo o ativo e o passivo da herança, liquidava-se este por força daquele e repartia-se o remanescente, se o houvesse, atribuindo-se aos sucessores.

3⁹ Cfr. SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., II, p. 19; e FERNANDES, L. Carvalho, ob. cit., p. 275.

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O sucessível é livre de optar por uma outra espécie de aceitação, ainda que contra vontade manifestada pelo de cujus⁴⁰, podendo ser requerido inventário apenas para o efeito de aceitação beneficiária, nos termos do art. 1082.º, al. b), do CPC. Nos termos desta norma, o processo de inventário cumpre a função de “relacionar os bens que constituem o objeto da sucessão e servir de base à eventual liquidação da herança, sempre que não haja que realizar a partilha da herança”⁴1. Está em causa o chamado “inventário arrolamento”, que apresenta estreita relação com o caso em que apenas há um único herdeiro (herdeiro universal), que pretende optar pela aceitação beneficiária (cfr. art. 2103.º, do CC), mas que pode ser estendido a outros casos, na medida em que o sucessível tem de ter, em qualquer caso, o direito de opção entre as duas espécies de aceitação da herança (pode ser requerido inventário arrolamento quando existe uma pluralidade de herdeiros que pretendem diferir o momento de realização da partilha, mas aceitar a herança a benefício de inventário⁴2).

Naturalmente que o efeito da inversão do ónus da prova que surge da aceitação a benefício de inventário (art. 2071.º, do CC e 744.º, n.º 3, do CPC) só se produz se esse processo prosseguir os seus termos, e nele for obtida uma relacionação dos bens objeto da sucessão, e eventual liquidação da herança. Se tal não acontecer, por motivo de desistência da instância⁴3, deve considerar-se, dada a natureza irrevogável da aceitação (art. 2061.º, do CC), que o herdeiro aceitou a herança de forma pura e simples. Sob outro prisma, damos conta que o facto de o sucessível ter aceitado a herança pura e simplesmente não o impede de requerer inventário ou intervir em processo de inventário pendente, mas sem que, em tal caso, se possa considerar, outrossim por razão da natureza irrevogável da aceitação, que tenha aceitado a herança a benefício de inventário. Em qualquer dos referidos casos, o herdeiro obtém efeitos do processo de inventário com ressalva da inversão do ónus da prova prevista no n.º 1 do art. 2071.º do CC⁴⁴ .

Os casos em que se procede à partilha da herança por meio de inventário – função típica deste processo, enunciada no art. 1082.º, al. a), do CPC, que comummente é denominado de “inventário divisório” ⁴⁵, estão indicados no art. 2102.º, do CC.

⁴⁰ “Têm-se como não escritas as cláusulas testamentárias que, direta ou indiretamente, imponham uma ou outra espécie de aceitação” (art. 2052.º, n.º 2, do CC).

⁴1 A função de relacionação dos bens é indissociável do processo de inventário seja qual seja a finalidade do mesmo (art. 1082.º, do CPC): neste processo têm de ser relacionados os bens objeto do património em causa (arts. 1097.º, n.º 3, al. c), e 1098.º, e 1084.º, todos do CPC).

⁴2 Sobre esta questão pode ver-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 26 de maio de 2022, Processo n.º 130/21.5T8ADV.E1 (Relator: Manuel Bargado), no qual, embora com fundamento numa questão estritamente processual, se decidiu pela possibilidade de o inventário arrolamento prosseguir num caso em que existe pluralidade de herdeiros: - “A decisão proferida em processo de inventário, a admitir liminarmente o requerimento inicial apresentado para que se proceda a inventário para relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação, devidamente fundamentada, uma vez transitada em julgado, faz caso julgado formal, impedindo que posteriormente venha o tribunal a proferir nova decisão de sentido contrário”.

⁴3 Em processo de inventário não é permitida a desistência do pedido. Cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03 de novembro de 2015, Processo n.º 3845/12.5tBVIS.C1 (Relator: Falcão de Magalhães), disponível em www.dgsi.pt. No sentido de que, após a citação dos demais interessados, a desistência da instância só é possível desde que ela seja aceite por todos os demais interessados, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20 de dezembro de 2012, Processo n.º 324/05.0TBTVR.E1 (Relatora: Maria Isabel Silva), disponível em www.dsi.pt.

⁴⁴ Como ensina ASCENSÃO, J. Oliveira de, ob. cit., p. 516, “[n]ão é a existência de inventário, mas a aceitação a benefício de inventário, que o art. 2071.º/1 liga à inversão do ónus da prova”. Ainda assim, há que ter em conta a aplicação das regras do caso julgado em matéria de inventariação de bens quanto a credor que tenha intervindo noinventário. Vide SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., II, p. 19, nota 37.

⁴⁵ Vide v.g. SOUSA, R. Capelo de, ob. cit., II, p. 18; e SOUSA, M. Teixeira de (et. al.), ob. cit., p. 20.

16

De acordo com o n.º 1 desse preceito legal, “[h]avendo acordo dos interessados, a partilha é realizada nas conservatórias ou por via notarial, e, em qualquer outro caso, por meio de inventário, nos termos previstos em lei especial”. Portanto, se todos os herdeiros estão de acordo quanto ao modo como deve ser organizada a partilha da herança, e não se trata de um caso em que a lei imponha a realização da partilha por inventário, esta pode fazer-se nas conservatórias, através de procedimento simplificado de sucessão hereditária, ou por via notarial⁴⁶. Assim, não sendo possível alcançar acordo, independentemente da natureza dos bens a partilhar, a partilha terá de realizar-se por meio de inventário (art. 2102.º, n.º 2, al. a), do CC).

As alíneas b) e c) do n.º 2 do art. 2102.º, do CC indicam mais dois casos em que se tem de proceder à partilha de herança por inventário, os quais têm como desiderato a proteção de certos interessados carecidos de proteção legal.

Nos termos da alínea b) dessa norma, procede-se à partilha por meio de inventário “[q]uando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária”.

Os pais, enquanto representantes legais do menor (art. 124.º, do CC) exercem as suas competências com os limites que a lei especifica (arts. 1877.º e ss., e 1921.º e ss., todos do CC), estando os mesmos impedidos de, sem autorização judicial, aceitar herança com encargos, e convencionar partilha extrajudicial (arts. 1889.º, n.º 1, al. l), do CC)⁴⁷. No caso em que o menor é representado por um tutor (arts. 1927.º e ss.), a lei faz a mesma exigência no art. 1938.º, n.º 1, al. c), do CC, mas ainda que a herança não tenha encargos⁴⁸. Para o caso de a herança ser deferida a maior acompanhado, resulta do art. 145.º, n.º 4, do CC que a representação legal segue o regime da tutela (embora com as adaptações necessárias, e com possibilidade de o tribunal dispensar a constituição do conselho de família). Integrando a herança bens imóveis, a autorização judicial é ainda exigida pelo art. 145.º, n.º 3, do CC.

Pode o Ministério Público, ou o tribunal, consoante o caso⁴⁹, não conceder a autorização requerida para a aceitação da herança e realização extrajudicial da partilha, caso em que a partilha será realizada por meio de inventário, com aceitação beneficiária pelo menor ou maior acompanhado (e também pelos outros sucessíveis contanto que, previamente à sua intervenção no inventário, não tenham aceitado a herança)⁵⁰ .

⁴⁶ Se os bens a partilhar não exigirem essas formalidades, a partilha pode realizar-se verbalmente, atento o princípio da liberdade de forma consagrado no art. 219.º do CC. Cfr. CAMPOS, I. Menéres, Código Civil anotado, Livro V, Cristina Dias, Coord., Coimbra, Almedina, 2018, p. 127.

⁴⁷ A expressão “encargos” contida nesta norma inclui as dívidas do de cujus, autor da herança deixada ao menor. Cfr. neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26 de outubro de 1999, Processo n.º 2064/99 (Relator: Gil Roque), disponível em www.dgsi.pt. Da mesma forma, os representantes legais carecem de autorização judicial para “repudiar a herança ou legado” (art. 1889.º, n.º 1, al. j), do CC).

Se o representante legal do menor pratica o ato sem tal autorização, o mesmo pode ser anulado, a requerimento do filho, até um ano depois deste atingir a maioridade (cfr. art. 1892.º, do CC). Neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de setembro de 2017, Processo n.º 223/15.8T8CBA.L1-2 (Relatora: Ondina Carmo Alves), disponível em www.dgsi.pt.

⁴⁸ Se o tutor praticar o ato sem estar autorizado para tal, esse ato é passível de anulação (art. 1940.º, do CC).

⁴⁹ Em princípio, a competência para a decisão relativa a pedido de autorização para a prática de atos pelo representante legal ou acompanhado, quando legalmente exigida, está deferida ao Ministério Público, por força do art. 2.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 272/2001, de 13 de outubro. Porém, segundo dispõe a alínea b) do n.º 2 desse mesmo preceito legal, tal competência do Ministério Público está excetuada quando esteja em causa autorização para outorgar partilha extrajudicial e o representante legal concorra à sucessão com o seu representando, sendo necessário nomear curador especial, assim como nos casos em que o pedido de autorização seja dependente de processo de inventário ou de acompanhamento.

⁵⁰ Vide o Parecer n.º 5/2014, de 30 de junho (Diário da República n.º 123/2014, Série II de 30.6.2014), da Procuradoria Geral da República (PGR) sobre o (revogado) Regime Jurídico do Processo de Inventário (anexo à Lei n.º 23/2013, de 05 de março), no qual é dito que “[a] autorização para o representante legal do incapaz convencionar partilha «extrajudicial» deverá ser recusada se o Ministério Público considerar que a satisfação do interesse do incapaz reclama a instauração de processo de inventário”.

17

Posto isto, por um lado, a circunstância de a herança ser deferida a incapaz não implica a obrigatoriedade de aceitação a benefício de inventário, e que a partilha se realize em processo de inventário obrigatório, como resultava do Código Civil até à reforma do processo de inventário operada em 1994, através do DL n.º 227/94, de 08 de setembro⁵1; por outro, a aceitação da herança pelo incapaz (por intermédio do seu representante legal) depende da averiguação, pelo Ministério Público (ou, em certos casos, pelo tribunal), sobre se o interesse desse sucessível na herança em questão implica, ou não, que a sua aceitação seja a benefício de inventário.

De acordo com a alínea c) do n.º 2 do art. 2102.º, do CC, é obrigatória a realização da partilha em inventário “[n]os casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo”. Os casos contidos nesta norma estão relacionados com o facto de um sucessível chamado à herança se encontrar ausente em parte incerta⁵2 ou sofrer de incapacidade de facto permanente (e não de direito, caso já abrangido pela disciplina da alínea b) do n.º 2 do art. 2102.º, do CC)⁵3 .

⁵1 Na redação anterior a este diploma legal, o Código Civil determinava que, a herança deferida a menor, interdito, inabilitado ou pessoa coletiva tinha de ser aceite a benefício de inventário (art. 2053.º), e impunha a obrigatoriedade de inventário judicial sempre que fosse exigida aceitação beneficiária da herança, e também, nos casos em que algum dos herdeiros não pudesse, por motivo de ausência ou de incapacidade permanente, outorgar em partilha extrajudicial (art. 2102.º, n.º 2).

⁵2 A referência a ausência não deve ser entendida m sentido técnico, aplicando-se o preceito mesmo que não tenha sido declarada a justificação de ausência. O regime do processo de inventário confirma essa teoria: nos termos do art. 1086.º, n.º 2, do CPC, se a curadoria não estiver instituída a curadoria, ou seja, se o ausente não tiver já um curador (provisório ou definitivo), no inventário, será nomeado um curador especial para o representar, cabendo tal nomeação ao tribunal. Vide neste sentido, v.g., ASCENSÃO, J. Oliveira de, ob. cit., p. 510.

⁵3 Assim, não obstante o ensejo do referido Decreto-Lei n.º 227/94 de eliminar a figura do inventário obrigatório, a mesma não desapareceu totalmente do nosso Código Civil, ainda que já não seja usada a expressão qualificativa.

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SOUSA, M. Teixeira de Sousa, MENDES, J. de Castro, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022.

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RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL.

DA EVOLUÇÃO A QUESTÕES CONEXAS

MARIA DE BELÉM MOREIRA MACHADO

Mestre em Solicitadoria, ESTG/P.Porto

MARIA MALTA FERNANDES

Doutora em Direito, Professora Adjunta Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais ESTG/P.Porto

Resumo

Com o presente artigo pretendemos clarificar o regime da responsabilidade civil pré-contratual, nomeadamente a natureza jurídica da culpa in contrahendo e a rutura ilegítima das negociações.

Para tal, iremos debruçar-nos sobre as diversas posições doutrinais e jurisprudenciais que se manifestam sobre a temática. Como veremos ao longo da exposição, iremos constatar que a doutrina e a jurisprudência se dividem entre as teses contratuais e extracontratuais. Esta questão é de extrema importância, pois as soluções variam consoante se opte por uma via ou por outra modalidade.

Palavras-chave: responsabilidade civil; responsabilidade pré-contratual; natureza jurídica; rutura ilegítima das negociações.

Abstrat

The aim of this article is to clarify the pre-contractual civil liability regime, in particular the legal nature of culpa in contrahendo and the illegitimate breakdown of negotiations.

To this end, we will look at the various doctrinal and jurisprudential positions on the subject. As we will see in the course of this article, we will see that doctrine and case law are divided between the contractual and non-contractual theses. This is an extremely important issue, as the solutions vary depending on whether you choose one way or the other.

keywords: civil liability; pre-contractual liability; legal nature; unlawful breach of negotiations.

Introdução

Tradicionalmente o nosso sistema jurídico, acolhe dois tipos de responsabilidade civil; por um lado a responsabilidade contratual, proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos ou de negócios jurídicos unilaterais; e, por outro, a responsabilidade extracontratual, (também designada de aquiliana) a qual incide sobre a violação de direitos absolutos, ou da prática de atos que, embora lícitos causam prejuízos a outrem. Para além das modalidades de responsabilidade civil acima referidas, há que ter em atenção a fase que antecede à celebração do negócio jurídico, e aqui surge a chamada responsabilidade civil pré-contratual.

A preocupação do legislador em regulamentar este instituto deveria levá-lo a criar um capítulo novo em sede de responsabilidade civil. Essa omissão, deu origem à controvérsia em torno da natureza daquele tipo de responsabilidade, inserindo-a, dogmaticamente, quer na responsabilidade contratual, quer na responsabilidade extracontratual ou ainda, apelidando-a de “tertium genus”.

A responsabilidade pré-contratual, prevista no artigo 227º do Código Civil, é a obrigação de uma das partes indemnizar a outra, caso aquela não respeite as exigências impostas pela boa-fé, ou seja, é a responsabilidade civil por danos decorrentes de atos ou omissões verificadas no período que antecede à celebração do contrato.

Sob a epigrafe “culpa na formação dos contratos”, o ordenamento jurídico português prevê no preceito legal acima referido que “quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”, reconhecendo com este normativo a proteção da confiança manifestada pelos contraentes na realização das negociações com vista à celebração dos contratos.

02 BENS A PENHORAR EM EXECUÇÃO MOVIDA CONTRA HERDEIRO: ENTRE O DIREITO MATERIAL E O PROCESSO
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Enquadramento

O problema que se levanta à primeira vista é o de indagar se o sujeito jurídico, tendo a liberdade de celebrar um contrato com quem lhes aprouver, terá, ou não, a liberdade de romper com as negociações na fase que antecede à celebração do contrato.

Tomando como ponto de partida o princípio da liberdade contratual, princípio basilar do direito civil e corolário do princípio da autonomia privada do sujeito jurídico, segundo o qual as partes dentro dos limites da lei, têm a faculdade de fixar, de acordo com a sua vontade, o conteúdo dos contratos que realizarem, celebrarem contratos diferentes dos previstos no código civil ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver1, a questão que aqui se impõe prende-se com a aplicabilidade do princípio da liberdade contratual à responsabilidade civil pré-contratual.

Em confronto, estão dois tipos de interesses; por um lado, a liberdade contratual que decorre da autonomia da vontade na qual se integra aquele princípio, e por outro lado, a proteção da confiança perante as expectativas criadas durante a fase pré-contratual.

De facto, o princípio da liberdade contratual não pode, numa fase pré-contratual, ser entendido em termos tão latos que legitime uma qualquer conduta das partes, durante as negociações, uma vez que estas deverão estar sempre orientadas pelo dever da boa-fé. Atendamos à questão apontada por EVA SILVA, quando refere, “Como não defender a liberdade de os contraentes ao romperem as negociações se ainda não concluíram qualquer contrato?”2 .

O art. 227º do CC propõe-se tutelar esta problemática ao considerar que há uma relação obrigacional nascida nos preliminares do contrato e integrada por deveres de conduta fundados na boa-fé, cuja violação faz incorrer a contraparte na obrigação de indemnizar pelos danos causados à parte lesada que viu a sua esfera jurídica prejudicada.

Com isto, a presente norma contém uma verdadeira tensão entre o princípio da autonomia privada / liberdade contratual e o princípio da boa-fé3. O que é o mesmo que dizer que a culpa na formação dos contratos reflete uma verdadeira exceção ao art. 405º do CC, na medida em que o legislador procurou colocar um entrave na liberdade de romper as negociações (imposta aqui como uma vertente negativa da liberdade contratual - conhecida como uma ideia “freedom from contract” tendo em vista a celebração de um negócio, de uma forma a salvaguardar os legítimos interesses e expectativas criadas na contraparte⁴ .

Já o princípio da boa-fé, elemento essencial daquele preceito normativo, é aquele que confere à ordem jurídica uma certa justiça e equidade, ou seja, aquele que confere aos cidadãos o dever moral e ético-jurídico. No Direito, tal princípio apresenta um papel importante, tendo um grande impacto no âmbito dos contratos. Deste modo, impõe-se que os outorgantes, intervenientes num contrato, atuem de modo honesto, correto e leal, e que se comportem de modo a não frustrar a posição da contraparte, assumindo assim um padrão normativo de conduta que regula toda a relação contratual desde o seu surgimento até à sua extinção.

Digamos que o princípio da boa-fé, está patente antes da celebração do contrato, ocorrendo nos seus preliminares (fase negociatória) e na sua formação (fase decisória) tal como o determina o art. 227º, nº 1 CC e mantendo-se na sua celebração e conclusão (art. 762º, nº2 CC e art.239º CC).

1 De outro modo, as partes são livres, ao contratar, na medida em que podem seguir a sua vontade, sem estarem obrigadas a seguir rigorosamente a lei. VARELA, João de Matos Antunes; Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2004, p.231.

2 SILVA, Eva Sónia Moreira da; A responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação e os Vícios da Vontade, Almedina, 2010, p. 19.

3 PRATA, Federico Afonso Cavaleiro; Responsabilidade Pré contratual por rutura Ilegítima das negociações, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p.24, Dissertação de Mestrado, na Área de Especialização em Ciências Jurídico -Civilísticas com Menção em Direito Civil. Disponível online em: Responsabilidade pre-contratual por ruptura.pdf (uc.pt).

⁴ ALMEIDA, Carlos Ferreira; Contratos I- Conceito. Fontes. Obrigações, 5º Ed., Almedina, 2013, p.206.

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A propósito deste princípio, o Supremo Tribunal de Justiça⁵ refere em acórdão de 6 de dezembro de 2016: “a boa-fé consiste, em geral, no comportamento honesto e consciencioso, na lealdade de se conduzir e tem, no caso do art. 227º do CC, um sentido vincadamente ético, ao contrário do que sucede em muitos outros casos em que o seu significado ético se esgota numa situação psicológica muito simples e fácil de definir”.

Ora, a concretização do princípio da boa-fé é, nada mais nada menos, que a seriedade e honestidade de atuação de cada individuo na ordem jurídica.

Segundo EVA SILVA⁶, o âmbito de proteção do art. 227º CC não se fica pela fase de negociações do contrato, incluindo também a fase decisória, correspondente “ao momento decisivo da conclusão de um contrato, abrangendo, por conseguinte, a fase crucial da redação final das cláusulas do contrato”.

No caso, aplicar-se- á independentemente de ter gerado contrato ou não, de ser válido ou inválido, o importante aqui é que se verifique que na negociação se tenha violado o princípio da boa-fé e, deste modo, tenha provocado danos à contraparte.

A culpa in contrahendo tem como fundamento jurídico, tão-somente a violação de um dever imposto pela boa-fé, sendo que nas palavras de ALMEIDA COSTA⁷ tal violação surgiu “em virtude de ter sido criado entre as partes negociadoras uma vinculação jurídica especial, de acordo com o qual cada um deve comportar-se segundo é de esperar de um honrado participante no negócio jurídico”.

Poderá o princípio da responsabilidade civil pré-contratual estar alicerçado na tutela da confiança?

Na medida em que existem expetativas relativamente ao comportamento do outro na sua atuação negocial, crendo assim que este não o vai prejudicar com os seus atos, podemos dizer que de certo modo, o princípio da boa-fé tem semelhanças com o princípio da confiança. Segundo BATISTA MACHADO, este último é “um princípio ético jurídico fundamentalíssimo e a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legitima baseada na conduta de outrem “⁸ .

Essa perspetiva permite-nos deduzir que o princípio da boa-fé se reflete nas linhas orientadoras do princípio da confiança, já que tem em vista tutelar as legitimas expectativas dos contraentes.

A maioria da doutrina portuguesa⁹ prossegue o entendimento de que a tutela da confiança pressupõe a verificação de quatro requisitos: uma situação de confiança traduzida na boa fé da pessoa que acredita na conduta de outro sujeito; uma justificação para essa confiança, sem desmerecer os deveres razoáveis da boa fé; um investimento de confiança na contraparte consistentes em, que a outra parte está com o mesmo objetivo de negociar; e uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante.

Salienta-se aqui a confiança na conclusão do contrato, visto que a mesma deve ser consolidada em dados concretos e inequívocos, analisados mediante critérios de consciência e senso comum ou prática corrente.

⁵ Ac. STJ, de 6 de dezembro de 2018. Proc. nº 3407/15.5T8BRG.G1.S2.Relator: Ilídio Sacarrão Martins, Disponível para consulta em: http://www.dgsi.pt

⁶ SILVA, Eva Sónia Moreira da; A responsabilidade pré contratual por violação de deveres de informação, Almedina, Coimbra,2010, p.30.

⁷ COSTA, Mário Júlio Almeida; A responsabilidade pré contratual pela rutura das negociações preparatórias de um contrato, Coimbra Editora, 1984, RLJ ano 116º, p.152.

⁸ DIAMVUTU, Lino; A tutela da confiança nas negociações pré-contratuais, op. cit.p.3.

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Para além dos fatores referenciados sobre a tutela da confiança, CARNEIRO FRADA1⁰ diante a questão do enquadramento da responsabilidade pela confiança na responsabilidade civil tradicional, defende a existência de um tertium genus. Segundo o Autor, a proteção da confiança seria um terceiro gênero de responsabilidade civil, autônoma em relação às duas modalidades tradicionais de responsabilidade.

Na terceira via, estariam incluídos fenômenos de responsabilidade por deveres não delituais ou não contratuais, tais como a responsabilidade por informação ou por violação de deveres de proteção (deveres específicos). Além disso, a responsabilidade pela frustração da confiança seria independente daquela advinda do descumprimento dos deveres laterais de conduta ligados à boa-fé11 .

Estará o princípio da boa-fé inerente a deveres pré-contratuais?

Ao analisarmos o art. 227º, nº 1 CC, verificamos que o mesmo não refere quais os deveres que lhe estão inerentes, referindo apenas “…proceder segundo as regras da boa-fé…”.

Da letra da lei não resulta, pois, evidente quais os deveres que devem ser obedecidos, para que a parte que não cumpra o princípio da boa-fé seja responsabilizado. Assim sendo, a boa-fé exerce o fundamento primordial dos deveres anexos à prestação principal, isto é, impõem deveres que não estão consagrados num contrato propriamente dito, mas que devem ser regidos pela boa prática dos deveres de lealdade, proteção e informação e esclarecimento.

O dever pré-contratual de informação corresponde a ideia de que a parte que negoceia deve prestar à contraparte informações e esclarecimentos, corretos e suficientes, para um bom funcionamento do negócio, de forma que o mesmo leve as partes a decidirem contratar.

Nas palavras de MENEZES CORDEIRO12 os deveres de informação devem abranger as prestações das partes que tanto podem ser violadas por ação, através de indicações inexatas, como por omissão, isto é, pelo silêncio face a elementos que a contraparte tinha interesse objetivo de conhecer.

Também SINDE MONTEIRO13 refere que o dever de informar termina no ponto em que uma parte não tem de se preocupar com os interesses da outra, por conseguinte, com respeito a circunstâncias que caiam inequivocamente na esfera do risco.

Deste modo, a obrigação de informar existe sempre que a informação de que a parte dispõe se reporta a um dado fundamental para a esclarecida formação da vontade negocial da contraparte, e sempre que aquela, agindo por sua exclusiva iniciativa, não possa aceder à informação diretamente.

Em suma, os deveres de lealdade1⁴ assumem um papel importante na relação pré-contratual entre as partes, na medida em que vinculam as mesmas a não assumirem comportamentos que se desviem de uma negociação correta e honesta.

⁹ VASCONCELOS, Pedro Pais de; Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 3º Ed, 2005, p. 21; CORDEIRO, António Menezes; Tratado de Direito Civil Português, Parte geral I, 2º Ed, Almedina, Coimbra, 200, pp.235 e ss.

1⁰ FRADA, Manuel Carneiro da; Uma “terceira via” no direito da responsabilidade civil? Coimbra, Almedina, 2007, p.95

11 FERREIRA, Patrícia Cândido Alves; O princípio da confiança: proteção e tópica jurisprudencial dos contratos de saúde suplementar, Revista de Direito Civil Contemporâneo | vol. 2/2015, p.4.

12 CORDEIRO, António Menezes; Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3º Ed., Coimbra, 2015, pp. 508 e ss.

13 MONTEIRO, Sinde; Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Op. Cit., p.363.

1⁴ Porém, este dever de lealdade não pode ir de encontro à liberdade de contratar, ou seja, o referido dever não obriga às partes a concluírem as negociações, pois estas têm a liberdade de romperem as negociações quando assim entenderem, resguardando-se, no entanto, o direito da outra parte ser indemnizada pelos prejuízos causados por esta rutura.

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De salientar que uma rutura das negociações para formação de um contrato é, em princípio, licita, só não o sendo, se criada por uma das partes durante todos os trâmites das negociações contratuais uma expectativa justificada de conclusão, prorrogação ou renovação de um contrato, a outra parte frustrar essas expectativas de tal forma que sejam consideradas desleais1⁵ .

Assim sendo, a boa-fé nas negociações preliminares exige que as partes, no espaço da liberdade que lhes é permitido, informem todos os aspetos relevantes para as negociações e que não assumam atitudes contrárias aos objetivos primordiais da ordem privada que, mesmo aí, mantêm sempre a sua aplicação.

A culpa na formação dos contratos reporta-se às negociações em si, funcionando com independência face ao futuro contrato, ou seja, sem consideração pelo facto de se ter obtido um contrato válido, um contrato nulo ou anulável ou nenhum deles.

Natureza jurídica da Responsabilidade Civil Pré-Contratual

No que diz respeito a natureza jurídica da responsabilidade civil pré-contratual cuja essência reside no princípio da boa-fé e sendo certo que a convocação do instituto comporta a eventual violação deste imperioso princípio, é importante perceber se haveremos de reconduzir aquele a uma responsabilidade civil contratual ou extracontratual, ou até mesmo podemos divergir entre ambas e seguir outras vias, para conseguirmos apurar o seu enquadramento dogmático.

Da teoria contratual à teoria extracontratual

Reportamos a responsabilidade civil contratual como sendo aquela que tem origem na violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico, isto é, na responsabilidade do devedor para com o credor pelo não cumprimento da obrigação1⁶ .

Durante um período considerável a doutrina maioritária veio seguindo o entendimento que a responsabilidade pré-contratual tinha uma natureza obrigacional e, por conseguinte, sujeita às regras da responsabilidade contratual. Os argumentos apresentados, eram os mais diversos, entre os quais passaremos a enunciar três posições doutrinárias.

Assim, nas palavras de ANTUNES VARELA1⁷ apesar de não haver ainda nenhum vínculo contratual entre os sujeitos jurídicos que iniciam as negociações para realização de um contrato, a verdade é que a ligação existente entre eles está muito mais próxima de uma relação contratual do que aquela que se cria entre o titular de um direito absoluto e o autor da violação ilícita deste.

Por sua vez MOTA PINTO e MENEZES1⁸ caracterizam a relação pré-contratual como sendo uma relação obrigacional de fonte legal sem deveres primários de prestação.

Segundo este Autores, na fase pré-contratual, as partes não assumiram ainda obrigações uma para com a outra, dado que tais vinculações aparecerão apenas a título eventual, com a celebração do contrato. Elas encontram-se adstritas a um comportamento diligente, correto e leal uma para com a outra, sob pena de terem de ressarcir os danos causados a parte lesada através da indemnização1⁹ .

1⁵ ALMEIDA, Carlos Ferreira; Contratos I- Conceito. Fontes. Obrigações, Op. Cit., p.206.

1⁶ LEITÃO, Luis Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Vol.I, 15ª Ed., Almedina, 2021, p.350.

1⁷ VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em geral, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2004, p.272.

1⁸ Com o mesmo entendimento, CORDEIRO, António Menezes, Da Boa Fé no Direito Civil, Coleção Teses, Almedina, 2013, p.585 “…culpa in contrahendo tem uma natureza obrigacional, por violação de deveres especificos de comportamento baseados na boa fé. O que, em termos de direito substantivo, revela, no essencial, em que, demonstrada a violação, presume-se à culpa da parte faltosa, nos termos do art. 799º, nº 1 do CC”.

1⁹ DIAMVUTU, Lino, A tutela da confiança nas negociações pré-contratuais, Dissertação, Lisboa,2011, p.29.

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O entendimento de GALVÃO TELLES22⁰ vai ao encontro das posições acima referenciadas dando ênfase ao facto da culpa in contrahendo supor a infração de uma verdadeira obrigação, isto é, a obrigação de contratar bem, de agir nos preliminares e na formação do contrato por modo que este nasça isento de qualquer deficiência com o objetivo final de uma possível concretização contratual.

Todavia, há quem defenda que a responsabilidade pré-contratual, é um preceito normativo refletido na responsabilidade civil extracontratual.

Tal é posição defendida por ALMEIDA COSTA21 e espelhada em diversas decisões dos tribunais portugueses, onde se enunciam as razões para tal enquadramento. De facto, o nº 2 do art. 227º CC parece apontar para uma responsabilidade aquiliana, desde logo pela remissão explícita do art. 498º do CC no que diz respeito ao prazo prescricional da responsabilidade22

Ora, os argumentos expostos, levam-nos a concluir que aplicação da responsabilidade pré-contratual no âmbito da responsabilidade aquiliana seria mais pertinente para o interesse dos conflituantes.

No entanto, já podemos tomar uma posição a este respeito. Desde logo, o legislador ao consagrar no n.º 2 do art. 227º do CC o prazo prescricional estaria a mandar aplicar o regime da responsabilidade extracontratual à culpa in contrahendo, mas só nesse ponto, pelo mesmo modo que o legislador impôs a mesma norma legal o regime da responsabilidade civil extracontratual.

Alguns dos argumentos a favor deste entendimento afirmam que esta norma é um afloramento de uma diretiva geral, o que não nos parece ser um argumento lógico que possa ser aceite na medida em que leva a considerar a subalínea em causa bastante inequívoca; de facto, tanto pode significar um afloramento a uma diretiva geral como pode significar que o legislador presumiu a natureza obrigacional da responsabilidade pré-contratual consagrando aqui uma exceção em matéria de prescrição por entender que o regime da responsabilidade civil extracontratual seria o mais adequado para diferentes casos.

2⁰ TELLES, Inocêncio Galvão, Manual do Contratos em Geral, 3º Ed. Lisboa, Coimbra Editora, p.147.

21 COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, Almedina, 2009, pg.109.

22 Esse mesmo sentido é visivel na decisão de 3/03/2010 do Tribunal da Relação de Évora ao referir, “Desde logo, o n.º 2, do artigo 227.º, do Código Civil, parece apontar para a responsabilidade aquiliana pois em matéria de prazo prescricional optou pela aplicação do artigo 498.º, do Código Civil, que é uma norma própria da responsabilidade extracontratual. Acresce que os casos que referimos como típicos da responsabilidade pré - contratual não implicam sequer que chegue a existir um contrato [rutura de negociações preparatórias] ou, existindo contrato, estão para além dele [danos indemnizáveis surgidos na negociação de contrato válido e eficaz]. Para além disso, o evento danoso ocorre necessariamente num momento em que ainda não existe contrato. Por outro lado, em matéria de culpa, atenta a natureza deste tipo de responsabilidade, é preferível que a culpa não se presuma e antes tenha que ser demonstrada pois estamos perante uma limitação da autonomia da vontade e seria excessivo exigir a quem a exerce que demonstre que não agiu de forma culposa (…)”. Acordão do Tribunal da Relação de Évora, de 03 de março de 2010 (proc. nº 44/07. 1TBGDL.E1), Relator: Bernardo Domingues; Disponivel em: http://www.dgsi.pt.

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Teoria da “terceira via” no direito da responsabilidade civil

Face às discordâncias entre teorias e autores, é imposta outra via da responsabilidade civil, também designada “terceira via” da responsabilidade civil pré-contratual. De facto, não tendo sido possível estabelecer um elo coeso na summa divisio da responsabilidade civil, ou seja, uma conexão unânime entre as duas modalidades tradicionais de responsabilidade, uma parte da doutrina tem vindo a encarar a possibilidade de uma “terceira via”.

CARNEIRO DA FRADA23 mostrando-se favorável a esta tese, tem insistido em que a dicotomia clássica entre a responsabilidade contratual e a delitual não esgota o universo do direito da imputação dos danos, pelo que uma “terceira via” da responsabilidade civil seria uma forma de responsabilidade intermédia, situada entre dois polos: o contrato e o delito.

Um aspeto importante, no qual devemos tomar nota, para o enquadramento da teoria da “terceira via” da responsabilidade civil, é o facto de utilizarmos certos requisitos da responsabilidade por deveres não delituais e contratuais, tais como a responsabilidade por informação, esclarecimento ou por violação de deveres de proteção, deveres esses específicos.

entanto temos o reverso da moeda, ou seja, os opositores defendem que se trata de uma responsabilidade sem regulamentação que estabelece um regime distinto do da violação de uma relação obrigacional ou do da violação de deveres genéricos2⁴ .

OLIVEIRA DE ASCENSÃO2⁵ é um dos Autores que critica a teoria de uma “terceira via” da responsabilidade civil, alegando que a aprovação de uma responsabilidade sem ilícito contraria gravemente todas as normas do sistema jurídico português.

Por outro lado, SINDE MONTEIRO defende a teoria de uma terceira via para a responsabilidade pré-contratual, argumentando que esta se situa entre o contrato e o delito, não tendo o intérprete de aplicar em exclusivo as regras de um tipo de responsabilidade ou reger-se sempre pelas mesmas regras. No entanto, ressalva o Autor, há que ter em conta as especificidades de cada situação2⁶ .

Relativamente a rutura das negociações, FREDERICO PRATA, opta pela terceira via da culpa in contrahendo, mas aproximando-se do regime da responsabilidade extracontratual. Quanto a este regime aplicar-se-ia o respetivo art. 227º e 334º do CC, uma vez que quem rompe com as negociações sem justa causa, está a exercer abusivamente um direito que lhe é concebido pela liberdade contratual2⁷ .

23 FRADA, Manuel Carneiro da; Uma “Terceira via” no direito da responsabilidade civil?, Coimbra, Almedina, 2007, p.758.

2⁴ Ibidem, p.759.

2⁵ ASCENÇÃO, José Oliveira, Direito Civil Teoria Geral, Vol.II, 2ª Ed. Coimbra Editora, 2003, p.398

2⁶ MENDES, Pedro Pimenta; Natureza Jurídica da responsabilidade Pré-contratual, Revista de Direito da Responsabilidade, 2019. Disponivel online em: 2019 – Revista de Direito da Responsabilidade (revistadireitoresponsabilidade.pt), p.890.

2⁷ Ibidem.

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Incumprimento por rutura ilegítima das negociações

À semelhança das modalidades tradicionais de responsabilidade civil, também a responsabilidade civil pré-contratual exige a verificação de pressupostos para que dela surja a obrigação de indemnizar.

Como já antecipamos, a partir do momento que se iniciam as negociações, as partes outorgantes ficam desde logo vinculadas ao princípio da boa-fé e apesar de ainda não existir entre elas, antes da celebração do contrato, nenhum dever principal de prestação, devem ter presente que desde o momento em que tais negociações se iniciam, e se mantêm, devem respeitar certos deveres, orientados por aquele imperioso princípio, sob pena de responderem pelos danos causados à outra parte caso haja violação de tais deveres.

Efetivamente, a culpa in contrahendo é concebida dogmaticamente como uma relação obrigacional sem deveres principais de prestação, uma vez que estes só surgem com a celebração do contrato, surgindo, pois, a ilicitude, quando ocorre a violação dos deveres de conduta impostos pelo princípio da boa-fé, designadamente, os deveres de lealdade, de esclarecimento e informação.

A ilicitude, implica ainda, a existência de uma confiança justificada na celebração do contrato por uma das partes outorgantes, sendo que neste caso o critério utilizado para aferir da violação dessa confiança se baseia unicamente no princípio da boa-fé em sentido objetivo.

Contudo, como nada impede que nesta fase as partes outorgantes possam desistir do contrato e sendo certo que a responsabilidade civil só opera quando temos uma conduta contrária à boa-fé, pode ser difícil detetar se existe ou não confiança justificada e consequentemente a sua violação. Digamos que, estaremos na presença de uma zona cinzenta a qual exige que se lance mão de um critério orientador para aferir se a conduta de uma parte outorgante é ou não ofensiva do princípio da boa-fé, critério esse que passará obrigatoriamente pela averiguação da violação, ou não violação, dos deveres de lealdade, integridade ou confiança legitima e justificada da outra parte na celebração do contrato.

Na responsabilidade civil aqui em análise, o pressuposto da culpa, traduzida no juízo de censura atribuído ao agente e atinente ao caso específico da rutura ilegítima das negociações está intimamente ligada à ilicitude por violação dos deveres de conduta que deveriam ter sido adotados de acordo com o princípio da boa-fé2⁸

No que diz respeito ao dano, este pode corresponder à mera violação de deveres de informação e esclarecimento mas também pode corresponder a um conjunto de despesas que foram surgindo ao longo do processo negocial e que foram realizadas tendo em vista a conclusão do negócio, sendo decorrentes da rutura das negociações, onde se incluem também os lucros que poderiam ter sido usufruídos se não tivesse ocorrido a situação de rutura.

Ora, à semelhança das modalidades tradicionais de responsabilidade civil, também a ocorrência de danos, dos do tipo acima referidos, ocorrendo, pois, em contexto de responsabilidade civil pré-contratual dará lugar à obrigação de indemnizar.

É neste ponto, que se coloca a questão: serão todos os danos, ocorridos em contexto de processo negocial, com vista à conclusão do negócio, processo aquele que venha a revelar-se frustrado, passíveis de indemnização, ou apenas alguns deles? Esse danos podem ser ressarcidos através dos mecanismos do interesse contratual positivo e do interesse contratual negativo2⁹ a que adiante nos referiremos.

2⁸ De uma forma generalista a culpa é um juízo de censura dirigido à pessoa de quem age (ou à pessoa de quem omite), por ter agido contra o direito quando podia e devia ter agido conforme o direito.

2⁹PINTO, Paulo Mota, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II, Coimbra Editora, 2008, p.1321.

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Efeitos da rutura ilegítima das negociações

A rutura ilegítima das negociações abordada situações em que a fase decisória é precedida por uma fase de negociações bastante longa e complexa.

Essas negociações englobam diligências, estudos, avanções e recuos, ou seja, é a fase antes da celebração do contrato onde existe negociações.

Antes de chegarmos a perfeição do contrato, há todo um processo que pode envolver vários e sucessivos trâmites, nomeadamente, estudos, reuniões e experiências.

No entanto, durante a formação do contrato é lícito as partes interromperem as negociações em causa sem incorrerem em nenhuma obrigação de indemnizar. Visto que, por natureza as obrigações não são vinculativas e as partes podem muito bem modificar o que já tenham afirmado, através de novas situações vantajosas para a celebração do contrato ou até mesmo já não demostrarem interesse na conclusão do negócio em causa.

Desde logo, deve-se respeitar a autonomia privada, ou seja, não é exigível à parte que interrompeu as negociações revele o motivo exato e que o motivo seja justo. Para isso, será necessário respeitar o princípio basilar da autonomia privada, consubstanciada na liberdade contratual na sua faceta negativa. Isto é, uma solução contrária representaria grandes prejuízos para o comércio jurídico, visto que ninguém entraria em negociações antes de se assegurar o bom termo das mesmas, com receio das consequências de uma eventual desistência.

O instituto da responsabilidade pré-contratual na modalidade da rutura das negociações, tem como finalidade o princípio da autonomia privada, traduzindo nos contratos uma liberdade contratual negativa de as partes celebrarem contratos, no entanto este princípio não é limitado, desde logo, a sua aplicação vai sofrer restrições, em certos casos a interrupção das negociações, o princípio da boa fé, consubstanciado no instituto da responsabilidade pré-contratual, pode constituir uma limitação a liberdade contratual.

Nestes casos será aplicado o princípio da boa-fé, de modo a perspetivar o comportamento das partes. Tomamos como exemplo na formação do contrato através dos deveres de esclarecimento, lealdade, deveres associados aos comportamentos das partes.

Podendo nesta fase, surgir uma dificuldade em discernir o momento em que há lugar a responsabilidade na interrupção das negociações, isto é, o percurso das negociações. A solução que se deve adotar é estabelecer um equilíbrio entre a manifestação e a liberdade contratual e a proteção da boa-fé, manifestada na confiança legitima e nas expectativas geradas de uma das partes na honestidade da condução das negociações pela outra parte.

O que se equaciona é nada mais do que termos de um lado um sujeito que afirma a liberdade contratual e do outro as relativas expectativas, para que em harmonia se forme um equilíbrio entre os dois lados.

No entanto, se estivermos perante a não celebração do contrato definitivo, pelo simples facto de uma das partes ter terminado as negociações imediatamente antes da efetivação do mesmo.

A questão que se levanta é saber se a mesma poderá ser responsabilizada? Ora, para que tal aconteça, torna-se necessário a verificação de certos requisitos que passaremos a esclarecer de seguida. Primeiramente, é necessário que existam efetivas negociações, e que estas tenham permitido ao contraente formar uma razoável confiança na celebração do negócio. Em seguida é preciso que se verifique uma rutura ilegítima das negociações.

30

No que concerne ao primeiro requisito, é de salientar que as verdadeiras negociações a que foi feita referência se caracterizam como uma atividade comum aos contraentes destinada a análise e elaboração do início de negócio. Por outras palavras, para haver negócio, terá de se ter formado uma confiança, e para que a mesma se considere legitima terá por base dados concretos e objetivos. Ou seja, a confiança de que se tem vindo a falar é, nada mais nada menos que uma confiança recíproca de cada uma das partes em que a outra proceda de forma leal e séria, com rumo à conclusão do negócio. Para que a confiança seja tutela pelo direito será necessário que a mesma seja motivada, o que implica uma avaliação casuística objetiva3⁰ .

Quando estamos perante tal situação, em que uma das partes tenha depositado uma confiança objetiva na celebração do negócio, alicerçada nas negociações que já decorriam e no processo conduzido, essa confiança que até agora viemos a fazer referência pode estar vinculada ao incumprimento da contraparte, através da violação dos deveres provenientes da boa fé, nomeadamente: a violação do dever de exprimir com clareza e de evitar uma falsa interpretação do seu comportamento pela outra parte; a violação do dever de informação, na medida em que uma das partes deva saber do facto que possa conduzir ao abortamento das negociações; não serem iniciadas ou prosseguidas as negociações de antemão destinadas ao seu cumprimento, criando assim, expectativas à contraparte suscetíveis de causar prejuízos.

Por sua vez, respeitante ao segundo requisito, nomeadamente, da rutura ilegítima das negociações, a conclusão que se retira deste pressuposto é a ligação entre a confiança de um dos contraentes e a eventual justa causa da rutura das negociações por parte da contraparte. Sendo dois aspetos distintos de grande controvérsia.

Se, estivermos perante o encetamento de negociações tendentes à celebração de um negócio, geradoras de confiança objetiva e legitima do contraente na efetivação do mesmo, só não haverá responsabilização se, porventura, se tratar de uma rutura de negociações legitima31 .

ALMEIDA COSTA32 dá-nos conta de alguns exemplos de situações, que podem gerar responsabilização por parte de quem desrespeita a esfera jurídica da parte lesada: i) As negociações iniciadas com o propósito vincado de rutura, ou quando essa rutura teve como consequência danos à contraparte; ii) O autor da rutura não necessita de justificar a causa da rutura, no entanto, se os motivos forem falsos e dessa justificação resultarem danos para parte que neles confiou, poderá surgir a obrigação de indemnizar; iii) Na responsabilidade pré contratual, não configura nenhuma regra que referira que não possa negociar com mais que uma parte, como também não exige que se dê consentimento de que se negoceia com outrem, uma vez que as partes deverão assumir os riscos normais das negociações, por exemplo preferirem negociar com um terceiro alheio ao negócio.

Numa eventual hipótese de as negociações envolver um terceiro e envolverem um risco anormal para as negociações, aqui deve ser advertido o risco.

O quantum indemnizatório

Como já antecipamos, para que em sede de responsabilidade pré contratual emerja a obrigação de indemnizar, é necessário para além da produção de danos e da existência dos demais pressupostos da responsabilidade civil, tenham ocorrido efetivamente negociações conduzidas de tal forma que tenham gerado uma confiança razoável na conclusão de um contrato válido e a subsequente rutura das referidas negociações, de forma arbitrária ou ilegítima, sem motivo justificativo.

3⁰ OLIVEIRA, Nuno Teodósio; MANSO, Luís Duarte; Direito das Obrigações- Casos práticos resolvidos, 6º Ed, Quid Juris, 2010, pp. 143 ss.

31 Ibidem, p.144.

32 COSTA, Mário Júlio de Almeida; Responsabilidade civil pela rutura das negociações preparatórias de um contrato, Separata da Revista de Legislação e de Jurisprudência. Coimbra Editora. Coimbra. 1984, pp.80 e ss.

31

Referimos que os danos decorrentes de uma eventual negociação inútil podem ser ressarcidos através de dois mecanismos, sendo eles o interesse contratual positivo e o interesse contratual negativo.

Em termos gerais, diz-se interesse contratual negativo quando se visa colocar a parte lesada na mesma situação em que estaria se o contrato não tivesse sido realizado33, enquanto se fala em interesse contratual positivo quando se pretende colocar o ofendido/ credor na situação em que estaria se o negócio tivesse sido efetivamente cumprido.

Aqui, não haveria lugar ao ressarcimento das despesas feitas inicialmente pelo credor para a concretização do negócio, como forma de reverter o prejuízo sofrido por ele em consequência da frustração pelo adimplemento contratual. Destarte, se estivermos perante danos resultantes da culpa in contrahendo, em princípio, a indemnização refere-se ao interesse negativo, isto é, a reparação reporta-se aos danos resultantes de ter existindo confiança na validade do contrato, danos estes que são os que não teria sofrido se não tivesse confiado na realização do contrato. No entanto, se a culpa estiver na violação de um dever de conclusão de um contrato, é de indemnizar o interesse positivo, ou seja, o interesse no cumprimento.

Através do instituto da responsabilidade civil pré-contratual, o nosso ordenamento jurídico tutela a legítima confiança de cada uma das partes em que a outra conduza as negociações segundo os ditames da boa-fé, abarcando não só as legítimas expetativas quanto à validade e eficácia do negócio, mas também quanto à sua conclusão.

O entendimento doutrinário, tradicional e maioritário tem configurado o dano ligado à responsabilidade pré-contratual (culpa in contrahendo), caracterizado pela rutura das negociações, como suscetível de justificar uma indemnização que apenas visa colocar o lesado na situação em que estaria se não tivesse acreditado, sem culpa, na boa-fé ou atuação correta da outra parte, indemnizando, pois, o dano negativo ou de confiança.

Ora, o princípio da mera indemnização do interesse contratual negativo, decorrente da responsabilidade pré-contratual vem sendo posto em causa pela doutrina em situações limite nas quais se suscita a questão da violação do «dever jurídico de conclusão» do negócio, entendimento este que tem vindo a encontrar acolhimento na jurisprudência33⁴

A este propósito MOURA VICENTE3⁵ refere-nos estarmos perante uma designação imprópria de “interesse negativo ou dano de confiança”, uma vez que tal como se deduz da doutrina de CANARIS a responsabilidade pela confiança possui um carater bifrontal, já que o interesse positivo também se funda na lesão da confiança sendo por isso configurável um dano de confiança positivo e um dano negativo.

33 Por exemplo, deve-se ressarcir a parte lesada dos gastos realizados para a elaboração do negócio, como as despesas com o transporte, com envios de mercadorias entre outros e, até mesmo o que ele deixou de auferir em não ter efetuado, à época, outro negócio. PINTO, Paulo Mota; Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II, Coimbra Editora, 2008, p.618.

3⁴ Ac. do TRP, de 26 de junho de 2018, Proc. nº 3093/16.5T8AVR.P1, Relator: Carlos Querido. Disponível para consulta em: http://www.dgsi.pt.

3⁵ DIAMVUTU, Lino; A tutela da confiança nas negociações pré-contratuais, Dissertação, Lisboa, 2011, p.36. Docente da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, disponível para consulta online em: A TUTELA DA CONFIANÇA NAS NEGOCIAÇÕES PRÉ - [PDF Document] (vdocuments.net)

32

Os defensores da teoria do interesse negativo evidenciam que a obrigação de indemnizar prevista no art. 227º do CC visa sobretudo o ressarcimento do interesse negativo. Neste, incluir-se-á tanto o dano emergente (as despesas efetuadas por causa das negociações) como o lucro cessante (os benefícios que o lesado teria auferido em virtude de oportunidades negociais falhadas se não tivessem iniciado as negociações) resultantes da imperfeição ou da ineficácia do contrato3⁶ .

No entanto temos defensores que admitem a indemnização do interesse positivo, ou de cumprimento, nos casos em que, não fora a culpa in contrahendo, o contrato ter-se-ia aperfeiçoado, assim como naqueles em que a conduta culposa consistia na violação de um dever de conclusão do negócio.

Tal é o entendimento de SOARES NASCIMENTO3⁷, que à questão da ressarcibilidade do interesse positivo, em caso de rutura das negociações, aponta o facto de que a indemnização do interesse positivo implicaria conhecer todo o conteúdo prestacional do contrato. Assim, o lesado teria direito à indemnização correspondente ao interesse do cumprimento, menos a prestação que ele próprio teria de realizar. No entanto, como não é possível conhecer as prestações a que as partes se vinculariam, de igual forma não é possível conhecer o interesse positivo. Sendo assim, a limitação destes casos, ou seja, a rutura das negociações, ao interesse negativo impõe-se, também por esses motivos3⁸

Para além do interesse contratual positivo e negativo, temos também os casos da reparação dos danos (incluindo aqui o interesse positivo) e a efetivação do contrato.

Quanto à reparação dos danos, MENEZES CORDEIRO3⁹ entende não existir qualquer motivo para limitar a responsabilidade do “prevaricador” ao interesse negativo ou de confiança, devendo sim, responder, nos termos do art. 227º, nº1 CC, por todos os danos causados nos termos gerais, observando as normas da causalidade adequada.

Entendimento diferente é o defendido por ALMEIDA COSTA⁴⁰ para quem os danos cuja indemnização se impõe à parte que durante os preliminares ou na formação do contrato violou as regras da boa-fé, por força do n.º 1 do art. 227º CC, não se confundem com aqueles por que, mercê do art. 798º CC, é responsável o devedor que culposamente falta ao cumprimento de um contrato válido e eficaz. De todo o modo, há que reparar todos os danos, mas a sua identificação e quantificação apresentam autonomia.

3⁶ Vd. Ac. STJ de 3682/05.3TVSLB.L1.S1,lê-se que : No caso ora analisado, o STJ entendeu por aplicar o interesse contratual negativo, no que a parte autora só teria direito à indemnização dos prejuízos causados durante a fase pré-contratual. No entanto, não basta alegar a ocorrência de prejuízo, esta tem que ser comprovada, o que não ocorreu no caso em apreço.

“Se tal facto ou “evento” for constituído pela confiança criada na contraparte de que as negociações chegariam a bom termo e o contrato seria concluído, a parte lesada só pode pretender ser colocada na situação em que estaria se não lhe tivesse sido criada essa confiança, isto é, apenas pode pretender um ressarcimento correspondente ao interesse negativo ou seja, na situação sem quaisquer negociações.”

Destarte, o STJ entendeu que a parte autora teria direito aos prejuízos efetivamente causados pela quebra de confiança, no entanto, tais prejuízos não foram, em momento algum, comprovados pela parte autora, portanto, não seria cabível se falar em pagamento de indenização. Esta posição jurisprudencial é a dominante no STJ do que podemos concluir que, para o Supremo Tribunal de Justiça Português, quando não houver vinculação à subscrição contratual, a indenização devida será baseada no interesse contratual negativo, onde se incluem apenas os prejuízos comprovadamente causados.

3⁷ NASCIMENTO, Paulo Soares do; A responsabilidade pré-contratual pela rutura das negociações e a recusa injustificada de formalização do contrato, Em estudos em homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. IV, 2003, p.112.

3⁸ A este respeito o Ac. do STJ de 11 de janeiro de 2007, Proc. n.º 06B4223, Relator: Custódio Montes. Disponível l para consulta em: http://www.dgsi.pt.

Na sua decisão referiu que: “Na responsabilidade pré-contratual, em princípio, cabem apenas os danos cobertos pelo interesse contratual negativo”.

”Excecionalmente, cabe também na responsabilidade pré-contratual, a indemnização pelo interesse positivo, como nos casos em que ocorre uma clara violação da conclusão do contrato (…)”.

3⁹ Ac. do TRP, 31 de março de 2004, Proc. n º0326892, Relator: Alziro Cardoso. Disponível para consulta em: http://www.dgsi.pt.

⁴⁰ Ac. do TRP, 31 de março de 2004, Relator: Alziro Cardoso, Proc. n º0326892. Disponivel para consulta em: http://www.dgsi.pt.

33

Por sua vez DANIELA CUNHA⁴1 defende que a boa-fé pré-contratual radica também no dever de, em certas situações, efetivamente contratar, ou seja, casos em que não pode ocorrer rompimento das negociações iniciadas na medida em que o princípio da boa-fé impõe uma conduta de não defraudar a expectativa criada⁴2 .

Em sentido contrário, OLIVEIRA ASCENSÃO⁴3 argumenta que a consequência da rutura das negociações é sempre e só a indemnização de danos, uma vez que, por mais longe que seja levada a cabo a negociação, jamais se ficaria adstrito a um dever de contratar. De outra forma, poder-se-ia exigir o cumprimento desse dever e porventura chegar à execução específica. Todavia, não é assim que sucede uma vez que só se reparam os danos de ter havido uma negociação inútil e não os danos derivados de não ter havido contrato.

⁴1 CUNHA, Daniela Moura Ferreira; Responsabilidade pré-contratual por rutura das negociações, Almedina, 2006, p.55.

⁴2 Partilha desta opinião Ana Prata, quando evidencia que a medida da vinculação das partes aumenta na razão da confiança suscitada nos preliminares, nos casos em que o conteúdo contratual já se encontra definido, faltando somente a formalização do negócio (quando o mesmo seja formal), há um dever de contratar, emergente da boa-fé. PRATA, Ana; Notas sobre a responsabilidade pré-contratual, Almedina, 1991, pp.116 e ss.

⁴3 ASCENÇÃO, José de Oliveira; Direito Civil-Teoria Geral, Vol.II, 2ºEd., Coimbra, 2003, pp.448 e 449.

34

Conclusões

A análise das principais questões suscitadas no presente estudo, designadamente a natureza jurídica da responsabilidade civil pré-contratual e o ressarcimento dos danos decorrentes da mesma permite-nos retirar algumas conclusões.

No que diz respeito ao primeiro ponto, entendemos estar perante uma responsabilidade “intermédia” situada entre a responsabilidade civil contratual e a responsabilidade civil extracontratual, na medida em que aquela não desponta, propriamente, do incumprimento de uma obrigação previamente assumida, mas por outro lado, também não provém da violação de um dever genérico de respeito de direitos absolutos, mas sim, ditada por deveres surgidos no âmbito de uma relação especifica entre as partes, imposta pela tutela da confiança e onde ressalta o cumprimento do sujeito jurídico segundo os ditames do principio da boa fé negocial. O tipo de responsabilidade em causa, pré-contratual e com previsão normativa no art. 227º CC, nos termos em que se apresenta, há-de constituir, pois, como uma “terceira via” de responsabilidade civil ou um tertium genus situado entre a responsabilidade fundada em ato ilícito e a responsabilidade fundada no risco⁴⁴

Sob a epígrafe “culpa na formação dos contratos”, o art. 227º, nº 1 CC preceitua que “quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tantos nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”, evidenciando, desde logo, a demarcação de duas fases fundamentais no processo negocial pré-contratual, a saber: uma fase negociatória e uma fase decisória. Na primeira, consideremos os primeiros contactos entre as partes outorgantes, eivados de propostas e pedidos de esclarecimento com vista à formação da proposta contratual definitiva; de segunda, fazem parte as declarações de vontade propriamente ditas, dirigidas com vista à proposta e aceitação do contrato.

A ratio legis do preceito legal em análise reside na tutela da confiança e da expetativa criada entre as partes outorgantes na fase pré-contratual de um negócio, tanto na sua fase negociatória como na sua fase decisória, assegurada pela imposição de comportamento que se exigem conformes ao princípio da boa-fé, isto porque, a própria circunstância de aquelas terem entrado em negociações com vista à ulterior celebração de um contrato já é suscetível de criara uma situação de confiança, confiança esta que é imediatamente tutelada pelo Direito mesmo antes de ter surgido qualquer vinculo negocial definitivo.

Com efeito, pelo facto de se relacionarem e de contactarem com vista a celebrar um determinado negócio, a partes outorgantes assumiram, tanto nos preliminares como na formação do contrato, certos deveres, de lealdade, de ética, aos quais ficaram reciprocamente vinculadas, pelo que, a rutura unilateral e injustificada das negociações desencadeará a responsabilização da parte prevaricadora pela violação das regras de boa-fé subjacentes àqueles deveres.

Aqui chegados, passemos a atender à aferição do dano e o subsequente ressarcimento do mesmo em sede de responsabilidade civil pré-contratual, questão para a qual a doutrina tem vindo a utilizar os mecanismos do chamado interesse contratual negativo e interesse contratual positivo.

JHERING pioneiro no estudo da responsabilidade civil pré-contratual e impulsionador da problemática em torno do interesse pré-contratual positivo e do interesse contratual negativo, a ele se deve ainda a denominação da teoria de culpa in contraendo

⁴1 CUNHA, Daniela Moura Ferreira; Responsabilidade pré-contratual por rutura das negociações, Almedina, 2006, p.55.

⁴2 Partilha desta opinião Ana Prata, quando evidencia que a medida da vinculação das partes aumenta na razão da confiança suscitada nos preliminares, nos casos em que o conteúdo contratual já se encontra definido, faltando somente a formalização do negócio (quando o mesmo seja formal), há um dever de contratar, emergente da boa-fé. PRATA, Ana; Notas sobre a responsabilidade pré-contratual, Almedina, 1991, pp.116 e ss.

⁴3 ASCENÇÃO, José de Oliveira; Direito Civil-Teoria Geral, Vol.II, 2ºEd., Coimbra, 2003, pp.448 e 449.

⁴⁴ COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, Almedina, 2009, pg.509

35

Segundo este autor, se o dano ou interesse correspondesse à situação em que o lesado estaria se não tivesse chegado a iniciar ou confiado nas negociações de um contrato válido e eficaz, estaríamos no âmbito do interesse contratual negativo. Por outro lado, se o dano ou interesse correspondesse à situação em que o lesado estaria se o contrato tivesse sido concluído válida e eficazmente, isto é, se efetivamente fosse cumprido, estar-se-ia, neste caso, no campo do interesse contratual positivo.

O dano ou interesse acima referido corresponde à relação entre o sujeito e a situação em que estaria se não fosse o evento lesivo, isto é, a situação em que estaria se o contrato fosse efetivamente cumprido ou a situação que nunca teria sequer começado a negociar ou a situação em que nunca teria confiado para vir a celebrar um contrato válido e eficaz.

Ora, a nosso ver, a distinção entre o interesse contratual positivo e o interesse contratual negativo, não será mais do que uma mera aplicação das regras gerais da causalidade da responsabilidade civil a diferentes tipos de eventos lesivos. Assim, quando o evento lesivo está no não cumprimento, o interesse no cumprimento é o interesse em ressarcir (positivo). Por sua vez, quando o interesse está em ter causado a confiança, isto é, em ter induzido a parte a contratar, o interesse a ressarcir é o interesse negativo.

Em sede de responsabilidade civil pré-contratual estão presentes três momentos distintos, para outros tantos eventos lesivos; num primeiro caso, verifica-se que o lesado refere que não concluiu o contrato válido e eficaz ; num segundo momento, por via de eventual rutura das negociações, o lesado reclama da não conclusão do contrato e por último, o lesado em sede de culpa in contrahendo evidencia que por ter ocorrido violação do dever de informação, do dever de lealdade, o contrato não foi concluído, ou concluiu um contrato “indesejado”, o que não é conforme às expectativas do lesado.

O problema que se levanta relativamente aos três momentos distintos, refere-se mesmo a rutura das negociações. Nestes casos, contraria a autonomia privada ou a liberdade contratual do agente, obriga-lo a uma indemnização pelo interesse contratual positivo. Excetuam-se, obviamente, aqueles casos em que as negociações já se encontravam de tal forma avançadas, ou seja, pode efetivamente dizer-se que se encontravam praticamente concluídas, que haveria neste caso um dever de conclusão do contrato, porque aqui sim, pode afirmar-se que no caso da rutura das negociações, o lesado terá direito a ser colocado na situação em que estaria se o contrato tivesse sido concluído e cumprido pontualmente.

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Referências:

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Jurisprudência:

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- Ac. STJ, 31 de março de 2011, Proc. nº3682/05.3TVSLB.L1.S1, Relator: Fernando Bento. Disponível para consulta em: http://www.dgsi.pt

Ac. do STJ, de 11 de setembro de 2007, Proc. nº 07A2402, Relator: Fonseca Ramos. Disponível para consulta em: http://www.dgsi.pt

- Acordão do Tribunal da Relação do Porto, de 27 de junho de 2018 (proc. nº 3093/16.5T8AVR. P1; Relator: Carlos Querido; Disponível para consulta em: http://www.dgsi.pt.

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CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO POR DENÚNCIA

ISA RAQUEL PINTO PEREIRA

Docente de Ensino Superior; Doutoranda em Direito (especialização em Direito Civil) na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Mestre em Direito - Especialização em Ciências Jurídico-Administrativas e Tributárias; Solicitadora; Conciliadora do SISPACSE (Sistema Público de Apoio à Conciliação no Sobre-Endividamento);

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO

2. O CONTRATO DE TRABALHO COMO CONTRATO DURADOURO

3. FORMAS DE CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO

3.1. A DENÚNCIA DO CONTRATO DE TRABALHO POR INICIATIVA DO TRABALHADOR

3.1.1. DENÚNCIA COM AVISO PRÉVIO

3.1.2. DENÚNCIA SEM AVISO PRÉVIO

4. A REVOGAÇÃO DA DENÚNCIA

5. ABANDONO DO TRABALHO

6. CASOS EXCECIONAIS EM QUE O EMPREGADOR PODE DENUNCIAR O CONTRATO DE TRABALHO

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JURISPRUDÊNCIA, OUTRAS REFERÊNCIAS CONSULTADAS; OUTROS SÍTIOS CONSULTADOS

Resumo

Esta investigação tem o objetivo precípuo de analisar uma das áreas nucleares do Direito do Trabalho – a cessação do contrato de trabalho – onde restringiremos a nossa análise a uma das modalidades da cessação do contrato por iniciativa do trabalhador, a denúncia.

O diploma central que incidirá a nossa análise, é a Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na sua versão atual dada pela Lei n.º 13/2023, de 03 de abril (com a retificação n.º 13/2023, de 29/05), que aprova o Código do Trabalho. Serão aflorados alguns conceitos relevantes e circunscreveremos a nossa investigação à denúncia do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, prevista no artigo 400.º e seguintes do Código do Trabalho, com referências pontuais à resolução do contrato de trabalho.

Propomo-nos, assim, a uma reflexão sobre a denúncia do contrato de trabalho, analisando diversas figuras adjacentes a esta forma de cessação do contrato de trabalho como sejam a denúncia com e sem aviso prévio e as consequências no incumprimento total ou parcial desta última; a possibilidade de revogação da denúncia e os casos em que é possível; o controverso instituto do abandono do trabalho e os casos excecionais em que o empregador pode denunciar o contrato de trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Contratos Duradouros; Direito do Trabalho; Contrato de Trabalho; Formas de cessação do contrato de trabalho; Denúncia;

1. Introdução

A temática que aqui se abordará, designadamente a figura da denúncia do contrato de trabalho pelo trabalhador, é de inegável relevância, tanto do ponto de vista teórico como prático, até porque muitas das questões relacionadas com a situação jurídico-laboral apenas são discutidas no momento da extinção do vínculo contratual, como por exemplo os créditos laborais1, o valor da retribuição ou o gozo das férias, surgem a propósito da cessação do contrato, como causa da mesma ou como problema lateral à cessação2, e ainda porque se considera um tema delicado e complexos problemas atinentes às relações de trabalho respeitam à sua cessação3 .

No entanto, para este estudo, focar-nos-emos numa das modalidades de cessação do contrato de trabalho que decorre da iniciativa do trabalhador, designadamente na denúncia, fazendo breves referências à resolução, somente com o objetivo de pontuais distinções.

Trata-se de um problema constitucionalmente relevante e é nesse sentido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra um conjunto de princípios relativos aos direitos sociais e económicos dos trabalhadores⁴ .

Destacamos, desde logo, o artigo 53.º da CRP que estabelece a garantia constitucional da segurança no emprego que, proibindo os despedimentos sem justa causa, não se circunscreve apenas à manutenção do contrato de trabalho, tem igualmente que ver com a estabilidade na execução do mesmo, denotando uma manifestação clara e essencial da importância do direito do trabalho e da ideia conformadora da dignidade que lhe está associada.

São pertinentes as palavras de João Caupers quando refere que “a mais conhecida classificação dos direitos fundamentais – ou dos direitos dos homens (…) - é a classificação tripartida de alegadas raízes históricas que os divide em (…)” entre outros, a “direitos socialistas (direito ao trabalho, direito à segurança social, direito à saúde, direito à instrução, direito à liberdade sindical”⁵ .

Entendemos que a cessação do contrato de trabalho é um dos temas onde mais se faz sentir a sensibilidade político-jurídica ao nível do direito laboral. É uma matéria onde facilmente se evidencia a diferente natureza dos interesses das partes que estão em assimétrica posição na relação laboral.

1 Compreende-se que só neste momento é que o trabalhador se sinta em condições de questionar judicialmente o comportamento do empregador em certas matérias, como por exemplo, o regime de prescrição dos créditos laborais (artigo 337.º n.º 1, do CT: “O crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.”).

2 PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cessação do Contrato de Trabalho, 3.ª edição, revista e atualizada, Principia, julho 2012, pág. 195.

3 ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 16.ª edição, Almedina, 2012, pág. 481. Este autor acrescenta ainda que este tema é juridicamente complexo e socialmente sensível.

⁴ E de forma a assegurar o direito ao trabalho, diz-nos ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito do Trabalho I, Direito Europeu, Dogmática Geral, Direito Coletivo, Almedina, outubro 2018, pág. 250, fazendo referência ao artigo 58.º da CRP, que “o direito ao trabalho efetiva-se contra o Estado, incentivando este a prosseguir políticas de pleno emprego e a proteger e a proteger os desempregados”.

⁵ JOÃO CAUPERS, Os direitos fundamentais dos trabalhadores e a constituição, dissertação de post-graduação em ciências jurídico-políticas discutida em 16 de novembro de 1984, Livraria Almedina, Coimbra, Lisboa 1985, pág. 22.

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2. O contrato de trabalho como contrato duradouro

Ao longo dos anos tem-se vindo a assistir a uma evolução do direito privado dos contratos. Esta evolução tem girado em torno de uma visão individualista das relações jurídico-privadas e tem sido entendido como o vínculo definidor das relações jurídico-privadas livremente estabelecidas entre as partes.

O conceito de contrato traduz-se no “acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro), contrapostas, mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma composição unitária de interesses”⁶. Ou seja, podemos dizer que um contrato é um acordo vinculativo entre as partes (com vontades opostas, mas que se ajustam umas às outras), e harmonizáveis entre si.

De notar que nos debruçaremos no contrato de trabalho, por se identificar como um contrato duradouro e, como todo o negócio jurídico tendencialmente duradouro, também o contrato de trabalho tem, naturalmente, um fim. É certo que os vínculos caraterizados pela natureza duradoura daquele contrato, demanda uma especial intervenção do dever geral da boa-fé que impende sobre as partes na execução do contrato, genericamente estabelecido no artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil.

No contrato de trabalho, a natureza duradoura do contrato é, ainda, complementada pelo estreito contacto entre as esferas pessoais das partes e pela existência de subordinação de uma parte à outra, facto que justifica a expressa consagração do referido princípio no n.º 1, do artigo 126.º do Código do Trabalho (CT)⁷ .

Diz-nos Antunes Varela que nos contratos duradouros o fator mais relevante é o tempo e “que tem influência decisiva na fixação do seu objeto”⁸. No mesmo sentido, Bernardo da Gama Lobo Xavier, assume que a durabilidade do contrato de trabalho durante um espaço considerável de tempo (o tão relevante fator tempo) assume particular relevância tanto na relação de trabalho, mas também na duração da prestação do trabalho, referindo ainda que no domínio do CT de 2003, essa caraterística de durabilidade foi considerada um “índice de existência do contrato de trabalho”⁹ .

1 Compreende-se que só neste momento é que o trabalhador se sinta em condições de questionar judicialmente o comportamento do empregador em certas matérias, como por exemplo, o regime de prescrição dos créditos laborais (artigo 337.º n.º 1, do CT: “O crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.”).

2 PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cessação do Contrato de Trabalho, 3.ª edição, revista e atualizada, Principia, julho 2012, pág. 195.

3 ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 16.ª edição, Almedina, 2012, pág. 481. Este autor acrescenta ainda que este tema é juridicamente complexo e socialmente sensível.

⁴ E de forma a assegurar o direito ao trabalho, diz-nos ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito do Trabalho I, Direito Europeu, Dogmática Geral, Direito Coletivo, Almedina, outubro 2018, pág. 250, fazendo referência ao artigo 58.º da CRP, que “o direito ao trabalho efetiva-se contra o Estado, incentivando este a prosseguir políticas de pleno emprego e a proteger e a proteger os desempregados”.

⁵ JOÃO CAUPERS, Os direitos fundamentais dos trabalhadores e a constituição, dissertação de post-graduação em ciências jurídico-políticas discutida em 16 de novembro de 1984, Livraria Almedina, Coimbra, Lisboa 1985, pág. 22.

⁶ JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, vol. I., 8.ª edição, Almedina, Coimbra, 1994, pág. 221.

⁷ Neste sentido o acórdão do STJ de 21 de outubro de 2009 (Vasques Dinis), Processo n.º 1996/05.1TTLSB.S1,pronunciando-se no contexto do n.º 1, do artigo 119.º do CT: http://www.dgsi.pt/jstj.n f/-/B5C23E9AC66B4FD58025754C0051A3A5

⁸ JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Vol. I, 8.ª edição revista e atualizada, Almedina, Coimbra, 1994, pág. 96.

⁹ BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, com colaboração de P. FURTADO MARTINS; A. NUNES DE CARVALHO; JOANA VASCONCELOS; TATIANA GUERRA DE ALMEIDA; Manual de Direito do Trabalho, 2.ª edição revista e atualizada, edição BABEL, 2014, pág. 324.

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O mesmo autor (Antunes Varela) refere também que “as relações obrigacionais duradouras suscitam ainda a necessidade de facultar às partes os meios necessários para lhes pôr termo em certos casos, visto que o prolongamento indefinido do vínculo pode envolver uma limitação excessiva da liberdade pessoal ou da liberdade económica dos sujeitos da relação” elencando os vários instrumentos previstos para pôr termo a relações contratuais duradouras1⁰

O contrato de trabalho é um contrato duradouro11, “cuja execução se protrai no tempo, traduzindo-se o seu cumprimento numa sucessão de atos escalonados ao longo de um período mais ou menos longo”12. Um dos traços caraterizadores da relação contratual é que esta tem “vocação para perdurar no tempo”13 .

No mesmo seguimento, fazendo igualmente referência, tal como João Leal Amado refere, à “vocação para perdurar”, António Monteiro Fernandes, entende que o contrato de trabalho está alinhado com a definição de contratos duradouros, porquanto, e tendo por referência a noção legal, as características que ressaltam são desde logo a atividade que o trabalhador assume implica uma “continuidade” e que a própria situação de subordinação tem caráter duradouro pois “supõe a integração estável de uma das partes na organização de meios predisposta pela outra” e que o contrato “se destina a perdurar até que ocorram determinadas circunstâncias declaradas, pela lei ou pelos contraentes, idóneas a extinguir a relação que ele disciplina”1⁴

No entanto, dizer que “o contrato de trabalho é um negócio jurídico duradouro não significa que o mesmo seja um contrato vitalício ou perpétuo”1⁵ .

No mesmo sentido, António Monteiro Fernandes, caracteriza o contrato de trabalho como duradouro, porquanto a sua execução se protrai no tempo, “por as prestações implicarem uma conduta continuada ou uma série de atos e comportamentos”1⁶ .

Essa é uma das caraterísticas que ressalta do artigo 11.º do CT, que nos diz que “contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas”. Ou seja, e por oposição ao contrato de prestação de serviços, no contrato de trabalho existe uma obrigação de meios, de prestação de uma atividade intelectual ou manual com caráter de continuidade, enquanto no contrato de prestação de serviço existe uma obrigação de apresentar um resultado. Portanto, do ponto de vista de quem executa uma atividade, no contrato de trabalho existe um interesse na estabilidade no sentido de continuidade de execução de tarefas, enquanto que, no contrato de prestação de serviços, se verifica um interesse num fim da execução das tarefas.

1⁰ Idem, Ibidem, nota de rodapé n.º 1, pág. 97.

11 Ou contrato de prestação duradoura, como define ANA PRATA, que é um “contrato de que emerge uma obrigação que tem por objeto uma sucessão de atos – sucessão com intervalos de tempo (prestação periódica, como, por exemplo, o contrato de assinatura de um jornal) ou sucessão contínua (prestação continuada, como, por exemplo, o contrato de locação ou de prestação de serviços) – isto é, em que a prestação não se esgota num único ato e em que a duração da prestação no tempo influi decisivamente na determinação do seu objeto e, em particular, na do seu montante global”. ANA PRATA, Dicionário Jurídico – direito civil, direito processual civil, organização judiciária, 3.ª edição, revista e atualizada, Almedina, Coimbra, 1995, pág. 278.

12 JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, 4.ª edição, janeiro de 2014, Coimbra editora, pág. 74.

13 JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 101.

1⁴ ANTÓNIO DE LEMOS MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, I – Introdução. Relações Individuais de Trabalho, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 1991, págs. 141 e 142.

1⁵ Idem, Ibidem, pág. 75.

1⁶ ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 16.ª edição, Almedina, 2012, pág. 150.

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No contrato de trabalho, a atividade a que o trabalhador se obrigou a desempenhar para o empregador encontra-se sujeita a ajustamentos contínuos, por parte do empregador no exercício do seu poder de direção, que revela a sua natureza de contrato duradouro e que o diferencia de outro tipo de contratos.

Existe, no contrato de trabalho, um interesse mútuo, entre empregador e trabalhador, na durabilidade da relação jurídica de emprego.

Conforme refere Bernardo da Gama Lobo Xavier1⁷, “o contrato de trabalho é duradouro, porque satisfaz interesses dos contraentes que se destinam a perdurar no tempo (permanente exigência de mão-de-obra na empresa e, no que se refere ao trabalhador, necessidade de assegurar para si próprio e para os familiares o salário, que constituiu a sua base essencial de sustento).” E, existe, naturalmente, interesse na estabilidade, do ponto de vista do trabalhador.

1⁷ BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, Manual do Direito do Trabalho, 2.ª Edição Revista e atualizada, Verbo, 2014, pág. 324 45

3. Formas de cessação do contrato de trabalho

As modalidades de cessação do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador (a denúncia e a resolução) estão sujeitas à regra da inderrogabilidade do regime de cessação do contrato de trabalho, plasmada no artigo 339.º, n.º 1, do CT que estabelece que “o regime estabelecido no presente capítulo não pode ser afastado por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou por contrato de trabalho”, exceto quanto às matérias de natureza quantitativa, como por exemplo os critérios de definição de indemnizações, os prazos de procedimento e de aviso-prévio e os valores de indemnizações (sendo este último dentro dos limites do CT), conforme n.os 2 e 3, do artigo 339.º do CT.

A cessação do contrato de trabalho encontra-se prevista no Livro I, Título II, Capítulo VII, do Código do Trabalho, nos artigos 338.º e seguintes.

A lei menciona, no artigo 340.º do CT, um elenco não taxativo1⁸ das modalidades de cessação do contrato de trabalho: a) Caducidade; b) Revogação; c) Despedimento por facto imputável ao trabalhador; d) Despedimento coletivo; e) Despedimento por extinção de posto de trabalho; f) Despedimento por inadaptação; g) Resolução pelo trabalhador; h) Denúncia pelo trabalhador.

Na cessação do contrato de trabalho há que tutelar os interesses das partes, entidade empregadora e trabalhador, mas também a repercussão desse facto na comunidade.

A rutura de uma relação jurídica como a laboral e a disciplina dessa mesma dissolução assumem, como bem se compreende, grande importância em qualquer ordenamento jurídico1⁹ .

O vínculo que se estabelece entre as partes não é eterno, vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de desvinculação2⁰

Porém, por um lado, não é concedido ao empregador o “privilégio” de despedir livremente os seus trabalhadores, porquanto, “é proibido o despedimento sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”, nos termos do artigo 338.º do CT.

Por outro lado, considerando o trabalhador a parte mais vulnerável nas relações laborais, a par do princípio da liberdade de desvinculação, é de fazer referência a outro princípio geral em matéria de cessação do contrato de trabalho, o princípio da estabilidade ou da segurança no emprego21 .

O artigo 338.º do CT e o artigo 53.º da Constituição da República Portuguesa são corolários desse mesmo princípio da segurança e estabilidade no emprego, visando tutelar o trabalhador contra despedimentos arbitrários por parte da entidade patronal, sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos, com todas as consequências negativas que daí podem advir22 .

1⁸ O elenco é não taxativo, porquanto resulta do próprio artigo 340.º do CT, que refere “para além de outras modalidades legalmente previstas”.

1⁹ Acerca da importância da matéria da cessação do contrato, PEDRO FURTADO MARTINS, Cessação do Contrato de Trabalho, 3.ª Edição, Principia, Cascais, 2012, págs. 11 a 13.

2⁰ Veja-se a este propósito PEDRO FURTADO MARTINS, Cessação do Contrato de Trabalho, Principia, Cascais, 1999, pág. 13, quando salienta, entre o mais, que: “Tanto os interesses do empregador como os do trabalhador reclamam a salvaguarda da possibilidade de desvinculação unilateral (pois, como é óbvio, a desvinculação por acordo está sempre garantida)”.

21 Cfr. PEDRO FURTADO MARTINS, Cessação do Contrato de Trabalho, ob. cit., pág. 15.

22 Como notam JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, revista, atualizada e ampliada, Wolters Kluwer Portugal / Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pág. 1050: “A garantia da segurança no emprego não pode ser absolutizada, devendo, por imperativo constitucional, atendendo à unidade do sistema de direitos fundamentais que a Constituição consagra, coexistir com a liberdade de empresa e com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”

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Aliás, para Gomes Canotilho e Vital Moreira23, é bastante significativo que o primeiro dos direitos, “direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores” seja o direito à segurança no emprego, com destaque para a garantia contra despedimentos sem justa causa.

E é nesse sentido que do ponto de vista do trabalhador, o vínculo laboral que este se vincula e o caráter duradouro que assume o contrato de trabalho remarca a estabilidade. Sendo que do ponto de vista do empregador é igualmente positivo o caráter duradouro do contrato de trabalho, pois manifestam-se interesses ligados à perdurabilidade do contrato2⁴ .

3.1. A denúncia do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador

Circunscreveremos, assim, e para o desenvolvimento deste trabalho, o nosso estudo somente a uma das formas de cessação do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, designadamente a denúncia, prevista no artigo 400.º e seguintes do CT.

A denúncia, prevista na alínea h) do artigo 340.º do CT, pode ser expressa ou tácita 2⁵ .

No que concerne à denúncia, esta assume-se como um corolário da liberdade de trabalho2⁶-2⁷ , sendo que o trabalhador dispõe desta via “ordinária” de desvinculação unilateral do contrato de trabalho, podendo ocorrer, a denúncia, com ou sem aviso prévio. Esta via “ordinária” decorre quando um trabalhador se desvincula sem ter qualquer motivo grave para o fazer. Como nos diz Menezes Leitão “o seu campo de aplicação é limitado aos contratos de execução continuada ou duradoura, em que as partes não estipulam um prazo fixo de vigência”2⁸ .

A par da denúncia, a lei prevê outro mecanismo de cessação do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador – a resolução –, prevista no artigo 394.º e ss do CT, que produz efeito extintivo imediato, mas implica a apresentação de um motivo procedente. Enquanto que a denúncia, prevista no artigo 400.º e ss do CT, não requer uma justa causa por parte do trabalhador, devendo este apenas observar um aviso prévio ou prazo de antecipação, sendo certo que, se o trabalhador não cumprir, total ou parcialmente o prazo de aviso prévio, incorrerá apenas no dever de indemnizar o empregador, conforme decorre do artigo 401.º do CT.

Estas duas figuras de cessação do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador não se confundem, apesar de no regime precedente estes dois conceitos terem estado unificados numa única conceitualização: a rescisão2⁹. Aliás, no regime precedente, a resolução era denominada rescisão com justa causa e a denúncia rescisão com aviso prévio3⁰ .

23 GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, ob. cit. pág. 707.

2⁴ ANTÓNIO DE LEMOS MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, ob. cit. pág. 143.

2⁵ Como é o caso do abandono do trabalho, que mais à frente abordaremos. Sobre este ponto, VIEIRA GOMES, Direito do Trabalho, ob. cit. pág. 1041, relativamente à possibilidade de denúncia oral, através de uma declaração verbal, por exemplo “vou-me embora”, ou “demito-me”, não deve ser considerada suficiente por poder ser proferida sem real consciência do seu alcance ou no calor de uma discussão, p. 1072.

2⁶ A este respeito, MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado de Direito do Trabalho, ob. cit. págs. 927-928, refere que o princípio geral da liberdade de trabalho entronca remotamente na proibição dos vínculos de servidão pessoal e de trabalho vitalício.

2⁷ Sobre a liberdade de trabalho, JOÃO ZENHA MARTINS, A proibição de Trabalho Forçado ou Obrigatório, em particular à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e o Princípio da Liberdade de Trabalho, ob. cit. pág. 119 e ss., refere o caráter pessoal da relação laboral, “na qual o trabalhador se compromete e projeta a sua personalidade”.

2⁸ LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito do Trabalho, 2.ª edição, Almedina, janeiro 2010, pág. 510.

2⁹ Como refere JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, a cessação do contrato do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador: notas e dúvidas ao novo regime, “A reforma do Código do Trabalho”, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pág. 554, embora criticando a nova nomenclatura, afirmando que a mesma é de utilidade duvidosa, por considerar não revestir qualquer mais-valia dogmática.

3⁰ Conforme PALMA RAMALHO, Tratado do Direito do Trabalho, ob. cit. pág. 929.

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Mas antes de avançarmos com a análise desta complexa figura de cessação do contrato de trabalho, impõe-se uma aproximação à noção de denúncia e às suas causas, que são clarificadas por alguns autores. Neste sentido, Francisco Pereira Coelho definiu a denúncia da seguinte forma: “Chama-se denúncia a declaração em que, nos contratos por tempo indeterminado, um dos contraentes comunica ao outro que deseja pôr termo ao contrato. A possibilidade de denúncia constitui, como bem se compreende, uma medida de proteção dos contraentes, em face de uma vinculação que, dada a duração do contrato, poderia tornar-se intolerável”31

José de Oliveira Ascensão, no que concerne à denúncia como causa de extinção das situações jurídicas, defende que “(…) por princípio, as pessoas não podem estar indefinidamente vinculadas. Se se celebra um contrato sem se marcar um termo, subentende-se, salvo disposição em contrário, a possibilidade de denúncia. Qualquer das partes pode realizar o efeito potestativo de pôr termo à relação. (…) o princípio da denúncia deve estender-se a relações duradouras, mesmo que não haja propriamente indeterminabilidade. O desejo de evitar que as pessoas fiquem sujeitas por uma longa duração a vínculos contratuais justifica que se outorgue generalidade a esta causa discricionária de cessação dos efeitos do negócio por ato unilateral”32 .

Fernando Pessoa Jorge escreve que “a necessidade de denúncia decorre do princípio de as pessoas não poderem obrigar-se em termos perpétuos, a não ser nos casos em que a própria lei o ordene. Desta forma, se se celebra um contrato por tempo indeterminado (por exemplo um contrato de trabalho), qualquer uma das partes pode a todo o tempo pôr-lhe termo, quando muito bem entender e quiser”33 .

Por seu turno, a denúncia é uma declaração unilateral recetícia, sendo a forma típica de cessação do contrato de trabalho privativa dos contratos duradouros e consagra um princípio basilar da demissão ad nutum, surgindo como corolário da proibição de vinculações contratuais perpétuas.

O n.º 1, do artigo 400.º do CT, que consagra o princípio da livre demissão, diz-nos que “o trabalhador pode denunciar o contrato independentemente de justa causa, mediante comunicação ao empregador, por escrito, com a antecedência mínima de 30 ou 60 dias, conforme tenha, respetivamente, até dois anos ou mais de dois anos de antiguidade”, ficando assim consagrada a impossibilidade de vinculação ad aeternum do trabalhador.

A liberdade de desvinculação unilateral do trabalhador é uma liberdade irrenunciável3⁴ e discricionária cuja decisão é exclusivamente sua.

Pese embora de, na maioria dos casos se pretender uma relação contratual duradoura, aquela vinculação contratual pode deixar de ter interesse para o trabalhador, sendo-lhe facultada a hipótese de, a todo o tempo, poder-se desvincular daquela relação contratual e fazer cessar para o futuro as prestações objeto do contrato.

Todavia, há que prever as regras jurídicas que disciplinam a cessação da situação jurídico-laboral por parte do trabalhador, porquanto poderá causar danos à entidade empregadora, ainda que se reconduzam a um mero relevo patrimonial3⁵ .

31 FRANCISCO PEREIRA COELHO, Arrendamento Direito Substantivo e Processual, Coimbra, 1988 (policopiado), pág. 248.

32 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Teoria Geral do Direito Civil, vol. IV, título V, Relações e Situações Jurídicas, Lisboa, 1993 (policopiado), pág. 314.

33 FERNANDO PESSOA JORGE, Lições de Direito das Obrigações, Lisboa, AAFDL, 1966-1967 (policopiado), pág. 212.

3⁴ Tal como refere VIEIRA GOMES, Direito do Trabalho, ob. cit., pág. 1040, o trabalhador não pode renunciar de forma a garantir a sua dignidade como pessoa, assim como a sua autonomia, impedindo a sua redução ao estatuto de servo.

3⁵ Tal como refere LOBO XAVIER, A extinção do contrato, ob. cit., pág. 402, excetuando o caso dos trabalhadores de nível diretivo, de elevada qualificação técnica ou cuja preparação tenha exigido um avultado dispêndio patrimonial de formação.

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3.1.1. Denúncia com aviso prévio

Conforme já se viu, a cessação do vínculo laboral não deve registar-se de imediato, pelo que carece de pré-aviso, de forma a acautelar os interesses da entidade empregadora, evitando que esta seja surpreendida e prejudicada por uma rutura contratual inopinada.

Nas palavras de João Leal Amado “o aviso prévio funciona, portanto, como um termo suspensivo aposto à denúncia do contrato, pelo que, enquanto decorrer o respetivo prazo, a relação laboral mantém-se em vigor, continuando o trabalhador obrigado a prestar o trabalho ajustado e o empregador vinculado a pagar a retribuição correspondente”3⁶. Podemos afirmar que o aviso prévio é uma condição de regularidade da denúncia.

Tendemos assim a concordar com João Leal Amado, designadamente quanto à interpretação que faz acerca da figura do aviso prévio, considerada pelo próprio como um ato “retardador do óbito contratual”3⁷. Entende ainda o autor não se tratar de adiar a liberdade pessoal do trabalhador nem de um entrave à sua liberdade de auto-exoneração, mas de evitar uma rutura inesperada com eventuais efeitos perversos para a entidade empregadora, sendo que tal propósito encontra fundamento na boa-fé que deve acompanhar as relações laborais.

Destarte, acompanhando o princípio da livre denúncia, no artigo 400.º do CT o legislador estabeleceu um prazo mínimo para a denúncia do contrato de trabalho sem consequências penalizadoras (para o trabalhador), utilizando três critérios para a fixação do prazo: i) a antiguidade do trabalhador; ii) o tipo de contrato em causa; iii) e o cargo ou funções desempenhadas; sendo que os dois primeiros têm aplicação cumulativa, i.e.:

i) Tratando-se de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, o trabalhador pode denunciar o contrato “mediante comunicação ao empregador, por escrito, com a antecedência mínima de 30 ou 60 dias, conforme tenha, respetivamente, até dois anos ou mais de dois anos de antiguidade”, conforme n.º 1, do artigo 400.º do CT.

ii) No caso de contrato de trabalho a termo, “a denúncia pode ser feita com a antecedência mínima de 30 ou 15 dias, consoante a duração do contrato seja de pelo menos seis meses ou inferior”, conforme n.º 3, do artigo 400.º do CT. Tratando-se de contrato de trabalho a termo incerto, o n.º 4, do artigo 400.º do CT estabelece que “para efeito do prazo de aviso prévio (…) atende-se à duração do contrato já decorrida”.

iii) Para os trabalhadores que ocupem cargos de administração ou direção, em virtude de maiores dificuldades que possam eventualmente surgir ao empregador no caso de denúncia destes trabalhadores, prevê-se a possibilidade de “aumentar o prazo de aviso prévio até seis meses”, conforme n.º 2, do artigo 400.º do CT.

3⁶

3⁷

JOÃO LEAL AMADO, Contrato de trabalho, ob. cit., pág. 439.
LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, à luz do novo Código do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 432. 49
JOÃO

3.1.2. Denúncia sem aviso prévio

E se o trabalhador denunciar o contrato de trabalho sem aviso prévio?

Se o trabalhador denunciar o contrato de trabalho sem respeitar o prazo de pré-aviso, não cumprindo, total ou parcialmente, os prazos estabelecidos no artigo 400.º do CT, a denúncia, apesar de válida, é irregular, conforme consta do n.º 1, do artigo 401.º do CT.

A este respeito, Jacques Clesse e Fabienne Kéfer, fazem referência ao Direito Belga que reconhece a cada uma das partes o direito a denunciar, unilateralmente, o contrato de trabalho a qualquer momento sem respeitar o aviso-prévio, mas apesar de válido e efetivo, a parte que denuncia o contrato sem respeitar estas exigências, é obrigada a pagar uma indemnização pelo aviso prévio devido:

L'exercice du droit de résiliation unilaterale suppose que la partie qui romp le contrat se plie aux exigences légales (observation d'un préavis d'attente, etc). Néanmoins, le droit belge reconnait à chacune des parties la faculté de mette fin, à tout moment, à la convention sans se plier à ces exigences ou encore de mettre fin, par sa seule volonté, à un contrat de travail à durée déterminée avant son terme, à n'importe quel moment; l'auteur d'un congé illicite se rend ainsi redevable d'une indemnité de congé, mais la rupture est efficace. c'est ce que l'on nomme l'exercice du pouvoir de résiliation unilaterale3⁸

Os efeitos da denúncia operam, designadamente o termo do contrato, porém, o incumprimento total ou parcial do prazo de aviso prévio implica, como consequência do seu incumprimento, que o trabalhador tenha que “pagar ao empregador uma indemnização de valor igual à retribuição base e diuturnidades correspondentes ao período em falta, sem prejuízo de indemnização por danos causados pela inobservância do prazo de aviso prévio ou de obrigação assumida em pacto de permanência”, conforme n.º 1, do artigo 401.º do CT.

Relativamente à figura do pacto de permanência3⁹ a que se refere o n.º 1, do artigo 401.º do CT, in fine, encontra-se regulada no artigo 137.º do CT e estabelece no seu n.º 1, que “as partes podem convencionar que o trabalhador se obriga a não denunciar o contrato de trabalho, por um período não superior a três anos, como compensação ao empregador por despesas avultadas feitas com a sua formação profissional”. No nosso entendimento, o disposto neste n.º 1, configura uma certa limitação da liberdade de desvinculação do trabalhador ao contrato de trabalho. Neste sentido, e sendo a posição que adotámos, Luís Almeida Carneiro refere que “o pacto de permanência consiste numa limitação voluntária do trabalhador ao seu direito de denúncia do contrato de trabalho”⁴⁰ .

Pelo que, enquanto vigorar o pacto de permanência, “o trabalhador renuncia à possibilidade de denúncia ad nutum do seu contrato de trabalho”⁴1 .

Por sua vez, convencionam as partes que o trabalhador não se possa desvincular do contrato de trabalho durante um período de tempo não superior a três anos como forma de compensar o empregador pelas despesas tidas com a sua formação profissional.

3⁸ JACQUES CLESSE et FABIENNE KÉFER, Manuel de droit du travail, Collection de la Faculté de droit de l’Université de Liège, Éditions Larcier, 2014, pág. 402.

3⁹ Para LUÍS ALMEIDA CARNEIRO, Dever de Formação e Pacto de Permanência, Almedina, Coimbra, fevereiro 2015, pág. 177, “o pacto de permanência limita a liberdade de desvinculação do trabalhador constituindo uma exceção ao princípio constitucional da liberdade de trabalho (art.º 47.º, da CRP). Como exceção a um princípio constitucional a lei admite-o em termos restritos, ou seja, desde que verificados os requisitos constantes da lei, máxime do art.º 137.º do Código do Trabalho”.

⁴⁰ LUÍS ALMEIDA CARNEIRO, Dever de Formação e Pacto de Permanência, Almedina, Coimbra, fevereiro 2015, pág. 169. ⁴1 Idem, Ibidem, pág. 169.

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Todavia, fica salvaguardada a posição do trabalhador, se ocorrer um dos casos de resolução com justa causa elencados no artigo 394.º do CT, pelo que o regime da resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador é aplicável e ainda, a posição do trabalhador fica salvaguardada na hipótese de este se desobrigar do cumprimento daquele acordo mediante o pagamento do montante correspondente às despesas nele referidas, conforme n.º 2, do artigo 137.º do CT.

Nesta senda, havendo incumprimento do pacto de permanência por parte do trabalhador, e que o incumprimento desse pacto tenha originado despesas ao empregador, o trabalhador só será responsável pelo pagamento até ao limite das despesas suportadas com a sua formação.

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4. A revogação da denúncia

A declaração da denúncia pode ser revogada pelo trabalhador e, nas palavras de Pedro Romano Martinez, “trata-se de uma exceção à regra geral da irrevogabilidade das declarações negociais (230.º CC), pois admite-se que o trabalhador, num prazo limitado, revogue a declaração negocial de denúncia do contrato de trabalho”⁴2 .

Assim, quanto à revogabilidade da denúncia, estabelece o artigo 402.º do CT a faculdade de o trabalhador poder revogar unilateralmente a denúncia do contrato de trabalho. Parece-nos, numa primeira leitura, que o legislador concede ao trabalhador um “direito de arrependimento” caso este, num certo período temporal, venha a concluir que não pretende pôr fim ao vínculo contratual.

Deste modo, a revogação da denúncia, poderá ser realizada até ao sétimo dia seguinte à data em que a declaração chegou ao poder do empregador, através de comunicação escrita, mas desde que a assinatura da declaração de denúncia não tenha sido objeto de reconhecimento notarial presencial.

Portanto, a regra é que o trabalhador dispõe de sete dias para revogar a denúncia do contrato de trabalho por si efetuada, sendo exceção, a impossibilidade de o fazer se a assinatura que apôs na denúncia tiver sido reconhecida notarialmente.

Como refere João Leal Amado “a faculdade de revogação unilateral da declaração extintiva do trabalhador (isto é, o «direito de arrependimento») não existirá, em princípio, na hipótese de a assinatura do trabalhador ser objeto de reconhecimento notarial presencial, conforme estabelece o n.º 1 do art.º 402.º do CT. Na ótica da lei, a realização da assinatura na presença do notário garante a genuinidade e a atualidade da declaração extintiva proferida pelo trabalhador, evitando práticas fraudulentas por parte do empregador e exigindo do trabalhador uma reflexão acrescida, pelo que, em tal situação, o trabalhador não gozará daquele direito potestativo de desfazer o declarado”⁴3 .

A este respeito e com interesse no âmbito do reconhecimento da assinatura, salientamos o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02-02-2023, no processo n.º 556/20.1T8PTG.E1⁴⁴, onde firma que a assinatura do trabalhador, para efeitos de revogação da denúncia, tem que ser reconhecida presencialmente por notário, vedando que a mesma seja reconhecida por outras entidades habilidades para o efeito, como advogados ou solicitadores⁴⁵ .

⁴2 PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 2017, 8.ª edição, pág. 985.

⁴3 JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2014 págs. 445 e 446.

⁴⁴ Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02-02-2023, processo n.º 556/20.1T8PTG.E1, em que é relator Francisco Sousa Pereira, acessível em:

⁴⁵ Discordamos da posição aqui assumida, designadamente quanto ao reconhecimento de assinatura apenas poder ser efetuado por notário, dado que nos termos do artigo 38.º do Decreto-Lei nº 76-A/2006 de 29-03-2006, foram atribuídas competências no sentido de “ n.º 1 (…) os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial” e no n.º 2 “Os reconhecimentos, as autenticações e as certificações efetuados pelas entidades previstas nos números anteriores conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais atos tivessem sido realizados com intervenção notarial”. Apesar de discordarmos que a assinatura tenha que ser reconhecida, exclusivamente, por notário, não teceremos aqui mais comentários sobre esta temática, dado que não é esse o objeto de estudo.

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5. Abandono do trabalho

A figura do abandono do trabalho está plasmada no artigo 403.º do CT e surge “como uma hipótese de rutura ilícita/irregular do contrato por iniciativa do trabalhador”⁴⁶, porquanto, mesmo que seja intenção de cessar o contrato de trabalho, esta não é precedida de qualquer comunicação, não é invocada qualquer justa causa pelo trabalhador nem é respeitada a formalidade do aviso prévio. Verifica-se, somente, “a ausência do trabalhador do serviço acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelam a intenção de não o retomar”, conforme n.º 1, do artigo 403.º do CT. Pelo que, às faltas injustificadas têm que acrescer factos que indiquem, com toda a probabilidade, que o trabalhador não pretende retomar o trabalho⁴⁷

O n.º 1, do artigo 403.º do CT elenca os elementos constitutivos do abandono do trabalho:

i) a ausência do trabalhador do serviço; ii) acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelam a intenção de não o retomar.

Assim, os dois elementos que a lei exige, constitutivos da figura do abandono ao trabalho são, para além da ausência ao serviço, factos reveladores e inequívocos daquela intenção.

No entanto, nem toda a ausência corresponde a uma situação de abandono do trabalho, ainda que seja injustificada. Numa situação de abandono do trabalho, o trabalhador adota um comportamento demonstrativo da sua vontade de não continuar com o vínculo laboral.

Pelo que, é necessário que ao elemento objetivo (ausência ao serviço) se una ao elemento subjetivo, que se prende com o animus extintivo por parte do trabalhador no momento do abandono, isto é, factos que, com toda a probabilidade, revelem a vontade do trabalhador em dissolver o contrato⁴⁸-⁴⁹-⁵⁰

Este animus extintivo, como ensina Jorge Leite, extrair-se-á de factos concludentes reveladores da intenção do trabalhador não retomar o seu trabalho e, assim, fazer cessar o seu vínculo laboral⁵1 .

No caso de abandono prolongado, presumido, o n.º 2, do artigo 403.º do CT estabelece uma presunção juris tantum⁵2 de abandono do trabalho. Esta presunção verifica-se quando o trabalhador se ausenta do serviço, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, “sem que o empregador seja informado do motivo da ausência”, conforme parte final do n.º 2, do artigo 403.º do CT.

⁴⁶ JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 455.

⁴⁷ É a denominada ausência qualificada, conforme VIEIRA GOMES, Direito do Trabalho, ob. cit. pág. 1072.

⁴⁸ A expressão “animus extintivo” é de JORGE LEITE, “A figura do abandono do trabalho”, in Prontuário de Legislação do Trabalho, n.º 33, CEJ, 1990.

⁴⁹ “Que la voluntad relevante es la que se tiene al momento de abandonar, no la distinta que se pueda tener en momento ulterior” – MANUEL ALONSO OLEA, “La Extincion del Contrato de Trabajo por Decision del Trabajador”, in Revista de Política Social, n.º 126, abril/junio, 1980, pág. 146. Disponível em: em: https://www.cepc.gob.es/publicaciones/revistas/revista-de-politica-social/numero-126-abriljunio-1980/la-extinciondel-contrato-de-trabajo-por-decision-del-trabajador-1

⁵⁰ A este respeito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 592/11.9TTFAR.E1.S1, de 06/12/2016, em que é relator Ferreira Pinto: “Para que haja abandono do trabalho são necessários dois requisitos: - Um elemento objetivo, constituído pela ausência do trabalhador ao serviço, ou seja pela sua não comparência voluntária e injustificada no local e tempo de trabalho a que estava obrigado; - Um elemento subjetivo, constituído pela intenção de não retomar o trabalho, isto é, a intenção de comparência definitiva do local de trabalho”. Disponível em:

⁵1 E como exemplifica este autor, “será o caso (…) de o trabalhador deixar de comparecer ao serviço, tendo, entretanto, celebrado e começado a executar um contrato de trabalho com outra entidade empregadora, incompatível com o cumprimento do primeiro, ou ainda de o trabalhador se ausentar para o estrangeiro, após obter a necessária licença de residência e de trabalho nesse país”, Cfr. JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 456.

⁵2 A presunção juris tantum é uma presunção relativa, que admite prova em contrário; por contraposição à presunção juris et de iure, absoluta, que já não admite essa prova.

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A este respeito observa Jorge Leite que, se um trabalhador, após as suas férias, comunica à empresa que só retomará o trabalho 20 ou 30 dias depois sem indicação de qualquer motivo, não se poderá presumir o abandono, se bem que o trabalhador possa incorrer em faltas injustificadas, com as inerentes consequências disciplinares⁵3. Assim, mais do que o motivo da ausência, basta, para evitar a referida presunção, que o trabalhador comunique a ausência ⁵⁴

No caso do trabalhador, decorridos os 10 dias de ausência voluntária e injustificada, não comunicar expressa ou tacitamente do motivo da sua não comparência, trata-se de uma presunção legal, prevista no n.º 4, do artigo 403.º do CT, ou seja, a presunção de abandono poderá “(…) ser ilidida pelo trabalhador mediante prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação ao empregador da causa da ausência”. Isto é, trata-se aqui de provar que a comunicação da ausência só não foi expedida, ou só não foi conhecida ou cognoscível do empregador, porque um qualquer acontecimento natural e/ou uma qualquer ação alheia o impediram⁵⁵ .

O abandono do trabalho vale como cessação irregular do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, sem justa causa e sem aviso prévio. Ademais, diz-nos o n.º 3, do artigo 403.º do CT que “o abandono do trabalho vale como denúncia do contrato, só podendo ser invocado pelo empregador após comunicação ao trabalhador dos factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo, por carta registada com aviso de receção para a última morada conhecida deste”, ou seja, o envio desta comunicação é uma condição de eficácia da extinção do vínculo imputável ao trabalhador, sem a qual o efeito extintivo do contrato não se produz⁵⁶. Trata-se, assim, de uma formalidade ad substantiam. Assim, o contrato de trabalho considera-se efetivamente denunciado quando se verificar a comunicação pelo empregador ao trabalhador, prevista no n.º 3, do artigo 403.º do CT.

⁵3 JORGE LEITE, A figura do abandono do trabalho, ob. cit. pág. 126.

⁵⁴ Idem, Ibidem, pág. 126.

⁵⁵ JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 457.

⁵⁶ JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 458.

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6. Casos excecionais em que o empregador pode denunciar o contrato de trabalho

Como já se aduziu, o contrato de trabalho não pode, pura e simplesmente, ser denunciado pelo empregador, predominando os interesses de estabilidade do emprego.

Há, no entanto, duas exceções em que é possível ao empregador denunciar o contrato de trabalho sem invocação de justa causa: durante o período experimental e nos contratos de comissão de serviço.

6.1. Período experimental

Este período experimental “corresponde ao tempo inicial de execução do contrato de trabalho, durante o qual as partes apreciam o interesse na sua manutenção”, conforme n.º 1, do artigo 111.º do CT.

É um período onde coloca o trabalhador numa posição vulnerável, com a consequente fragilidade do vínculo laboral, sendo facilmente dissolvido por qualquer uma das partes, porquanto será um período onde ambas as partes se vão certificar, no caso do empregador, se o trabalhador corresponde ou possui as caraterísticas necessárias para o desempenho das suas funções⁵⁷; e quanto ao trabalhador, avaliar as condições para realizar a sua atividade profissional⁵⁸. Daqui resulta que o período experimental se destina a “averiguar se, quer para o trabalhador, quer para o empregador, o contrato de trabalho é visto como benéfico aos seus interesses”⁵⁹ .

Pelo que se compreende, assim, que durante o período experimental, qualquer uma das partes pode denunciar o contrato de trabalho sem aviso prévio e sem necessidade de invocação de justa causa, não havendo lugar a qualquer indemnização, conforme prevê o n.º 1, do artigo 114.º do CT.

Porém, o n.º 2, do artigo 114.º do CT obriga o empregador a um aviso prévio de sete dias, caso o período experimental tenha durado mais de 60 dias, ou um aviso prévio de trinta dias, caso o período experimental tenha durado mais de 120 dias⁶⁰. Sendo certo que, o não cumprimento do pré-aviso “determina o pagamento da retribuição correspondente ao aviso prévio em falta”, conforme n.º 4, do artigo 114.º do CT.

Certo também é que existe neste período uma experiência para ambas as partes, sendo possível tanto ao empregador como ao trabalhador pôr termo à relação contratual, sem necessidade de invocar justa causa.

O período experimental é um elemento natural do contrato de trabalho, não sendo necessário estipulação entre as partes para a existência deste período de experiência. Ao contrário, para que este período experimental não conste do contrato de trabalho tem que ser expressamente excluído, por escrito, tal como consta no n.º 3, do artigo 111.º do CT, que nos diz que “o período experimental pode ser excluído por acordo escrito entre as partes”.

⁵3 JORGE LEITE, A figura do abandono do trabalho, ob. cit. pág. 126.

⁵⁴ Idem, Ibidem, pág. 126.

⁵⁵ JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 457.

⁵⁶ JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 458.

⁵⁷ É no período experimental que o empregador poderá constatar se o trabalhador tem as capacidades e aptidões necessárias para o exercício das suas funções.

⁵⁸ Neste período, o trabalhador terá a oportunidade de avaliar circunstâncias concretas, como as condições de trabalho, as funções a desempenhar, bem como as caraterísticas do empregador e formular um juízo sobre a manutenção daquele emprego ou não.

⁵⁹ Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito do Trabalho, 2.ª edição, Almedina, 2010, pág. 276.

⁶⁰ Nos contratos sem termo, a lei prevê diferentes prazos consoante o grau de responsabilidade das funções assumidas, e ainda a natureza ou tipo de contrato, nos termos do artigo 112.º n.º 1, do CT.

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No entanto, o empregador não pode aproveitar o período experimental para cessar o vínculo contratual com base nas suas convicções ideológicas, políticas, religiosas, orientação sexual, entre outros, dado que se enquadra na figura do abuso de direito, e nos termos do n.º 7, do artigo 114.º do CT “é ilícita a denúncia que constitua abuso do direito”. Certo é que, a prova da motivação do despedimento com base nas convicções do trabalhador é, muitas vezes, uma tarefa muito difícil, deixada a cargo do trabalhador.

Impõe-se analisar também esta figura do “período experimental”, à luz do artigo 53.º da Constituição da República Portuguesa, onde se lê que “é garantida a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”. E, um dos aspetos mais controversos deste regime tem que ver com a possibilidade de despedimento sem justa causa, conforme consta do n.º 1, do artigo 114.º do CT.

E, tal como prevê o n.º 1, do artigo 114.º do CT, salvo acordo em contrário, qualquer das partes pode livremente denunciar o contrato de trabalho sem aviso prévio e invocação de justa causa, nem prevê o direito a qualquer indemnização.

Parece-nos, pois, do que aqui se retira, deste n.º 1, do artigo 114.º, que é precisamente o sentido inverso do que se pretende com o artigo 53.º da CRP, designadamente a proibição dos despedimentos sem justa causa.

Todavia, não se pretende com isto dizer que a norma do artigo 114.º do CT é inconstitucional, mas que se encontra nesse limiar. Aliás, a doutrina é unânime em afirmar que tal norma é constitucional ou, pelo menos, situam-se no limite da constitucionalidade⁶1 .

Pretende-se, evidentemente, a estabilidade no emprego, mas na nossa opinião verifica-se aqui um “choque” entre o que a CRP proíbe (despedimentos sem justa causa) e o que o CT permite (pois o período experimental admite esses mesmos despedimentos).

Na base de tal entendimento está a própria razão de ser do período experimental e a necessidade de tutelar o risco que o empregador assume quando contrata. E tal como refere João Leal Amado, trata-se de um “instituto vocacionado para diminuir o risco empresarial”⁶2 .

Do que fica exposto, é pertinente ainda acrescentar que a denúncia totalmente livre viola claramente o dever de boa-fé, o qual se manifesta nos deveres de informação impostos às partes durante a execução do contrato. Aliás, isto mesmo parece sustentado pelos princípios constitucionais já mencionados que exigem segurança no emprego e, em virtude disso, que o despedimento seja efetuado de forma justa e motivada.

⁶2 JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit. pág.

⁶1 Tal como refere JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit, pág. 188. No mesmo sentido J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição Portuguesa, ob. cit. pág. 707, levantam algumas dúvidas ao considerarem que o período experimental se enquadra no âmbito de proteção daquele preceito constitucional.
56
187.

6.2. Comissão de Serviço

A figura da comissão de serviço⁶3, cuja natureza se funde em particular relação de confiança, surge ou corresponde, na maioria dos casos, a cargos com um acentuado grau de flexibilidade, sendo que a caraterística deste regime jurídico consiste na circunstância de a comissão de serviço poder cessar, a todo o tempo, por simples manifestação de vontade de qualquer um dos sujeitos, inclusive do empregador⁶⁴ .

Conforme ensina Pedro Furtado Martins, a figura da comissão de serviço, dependendo da modalidade, “pressupõe a prévia existência ou a celebração ex novo de um contrato de trabalho, sujeito à generalidade das regras jurídicas que disciplinam as relações privadas de trabalho subordinado”⁶⁵ .

O mesmo autor refere ainda que a especialidade deste regime resulta, essencialmente, do afastamento de dois princípios estruturantes do Direito do Trabalho: “o princípio da irreversibilidade da categoria profissional e o princípio da segurança do emprego, traduzido na proibição de despedimentos sem justa causa”⁶⁶ .

Os tipos de cargos a serem exercidos em regime de comissão de serviço estão definidos no artigo 161.º do CT, onde prevê as várias hipóteses, como sejam “cargo de administração ou equivalente, de direção ou chefia diretamente dependente da administração ou de diretor-geral ou equivalente, funções de secretariado pessoal de titular de qualquer desses cargos, ou ainda, desde que instrumento de regulamentação coletiva de trabalho o preveja, funções cuja natureza também suponha especial relação de confiança em relação a titular daqueles cargos e funções de chefia”, conforme n.º 1, do artigo 160.º do CT.

Nos termos do n.º 1, do artigo 163.º do CT, a lei reconhece às partes a faculdade de livremente denunciarem a comissão de serviço “mediante aviso prévio por escrito, com a antecedência mínima de 30 ou 60 dias, consoante aquela tenha durado, respetivamente, até dois anos ou período superior”. Apesar de a lei prever a livre denunciabilidade do contrato de comissão de serviço, estabelece que o mesmo seja realizado com aviso prévio.

No entanto, e apesar da livre extinção da comissão de serviço por decisão unilateral do empregador, esta figura surgiu, por um lado da necessidade de confronto entre princípios consagrados no artigo 53.º da CRP, designadamente a garantia constitucional da segurança no emprego e a proibição dos despedimentos sem justa causa, justamente porque permite pôr termo ao vínculo da comissão de serviço independentemente de justa causa e a irreversibilidade da carreira profissional. Por outro lado, satisfazer as especiais exigências de confiança que determinados cargos exigem.

Note-se que não se põe em causa a faculdade de qualquer uma das partes pôr termo à relação laboral sendo, aliás, uma das caraterísticas deste regime de comissão de serviço, mas o que se contesta é a extinção da relação laboral pelo empregador não tendo sido motivada por qualquer causa, comportando, assim, mas nem sempre, na perda do emprego para o trabalhador.

⁶3 A este respeito, diz-nos PEDRO ROMANO MARTINEZ, LUÍS MIGUEL MONTEIRO, JOANA VASCONCELOS, PEDRO MADEIRA DE BRITO, GUILHERME MACHADO DRAY e LUÍS GONÇALVES DA SILVA, Código do Trabalho Anotado, 12.ª edição, Almedina, 2020, pág. 406, que “a comissão de serviço assume-se no Direito do Trabalho como instrumento contratual que permite a ocupação através de nomeações transitórias, de duração limitada, de postos de trabalho que correspondem a necessidades permanentes da empresa”,

⁶⁴ Diz-nos PEDRO FURTADO MARTINS, Cessação do Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 593 que “há modalidades de cessação do contrato de trabalho em regime de comissão de serviço que obedecem a regras próprias desta forma de contratação laboral. Incluem-se aqui a denúncia, por qualquer das partes, a que se refere o artigo 163.º, e a resolução pelo trabalhador, prevista no artigo 164.º, 1, b)”.

⁶⁵ PEDRO FURTADO MARTINS, Cessação do Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 594.

⁶⁶ Idem, Ibidem, pág. 594.

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No que concerne a esta matéria, em particular, e tendo em conta que esta figura não colide com o disposto no artigo 53.º da CRP, António Menezes Cordeiro teceu alguns argumentos que salientam a pertinência da comissão de serviço, defendendo que apesar de não poder estabelecer novas formas de cessação do contrato de trabalho, permite que, sem quebra na estabilidade do emprego, as funções de dirigentes sejam desempenhadas a título precário por trabalhadores não dirigentes, em que terminando a direção regressam à posição em que se encontravam⁶⁷ .

Diferente do que se viu no ponto 6.1. supra, o período experimental nos contratos de comissão de serviço resulta do artigo 112.º n.º 3, sendo um elemento acidental e não natural do contrato de trabalho, porquanto, “a existência de período experimental depende de estipulação expressa no acordo, não podendo exceder 180 dias”.

Diversamente do que acontece com a denúncia do contrato de trabalho no período experimental, em que no caso do contrato ser denunciado pelo empregador, o trabalhador perde, definitivamente, o vínculo à sua entidade empregadora, ficando, assim, sem emprego, enquanto que na comissão de serviço os efeitos da cessação são diferentes para o trabalhador, dado que mantém, em princípio, e dependendo da modalidade de comissão de serviço, a estabilidade no emprego, pois não está em causa a perda do vínculo com a entidade empregadora (entidade que cedeu o trabalhador para outra empresa ou, no caso do trabalhador se manter na mesma empresa, mas tiver transitado para funções diferentes, finda a comissão de serviço, retorna às suas funções iniciais), na medida em que “as comissões de serviço correspondem, pois, a interesses válidos das empresas e não são situações que lesem os trabalhadores nelas envolvidos: as posições destes são à partida precárias não está em causa a estabilidade do emprego, já que em regra os empregados em comissão de serviço, finda esta, voltam à anterior situação na empresa ou à sua categoria previamente determinada”⁶⁸ .

Em todo o caso, e de forma a complementar a análise deste regime, importa aflorar, ainda que sucintamente, as modalidades de comissão de serviço.

As comissões de serviço podem ser internas ou externas. As comissões de serviço internas, são aplicáveis a trabalhadores que já mantêm um contrato de trabalho com o mesmo empregador. As comissões de serviço externas, são aplicáveis a trabalhadores contratados ad hoc fora da empresa, ou seja, sem prévio vínculo jurídico-laboral⁶⁹ .

⁶⁷ ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, Livraria Almedina, 1991, pág. 673.

⁶⁸ LOBO XAVIER, Manual de Direito do Trabalho, ob. cit. pág. 500.

⁶⁹ Sobre as modalidades da comissão de serviço, JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, ob. cit. pág. 155-157.

BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, Manual de Direito do Trabalho, ob. cit. pág. 500-502. PEDRO MARTINS FURTADO, Cessação do Contrato de Trabalho, ob. cit. págs. 594-595.

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7. Considerações finais

Aqui chegados, pretendemos, nestas considerações finais, de forma resumida, sintetizar a análise da figura da denúncia, que se insere na modalidade de cessação do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador. Vimos que esta temática, por se considerar constitucionalmente relevante, é consagrado na Constituição da República Portuguesa um conjunto de princípios relativos aos direitos sociais e económicos dos trabalhadores, sendo aqui de destacar o artigo 53.º da CRP –segurança no emprego. A cessação do contrato de trabalho é, assim, um dos temas onde mais se faz sentir a sensibilidade político-jurídica ao nível do direito laboral. A atribuição pelo nosso ordenamento jurídico da liberdade concedida ao trabalhador de extinguir, a todo o tempo, o contrato de trabalho, traduz-se no desejo de garantir essa própria liberdade.

É certo que, sendo um contrato de trabalho uma relação duradoura, não implica que essa vinculação seja perpétua. Aliás, vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de desvinculação, sendo esse o corolário da sua liberdade de trabalho e da própria dignidade da pessoa.

Tratando-se aqui da denúncia com aviso prévio. É uma forma de extinção caraterística dos contratos por tempo indeterminado. Considerando a indeterminação temporal em que se deixou o contrato de trabalho, percebe-se, pois, que o mesmo poderá deixar de servir os interesses do trabalhador e, assim, compreende-se que este possa, a todo o tempo, desvincular-se daquela relação laboral.

A denúncia com aviso prévio consubstancia uma forma de cessação unilateral do contrato de trabalho, e vem reconhecer ao trabalhador a faculdade deste fazer cessar o vínculo que o une unilateralmente e sem necessidade, para o efeito, de invocar justa causa.

Mas sendo o aviso prévio uma formalidade ad substantiam, pretendendo-se, desta forma, evitar uma rutura inesperada e uma quebra abrupta da relação contratual bem como as consequências que podem advir da falta do mesmo ao empregador, percebe-se que o aviso prévio seja entendido como uma condição de regularidade da denúncia.

Porém, se a denúncia do contrato de trabalho for realizada sem o cumprimento dessa formalidade, apesar de válida, manifesta-se irregular. Neste caso, e apesar do termo do contrato, o incumprimento total ou parcial deste aviso prévio constitui o trabalhador na obrigação de indemnizar o empregador do período de aviso prévio em falta.

Decorrente da denúncia, e como que se de um “direito de arrependimento” se tratasse, a lei concede ao trabalhador, até ao sétimo dia útil seguinte à data em que a denúncia chegou ao poder do empregador, que este revogue a declaração de cessação do contrato de trabalho, permitindo ao trabalhador naquele período de tempo avaliar e pensar melhor se a sua declaração foi precipitada, não correspondendo efetivamente à sua vontade real, mas apenas num impulso momentâneo. Este “direito de arrependimento” só será possível se a assinatura do trabalhador não tiver sido reconhecida notarialmente.

Outra parte do nosso estudo incidiu num caso especial de denúncia, o “abandono do trabalho”. O legislador define-o, no artigo 403.º do CT, como a ausência do trabalhador ao serviço acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelem a intenção de não o retomar. Esta ausência deve ser voluntária e injustificada. Presume-se abandono se, decorridos 10 dias de ausência não seja efetuada comunicação expressa ou tácita da sua não comparência ao empregador. Neste caso, o vínculo laboral só se extingue, quando o empregador enviar uma comunicação ao trabalhdor, sendo uma condição de eficácia da extinção do vínculo imputável, sem a qual o efeito extintivo do contrato não se produz . Trata-se, assim, de uma formalidade ad substantiam. Assim, o contrato de trabalho considera-se efetivamente denunciado quando se verificar a comunicação pelo empregador ao trabalhador, prevista no n.º 3, do artigo 403.º do CT.

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Por entendermos pertinentes para o presente estudo, analisámos ainda as duas exceções em que é possível ao empregador denunciar o contrato de trabalho sem invocação de justa causa: durante o período experimental e nos contratos de comissão de serviço. Enquanto que no período experimental o vínculo laboral cessa definitivamente, se ocorrer a denúncia, no contrato de comissão de serviço, e dado que é baseado em relações de confiança, o contrato de trabalho do trabalhador poderá manter-se, pois naquele contrato de comissão de serviço o trabalhador apenas transitou para outras funções. Cessando o contrato de comissão de serviço, o trabalhador retorna, na maioria das vezes, ao seu posto de trabalho inicial, estando neste caso, o trabalhor mais protegido da rutura do vínculo contratual.

Concluímos, afirmando que a matéria da cessação do contrato de trabalho deve uma parte considerável do seu conteúdo aos problemas relacionados com a própria rutura do vínculo contratual e face às necessidade de uma sociedade em constante mutação, o Direito do Trabalho deve moldar-se a esta realidade tão imprevisível que visa disciplinar, de forma a garantir a menor distância entre as normas jurídicas e a realidade.

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* Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de outubro de 2009, Processo n.º 1996/05.1TTLSB.S1 (relator Vasques Dinis):

* Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02 de fevereiro de 2023, Processo n.º 556/20.1T8PTG.E1 (relator Francisco Sousa Pereira):

* Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06 de dezembro de 2016, Processo n.º 592/11.9TTFAR.E1.S1:

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A PROPRIEDADE HORIZONTAL – A PROBLEMÁTICA

DA TRANSMISSIBILIDADE OU INTRANSMISSIBILIDADE DAS DÍVIDAS DE CONDOMÍNIO

ÉLIO RENATO MARTINS PEREIRA Aluno do curso em solicitadoria

Lista de Siglas

CC – Código Civil

DPA – Documento Particular Autenticado

Ac. - Acordão ss. - seguintes

ÍNDICE

Introdução

1. O contrato de compra e venda e a propriedade horizontal

2. As obrigações Propter Rem

2.1 A ambulatoriedade das obrigações

3. Análise jurisprudencial

3.1 Acordão do Tribunal da Relação do Porto, proc. nº 3526/16.0T8MAI-A.P2, de 7 de outubro de 2019

4. Lei 8/2022, de 10 de janeiro

4.1 Análise Crítica

Conclusão

Bibliografia

Jurisprudência

Introdução

Com a redação deste trabalho, pretendemos debruçar-nos sobre o estudo de uma das vicissitudes inerentes ao contrato de compra e venda sobre uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal – a questão da transmissibilidade (ou intransmissibilidade) das dívidas de condomínio para o novo comprador.

Esta tem sido uma temática controversa na doutrina e na jurisprudência dos tribunais portugueses, as quais nos propomos a analisar neste trabalho, sendo certo que não tem havido, até então, uma orientação uniforme a seguir aquando do levantamento destas questões em lítigio.

Para levar a bom porto este estudo, procederemos à análise do regime da propriedade horizontal, de forma muito breve e da lei 8/2022, de 10 de janeiro, que veio trazer novidades a este regime e alguma clarividência a estas questões e perceber, afinal, até que ponto o novo comprador veio a ficar protegido por esta nova lei, fazendo uma exposição crítica relativamente aos pontos que nos parecem mais frágeis desta nova lei.

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1. O contrato de compra e venda e a propriedade horizontal

O contrato de compra e venda encontra-se regulado pelos artigos 874º e ss do CC, capítulo I, título II, Livro II que o define no nº1 do referenciado artigo como “o contrato pelo qual se transmite a propriedade1 de uma coisa ou outro direito mediante um preço”.

Através do contrato de compra e venda, o bem abandona a esfera jurídica do seu alienante, por força do príncípio da consensualidade, constante do artigo 408º do CC, para passar a integrar a esfera jurídica do adquirente, não sendo para isto necessário que se verifique quer a tradição da coisa, ou sequer o pagamento do preço – a transmissão da propriedade dá-se por mero efeito do contrato e passa, então, o alienante a ter o domínio sobre a coisa. Contudo, no âmbito da propriedade horizontal poder-se-á dar o caso de sobre o alienante penderem ainda obrigações –as chamadas obrigações propter rem. Para isto importa, em primeiro lugar, atentar ao regime da propriedade horizontal.

O regime da propriedade horizontal encontra-se previsto nos artigos 1414º e seguintes do CC e, mesmo não oferencendo estes preceitos uma concreta definição acerca do mesmo, pode esta ser depreendida pela conjugação da análise das supramencionadas normas. Assim sendo, estamos perante uma situação de propriedade horizontal sempre que um prédio urbano que esteja dividido em frações e que estas sejam suscetíveis de constituir unidades independentes 2 ligadas entre si pela existência de partes comuns3, essenciais à funcionalidade das diversas frações autónomas do prédio. É um instrumento jurídico com elevada pertinência a nível económico e social, enquanto meio de organização e de satisfação de necessidades prementes dos condóminos.

Em situação de propriedade horizontal coexitem dois direitos reais diferenciados: o direito de propriedade sobre as partes próprias de cada condómino (este é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence), e um direito de compropriedade relativamente às partes comuns do edifício, cuja fruição e conservação, assim como o pagamento de serviços de interesse comum, incumbe aos condóminos, na proporção do valor das suas frações. É à administração do condomínio a quem cabe o ónus da cobrança de dívidas existentes, intimando os condóminos à satisfação das mesmas.

É aqui que reside o cerne da questão que nos levou à redação deste estudo, o qual vamos explorar no tópico seguinte.

1 Artigos 1302º e ss do Código Civil.

2 LEITÃO. Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2021. ISBN 9789894007272p. 315

3 Artigo 1421º do Código Civil.

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2. As obrigações Propter Rem

Como referenciado supra, no âmbito da propriedade horizontal, incumbe a cada condómino, na qualidade de comproprietário das partes comuns do edífico, na proporção do valor da sua fração, o pagamento de serviços de interesse comum para os condóminos. Neste âmbito, coloca-se então a questão de perceber, numa situação de compra e venda de fração autónoma, em que existam dividas de condomínio, quem será responsável pela satisfação das mesmas, se o alienante ou se, por outro lado, é o comprador o responsável por prestações de condomínio já vencidas à data da aquisição.

A resposta a este impasse vê-se muitas vezes simplificada quando as partes convencionam acerca de sobre quem vai recair a responsabilidade por tais encargos, pelo príncipio da liberdade contratual, constante do artigo 405º do CC. O problema surge quando as partes nada dispõem neste sentido. A este respeito a doutrina tem encontrado soluções diferentes, as quais nos propomos a analisar no decurso deste trabalho.

As obrigações em causa são obrigações propter rem⁴ ou ob rem. Estas entendem-se como aquelas em que o sujeito passivo (o devedor) se determina em função da titularidade de um qualquer direito real sobre a coisa.⁵ No mesmo sentido, Antunes Varela considera que a obrigação é real quando advém da titularidade de determinada coisa porque “dada conexão funcional existente entre a obrigação e o direito real, a pessoa do obrigado é deteminada através da titularidade da coisa”. Daqui se depreende que a obrigação existe por causa da res, ou seja, da coisa, sendo obrigado aquele que for o titular do direito real⁶ .

2.1. A ambulatoriedade das obrigações

A ambulatoriedade das obrigações entende-se como sendo a capacidade das obrigações acompanharem o direito real ao qual estão funcionalmente ligadas, no momento da transmissão do último. Não existe um regime único específico que nos ofereça uma resposta objetiva à problemática da ambulatoriedade ou não das obrigações reais, pelo que, a doutrina se tem dividido em duas posições contrapostas.

A primeira argumenta no sentido de que a obrigação real acompanha o direito real através do qual esta se determina, sempre. Esta será uma das principais características das obrigações propter rem, que se acreditam ambulatórias.

Por seu turno, doutrina existe também no sentido em que as obrigações propter rem são não ambulatórias, isto é não acompanham o bem. Ao invés, incidem, na verdade, sobre uma determinada pessoa, ou seja, ganham autonomia face ao direito real ao qual estão funcionalmente ligadas e seguem o regime das obrigações em geral, apenas se distinguindo pela fonte de onde emergem⁷. Assim, a obrigação do pagamento das dívidas fica a cargo de quem for o titular do direito real no momento em que se verifique a circunstância para o seu nascimento – ou seja, a cargo do alienante⁸ .

⁴ Artigo 1424º do CC. MESQUITA. Manuel Henrique. “A Propriedade Horizontal no Código Civil Português”, ob. cit, p. 130.

⁵ CORDEIRO, António Menezes. Direitos Reais. Coimbra: Almedina. 2022. ISBN 9789894001188. p. 367

⁶ VARELA. João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral (volume I). Coimbra. Almedina. 2017. 9789724013893 p. 200.

⁷ Bondi, La servitù, p.716, citado por Mesquita, Manuel Henrique, p.323

⁸ TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO. Processo n.º 0753550, disponível em www.dgsi.pt

⁹ Neste sentido, segue, a título de exemplo, o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, processo 99/18.3T8OVR-A.P1, de 2020, disponível em www.dgsi.pt

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Como referido, dada a falta de legislação que confira uniformidade neste domínio, doutrina existe também que apresenta uma tese conciliadora, de acordo com a qual deve prevalecer uma solução que atenda às circunstâncias de cada caso concreto. Manuel Henrique Mesquita apresenta, então, uma solução segundo a qual:

- são ambulatórias as obrigações reais de facere, ou seja, aquelas que colocam ao devedor o ónus da prática de atos materiais sobre a coisa da qual deriva o direito real, como é o caso da prevista no artigo 1567º do CC. Neste sentido, a transmissão do bem exonera, então, o transmitente do dever de prestar, passando este ónus a incidir sobre o adquirente, detentor do direito real.⁹

- são não ambulatórias todas as demais obrigações propter rem, excetuando aquelas cujos pressupostos materiais se encontrem objectivados na coisa sobre a qual o direito real incide, como por exemplo, as obrigações que advêm do nº1 do artigo 1424º do CC.

Para este Professor, serão da responsabilidade do adquirente as obrigações propter rem em que cujo respetivo proveito (imaginemos o caso de obras de reparação do telhado, como avança o autor) nunca será do alienante que acordou com as mesmas, mas sim do adquirente, nos casos em que a alienação da fração tiver sido anterior à real concretização da benfeitoria no edifício – a solução para estes casos será, para Manuel Henrique Mesquita, a da ambulatoriedade. O mesmo acontece no caso de situações em que o adquirente disponha objetivamente de todos os elementos para que se aperceba da existência da obrigação (por exemplo, o mau estado de conservação de alguma das partes do edifício).

Por sua vez, a solução será diferente, isto é, a obrigação será não ambulatória se, à data da alienação, a obra em questão estiver já concluída, não tendo ainda o alienante da fração cumprido com a sua obrigação de pagar o preço devido pela mesma.

Para melhor entender esta questão, vamos proceder agora à análise de um acórdão que colhe do entendimento avançado pelo Professor Manuel Henrique Mesquita relativamente à necessidade de uma apreciação casuística para a aferição acerca da ambulatoriedade ou não das obrigações propter rem

3. Análise jurisprudencial

3.1 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proc. nº 3526/16.0T8MAI-A.P2, de 7 de outubro de 2019

Ora, na situação sub judice, B e C, executados neste processo, vieram a ser condenados, por sentença do tribunal de primeira instância, ao pagamento de despesas com partes comuns de um imóvel em regime de propriedade horizontal que, entretanto, alienaram devidas por obras iniciadas em maio de 2014 e terminadas em junho de 2015. Inconformados, os aqui executados vieram deduzir embargos, pedindo pela extinção da execução, fundamentando o pedido com o facto de o bem ter sido bem próprio da executada mulher, sendo por isso ilegítimo demandar o aqui excutado marido e, para além disso, o mesmo bem tinha sido transmitido a terceiro, A, tendo sido acordado no momento da venda que este adquirente seria responsável pelo pagamento das quotas referentes a obras.

Ora, os embargos vieram a proceder parcialmente, na medida em que se aceitou a ilegitimidade do executado, mas a decisão proferida veio no sentido de confirmar o prosseguimento da execução contra B para a cobrança coerciva da quantia de 6.228.80€, acrescida de juros desde a data de vencimento da dívida. Inconformada, veio a executada interpôr o presente recurso, onde alegou, de forma muito resumida que:

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- o comprador sabia da existência destas obras, tendo assumido o pagamento do custo das mesmas, daí o imóvel ter sido vendido a um preço mais reduzido relativamente ao que seria caso o comprador não se tivesse comprometido neste sentido;

- que as obras só tiveram início quatro meses após a venda e que, por isso, a executada (aqui recorrente) nunca chegou a usufruir, em momento algum, das alterações e melhorias feitas através desta obra, pelo que, não se justifica que o transmitente tenha de custear uma despesa da qual nao retirará nunca nenhum proveito;

- os novos proprietários do imóvel foram os únicos a usufruir do aumento de valor que a obra trouxe à fração;

- que a obrigação em causa, cabendo no texto do artigo 1424º nº1 do CC é uma obrigação propter rem, inerente à coisa em si e não à pessoa do seu proprietário pelo que a obrigação incumbirá a quem for o titular do direito real, por isso, com a transmissão do bem, dá-se também a transmissão da responsabilidade pelo pagamento das quotas para o comprador.

O tribunal chamado a decidir em segunda instância colhe o entendimento avançado pelo Professor Manuel Henrique Mesquita, explanado supra.

Entende o tribunal que deve ser feita uma análise casuística ao caso, dizendo desde logo que “descendo ao caso concreto cremos, salvo o devido respeito, que a resposta para a questão colocada no recurso não pode ser a que ditou a decisão recorrida”. Afinal, resulta dos autos que as obras foram de facto iniciadas após a alienação do bem, o que quer dizer que aquando desta, “o adquirente da fracção autónoma dispunha objetivamente de todos os elementos para se aperceber da existência da obrigação, bastando-lhe para isso, confrontar a situação material da coisa com o regime legal do condomínio” – a solução mais razoável nestes casos penderá, necessariamente para a ambulatoriedade da obrigação real.

Ademais, como avança a recorrente, não se vislumbra qualquer justificação em termos de justiça distributiva para que o alienante, aqui recorrente, tenha de contribuir para uma despesa da qual não retirará proveito algum, não sendo já proprietário do imóvel.

Em suma, entendeu este tribunal que se “a obrigação de pagar as despesas do condomínio é uma obrigação propter rem, o obrigado determina-se em função da coisa e não, intuitu personae, pelo que dúvidas não podem subsistir quanto a quem deve estar adstrito ao cumprimento da aludida obrigação. Independentemente de se considerar que o vendedor pode ser (também) responsabilizado por tal pagamento (nomeadamente ao nível das relações internas - comprador/vendedor), conclui-se que tal responsabilidade impende sobre o comprador, como dono actual da fracção, de harmonia com o princípio propter rem que caracteriza as obrigações em questão”. Assim sendo, o tribunal da relação do Porto julgou a apelação da recorrente procedente, determinando a extinção da execução em relação à própria.

4. Lei 8/2022, de 10 de janeiro

Em abril do transato ano de 2022 entrou em vigor a Lei 8/2022, de 10 de janeiro que veio trazer substanciais alterações à vida dos condomínios, tendo procedido à revisão de alguns dos artigos que regulam o regime da propriedade horizontal no CC. Entre muitas outras, naquilo que ao nosso estudo em concreto diz respeito, foi revisto o artigo 1424º por forma a aumentar a segurança do adquirente, no caso de transmissão de frações autónomas, relativamente às quais existam dívidas de condomínio. Mais concretamente, a lei aditou ao CC o artigo 1424º A, relativo à responsabilidade por encargos do condomínio.

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Da leitura do artigo, podemos verificar que passou a recair sobre o condómino alienante o imperativo de requerer, junto da administração, uma declaração escrita relativa às dívidas do condomínio, da qual conste obrigatoriamente:

I. O montante de todos os encargos de condomínio em vigor, a sua natureza e prazos de pagamento;

II. As dívidas existentes, a sua natureza, montantes e datas de constituição e vencimento.

A declaração passou a ser um documento obrigatório da escritura ou DPA de alienação da fração, a menos que o adquirente declare expressamente prescindir de tal declaração, caindo sobre ele a responsabilidade por qualquer eventual dívida do alienante do condomínio.

Esta declaração deve ser emitida no prazo de 10 dias a contar da data do respetivo requerimento de emissão.

4.1. Análise Crítica

É certo que a obrigatoriedade de emissão desta declaração, exigida pelo artigo 1424º A, confere mais segurança aos negócios jurídicos, na medida em que permite aos adquirentes perceber se lhe incumbirão, no futuro, a satisfação de dívidas que não foram contraídas por si, mas por quem seria o titular do direito de propriedade sobre a fração autónoma entretanto adquirida, agora sua. Esta solução já vem a ser adotada noutros países, como Espanha e, ainda que as suas vantagens sejam inquestionáveis, a verdade é que esta lei não veio solucionar esta problemática na sua plenitude.

Ora vejamos: decorre da lei, mormente do artigo 1424º A nº1, que devem constar na declaração as dívidas existentes, ou seja, encargos que se encontrem já vencidos. Estes, estando plasmados na declaração, permitem ao potencial comprador tomar uma decisão mais informada, pois saberá os encargos que irão recair sobre si após a transmissão da titularidade do bem. Contudo, já não fica o adquirente salvaguardado relativamente às dívidas que ainda não se tenham vencido e que foram decididas em Assembleia de Condomínios, quando ainda não fazia dela parte.

A título de exemplo, imaginemos que é aprovado, em 2020 a substituição do elevador do prédio, obra essa a realizar no mês de janeiro do ano de 2023. Ora, em julho de 2022, um dos porprietários de uma fração autónoma procede à venda da mesma, requerendo a emissão da declaração para que o potencial comprador da fração fique informado acerca de todos os encargos pendentes sobre a fração em causa. Nada obriga a que o alienante informe o potencial adquirente deste encargo, uma vez que este ainda não se encontra vencido (o vencimento só se dará em janeiro de 2023).

Para estas situações valerá o nº4 do 1424º A que diz que os encargos que se vençam em data posterior à transmissão da fração são da responsabilidade do novo proprietário, que poderá nem concordar com os mesmos mas será, por lei, obrigado a custeá-los, pois não tinha como saber da existência destes.

Também aqui, neste último ponto, a lei 8/2022 nos parece pecar por uma questão de incoerência e incerteza jurídicas. Senão vejamos: citando supra, resulta do já mencionado artigo 1424º A nº4 que os encargos que se vençam em data posterior à transmissão da fração são da responsabilidade do novo proprietário. Esta ideia é, aparentemente, clara. Mas este preceito normativo não será tão claro assim quando confrontado com o estipulado no artigo 1424º nº1, segundo o qual “as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das frações no momento das respetivas deliberações (...)”.

Ora subsumindo-nos novamente ao exemplo oferecido acima, ficamos confusos relativamente à posição a adotar: será então responsável pelo pagamento da despesa relativa ao elevador o alienante, uma vez que era o proprietário da fração no momento da respetiva deliberação, nos termos do artigo 1424º nº1, ou, por sua vez, será responsável pelo pagamento o adquirente, no respeito pelo estipulado no artigo 1424ºA nº4?

Entendemos chegar aqui a um impasse para o qual a lei 8/2022 não oferece resposta.

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Conclusão

Aqui chegados, podemos agora retirar algumas conclusões acerca do que veio a ser explanado ao longo deste trabalho.

Pese embora a existência de diversas doutrinas relativamente à questão da ambulatoriedade ou não das obrigrações propter rem, os ensinamentos de Manuel Henrique Mesquita e a sua teoria casuística, ou seja, de apreciação das circunstâncias de cada caso concreto, tem sido aquela que tem colhido na maioria da jurisprudência portuguesa como aconteceu no processo do Tribunal da Relação do Porto cuja análise levamos a cabo supra.

Ademais, com a análise da lei 8/2022, conseguimos, de acordo com a nossa ótica, colocar enfâse nas fragilidades deste regime as quais resumimos em dois pontos principais:

- a lei não protege suficientemente a posição do adquirente, na medida em que, caso existam obrigações cujo vencimento dar-se-á em data posterior à da transmissão da fração autónoma, o adquirente, através da declaração, não é informado acerca destas despesas que virão a vencer no futuro e que lhe incumbirão a ele satisfazer – a declaração deveria, no nosso entender, acautelar estas situações de forma a proteger a posição do adquirente que, a nosso ver, só poderia eventualmente ver a sua posição protegida através do regime da compra e venda de bens onerados, previsto nos artigos 905º e ss do CC;

- existe uma evidente contradição entre os artigos 1424º nº1 e 1424º A nº4 ao não permitir perceber sobre quem recai a responsabilidade da satisfação de encargos cuja deliberação pendeu anteriormente à alienação da fração, mas cujo vencimento só se dará em momento posterior.

Em suma, apesar de estar agora mais apto a proteger a posição do adquirente relativamente à satisfação de dívidas de condomínio, o regime da propriedade horizontal padece ainda de fragilidades e contradições que não conferem a tão desejada e necessária segurança ao tráfego jurídico.

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Bibliografia

CORDEIRO. António Menezes. Direitos Reais. Coimbra: Almedina. 2022. 9789894001188.

LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direitos Reais. Coimbra: Almedina 2021. 9ª edição. ISBN 9789894007272.

MESQUITA. Manuel Henrique. Direitos Reais. Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967.

VARELA. João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral (volume I). Coimbra: Almedina 2017. ISBN 9789724013893.

Jurisprudência

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO - Processo nº 3526/16.0T8MAI-A. P2, de 2019, disponível em www.dgsi.pt

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO - Processo nº 99/18.3T8OVR-A.P1, de 2020, disponível em www.dgsi.pt

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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A SOLICITADORIA

DESAFIOS DO ENSINO À PRÁTICA PROFISSIONAL

FRANCISCO GOMES PEREIRA Solicitador Estagiário Licencia do em Direito, em Solicitadoria e em Direção e Gestão Hoteleira Pós-graduado e mestrando em Fiscalidade

Resumo

Os desafios colocados pelo avançar das capacidades da inteligência artificial não devem ser deixados para trás no que à solicitadoria diz respeito. Numa reflexão analítico-dedutiva, pretende-se apreciar o atual desenvolvimento das ferramentas baseadas em inteligência artificial, a forma como elas podem ser utilizadas em favor do ensino do direito bem como da própria prática profissional do solicitador.

O apanágio da profissão não pode ser um entrave à entrada deste corpo estranho, não humano, no desenvolvimento de processos nos quais se integre o recurso à tecnologia mais moderna como vantagem, deixando para trás o ingénuo receio de ver o seu trabalho ser substituído pelas ações de uma máquina.

Palavras-chave: inteligência artificial, educação jurídica, solicitador, digitalização

1.Introdução

A sociedade tem sido confrontada, em especial nos últimos dois anos, com a ampla dispersão da inteligência artificial nomeadamente no que toca à facilidade de acesso a chatbots como é o caso do ChatGPT. Enquanto profissionais da área do direito, os solicitadores devem manter-se sempre atentos aos desenvolvimentos à sua volta, sob pena de se tornarem tecnicamente obsoletos e comprometidos no seu conhecimento e daí surgir a necessidade de uma reflexão sobre qual a postura a adotar perante as evoluções que vão sendo apresentadas.

A observação deve ser realizada considerando, desde logo, a fase prévia à profissionalização, onde devemos incluir a formação, seja ela em contexto universitário, como também em contexto de formação contínua e, naturalmente, a formação profissionalizante como é o caso dos estágios, em especial os que à Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução dizem respeito uma vez que são um elemento necessário ao ingresso nas categorias profissionais por esta representadas e reguladas.

Esta reflexão pretende assim abrir os horizontes quer dos formadores, quer dos profissionais, porquanto estes deverão manter-se atualizados de forma permanente no tocante às ferramentas que vão sendo disponibilizadas, sendo certo de que o segredo para a manutenção ou criação do sucesso profissional passará necessariamente pela adaptação.

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2. O estado da arte

Desengane-se aquele que pensa que o surgimento da inteligência artificial é um evento passageiro e que não irá afetar a forma como o solicitador trabalha – é indiscutível que já está a afetar e irá afetar ainda mais todas as profissões incluindo, naturalmente, as jurídicas. Fornesier1 traz-nos o conceito de “Digitalização Legal” que consiste na difusão de dados jurídicos e na automatização da recolha de informações juridicamente relevantes, como será o caso de leis e jurisprudência, tornando disponíveis formas adicionais de conhecimento jurídico, bem como outras formas variadas de representar esse mesmo conhecimento, sendo este um conceito relevante para entender a fase atual por que está a passar a aceitação dos mecanismos de inteligência artificial pelos profissionais do direito.

Como se verá mais à frente, no âmbito da formação ainda se encontra bastante resistência à entrada das ferramentas que recorrem à inteligência artificial2, utilizando como base e fundamento o eventual desvio do âmago da formação, da pesquisa e da investigação realizada pelos alunos, culminando na problemática da avaliação que poderá ser contaminada pela atuação de uma ferramenta, correndo-se riscos de vir a classificar como aprovados alunos que apenas sabem utilizar melhor uma ferramenta, embora possam não dominar as matérias em avaliação.

Parece-nos ser de acompanhar a posição de Nunes de Souza3, que encontra na premissa a grande questão controversa quanto à integração da inteligência artificial no ensino do direito. Segundo o autor, será limitativo pensar que os cursos jurídicos têm como função informar os estudantes e muni-los de dados sobre cada conteúdo programático, evitando a memorização, mas sim encaminhando os alunos a conseguirem exercer a sua profissão com um desenvolvimento do seu raciocínio jurídico este sim que, pelo menos por agora, não pode ser substituído pelas ações não humanas de uma máquina. Aqueles que tiveram durante o seu percurso académico a oportunidade de experimentar a realização de provas de avaliação com recurso a consulta de bibliografia bem sabem que essas se mostraram as provas em que mais dificilmente os alunos obtinham aprovação e as classificações altas seriam bem mais difíceis de atingir, porquanto o que se pretendia testar não seria a capacidade de memorização mas um raciocínio jurídico num nível bastante mais avançado e que exigia um conhecimento detalhado de diferentes matérias que não permitiriam, num curto espaço de tempo, suficiente assimilação. Ora, parece-nos ser algo semelhante o que acontece com a inteligência artificial. Não deixará de ser curioso também referir que, tanto no bar exam de acesso à profissão de advogado nos Estados Unidos da América, como no exame de acesso à Ordem dos Advogados Brasileiros, apenas em 10% dos casos, as ferramentas públicas de chatbot de inteligência artificial conseguiriam aprovação nos mesmos⁴ .

Na ótica da profissão, muito poucos serão os escritórios que já recorrem a qualquer ferramenta que inclua aplicações baseadas em inteligência artificial sendo, contudo, de ressalvar que a administração pública já recorre, ainda que em casos muito pontuais, a este tipo de aplicações com o objetivo de acelerar processos, oferecendo aos cidadãos e às empresas um melhor serviço público.

1 Mateus de Oliveira Fornasier, Legal Education in the 21st century and the Artificial Intelligence, in Opinião Jurídica, Ano XIX, n.º 31, mai/ago 2021, Fortaleza, Brasil, 2021, p. 7.

2 Andrey Sadkov et al, The phenomenon of digitalization of the legal business education, in SHS Web of Conferences, Edition 01035, Volgograd, Russia, 2021, p. 2.

3 Eduardo Nunes de Souza, Ensino jurídico e inteligência artificial: primeiro esboço de uma abordagem civil-constitucional, in Pensar, Fortaleza, v. 28, n.º 2, abr/jun 2023, p. 11.

⁴ Bruno Garratoni, A inteligência artificial no ensino, in Pensar, Fortaleza, v. 26, n.º 1, out/nov 2022, pp. 12-15.

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3.Desafios na ótica do ensino

Comecemos pela formação onde a introdução de ferramentas de inteligência artificial aparenta ser um avanço promissor e desafiante, mas traz consigo uma série de desafios complexos. Um dos desafios mais iminentes é encontrar o equilíbrio correto entre o uso da tecnologia e a manutenção dos métodos tradicionais de ensino pois se o ensino do direito sempre enfatizou habilidades como o raciocínio crítico, a análise jurídica ou a argumentação, estas não devem deixar de ser o alicerce do seu currículo, ainda que se transmutem pela introdução de novas tecnologias assistidas pela inteligência artificial porquanto esta não deve suplantar esses elementos fundamentais, mas sim complementá-los. Outra preocupação será a questão do acesso e da desigualdade. A disponibilidade e a implementação de tecnologias de inteligência artificial podem variar consideravelmente entre as instituições ou entre os próprios docentes e formadores, criando uma disparidade no nível de educação jurídica oferecida. Além do mais, a dependência da tecnologia é um risco real, podendo existir o risco de os alunos se tornarem excessivamente dependentes de ferramentas de inteligência artificial para pesquisa e análise, abrindo-se um horizonte que poderá vir a prejudicar o desenvolvimento de habilidades críticas de pesquisa e de raciocínio. A capacidade de conduzir pesquisas jurídicas independentes e pensar de forma crítica é essencial para a prática jurídica, e o ensino do direito deve esforçar-se para manter um equilíbrio entre o uso da tecnologia e o cultivo dessas habilidades fundamentais.

A qualidade e o viés dos dados com os quais a inteligência artificial é treinada são outra das preocupações uma vez que se os dados forem tendenciosos ou de má qualidade, tal irá afetar adversamente a qualidade da informação transmitida ao aluno. É crucial garantir que as ferramentas que se baseiam em inteligência artificial a ser utilizadas na educação jurídica sejam baseadas em dados confiáveis e representativos, evitando-se a setorização bem como, quando tal acontecer, garantir que se apresentam e identificam as diferentes perspetivas que a comunidade científica observa.

Não existe, ao dia de hoje, uma ferramenta pública que ofereça simulações realistas de cenários jurídicos o que poderá ser limitativo na preparação adequada dos alunos para todos os aspetos da prática jurídica, especialmente para aqueles que envolvam interações humanas imprevisíveis, habilidades de relacionamento ou, mais complexo ainda, as emoções. Desenganemo-nos aqui sobre a impossibilidade de lá chegarmos pois é certo que tal acontecerá, apenas não está nas nossas mãos saber qual o momento, nem se será num futuro muito próximo ou não tão distante assim.

Adicionalmente, a utilização excessiva da inteligência artificial no ensino poderá cair no erro de levar a um ensino excessivamente padronizado, onde a individualidade do aluno e a flexibilidade do professor seriam minimizadas. Por esta razão, o ensino deverá manter-se personalizado, mas utilizando o recurso às ferramentas de inteligência artificial de forma equilibrada no que toca a abordagens altamente pedagógicas, que valorizem a interação humana e a diversidade de pensamento.

Não menos relevante será a questão da avaliação dos formandos e dos alunos num cenário de disseminação da inteligência artificial, quando coloca em causa os padrões de ética académica. Escusado será trazer à colação que os alunos cada vez mais irão procurar o recurso a ferramentas que lhes facilitem o seu trabalho académico, sendo responsabilidade dos formadores ensiná-los a utilizar estas ferramentas de forma proveitosa para o desenvolvimento do conhecimento científico e, acima de tudo, permitindo-lhes aprender a filtrar a informação correta da incorreta, parecendo-nos desaconselhado, em especial pela sua ineficácia, evitar optar pelo caminho da proibição.

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No rol de possibilidades que já existem, à data de hoje, para recurso a ferramentas de inteligência artificial com aplicabilidade no ensino, podemos encontrar, desde logo, sistemas de aprendizagem personalizada, sendo este um dos usos mais promissores da inteligência artificial na educação, uma vez que estas ferramentas utilizam algoritmos de inteligência artificial para adaptar o material didático ao ritmo e estilo de aprendizagem de cada aluno. Por exemplo, plataformas como a DreamBox Learning⁵ e a Smart Sparrow⁶ oferecem cursos adaptativos que ajustam o conteúdo e as avaliações com base nas respostas e no progresso do aluno. Esses sistemas conseguem identificar áreas em que os alunos estão a enfrentar dificuldades e ajustar o programa para insistir nas suas necessidades específicas. Por outro lado, temos também sistemas de assistência virtual para ensino e formação que nada mais são do que chatbots, como o GhatGPT, mas que são usados para fornecer suporte adicional aos estudantes. Estes mecanismos podem responder a perguntas frequentes, recordar prazos de entrega de trabalhos ou até mesmo auxiliar na compreensão de conceitos mais complexos. Um dos exemplos mais notáveis incluem o chatbot Jill Watson⁷, desenvolvido pelo Georgia Institute of Technology, que atua como um assistente de ensino, respondendo às perguntas dos alunos em fóruns nas plataformas de ensino à distância como o Moodle.

Uma outra integração da inteligência artificial é na avaliação e nos comentários automatizados, como é o caso do Turnitin⁸ que utiliza algoritmos com recurso a inteligência artificial para verificar a originalidade dos trabalhos dos alunos e detetar plágio. Existem ainda outros sistemas que são capazes de avaliar respostas de texto livre e fornecer um comentário personalizado, uma classificação e ajudando os alunos a entender onde podem melhorar. Neste contexto, mas na ótica do docente, as aplicações de análise de dados educacionais permitem identificar tendências e padrões, podendo ajudar os formadores e as chefias das escolas, universidades e centros de formação a tomar decisões mais informadas sobre a eficácia das estratégias de ensino e a alocação de recursos. Por exemplo, sistemas como o Brightspace Insights⁹ utilizados pela Universidade de Nova Iorque nos Estados Unidos da América, recorrem a análise preditiva para identificar estudantes em risco de fracasso, permitindo intervenções precoces e direcionadas. Outras aplicações semelhantes trazem à realidade a monitorização do progresso dos alunos, a frequência de participação em aulas e envolvimento com os diferentes materiais de aprendizagem, permitindo agir em conformidade para evitar o fracasso e a desistência dos cursos.

⁵A aplicação DreamBox Learning começou por ser utilizada para desconstrução de fórmulas matemática e, graças ao seu sucesso no mercado norte-americano, estendeu as suas capacidades para a interpretação e compreensão de textos, desconstruindo-os e tornando-os inteligíveis para todos os públicos. Encontram-se disponíveis mais informações sobre a aplicação no seu site .

⁶A aplicação Smart Sparrow permite a criação intuitiva e com recurso a automatismos baseados em inteligência artificial de aplicações educativas utilizáveis em todos os níveis de ensino, tendo observado, segundo os próprios, um crescimento de 40% ao ano, nos últimos quatro anos de atividade nos Estados Unidos da América. Encontram-se disponíveis mais informações sobre a aplicação no seu site

⁷ Cada vez mais, os estudantes recorrem a plataformas de base de conhecimentos (knowledge bases) e fóruns de entreajuda, contudo, quando os formadores se deparam com turmas de centenas de alunos como hoje conseguimos observar graças à educação online, a resposta às questões em tempo útil pode ser um desafio, razão pela qual este chatbot foi criado pelo Professor Ashok K. Goel da Universidade da Geórgia.

⁸ Hoje encontramos esta plataforma em diferentes universidades espalhadas pelo mundo, incluindo em Portugal, uma vez que ela para além de automatizar o recebimento de trabalhos enviados pelos alunos permite correr de forma automática mecanismos de deteção de fraude académica com recurso a algoritmos de inteligência artificial que não só detetam o plágio como a escrita de textos por ferramentas não humanas. Encontram-se disponíveis mais informações sobre a aplicação no seu site

⁹ A aplicação é uma construção proprietária da NYU (Universidade de Nova Iorque) que integra um conjunto de ferramentas baseadas também em inteligência artificial que processam os dados carregados pelos docentes, assistentes e pelos próprios alunos, nomeadamente aqueles que se relacionam com a produção de trabalhos não acompanhados pelo docente, processando esses dados com o objetivo de detetar o possível fracasso académico, atuando antecipadamente. Encontram-se disponíveis informações adicionais sobre esta plataforma no site da NYU em

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Na senda de evitar o abandono, motivar os alunos de forma constante e colocar-lhes desafios que lhes dificultem a fácil tarefa de desistência, encontramos ferramentas baseadas em inteligência artificial, como é o caso do Quillionz1⁰ que permitem a criação de conteúdos educacionais como resumos de leituras, perguntas de teste com sugestões de resposta e até mesmo palestras interativas, questionários de resposta rápida e interativa baseados em conteúdo de texto, enquanto outras plataformas podem gerar vídeos educativos ou animações para auxiliar no processo de ensino. Neste âmbito temos também os jogos educativos que ultrapassam o já bastante utilizado Kahoot!11 e que se estão a tornar cada vez mais populares. Tais jogos adaptam desafios e conteúdos às habilidades e ao progresso do aluno, tornando a aprendizagem mais envolvente e eficaz, permitindo que a gamificação da educação, apoiada pela inteligência artificial, ajude a motivar os alunos e a melhorar os resultados.

Cada vez com mais adeptos, embora em língua portuguesa os recursos sejam ainda limitados, as ferramentas de assistência na redação e revisão de textos, como são o caso do Grammarly e o do Hemingway Editor ajudam os alunos a melhorar as suas capacidades de escrita uma vez que, com recurso a aplicações baseadas em inteligência artificial corrigem não só a gramática mas também sugerem melhorias de estilo, conseguindo mesmo detetar nuances de tom e clareza em textos escritos, dependendo do seu objetivo final.

Num caminho que deve ser cada vez mais inclusivo, a inteligência artificial está ainda na base de aplicações para estudantes com necessidades especiais e que todos os docentes e formadores devem capacitar-se a utilizar, uma vez que tais aplicações permitem adaptar materiais didáticos para alunos com dislexia, dificuldades de audição ou visão ou outras necessidades educacionais especiais, talhando o caminho para um ensino para todos sem barreiras.

A integração da inteligência artificial no ensino do direito oferece oportunidades desafiantes para melhorar e personalizar a educação jurídica, mas também requer uma abordagem ponderada para garantir que os benefícios sejam maximizados, enquanto os riscos e desvantagens sejam devidamente minimizados, sempre com base na difusão de técnicas dissuasivas do método de copiar-colar, elevando-se o ensino para métodos que permitam aumentar as capacidades de verificação da veracidade da informação recolhida, parecendo-nos essencial que as instituições de ensino na área do direito e da solicitadoria, bem como as entidades formadoras enfrentem esses desafios com um planeamento estratégico e concertado num compromisso com a manutenção dos mais altos padrões éticos e educacionais. É vital que as ferramentas de inteligência artificial complementem, e não substituam, as abordagens tradicionais de ensino que promovem o pensamento crítico e a aprendizagem.

O texto que fará um aluno entender determinada matéria poderá não ser o mesmo texto que fará um aluno distinto entender a mesma matéria e, aí, a inteligência artificial poderá ter um papel único de determinar como apresentar um mesmo tema a alunos distintos, garantindo que ambos conseguirão apreendê-lo.

1⁰ Uma das formas de garantir a apreensão das matérias é precisamente levar os alunos a trabalharem-nas, respondendo a questões sobre os temas abordados. Esta aplicação recorre a um algoritmo baseado em inteligência artificial para criar um conjunto de questões sobre as matérias abordadas numa determinada aula, possibilitando ao docente consolidar os temas numa base regular e sem esforço adicional. Encontram-se disponíveis mais informações sobre a aplicação no seu site

11 Tal como a aplicação Quillionz, o Kahoot! permite a criação de conjuntos de questões que podem ser respondidas pelos alunos em direto, nas aulas, com recurso aos seus smartphones, tablets ou computadores e conta já com utilizadores em Portugal, nos diferentes níveis de ensino, incluindo o universitário.

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4.Desafios na ótica da profissão de solicitador

Numa outra perspetiva, mas não menos relevante, deverá também refletir-se sobre a integração da inteligência artificial na prática profissional do solicitador, uma vez que tal posicionamento poderá abrir portas para uma eficiência operacional sem precedentes, podendo atuar não só na gestão processual dos processos em escritório, como fortemente na pesquisa de conteúdo jurídico e na interação com os clientes. Um dos principais benefícios da inteligência artificial é a sua capacidade de processar e analisar grandes volumes de dados de uma forma célere e confiável. No contexto da prática jurídica, tal significa que os solicitadores podem utilizar ferramentas de inteligência artificial para analisar quaisquer documentos jurídicos, onde poderemos incluir contratos, livros e artigos científicos ou jurisprudência com um nível de eficiência que seria impossível de atingir manualmente. Tal não só poupa tempo, como também aumenta a precisão, reduzindo a probabilidade de erro humano em tarefas repetitivas e detalhadas.

A pesquisa jurídica é efetivamente uma das áreas onde a inteligência artificial poderá revelar-se extremamente útil na prática profissional do solicitador, uma vez que as aplicações permitem vasculhar rapidamente enormes bases de dados de jurisprudência, legislação e restante literatura jurídica em busca de informações relevantes, tal como é exemplo o Alpaca Law12. O solicitador, ao munir-se destas ferramentas, torna o seu trabalho mais eficiente pois reduz o tempo dedicado a cada processo desde logo porque descrito um caso, as aplicações apresentam desde logo ao utilizador possíveis soluções. Além disso, as ferramentas de inteligência artificial podem auxiliar na elaboração e revisão de peças, utilizando os seus avançados algoritmos para identificar cláusulas problemáticas, sugerir alterações e garantir a conformidade com a legislação vigente, melhorando a qualidade do serviço jurídico prestado.

A integração da inteligência artificial na prática jurídica é um fenómeno que traz consigo uma série de implicações complexas, tanto benéficas quanto potencialmente problemáticas. Embora se olhe para esta abordagem há pouco tempo, um dos aspetos mais discutidos é a possibilidade de estas ferramentas substituírem parcial ou totalmente o trabalho do solicitador. Embora a inteligência artificial apresente capacidades avançadas em tarefas como análise de documentos, pesquisa jurídica e automação de processos rotineiros, atualmente, ela ainda está longe de substituir completamente o trabalho humano, especialmente em áreas que exigem julgamento crítico, habilidades interpessoais, compreensão ética e empatia como é o caso da profissão de solicitador.

A administração pública tem já em funcionamento algumas aplicações que recorrem à inteligência artificial para acelerar processos internos e que integram a Estratégia Govtech13 centrada em inteligência artificial e tecnologias emergentes para transformar a justiça. Uma das mais recentes e, espera-se, notáveis aplicações é a de pedido online de nacionalidade portuguesa, desenvolvido pelo Instituto dos Registos e Notariado (IRN), que permite a entrada de processos de nacionalidade de forma totalmente desmaterializada e recorre à inteligência artificial para verificar automaticamente a autenticidade de documentos, reduzindo significativamente o trabalho manual, assegurando verificações técnicas que dificilmente seriam executadas pelos recursos humanos existentes e oferecendo um serviço público mais célere ao cidadão. Outro exemplo é o da anonimização de processos, que visa publicar sentenças de todas as instâncias judiciais, aumentando a transparência e facilitando a pesquisa de informações aos atores judiciais, com recurso a um algoritmo baseado em inteligência artificial que é usado para anonimizar os processos, garantindo a privacidade dos envolvidos e reduzindo a necessidade de intervenção manual de funcionários judiciais no que toca à publicação de decisões.

12 Desenvolvido em Portugal no ano de 2023, o Alpaca Law responde a questões com base na lei e na jurisprudência dos tribunais portugueses. Mais informações sobre a aplicação estão disponíveis no seu site

https://alpacalaw.com/

13 A Estratégia Govtech, lançada em fevereiro de 2023 pelo Governo, pretende colocar os diferentes atores do sistema judicial em ligação direta com a academia e as start-ups no sentido de desenvolver projetos específicos que permitam transformar a justiça em Portugal, partindo da identificação de problemas em concreto, seguindo-se a proposta de soluções, um caminho para os futuros desenvolvimentos e uma identificação das vantagens obtidas em cada uma das fases do processo. Encontram-se disponíveis mais informações sobre este projeto do Ministério da Justiça em .

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O guia prático de acesso à justiça1⁴ é uma outra ferramenta, desenvolvida com base em machine learning, que recorre a um modelo de linguagem avançada que informa os cidadãos sobre os serviços judiciais mais adequados para cada caso, sendo que a primeira versão deste guia se foca em questões relacionadas ao casamento e divórcio, mas futuramente abrangerá uma gama mais ampla de serviços judiciais, meios de resolução alternativa de litígios e registos. Longe vão também os tempos em que o IRN solicitava aos seus funcionários que contribuíssem com a sua imaginação para a criação da bolsa de nomes fantasia para a criação da empresa na hora, sendo que hoje já existe uma automatização da bolsa de firmas e denominações que cria automaticamente nomes para empresas, encontrando-se em desenvolvimento uma funcionalidade que sugerirá nomes com base na área de atividade da empresa que se pretende criar.

1⁴ Disponível em 82

Como vimos, parece ser de descartar a possibilidade de ignorar a existência das aplicações baseadas em inteligência artificial. O formador deve preparar-se desde já para o facto de que a inteligência artificial fará parte do quotidiano de todos e que batalhar contra ela será um luta inglória. Assumir a sua existência e conhecer as suas capacidades será o primeiro e mais relevante passo para manter o sucesso enquanto formador. Os trabalhos científicos que serão pedidos aos alunos trarão em si, pelos menos em parte, elementos gerados por aplicações baseadas em inteligência artificial pelo que será essencial que o formador aprenda e saiba demonstrar quais são as lacunas atuais destes mecanismos por forma a que os alunos se encontrem alerta para os perigos de confiar cegamente nas respostas que estes lhes dão. Mais do que proibir, o caminho que perfilhamos será o de ensinar a operar, entendendo os seus benefícios bem como as suas fraquezas.

Na ótica da profissão, a questão principal coloca-se na possível despersonalização do serviço jurídico e com a possibilidade de haver uma tendência para uma abordagem mais impessoal na prestação de serviços, onde as nuances e particularidades de cada caso podem ser menos valorizadas, sendo este um aspeto crucial, principalmente num campo como o do direito, onde a compreensão das circunstâncias únicas de cada caso e a interação humana são essenciais para o correto aconselhamento jurídico. Assim, perfilhamos a ideia de que é mais provável que a inteligência artificial altere o papel do solicitador, mas não o substituindo completamente. Ela pode assumir tarefas mais rotineiras e tediosas, mas aspetos como aconselhamento jurídico em si, negociações complexas ou a representação em juízo ainda exigem o discernimento humano, a compreensão ética, o respeito pela deontologia da profissão e a habilidade interpessoal que a inteligência artificial não pode ainda fornecer, devendo ser encarada como uma ferramenta que transforma a natureza do trabalho jurídico, de uma forma gradual e progressiva, ao invés de uma ameaça direta à profissão, razão pela qual encontramos na nossa reflexão, tanto oportunidades quanto desafios para a prática profissional dos solicitadores.

5.Conclusões
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6. Referências bibliográficas

FORNASIER, Mateus de Oliveira, Legal Education in the 21st century and the Artificial Intelligence, in Opinião Jurídica, Ano XIX, n.º 31, mai/ago 2021, Fortaleza, Brasil, 2021.

GARRATONI, Bruno, A inteligência artificial no ensino, Fortaleza, Brasil, 2023.

SADKOV, Andrey et al, The phenomenon of digitalization of the legal business education, in SHS Web of Conferences, Edition 01035, Volgograd, Russia, 2021.

SOUZA, Eduardo Nunes de, Ensino jurídico e inteligência artificial: primeiro esboço de uma abordagem civil-constitucional, Fortaleza, Brasil, 2023.

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O

CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIROS

VIRGÍNIO SANTOS

Solicitador

Mestrado do 2º ano em Solicitadoria pela

ESTG P. Porto

Delegado Concelhio de Paços de Ferreira

Resumo

O presente trabalho versa sobre a natureza do contrato de transporte aéreo de passageiros, além de analisar o regime da responsabilidade da transportadora aérea perante os passageiros por lesões que possam resultar das irregularidades no cumprimento do contrato.

Palavras-Chaves: Responsabilidade; Transporte Aéreo; Contrato de Transporte Aéreo; Direito Aéreo; Convenção de Varsóvia; Convenção Montreal

ÍNDICE

1. Introdução

2. Noção e Elementos do Contrato

3. Natureza Jurídica do Contrato de Transporte Aéreo

4. Classificação do Contrato de Transporte Aéreo

4.1. Quanto ao Objeto do Transporte

4.1.1. Transporte Aéreo de Pessoas

4.1.2. Transporte Aéreo de Bagagens

4.2. Quanto ao Espaço Jurisdicional

4.2.1. Transporte Aéreo Doméstico

4.2.2. Transporte Aéreo Internacional

5. Convenção de Varsóvia

6. Convenção de Montreal

7. Regime Comunitário

8. Perda, Atraso e Extravio da Bagagem

9. Comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa processo nº 29811/15.0T8LSB.L1, de 17 de outubro de 2017

10. Conclusão

11. Bibliografia

Lista de Siglas

Art.º – Artigo

P. – Página

PP. - Páginas

SS - Seguintes

1.Introdução

O cenário económico atual em que vivemos, marcado pela globalização e a inovação tecnológica transformaram os meios de transporte em mecanismos indispensáveis à sobrevivência do ser humano. É de se destacar que temos cada vez mais, uma maior necessidade de deslocações rápidas e de curta duração. Desta forma, não se faz suficiente, em determinadas ocasiões, a utilização dos modos convencionais de transporte, visto que não têm o poder da celeridade.

Em consequência de um mundo interligado e que requer que sejamos sempre melhores, surgiu o transporte aéreo, o qual atinge velocidade bem superior aos demais meios de transporte, possibilitando movimentos cada vez mais rápidos num curto espaço de tempo.

Assim, com a chegada deste transporte, nascem as empresas responsáveis pela logística, coordenação e gerência deste, a fim de oferecer aos consumidores desta atividade um serviço veloz e eficiente. Como em qualquer vínculo, problemas podem surgir, necessitando, então, de regras próprias para a resolução dos problemas entre companhias e clientes.

O presente trabalho contempla, a respeito dos preceitos normativos em vigor, as regras jurídicas mais convenientes à realidade atual.

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2.Noção e Elementos do Contrato

O contrato de transporte aéreo é um acordo promovido por duas entidades, uma das quais a transportadora, que estipulam o transporte de pessoas ou coisas, pela via aérea, de um ponto geográfico para outro, por meio de uma aeronave1 2 .

Independentemente de não se encontrar expressamente na lei, o contrato de transporte aéreo insere-se na categoria dos contratos de prestação de serviços3 ⁴

Os intervenientes neste tipo contratual são o transportador, que se obriga a deslocar pessoas e/ou coisas de um local para outro, e a contraparte que corresponde geralmente com o beneficiário do serviço (o passageiro) – “usuário”⁵ ou “viajante”⁶. Na eventualidade de não coincidir com o destinatário, entende-se que o contrato é celebrado a favor de terceiro⁷ .

3.Natureza Jurídica do Contrato de Transporte Aéreo

Relativamente à formação do contrato de transporte aéreo, podemos dizer que é um contrato bilateral, uma vez que gera obrigações para ambas as partes. A transportadora tem como obrigação entregar o passageiro ou a coisa em seu destino final com segurança e integralidade. Por sua vez, o passageiro deve pagar por este serviço.

Em regra, o Contrato de Transporte Aéreo, é oneroso, pois o contratante/passageiro tem o dever de pagar o serviço prestado pela companhia aérea.

O Contrato de Transporte Aéreo é obrigatoriamente comutativo, advindo do mesmo um compromisso mais ou menos equivalente para ambas as partes contratantes: a da transportadora, de ceder o serviço de transporte, e a do passageiro, de pagar o preço do bilhete.

O Contrato de transporte aéreo é formal, uma vez que tem as suas condições previstas na lei, no bilhete ou no conhecimento aéreo.

1 Neste sentido, veja-se TAPIA SALINAS, Luis - Derecho Aeronáutico, 2ª edição, Bosch, Barcelona, 1993, p. 413, que define contrato de transporte aéreo como “aquel mediante el cual, una persona denominada transportista conviene con otra que llamaremos usuario, en el translado de un lugar a otro en una aeronave y por vía aérea de una determinada persona o cosa arreglo a las condiciones estipuladas entre ambas as partes”.

2 Noutro sentido, excluindo o elemento “aeronave” do conceito, NEVES ALMEIDA define o contrato de transporte aéreo como “o acordo em que convergem duas vontades opostas mas harmonizáveis celebrado entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou de terceiro, ou coisa certa, de um lugar para o outro utilizando a via aérea e aquele que, de forma onerosa ou gratuita, aceita encarregar-se dessa condução”, veja-se NEVES ALMEIDA, Carlos Alberto - Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 21.

3 A este respeito veja-se FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos – Contratos II, 2.º edição, Almedina, Coimbra, 2011, p. 164. O autor refere ainda que, diferentemente, na doutrina alemã, o contrato de transporte é considerado com um subtipo do contrato de empreitada, citando CANARIS, C.-W. Handelsrecht, 24ª ed., Munique, 2006.

⁴ CASTELLO-BRANCO BASTOS, pronuncia-se acerca deste tema afirmando que “tendo como causa, hoc sensu, o cumprimento de um particular escopo socio-económico, ele [o contrato de transporte aéreo], na verdade, será uma species da prestação de serviços (cfr. artigo 1154.º e ss Do Código Civil) – da locatio operis faciendi, por contraposição às demais categorias pandectísticas da locatio rei e da locatio”, vide CASTELLO-BRANCO BASTOS, Nuno Manuel - Direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2004, p. 54.

⁵ A este respeito, DIEGO L. LOZANO ROMERAL, entende que “se puede definir a los usuarios del transporte aéreo como aquellas personas, físicas o júridicas, que siendo parte en contratos de transporte aéreo, utilizan los servicios de transportistas aéreos para la realización en su interés de servicio de transporte aéreo, sea de personas, correo o carga, tengan o no carácter regular, y sean nacionales o internacionales”. Veja-se MENÉNDEZ MENÉNDEZ, Adolfo – Régimen Jurídico Del Transporte Aéreo, Editorial Aranzadi S.A., Navarra, 2005, p. 293.

⁶ Denominação adotada em NETO, Abílio - Código Comercial Código das Sociedades Legislação Complementar Anotados, 12ª edição, Ediforum, Lisboa, 2002, p.226.

⁷ Na mesma linha de pensamento veja-se CASTELLO-BRANCO BASTOS, Nuno Manuel - Direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2004, p. 57 e ss.

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Este contrato tanto pode ser principal como acessório. É principal quando se expressa que o passageiro ou da coisa, uma vez que não necessita de nenhuma outra condição para se verificar. Acessório é quando sucede no caso de bagagem, quando esta apenas fortalece a existência do principal, como nos casos em que o passageiro leva a bagagem de mão, do mesmo modo se torna da responsabilidade da companhia aérea.

É um contrato típico, previsto na lei, por outras palavras, os contratos típicos são aqueles em que os direitos e obrigações dos contratantes estão, em parte, pelo menos, instituídos na lei, por normas cogentes ou supletivas. Esses direitos e obrigações, não terminam nas cláusulas do instrumento assinado pelos contraentes.

É consensual, uma vez, que pode ser celebrado por simples manifestação e aceitação da proposta, obstante da entrega da coisa e da ação que determinada forma.

O rotineiro é a declaração de vontade de uma das partes limitar-se à adesão das clausulas fixadas unilateralmente pela outra. Desta forma sucede que no Contrato de Transporte Aéreo, onde a contratada/companhia aérea fixa as cláusulas e o contratante/passageiro não têm como substituí-las.

Usualmente o Contrato de Transporte Aéreo é pessoal e intransmissível “Intuito personae”, pois exige-se a individualização da pessoa a ser transportada.

4.Classificação do Contrato de Transporte Aéreo

Neste tipo contratual existem princípios distintos aplicáveis conforme se identifique o mesmo como internacional ou doméstico; em função do objeto transportado se abarca, pessoas, correio, bagagens ou mercadorias; considerando à existência ou não de regularidade nos voos; e quanto ao facto de se tratar de um transporte aéreo combinado ou simples⁸

4.1.Quanto ao Objeto do Transporte

4.1.1.Transporte Aéreo de Pessoas

O transporte aéreo de pessoas diferencia-se dos outros contratos de transporte aéreo por existir uma pessoa física com vida, dotada de direitos e adstrita a deveres⁹ .

Conforme a lei e considerando o artigo 66.º do Código Civil, somente reconhece personalidade jurídica ao nascituro e posteriormente ao nascimento completo e com vida1⁰ .

Desta forma, o contrato de transporte aéreo de pessoas tem natureza pessoal, não determinando o conceito jurídico de passageiro as seguintes categorias11:

a)Pessoal tripulante ou outro pessoal vinculado à transportadora por um contrato de trabalho e viajando em serviço;

⁸ NEVES ALMEIDA, Carlos Alberto - Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 34, indica ainda outros tipos de classificações passíveis de influenciar o regime aplicável tendo em conta a onerosidade ou gratuitidade do contrato, atendendo à natureza comercial ou civil, atendendo à existência de intermodalidade ou não, que permite distinguir o transporte aéreo, no seu sentido puro, simples ou isolado, da figura do transporte combinado; ou por fim atendendo ao número de transportadores envolvidos do modo a determinar se estamos perante um transporte aéreo sucessivo ou não.

⁹ Referindo-se à personalidade jurídica como a aptidão para ser titular de autónomo de relações jurídicas vide MOTA PINTO, Carlos Alberto – Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 193 e ss 1⁰ Sobre a personalidade humana nascida e com vida vide CAPELO DE SOUSA, Rabindranath – O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p.167 11 Tal como enunciado pelo autor TOMÁS BAGANHA, José – «Overbooking»: Uma Modalidade singular de incumprimento do contrato de transporte aéreo de passageiros in “Revista de Administração Pública de Macau”, n.º 37, Vol. X, 3ª de 1997, p. 830

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b)As pessoas que com a aprovação da transportadora, se encontrem a bordo sem título de transporte;

c)As pessoas que viajem clandestinamente, isto é, que se encontrem a bordo da aeronave sem a aprovação da transportadora ou apesar da sua proibição.

4.1.2.Transporte Aéreo de Bagagens

O transporte de bagagens está intimamente associado ao transporte de pessoas. A bagagem não tem autonomia por si só, pois, é impreterível a obrigatoriedade dum contrato de transporte de pessoas para que se possa falar em bagagens12. As bagagens não têm uma existência contratual autónoma, mas, quando exista, carece de regime contratual particular e fica sujeito a regras de responsabilidade próprias, nomeadamente, à Convenção de Varsóvia e Montreal.

4.2.Quanto ao Espaço Jurisdicional

4.2.1.Transporte Aéreo Doméstico

Por forma a aferir se um voo ocupa a conceção de transporte aéreo doméstico há que ter em atenção dois elementos essenciais: o primeiro elemento pretende designar o território de partida e o território de chegada, e o segundo verificar a existência, ou não, de escalas em Estados terceiros. Para que se verifique a existência de um voo doméstico, tanto a partida como a chegada têm de ser verificadas no mesmo Estado, ainda que seja sobrevoado espaço aéreo internacional, ou sujeito à jurisdição de outro Estado estrangeiro, e existindo escalas não poderão ser realizadas em Estados terceiros13

Em concordância com ambas as Convenções, os elementos a ponderar para verificação e o preenchimento do conceito em análise são os regulados no contrato. Assim, caso o piloto seja coagido a desviar a aeronave da rota estipulada, em virtude de uma avaria no motor, aterrando num estado terceiro, tal facto não deverá ser considerado para a classificação do voo como internacional.

4.2.2. Transporte Aéreo Internacional

A Convenção de Chicago de 1944 sobre Aviação Civil Internacional perpetuou, no artigo 96.º alínea b), o conceito de “Serviço aéreo internacional”, que se assemelha ao conceito de transporte aéreo internacional, como “um serviço aéreo que sobrevoa o território de mais de um estado”. Segundo o autor B. GOLDHIRSCH, define “direito aéreo público é de alguma forma perpetua com a definição de direito aéreo privado. Os trechos internacionais de Varsóvia (1929) e de Montreal (1999) coagem, ambos no artigo 1º, nº2, o mesmo preceito de transporte aéreo internacional, mas também mais conciso, considerando transporte internacional todo o transporte em que, o acordo contratado pelas partes, o ponto de embarque e o ponto de desembarque, havendo ou não escala no transporte ou transbordo, estão situados quer no território de duas Altas Partes Contratantes1⁴, quer no território submetido à soberania, suserania, mandato ou autoridade de outra Potência mesmo não Contratante”.

12 TAPIA SALINAS, Luis - Curso de Derecho Aeronáutico, Bosch, Casa Editorial, S.A., Barcelona, 1993, p.341 entende que o contrato de transporte aéreo de bagagens é aquele mediante o qual uma empresa de transporte aéreo ou um simples transportador de obriga a transladar de um lugar a outro, por via aérea a bagagem de um passageiro como consequência de um contrato de passagem anterior ou simultâneo, sendo os objetos registados quanto os que leva consigo à mão.

13 Cfr., a contrário sensu, n.º2, do artigo1.º, da Convenção de Varsóvia, bem como, a contrário sensu, n.º 2, do artigo 1.º, da Convenção de Montreal. 1⁴ Neste caso a nacionalidade dos passageiros ou a sua residência é tão irrelevante como a nacionalidade da transportadora aérea; Cfr. Glenn v. Compania Cubana de Aviación 102 F.Supp. 631 (D.C. Fla.1952) – vide (consultado em 04 07 2013 )

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Conforme o nº 3 do referido preceito, é ainda considerado transporte aéreo internacional o que atuar dentro do território do mesmo Estado, se este estiver incluído numa operação de voos sucessivos em que pelo menos um dos quais ocupe a definição de transporte aéreo internacional. De certa forma, pelo anteriormente desenvolvido, verifica-se que quando estamos perante um contrato de transporte aéreo doméstico ou internacional temos que atender à vontade estipulada pelas contraentes no contrato e não aos factos que posteriormente se verificaram1⁵ .

5. Convenção de Varsóvia

Na referida Convenção adota-se um regime de responsabilidade subjetiva com culpa presumida do transportador. Tal subsunção retira-se da conjuntura que recai sobre a transportadora da qual esta apenas se desobriga da responsabilidade se conseguir provar que tomou todas as medidas necessárias para evitar o dano ou que lhe era impossível tomá-las, pressuposto este que recai também sobre os seus colaboradores e agentes1⁶ 1⁷ .

Assimilamos que para assumir a desobrigação à luz do suprarreferido, a transportadora terá ainda a responsabilidade de indicar a razão que motivou o nascimento do dano para verificar as medidas que poderiam ter sido tomadas perante tais situações e, de seguida, comprovar que adotou as diligências que se mostraram adequadas para o caso concreto1⁸. Alguns autores, como CALAIM LOURENÇO “afirma que caso não sejam apuradas as causas do acidente, não basta a demonstração da condição prévia de navegabilidade da aeronave da idoneidade da tripulação, pois assim estar-se-ia a criar uma presunção que não tem fundamento na Convenção”1⁹ .

A transportadora deverá ainda desobrigar-se total ou parcialmente dos seus compromissos se eventualmente conseguir demonstrar que foi a atitude do passageiro que causou o dano ou que para ele contribuiu2⁰ .

Na eventualidade de lesão, ferimento ou morte, a transportadora é responsável no pagamento máximo de 125 mil francos21 por passageiro22. Todavia, se o dano for ocasionado com dolo ou por sua culpa, ou dos seus agentes e colaboradores agindo no exercício das suas funções, a responsabilidade deixa de se verificar, podendo o montante da indemnização extravasar o montante de 125 mil francos23. No caso, a prova que a transportadora atuou com culpa ou dolo cabe ao passageiro, como bem tem sustentado a jurisprudência nacional2⁴ que, de acordo com as regras do ónus da prova, nomeadamente o constante do elencado no n.º 2, do artigo 342.º, do Código Civil, atribui o ónus da prova àquele que invoca factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado.

1⁵ “To determine finally if the transportation is international and within the Convention, the lawyer must now determine the “departure”, “destination” and “agreed stopping places”. This can usually be accomplished by the single task of looking at the ticket. If the ticket is not available, communication with the travel agent or airline issuing the ticket should be undertaken immediately. Usually, both are co-operative” em B. GOLDHIRSCH, Lawrence - Warsaw Convention Annoted: A Legal Handbook, Kluwer Law International, Holanda, 2000, p. 16

1⁶ Cfr. n.º 1, artigo 20.º, da Convenção de Varsóvia, de 1929

1⁷ Vide neste sentido Pinto de Carvalho, Luís Camargo – Observações em Torno da Responsabilidade Civil no Transporte Aéreo in “Revista do Advogado”, n.º 44, outubro de 1994, pp. 46 e ss.

1⁸ Neste sentido vide CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário - Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p. 460

1⁹ Neste sentido vide CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário - Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p. 461.

2⁰Cfr. artigo 21.º, da Convenção de Varsóvia, de 1929

21 Tomando por base o valor de € 30/gramas de ouro que se registava a 2 de julho de 2013 (com base nos dados fornecidos no sítio http://www.goldprice.org/spot-gold.html) podemos afirmar que 65,5mg de ouro, e igualmente 1 franco, equivalem a € 1,965. Assim sendo, 125 000 francos são € 245 625

22 Cfr. n.º 1, artigo 22.º, da Convenção de Varsóvia, de 1929.

23 Cfr. n.º 1, artigo 25.º, da Convenção de Varsóvia, de 1929

2⁴ Vide Acórdão TRP, processo n.º 0320620 de 03.07.2003 que decidiu no sentido de não extravasar os limites da indemnização com o argumento de que no transporte aéreo, para ter direito a indemnização não sujeita aos limites a que se refere o artigo 22.º, da Convenção de Varsóvia, de 12 de Outubro de 1929, o ónus de alegação e prova de factos que integrem atuação dolosa ou negligência grosseira da transportadora cabe ao transportado; no mesmo sentido vide acórdão do TRP de 22 04 96 e Acórdão do TRL de 09 07 91, em

(consultado a 01.07.2013)

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Na eventualidade da transportadora autorizar a entrada na aeronave de um passageiro sem bilhete, também não terá direito a aduzir quaisquer restrições ou desvinculação da sua responsabilidade2⁵ .

O Protocolo de Haia de 1955 foi o primeiro instrumento modificativo da Convenção de Varsóvia, não obstante tenham sido inúmeras alterações ao texto original, o sistema de responsabilidade da transportadora aéreo manteve-se praticamente intacto. Cumpre, assim, assinalar as principais alterações:

a)É excluída a exoneração que constava no n.º 2, do artigo 20.º, da Convenção de Varsóvia, para o transporte de bagagens e mercadorias;

b)Os limites de indemnização são elevados para 250 mil francos, em caso de morte ou lesão corporal;

c)É estendida a responsabilidade do transportador, aos agentes que se encontrem no exercício das suas funções, aplicando-se o mesmo regime caso tenham agido com dolo;

d)É eliminada a equiparação do conceito de dolo ao conceito de culpa que constava no artigo 25º 2⁶

Por último, a Convenção de Varsóvia alterada pelo Protocolo de Haia aplicar-se-á sempre que o transporte se efetue entre dois Estados signatários do Protocolo.

6.Convenção de Montreal

O estatuto da responsabilidade na Convenção de Montreal surge como fonte de inspiração com o Protocolo de Guatemala de 1971 e com o Regulamento CE n.º 2027/97, que iremos tratar no capítulo seguinte.

Este estatuto identifica um sistema indemnizatório e estabelece dois escalões: um primeiro escalão em que a transportadora aérea responde, não obstante de culpa, num regime de responsabilidade objetiva limitada ao montante de 113.100 mil DSE2⁷ por passageiro. A transportadora poderá, neste escalão, desobrigar-se parcial ou totalmente da responsabilidade se provar que os danos se confirmaram pelo ato ou omissão, a execução por vontade livre e consciente de um determinado ato, do demandante ou do lesado.

A transportadora desobriga-se na medida em que os atos do passageiro ou lesado contribuíram para a demonstração do dano2⁸ .

No que respeita ao segundo escalão a transportadora poderá ser responsabilizada, por danos procedentes da lesão ou morte dos passageiros, em quantia superior ao limite de 113.100 DSE, salvo se provar que, por um lado, os danos não foram verificados por ato ou omissão, na forma dolosa ou negligente, da transportadora ou dos seus colaboradores e agentes, ou por outro lado, tais danos foram verificados unicamente por ato ou omissão, na forma dolosa ou negligente, de terceiro2⁹ .

2⁵ Cfr. n.º 2, artigo 3.º, da Convenção de Varsóvia, de 1929

2⁶ A este respeito, com maior desenvolvimento, vide CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário - Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p. 469

2⁷ O montante de 100 mil DSE presente no n.º 1, do artigo 21.º, da Convenção de Montreal, foi atualizado pela ICAO para 113 100 DSE, de acordo com o artigo 24.º, com efeitos imediatos a partir de 30 de dezembro de 2009 – vide documento integral no sítio: (consultado em 02 07 2012).

2⁸ Cfr. artigo 20.º, da Convenção de Montreal, de 1999

2⁹ Cfr. n.º 1 e n.º 2, do artigo 21.º, da Convenção de Montreal, de 1999.

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7.Regime Comunitário

A legislação comunitária da responsabilidade da transportadora aérea pelo transporte de passageiros e bagagem está previsto no Regulamento CE n.º 2027/973⁰. No âmbito material deste estatuto é possível verificar o facto de a transportadora aérea, que se disponibiliza a se obrigar, ser comunitária. Como previsto na alínea b), do artigo 2.º, do referido Regulamento, “…uma transportadora é considerada comunitária se for titular de uma licença de exploração válida emitida para um Estado-Membro” nos termos do Regulamento CE n.º 2407/92.

Demonstrando-se, para efeitos de aplicação deste regulamento, insignificante se o voo é internacional ou doméstico.

Relativamente ao estatuto da responsabilidade da transportadora por danos a passageiros e bagagem, a publicação original do regulamento foi alterada no sentido de ajustar o regime da responsabilidade da transportadora aérea, aludindo, o novo texto do regulamento, para o regime na Convenção de Montreal31:

“A responsabilidade das transportadoras aéreas comunitárias relativamente aos passageiros e à sua bagagem regula-se por todas as disposições da Convenção de Montreal aplicáveis a essa responsabilidade”32

Nos termos do artigo 50.º, da Convenção de Montreal, é obrigatório que a transportadora aérea esteja acautelada por um seguro válido, de acordo com o disposto no Regulamento CEE n.º 2407/92, com vista a garantir que os lesados obtenham indemnizações adequadas aos critérios estabelecidos no Regulamento CE n.º 2407/92.

8.Perda, Atraso e Extravio da Bagagem

Relativamente à legislação aplicável, abordamos, em primeiro lugar, as normas constantes na Convenção de Varsóvia e de seguida iremos analisar o regime da Convenção de Montreal. Consta do regime que a transportadora aérea é responsável pelo dano proveniente da destruição, perda ou avaria de bagagens registadas quando o mesmo causou o prejuízo durante o transporte33 3⁴ .

Refere-se assim a existência necessária de dois elementos para que tal responsabilidade seja realizada, por um lado, o episódio do dano que tenha como consequência a destruição a perda ou avaria de bagagem registada e, por outro, que o dano tenha lugar durante o transporte.

3⁰ Alterado pelo Regulamento CE n.º 889/91.

31 No considerando n.º6 do Regulamento n.º 889/2002 é manifestada a ideia de que existia uma necessidade de uniformização dos regimes de responsabilidade do transportador aéreo internacional alinhando o sistema de responsabilidade comunitário com o consagrado na Convenção de Montreal.

32 Cfr. n.º 1, do artigo 3.º, do Regulamento CE n.º 2407/92

33 Cfr. n.º 1, do artigo 18.º, da Convenção de Varsóvia.

3⁴ Sobre a responsabilidade civil do transportador aéreo por extravio de bagagem vide PEREIRA, Lidiane – Da responsabilidade civil do transportador aéreo por extravio de bagagem in BACELAR GOUVEIA, Jorge (Coord.) - Estudos de Direito Aéreo, Almedina, Coimbra, 2007, p. 427 e ss.; e NEVES ALMEIDA, Carlos Alberto - Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 533

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De modo a demarcar o tempo de transporte para efeitos de atribuição/exclusão de responsabilidade à transportadora aérea, alusão á bagagem registada, refere o art.º 18.º, da Convenção de Varsóvia, “…que tal período compreende o espaço de tempo em que as bagagens se encontram à guarda do transportador, quer num aeródromo, quer a bordo de uma aeronave, ou em qualquer outro lugar se a aeronave aterrar fora de um aeródromo”3⁵ .

Da realização do contrato de transporte aéreo, se o transporte for efetuado por via terrestre, marítima ou fluvial para efeitos de carregamento, entrega ou transbordo de bagagens, incide sobre o transportador aéreo uma conjuntura ilidível de que o episodio danoso ocorreu durante o transporte aéreo3⁶ .

A companhia aérea poderá exonerar-se da sua responsabilidade se fizer prova que os seus colaboradores ou agentes tomaram todas as precauções devidas para evitar o dano, ou que lhes era improvável tomá-las; ou, se provar que o dano se verifica de um erro na condução da aeronave ou de navegação3⁷ .

Será possível suprir total ou parcialmente a sua responsabilidade se mostrar que a conduta culposa da pessoa que reclama a indemnização, ou da pessoa de quem ela faz obter os seus direitos, contribuiu ou causou os danos que se verificaram.

No que ao transportador diz respeito, cabe a este a responsabilidade do resultado em detrimento pela demora na entrega das bagagens, salvo se provar que os seus colaboradores, ou agentes, tomaram todas as precauções necessárias para evitar o dano, ou que lhes era impossível tomá-las.

Quanto aos valores da indemnização a que a transportadora aérea está sujeita em caso de destruição, perda, avaria ou atraso na entrega de bagagem, há que fazer uma separação quando se esteja perante bagagem registada ou bagagem não registada, num primeiro caso o passageiro, poderá responsabilizar a transportadora até ao montante de 255 euros por quilograma, exceto se o passageiro manifestar previamente o valor, ou o excesso de volume, pagando assim um valor adicional; num segundo caso a responsabilidade da transportadora está limitada a 5084 euros por passageiro. Qualquer destes limites poderá ser ultrapassado se o passageiro provar que tais danos foram verificados por culpa ou dolo da transportadora ou dos seus colaboradores ou agentes3⁸ .

3⁵ Cfr. n.º 2, do artigo 18.º, da Convenção de Varsóvia.

3⁶ Cfr. n.º 3, do artigo 18.º, da Convenção de Varsóvia.

3⁷ Cfr. n.º 2, do artigo 20.º, da Convenção de Varsóvia.

3⁸ Cfr. artigos 22.º e 25.º, da Convenção de Varsóvia.

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No que diz respeito ao regime da Convenção de Varsóvia, esta diz-nos que a receção da bagagem registada, sem que seja feita qualquer reclamação, constitui presunção de que a mesma foi entregue pela transportadora intacta com o título de transporte. Neste sentido, o passageiro deverá apresentar a reclamação no prazo máximo de 7 dias em caso de perda, avaria ou deterioração da bagagem registada, ou em 21 dias caso o dano tenha sido causado devido ao atraso na entrega de bagagem registada, prazo este que inicia a contagem a partir do momento em que a bagagem foi colocada à sua disposição3⁹ .

Verifiquemos agora o regime da Convenção de Montreal referente à destruição, perda, avaria ou atraso na entrega da bagagem.

A responsabilidade da transportadora aérea determina a partir da culpa presumida até ao montante máximo de 1131 DSE⁴⁰ por passageiro, desobrigando-se, total ou parcial, da mesma deverá demonstrar que o passageiro, o demandante ou terceiro, através de um ato ou omissão, a título doloso ou negligente, motivou ou contribuiu para a verificação do dano⁴1 .

Caso o passageiro determinar que a responsabilidade da transportadora aérea é superior ao limite de 1131 DSE, terá de demonstrar que os danos foram provocados pela mesma, ou pelos seus colaboradores ou agentes, no exercício das suas funções, com o intuito de causar dano ou de forma descuidada e com a consciência de que poderia provavelmente ocorrer um dano⁴2 .

Por último, de forma a sustentar a divisão de regimes entre bagagem registada e bagagem não registada, visto que o passageiro, ou o demandante, apenas poderá ser indemnizado pelos danos em bagagem não registada se comprovar que o dano for causado com culpa da transportadora, dos seus colaboradores ou agentes⁴3

No que respeita ao regime comunitário, nada há a acrescentar, pois, o Regulamento CE n.º 2027/97 remete, ex vi artigo 3º, para a Convenção de Montreal:

“A responsabilidade das transportadoras aéreas comunitárias relativamente aos passageiros e à sua bagagem regula-se por todas as disposições da Convenção de Montreal aplicáveis a essa responsabilidade.”

9. Comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa processo n.º 29811/15.0T8LSB.L1-1, de 17 de outubro de 2017.

Este Acórdão versa sobre o contrato de transporte aéreo e as suas vicissitudes. Neste caso em particular temos um casal que decidiu fazer um cruzeiro pelas ilhas Caribbean. Para tal deslocaram-se a uma agência de viagens unicamente para reservar os voos que os levariam até MIAMI. Assim, foram reservados dois voos: um do Porto a Lisboa (TP 1929) e um outro de Lisboa a MIAMI (TP 0229).

Sucede que, por factos que são alheios aos autores, o voo que sairia do Porto às 10h20 não levantou voo à hora marcada o que motivou um atraso significativo na chegada ao aeroporto de Lisboa.

Este atraso implicou que fossem impedidos de entrar no voo que os levaria a MIAMI, perdendo assim a viagem.

3⁹ Cfr. n.º 2, do artigo 17.º, da Convenção de Montreal.

⁴⁰ O montante de 1000 DSE presente no n.º 2, do artigo 22.º, da Convenção de Montreal, foi atualizado pela ICAO para 1131 DSE, de acordo com o artigo 24.º, com efeitos imediatos a partir de 30 de dezembro de 2009 – vide documento integral no sítio:

(consultado em 02 07 2012). 1131 DSE corresponde a sensivelmente € 1250

⁴1 Cfr. artigos 19.º, 20.º e 22.º, da Convenção de Montreal.

⁴2 Cfr. n.º 5, do artigo 22.º, da Convenção de Montreal.

⁴3 Cfr. n.º 2, do artigo 17.º, da Convenção de Montreal.

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Os autores deslocaram-se ao balcão da TAP e comunicaram o atraso do voo TAP (do Porto a Lisboa) e a perda do voo 0229 e informaram que já tinham pago o hotel onde iriam ficar em Miami, antes e depois da viagem de cruzeiro pelas ilhas Caribbean.

Foi apresentada uma solução aos autores que passou por viajarem num voo com destino a Madrid em 23/04/2015 aqui pernoitando e seguirem num voo no dia seguinte para MIAMI num voo da American Airlines onde chegariam ao final do dia 24/04 possibilitando assim tomarem o navio no dia 25/04/2015, data da sua partida.

Sucede que as bagagens não chegaram a Madrid aquando da sua chegada, ou seja, as bagagens não acompanharam os Autores na viagem até Madrid.

Nestas bagagens, para além de vestuário e calçado, eram transportados medicamentos da autora que os toma diariamente por ser hipertensa e diabética e por sofrer de Parkinson.

No dia seguinte 24/04/2015, os autores deslocaram-se para o aeroporto de Madrid para apanharem o voo com destino a MIAMI, tendo questionado os funcionários da American Airlines pelas bagagens, tendo sido informados da inexistência de bagagens em nome dos mesmos.

Ainda assim prosseguiram viagem até MIAMI. Aqui chegados, as malas continuaram a não ser localizadas apesar de terem sido alertados para o facto de as mesmas terem sido localizadas, embora se tenha constatado que não viria a corresponder à realidade.

Os autores sofreram aflição, incómodos, com todo este circunstancialismo, não tendo a TAP prestado qualquer informação para o sucedido, nem se propôs compensá-los.

Esta situação enquadra-se assim no denominado contrato de transporte aéreo internacional de passageiros o que implica para o transportador a obrigação de transportar o passageiro e sua bagagem de um determinado ponto de partida até ao seu destino final, são e salvo no tempo acordado, que não foi o que sucedeu no presente caso.

O transporte aéreo é regulado pelo Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, mais conhecida por Convenção de Montreal, que foi transporta para o ordenamento jurídico Português pelo Decreto nº 39/2002 de 27 de novembro que define, para além de outras circunstâncias, os limites de indemnização no caso de responsabilidade civil por danos causados no transporte aéreo.

Também a Jurisprudência europeia, nesta matéria, nomeadamente o Acórdão do TJUE de 06/05/2010 (caso walz v Clickair) definiu que o limite da indemnização estabelecido no artigo 22, nº 2 da Convenção de Montreal abrange os danos patrimoniais e não patrimoniais, tendo sido considerada esta solução como um marco importante na Jurisprudência europeia.

A nível nacional, no que aos Tribunais portugueses diz respeito o Acórdão da Relação de Lisboa de 25/09/2014 remete também para o decreto 39/2002 de 27 de novembro.

No presente caso, o Tribunal de 1ª instância decidiu no sentido de atribuir uma indemnização de 2.820,00€. No entanto, os Autores recorreram da decisão por entenderem que o valor fixado de 2.820,00€, apenas se refere aos danos decorrentes do extravio das bagagens previsto no art.º 22º nº 2 da Convenção, nada dizendo quanto aos danos decorrentes dos atrasos sucessivos dos voos, estes previstos no nº 1 do art.º 22 da dita Convenção. Entendem os autores que a indemnização se deve fixar antes no montante de 10.000,00€.

Em sede de recurso, veio a Ré, TAP, para além de outras circunstâncias referir que o referido contrato de transporte é um contrato de “viagem organizada” sujeito à disciplina do DL 61/2011, concluindo que, neste caso, deve ser a agência de viagens a Ré e não a TAP.

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A Relação considera que houve atraso no transporte de pessoas, mas também atraso no transporte, melhor extravio temporário de bagagens necessárias para a viagem (só as receberam no fim do cruzeiro), com os decorrentes danos morais, o que lhes dá direito a indemnização por atrasos quer no transporte de pessoas, quer no transporte de bagagens.

Assim, ao abrigo da Convenção de Montreal e previstos nos normativos 24.1, 53.5 e 53.8.d, o limite a fixar de indemnização por passageiro é de 6.583,76€, ou seja, o limite total pelo atraso no transporte de passageiros e pelo extravio das bagagens é de DSE 5281, aplica-se a taxa de câmbio de 1,24669 face ao euro.

É certo que a Autora, por lhe terem sido extraviados os medicamentos, sentiu-se mal e teve de submeter-se a consulta médica em Madrid, pelo que sofreu um dano moral superior, que aqui se fixa em 5.500,00€, enquanto que ao autor marido fixa-se apenas em 4.500,00€, tendo em conta os incómodos referidos e também a aflição que sofreu pelo estado de saúde da mulher.

Conclui também a Relação que não estamos perante uma viagem organizada, pois os autores programaram uma viagem às caraíbas, mas não compraram um pacote turístico à agência de viagens, tendo apenas solicitado à agência de viagens que reservasse os voos e o hotel para a estadia. A agência de viagens não é responsável pelos atrasos no voo da TAP de Porto para Lisboa e pelo extravio das bagagens no trânsito para MIAMI.

Refere ainda a Relação que a Ré, TAP, se comportou como um comerciante de má fé, eximindo-se das suas responsabilidades, não apresentando aos autores uma justificação para o sucedido, nem respondendo à reclamação dos mesmos.

Resulta claramente provado que os danos morais dos passageiros resultaram tanto do atraso dos passageiros na chegada a Lisboa como do extravio temporário da bagagem que só apareceu já no fim do cruzeiro.

Por estes motivos, acordaram em julgar totalmente procedente o recurso dos Autores e improcedente a ampliação do recurso apresentado pela Ré TAP, que é condenada a pagar a indeminização de 5.500,00€ à autora e indemnização de 4.500,00€ ao autor, tudo perfazendo 10.000,00€.

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10. Conclusão

O propósito deste trabalho consistiu em abordar, ainda que não na sua totalidade, o contrato de transporte aéreo. Procurámos definir o seu conceito, explorando assim cada um dos seus elementos; o objeto, os sujeitos, desenvolvendo de forma crítica cada um deles. Demonstrámos que, dada a complexidade do contrato, o seu objeto não se reconduz apenas à prestação de um serviço de transporte, podendo integrar vários outros objetos, tais como a locação de um assento, a prestação de serviços de segurança, de deslocação terrestre ou até de catering.

Desenvolvemos a natureza jurídica do contrato de transporte onde analisámos a natureza consensual referente ao transporte de pessoas, ainda que o entendimento não seja unânime.

Consideramos que o contrato poderá ser oneroso ou gratuito e que, neste último caso, é de afastar o entendimento de que existe um sinalagma imperfeito, pois, não existe um nexo de prestação e contraprestação.

Especificamos a prestação de transporte como uma obrigação de execução instantânea atendendo ao critério do momento da realização do interesse do passageiro, retirando assim a possibilidade de a classificar como uma prestação duradoura, ainda que com duração efémera.

Estabelecida a natureza do contrato enunciámos as mais importantes classificações cuja determinação poderá influenciar o regime de responsabilidade.

Por último, analisámos um Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que aborda esta temática e por onde pudemos constatar como os nossos julgadores decidiram um conflito relacionado com uma deficiente prestação de um serviço aéreo e a forma como aplicaram a lei e Convenções em vigor.

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11. Bibliografia

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Jurisprudência

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa processo n.º 29811/15.0T8LSB.L1-1, de 17 de outubro de 17

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A PROPÓSITO DA DECLARAÇÃO DO Nº 1 ARTº

1424-A DO CÓDIGO CIVIL

JOÃO DA CRUZ LARGUEIRAS VALADAS

Solicitador

Mestre em Solicitadoria

Professor Especialista do Ensino Superior no ISCAL (IPLisboa) e ESTIG (IPBeja)

Resumo

Com a projeção do presente artigo de opinião, pretende-se ir ao encontro de inúmeras dúvidas identificadas, na celebração de contratos compra e venda de frações autónomas, quer sejam titulados através de Escritura Pública, quer sejam celebrados através de Documento Particular Autenticado.

No decurso do meu percurso profissional como Solicitador e até no desempenho de atividade jurídica com diversas entidades, nomeadamente a Banca, verifiquei diversas dificuldades dos diversos agentes em acompanharem o alcance e a correta aplicação das alterações ao regime da propriedade horizontal, verificadas em 2022, nomeadamente quanto ao Artigo 1424º-A do Código Civil.

PALAVRAS-CHAVE: Lei 8/2022, de 10 de janeiro; Propriedade Horizontal; Artigo 1424º-A do Código Civil; Declaração do condomínio;

Abstract

With the focus of this opinion article, we aim to address numerous concerns identified in the execution of contracts for the purchase and sale of autonomous fractions, whether formalized through a Public Deed or authenticated through a Private Document. Throughout my professional journey as a Solicitor and in the practice of legal activities with various entities, including banking institutions, I have observed several challenges faced by different stakeholders in understanding the scope and proper application of changes to the horizontal property regime in 2022, particularly with respect to Article 1424-A of the Civil Code.

NOTA INTRODUTÓRIA

A Lei 8/2022, de 10 de janeiro, veio operar diversas e importantes alterações ao regime da Propriedade Horizontal1 , nomeadamente através da alteração de diversos artigos do Código Civil, tendo-lhe sido aditado o novo Artigo 1424º-A (Responsabilidade por encargos do condomínio), sendo este um dos temas que nos traz a este fórum. Como consequência de tais alterações, teria obrigatoriamente que fazer-se a revisão do Decreto-Lei nº 268/94, de 25 de outubro que estabelece normas regulamentares do regime da propriedade horizontal.

Ora, a alteração operada via aditamento do Artigo 1424º-A do Código Civil e a alteração ao Artigo 54º, nº 3 do Código do Notariado, são eventualmente os temas que mais “dificuldades” têm apresentado aquando da celebração dos contratos de Compra e Venda de frações autónomas (e partilhem ou transmitam direitos sobre prédios, ou se contraiam encargos sobre eles).

Assim, pretende-se esclarecer as referidas “dificuldades”, dos diversos tituladores e das partes. Na aplicação prática, entendemos que, desde a publicação e posterior entrada em vigor da referida Lei 8/2022, de 10 de janeiro, foram identificadas dúvidas na sua interpretação, nomeadamente quanto à forma de dar a conhecer ao adquirente quais as responsabilidades existentes em termos de montante de todos os encargos de condomínio (áreas comuns) em vigor relativamente à fração a adquirir, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, no caso do condomínio ainda não se encontrar constituído.

Assim, tentaremos de uma forma, quiçá pioneira, e contra a corrente aplicável na prática, apresentar uma alternativa exequível e aceitável por parte dos tituladores, quando se verifique a inexistência de condomínio constituído.

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1A Propriedade Horizontal passou a ser regulamentada de uma forma sistemática pelo Dec.Lei 40.333, de 14 de outubro de 1955.

DESENVOLVIMENTO

Como já tivemos a oportunidade de verificar e vivenciar, desde 10 de abril de 2022, que nos instrumentos (quer sejam titulados por documento autêntico, quer sejam por documento particular autenticado) pelos quais se partilhem ou transmitam direitos sobre prédios, ou se contraiam encargos sobre eles, não podem ser lavrados sem que se faça referência à declaração prevista no n.º 2 do artigo 1424.º-A do Código Civil, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do mesmo artigo.

Ora, como decorre da letra da lei “O condómino, para efeitos de celebração de contrato de alienação da fração da qual é proprietário, requer ao administrador a emissão de declaração escrita da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à sua fração, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respetiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento”.

Tal declaração, cuja redação ficou ao critério dos diversos Administradores de Condomínio, terá de acordo com o referido Artigo 1424º-A, nº 1 do Código Civil, que descrever todas as obrigações inerentes ao condomínio no que concerne aos encargos relativos às partes comuns correspondentes à permilagem da fração a alienar, qual a sua natureza, quais os montantes e prazos de pagamento, indicando ainda, caso existam dívidas qual a sua natureza, montantes e data de constituição e vencimento. Esta última parte é deveras importante, para efeitos da verificação de responsabilidade pelos encargos de conservação e fruição da fração a alienar, nos termos e para os efeitos do Artigo 1424º do Código Civil.

Esta questão, há muito que vinha sendo colocada, pois as transmissões das frações autónomas eram celebradas (por documento autêntico, ou por documento particular autenticado) pelos quais se partilharam ou transmitiram direitos sobre frações autónomas, ou se contraíram encargos sobre as referidas frações, sem que fossem apurados os encargos sobre as partes comuns e a responsabilidade pelo seu pagamento ficasse devidamente expressa nos títulos.

Desta forma, esta passou a ser uma nova função do Administrador do Condomínio, terminando (ou tentando terminar-se) o amadorismo das Administrações de Condomínio. Aliás, o instrumento tem utilidade para o momento da transmissão e para o futuro. Sempre diremos que em diversos países europeus2, a referida declaração é utilizada e obrigatória desde há vários anos, como sucesso, e.g. em Espanha, a declaração de inexistência de dívidas (“declaración de deuda“) é obrigatória desde 1999 pela Ley 49/1960, de 21 de julio, sobre propriedad horizontal, modificada pela Ley 8/1999, de 6 de abril.; em França, pelo Décret n° 2020-153 du 21 février 2020, pris pour l’application de l’article 10-1 de la loi n° 65-557 du 10 juillet 1965, a declaração (“état-daté”) é obrigatória desde 1965 em caso de transmissão a título oneroso; em Itália pelo Articolo 1130 – n.º 9 – Codice civile e Articolo 63 –Disposizioni per l’attuazione del Codice Civile e disposizioni transitorie, a declaração (“liberatoria condominiale“). Mesmo não sendo de apresentação obrigatória nos atos de transmissão, é usualmente solicitada pelos notários.

2 França: "État daté" “L'état daté précise l'état de votre situation comptable à la date de sa réalisation. Il indique les sommes que vous devez au syndicat des copropriétaires et inversement les sommes que ce dernier pourrait vous devoir”, o "état daté" é frequentemente utilizado em transações imobiliárias, como a venda de um imóvel em condomínio. Contém informações sobre as despesas correntes, taxas de condomínio, dívidas e outros encargos relacionados à propriedade. Este documento é geralmente solicitado pelo comprador para ter uma compreensão clara da situação financeira do imóvel antes de concluir a transação; Itália: “liberatoria condominiale” certificação da situação dos pagamentos das taxas e encargos de condomínio.

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Parece-nos que foi previdente o legislador com esta imposição, pois que desta forma ficará assegurado que aquele que for adquirir determinada fração autónoma, tomará real conhecimento de quais as suas obrigações, enquanto novo condómino, pois que com a novidade da obrigatoriedade da referida declaração, é nosso entendimento que o legislador teve em mente, o seguinte:

a) Assegurar a correta informação a transmitir pelo alienante, via Administração do Condomínio, ao adquirente quanto aos encargos de condomínio em vigor à data da aquisição, como bem refere o nº 1 do Artigo 1424-A do Código Civil3;

b) Incentivar o alienante à regularização de eventuais dívidas, antes da transmissão da fração autónoma, evitando situações de devedores relapsos e de acumulação de dívidas imputadas a anteriores proprietários da fração autónoma, a alienar, sendo certo que esta é uma função preventiva que deve ser adotada pelo Administrador do Condomínio⁴ .

c) De uma forma indireta, dar a conhecer ao Administrador a iminência de mudança de proprietário da fração⁵ .

Ora, até aqui tudo correria pelo melhor, pois existiu certamente a presunção por parte do legislador de que todos os prédios constituídos sob o regime da Propriedade Horizontal já teriam constituído o Condomínio, com eleição do Administrador, nos termos e para os efeitos do Artigo 1435º do Código Civil⁶ .

Estava e está bem longe da realidade, pois que, como bem sabemos, grande parte dos prédios que se encontram constituídos sob o Regime da Propriedade Horizontal, não constituíram o condomínio ou estão em vias de constituição. Quer isto dizer que, entre outras coisas, que não foi nomeado o Administrador do Condomínio, apesar da sua obrigatoriedade.

Confrontados com esta questão, muitos dos alienantes de frações autónomas são informados no momento do agendamento da titulação do contrato de Compra e Venda, de que para o efeito será necessária a referida “Declaração do Condomínio⁷”, a que muitos também apelidam, quanto a nós erradamente, de “Declaração de Não Dívida”, pois que como bem define a letra da lei, a referida declaração consta “o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à sua fração, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respetiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento”, e.g., Quota de despesas comuns, Quota suplementar (se existir), Fundo Comum de Reserva; Juros (se e quando aplicáveis); Obras (aprovadas); Outras despesas (devidamente identificadas e aprovadas); Penalizações (se e quando aplicáveis). Em complemento poderá (deverá) ainda identificar a existência de eventuais litígios (judiciais ou pré-judiciais) em que estejam a ser exigidas responsabilidades ao condómino alienante, bem como todas as informações consideradas relevantes que devam ser comunicadas ao adquirente (futuro condómino).

3 “A declaração referida no número anterior é emitida pelo administrador no prazo máximo de 10 dias a contar do respetivo requerimento e constitui um documento instrutório obrigatório da escritura ou do documento particular autenticado de alienação da fração em causa (…)”, cfr. nº 2 do Artº 1424 -A do Código Civil, conjugada com a alínea q) do nº 1 do Artº 1436° do Código Civil.

⁴ “Exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas, incluindo os juros legais devidos e as sanções pecuniárias fixadas pelo regulamento do condomínio ou por deliberação da assembleia;” cfr. alínea f) do nº 1 do Artº 1436° do Código Civil, conjugado com o nºs 4 e 5 do Artº 6º do Decreto -Lei nº 268/94, de 25 de outubro, na sua atual redação.

⁵ A alienação das frações deve ser objeto de comunicação ao administrador do condomínio pelo condómino alienante, por correio registado expedido no prazo máximo de 15 dias a contar da mesma, devendo esta informação conter o nome completo e o número de identificação fiscal do novo proprietário, cfr. nº 3 do Artº 3º do Decreto -Lei nº 268/94, de 25 de outubro, na sua atual redação.

⁶ “(…) 1. O administrador é eleito e exonerado pela assembleia. 2. Se a assembleia não eleger administrador, será este nomeado pelo tribunal a requerimento de qualquer dos condóminos. (…)”

⁷ “(…) declaração escrita da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à sua fração, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respetiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento. (…)

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Assim e nos casos de inexistência de condomínio constituído, como agir?

A forma mais simples de agir, por parte dos tituladores, nas vendas extrajudiciais (particulares), para que seja cumprida a letra da Lei, será aplicar o referido no nº 3 do Artº 1424º-A do Código Civil: “A responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas, salvo se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fração, que prescinde da declaração do administrador, aceitando, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio”, pois simplificada sobre maneira a resolução da questão da referida exigência da declaração já identificada.

Quer isto dizer que, caso exista a declaração prevista no nº 1 do Artigo 1424º-A do Código Civil, a questão fica cumprida, caso contrário, mesma será dispensada “(…) se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fração, que prescinde da declaração do administrador, aceitando, em consequência, a por qualquer dívida do vendedor ao condomínio (…)”nos termos e para os efeitos do nº 3 do referido Artigo 1424º-A do Código Civil.⁸

Ora, na nossa modesta opinião, como expressaremos adiante, deverá (poderá) ser encontrada uma alternativa aceite pelos tituladores e pelos Serviços de Registos IRN – Instituto dos Registos e do Notariado, quando não existir Condomínio Constituído (Administrador eleito).

Na existência da referida declaração como devem os titulares atuar quanto ao “tratamento” da mesma? (i) Fazer mera referência da sua exibição e eventual entrega ao adquirente? ⁹, ou (ii) Fazer referência da sua exibição e arquivo? 1⁰

A este propósito e por comunicado de 11 de abril de 2022, o Conselho Profissional do Colégio do Solicitadores da OSAE – Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, deu a conhecer aos seus associados, quais os corretos procedimentos a adotar por força da titulação de frações autónomas no âmbito das alterações verificadas pela Lei 8/2022, de 10 de janeiro.

Acompanhando aquele entendimento, grande número de titulares apenas fez/ faz menção à exibição da referida declaração, caso ela exista, enquanto que outros tituladores fizeram/ fazem referência à sua exibição e procedem ao seu arquivo, pois consideram-na como documento instrutório, nos termos e para os efeitos do Artº 27º do Código do Notariado, invocando o velho ditado popular de que “Cautelas e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém”.

E que dizer a propósito da verificação da qualidade e poderes para o ato do signatário da declaração (Administrador)?

Da experiência, todos temos assistido à exibição de meras declarações em formato .pdf11 , por vezes com uma mera reprodução mecânica de assinatura ou rubrica, que não acompanha o previsto no nº 2 do Artigo 373º do Código Civil.12

⁸ “A responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que a mesma deveria ter sido liquidada, salvo se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fração, que prescinde da declaração do administrador, aceitando, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio.”

⁹ “Além dos livros e dos instrumentos avulsos que não devam ser entregues às partes, ficam arquivados nos cartórios os documentos apresentados para integrar ou instruir os atos lavrados nos livros ou fora deles, salvo quando a lei determine o contrário ou apenas exija a sua exibição.” cfr. Artº 27º do Código do Notariado.

1⁰ “Os instrumentos pelos quais se partilhem ou transmitam direitos sobre prédios, ou se contraiam encargos sobre eles, não podem ser lavrados sem que se faça referência à declaração prevista no n.º 2 do artigo 1424.º-A do Código Civil, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do mesmo artigo.” cfr. nº 3 do Artº 54º do Código do Notariado, conjugado com a alínea f) do nº 1 do Artº 46º do Código do Notariado.

11 Portable Document Format (formato portátil de documento). É um formato de arquivo versátil criado pela Adobe que proporciona uma maneira fácil e confiável de apresentar e compartilhar documentos em qualquer software, hardware ou sistema operacional usado pela pessoa que exibe o documento

12 “Nos títulos emitidos em grande número ou nos demais casos em que o uso o admita, pode a assinatura ser substituída por simples reprodução mecânica.”

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Desta forma e através do PARECER DO CONSELHO CONSULTIVO o IRN – Instituto dos Registos e do Notariado - C.N. 3/2022 STJSR-CC de 20-03-2023, veio esclarecer que “A verificação da qualidade e poderes para o ato do signatário da declaração deverá ser efetuada pela entidade tituladora, tendo em conta o disposto nos artigos 1435.º e 1435.º-A do Código Civil, a quem também compete proceder ao arquivamento da declaração como documento instrutório do ato (artigo 27.º do Código do Notariado) e dela fazer referência expressa no título (artigo 54.º/3 do Código do Notariado)”, ficando desta forma devidamente clarificado o que fazer quando (i) à forma de “verificação da qualidade e poderes para o ato do signatário da declaração deverá ser efetuada pela entidade tituladora, tendo em conta o disposto nos artigos 1435.º e 1435.º-A do Código Civil”, bem como (ii) “(…) a quem também compete proceder ao arquivamento da declaração como documento instrutório do ato (artigo 27.º do Código do Notariado) e dela fazer referência expressa no título (artigo 54.º/3 do Código do Notariado)”.

O referido PARECER DO CONSELHO CONSULTIVO do IRN – Instituto dos Registos e do Notariado - C.N. 3/2022 STJSR-CC de 20-03-2023, foi objeto da seguinte exceção “Homologo o parecer, com exceção do ponto 4.3.3. e da conclusão I do parecer, na parte em que se considera que a falta da declaração do administrador e da sua menção no título deverá constituir motivo de recusa do registo, entendendo antes que essa falta deverá constituir motivo de provisoriedade por dúvidas, caso não seja suprida nos termos do artigo 73º do CRP, mediante comprovação de que a declaração existia à data da transmissão e era do conhecimento das partes.” pelo que foi emitida a DIVULGAÇÃO C.N. 3/2022 SJ-CC de 20-03-2023, onde foi firmado, entre outros temas, que: “ (…) 4- A declaração do administrador deve conter a indicação de todos os encargos existentes, com especificação da sua natureza e data de constituição, dos seus montantes e dos respetivos prazos de pagamento, ou, tratando-se de encargos já vencidos, da data em que tal vencimento ocorreu. 5- Quando não haja administrador nomeado, caberá ao administrador provisório, previsto no artigo 1435.ºA do Código Civil, exercer as correspondentes funções e, assim, emitir também a declaração relativa aos encargos existentes (artigo 1436.º/1/q) do Código Civil). 6- A verificação da qualidade e poderes para o ato do signatário da declaração deverá ser efetuada pela entidade tituladora, tendo em conta o disposto nos artigos 1435.º e 1435.º-A do Código Civil, a quem também compete proceder ao arquivamento da declaração como documento instrutório do ato (artigo 27.º do Código do Notariado) e dela fazer referência expressa no título (artigo 54.º/3 do Código do Notariado). ( …)”.

É para nós claro que, face à interpretação do IRN – Instituto dos Registos e do Notariado, os tituladores devem: (i) efetuar “A verificação da qualidade e poderes para o ato do signatário da declaração deverá ser efetuada pela entidade tituladora, tendo em conta o disposto nos artigos 1435.º e 1435.º-A do Código Civil” através da consulta da ata de eleição do Administrador (para verificação do mandato e da sua identificação); (ii) efetuar a identificação do mesmo, por força da sua assinatura na referida declaração, sendo que como adiante referimos, poderá ser no formato manuscrito (com reconhecimento de assinatura, como poderes para o ato13) ou através de assinatura digital com atributos1⁴, (iii) esclarecer “a quem também compete proceder ao arquivamento da declaração como documento instrutório do ato (artigo 27.º do Código do Notariado) e dela fazer referência expressa no título (artigo 54.º/3 do Código do Notariado)” e por fim, (iv) informar que “Quando não haja administrador nomeado, caberá ao administrador provisório, previsto no artigo 1435.ºA do Código Civil, exercer as correspondentes funções e, assim, emitir também a declaração relativa aos encargos existentes (artigo 1436.º/1/q) do Código Civil)”.

13 “Os reconhecimentos notariais podem ser simples ou com menções especiais.”, cfr. nº 1 do Artº 153º do Código do Notariado

1⁴ Portaria 305/2020, de 29 de dezembro, primeira alteração à Portaria 73/2018, de 12 de março - Define os termos e as condições de utilização do Sistema de Certificação de Atributos Profissionais (SCAP), para a certificação de atributos profissionais, empresariais e públicos através do Cartão de Cidadão e Chave Móvel Digital.

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Aqui chegados, finalmente, estamos perante um tema deveras importante e que vem virar a estória/história dos Condomínios.

E antes de mais, vamos aqui tentar clarificar a questão da constituição do condomínio.

Para muitos profissionais do foro, existe o entendimento que o condomínio só deverá ser constituído quando existem mais de quatro condóminos, indicando para o efeito o previsto no nº 1 do Artigo 1429º-A do Código Civil. “(…) Havendo mais de quatro condóminos e caso não faça parte do título constitutivo, deve ser elaborado um regulamento do condomínio disciplinando o uso, a fruição e a conservação das partes comuns. (…)”.

Ora, na nossa modesta opinião, não está correto, pois a constituição do condomínio, opera-se aquando da eleição do Administrador (independentemente do número de condóminos) e consequentemente com o cumprimento das diversas obrigações, nomeadamente as fiscais (obtenção do NIF/NIPC), que derivam de tal constituição.

A este propósito, aproveitamos para introduzir, para efeitos de exemplo, o tema do Arrendamento das Partes Comuns do prédio.

Estando na presença de um arrendamento de uma parte comum de prédio constituído sob o regime da Propriedade Horizontal, e como bem é referido pela Autoridade Tributária e Aduaneira no seu Ofício Circulado nº 40.111, de 30-07-2015, onde refere entre outros temas que: “(…) O condomínio, como conjunto organizado de condóminos, é equiparado a pessoa coletiva para efeitos de inscrição no Registo Nacional de Pessoas Coletivas (RNPC). O Administrador age como representante orgânico do condomínio, do grupo ou conjunto de condóminos. Ao celebrar o contrato de arrendamento, o administrador executa a deliberação tomada em assembleia de condóminos, em representação da vontade “coletiva” do condomínio, como ente coletivo (…)”

Caso, como é referido por muitos, o condomínio estivesse dependente da existência de Regulamento de Condomínio, então prédios propriedade de um condómino único, nunca seriam suscetíveis de constituição de condomínio…

Ora, até 10 de abril de 2022, muitos dos prédios constituídos sob o regime da Propriedade Horizontal eram “geridos” de uma forma demasiadamente amadora, com as consequências negativas que daí advinham, nomeadamente quanto à falta de cumprimento das obrigações/funções atribuídas ao Administrador por força do previsto Código Civil e do previsto no Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro, nas suas atuais redações. E infelizmente inúmeros prédios mantém-se ainda na mesma situação, apenas se alterando a forma de gestão, nomeadamente aquando da necessidade de emissão da referida declaração prevista no nº 1 do Artigo 1424º-A do Código Civil.

Apesar de existirem opiniões divergentes de que a obrigação do Administrador do condomínio, prevista na alínea q) do Artigo 1436º do Código Civil de “Emitir, no prazo máximo de 10 dias, declaração de dívida do condómino, sempre que tal seja solicitado pelo mesmo, nomeadamente para efeitos de alienação da fração”, caso não seja cumprida em respeito às funções que lhe são cometidas no referido Artigo 1436º do Código Civil, noutras disposições legais ou em deliberações da assembleia de condóminos é civilmente responsável pela sua omissão, sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal 1⁵, se aplicável, na nossa opinião vem clarificar e de alguma forma “profissionalizar” a figura do Administrador de condomínio, o que traz segurança para todos os condóminos, nomeadamente quanto à gestão das partes comuns do prédio, no estrito respeito ao cumprimento do previsto no Artigo 1436º do Código Civil e restante legislação avulsa, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro, na sua atual redação.

1⁵ “O administrador de condomínio que não cumprir as funções que lhe são cometidas neste artigo, noutras disposições legais ou em deliberações da assembleia de condóminos é civilmente responsável pela sua omissão, sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal, se aplicável.”, cfr. nº 3 do Artº 1436º do Código Civil.

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Defendem alguns profissionais do foro, que a imposição da obrigação de assunção do cargo de Administrador e as consequências derivadas da Lei e advenientes de eventual incumprimento, levarão a que muito condóminos “recusem” assumir o cargo de Administrador, com receio de não cumprir ou cumprir de forma inadequada aquela(s) obrigação(ões)/ Função(ões) e ficarem sujeitos a incorrer em responsabilidade civil, sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal, se aplicável. Recordemos a título de exemplo a falta de seguro de incêndio das partes comuns, ou a falta de verificação de que as apólices de seguro da fração autónoma de cada um dos condóminos integra/cobre também, o risco de incêndio nas partes comuns, na parte proporcional relativa à sua permilagem.1⁶

Na realidade, a recusa de assunção do cargo de Administrador é comum, motivo pelo qual se opta de uma forma simples em contratar os serviços de empresas especializadas no ramo (existindo inclusive a Associação Nacional dos Profissionais de Administração de Condomínios), criando-se a figura do “Administrador Externo”, (que poderá também ser assessorado por Solicitador) que em conjunto com o Administrador (interno) cumprirá todas as obrigações/ funções previstas nas questões de gestão do condomínio (que poderá também ser assessorado por Solicitador), na sua globalidade. Este é no nosso entendimento e salvo melhor entendimento, o caminho a seguir.

Como já anteriormente referido e reforçando e ainda a propósito na referida Declaração do nº 1 do Artº 1424º-A, do Código Civil, gostaríamos de acompanhar o entendimento do IRNInstituto dos Registo e Notariado, i.e, “Quando não haja administrador nomeado, caberá ao administrador provisório, previsto no artigo 1435.º-A do Código Civil, exercer as correspondentes funções e, assim, emitir também a declaração relativa aos encargos existentes (artigo 1436.º/1/q) do Código Civil)” na sua mais ampla aplicação, e mais, e uma vez que, sendo o negócio da compra e venda da fração autónoma realizado entre o alienante e o adquirente, porque não equacionar, à contrário, a integração da responsabilidade da emissão de declaração por parte do alienante, perante o titulador, ao abrigo do principio da boa-fé, a fornecer as informações constantes da dita declaração por inexistência de constituição do condomínio e por consequência a ausência de nomeação do Administrador.

Entendemos que a previsão da parte final no nº 3 do Artigo 1424º-A do Código Civil feita pelo adquirente: “que prescinde da declaração do administrador, aceitando, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio” demasiadamente penalizadora para o adquirente, o que não se aceita de ânimo leve, pois salvo melhor entendimento em contrário, esta opção não nos parece equilibrada, nem correta, pois significa que na sequência de tal “declaração do adquirente de (…) que prescinde da declaração do administrador (…),vai assumir a responsabilidade pelo pagamento de – todos – os serviços e despesas, das partes comuns, dos quais não obteve qualquer beneficio, nem obterá, mas sim o alienante, pelo que no nosso entender, como já referimos e repetimos, é demasiado penalizadora para o adquirente, pois será eventualmente desconhecedor das ocorrências do passado da fração autónoma e das partes comuns proporcionais à permilagem da mesma, senão vejamos: Tal como anteriormente se referiu, é responsável pelo pagamento das dividas, o proprietário, no caso de inexistência de constituição de condomínio.

Assim, se pode ser colocada a responsabilidade do lado do adquirente, “forçando-o” a prescindir da referida Declaração do nº 1 do Artº 1424º-A, do Código Civil, porque não será equacionável a emissão de declaração por parte do alienante de que para o prédio de faz parte a fração autónoma a alienar (i) não foi constituído condomínio (ii) não existem encargos contabilizáveis e relativos a despesas das áreas comuns e (o mais importante, no nosso entender), (iii) caso se venham a apurar encargos ou despesas ocorridas durante o período em que o alienante foi proprietário da fração autónoma a alienar, aceita, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida de sua responsabilidade ao condomínio, desde a data da sua constituição e desde que adquiriu a fração até à data da sua alienação.

1⁶ “Verificar a existência do seguro contra o risco de incêndio, propondo à assembleia o montante do capital seguro.” cfr. alínea c) do nº 1 do Artº 1⁴3⁶º do Código Civil.

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Neste caso, e logo que seja constituído o condomínio e sejam (eventualmente) apurar encargos ou despesas ocorridas durante o período em que o alienante foi proprietário da fração autónoma alienada, deverá cumprir-se, salvo melhor entendimento em contrário, o previsto no Artigo 6º do Decreto -Lei n.o 268/94, de 25 de outubro, na sua atual redação. No nosso entender, e (i) a ser possível e (ii) aceite pelos tituladores, (iii) sem oposição do IRN – Instituto dos Registos e do Notariado, ficariam as partes em igualdade de circunstâncias e sem prejuízo plausível, pois a declaração seria emitida de boa-fé, pelo alienante, e de acordo com as declarações a prestar perante os tituladores.

Mais, seria avisado e não deveria ser descartada a possibilidade da emissão da referida declaração (caso o condomínio não se encontre constituído ou em vias de constituição –eleição do Administrador) ser efetuada com respeito ao disposto nos nºs 1 e 2 do Artigo 1435º-A, do Código Civil: “1- Se a assembleia de condóminos não eleger administrador e este não houver sido nomeado judicialmente, as correspondentes funções são obrigatoriamente desempenhadas, a título provisório, pelo condómino cuja fração ou frações representem a maior percentagem do capital investido, salvo se outro condómino houver manifestado vontade de exercer o cargo e houver comunicado tal propósito aos demais condóminos. 2 - Quando, nos termos do número anterior, houver mais de um condómino em igualdade de circunstâncias, as funções recaem sobre aquele a que corresponda a primeira letra na ordem alfabética utilizada na descrição das frações constante do registo predial.”

Salvo melhor entendimento em contrário, ficaríamos assim com quatro hipóteses de ultrapassar a questão e não apenas com as duas atualmente utilizadas/ utilizáveis, i.e., (i) Emissão de Declaração pelo Administrador1⁷ ou (ii) possibilidade do adquirente prescindir da Declaração1⁸, a que acresceriam a possibilidade de (iii) emissão de Declaração pelo Alienante (caso não exista condomínio constituído ou se encontre em constituição), nos moldes já atrás identificados e (iv) emissão da Declaração1⁹ nos termos atrás identificados, previstos nos nºs 1 e 2 do Artigo 1435º-A, do Código Civil.

Ainda quanto ao teor da Declaração, de referir, que pela verificação da panóplia de Declarações a que já tivemos acesso, verificamos que, na sua maioria, as mesmas não se encontram emitidas de acordo com o indicado no nº 1 do Artigo 1424º-A, do Código Civil, pois que um elevando número, refere apenas que não existem dividas relativas a valores de condomínio.

Ora, não é este o objetivo, pois que, salvo melhor entendimento em contrário, na emissão da referida declaração deve ser indicado: (i) Identificação do Administrador emissor da declaração, (ii) verificação da qualidade, da legitimidade e poderes para o ato do signatário da declaração (com indicação da ata e data em que foi deliberada a eleição do Administrador e respetivo mandato) (iii) a localização toponímica do prédio, (iv) a descrição predial, com a identificação da letra da fração a alienar, com a sua identificação (composição tal como resulta da inscrição predial), (v) o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à fração (vi) especificação da sua natureza (vii) respetivos montantes e (viii) prazos de pagamento, bem como, (ix) caso se verifique, das dívidas existentes, (x) respetiva natureza, (xii) montantes, (xiii) datas de constituição e (xiv) vencimento. Deverão/ poderão ainda ser identificados outros encargos e informações necessárias à correta informação a fornecer ao adquirente, como já referimos anteriormente.

1⁷ “(…) emissão de declaração escrita da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à sua fração, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respetiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento.”, cfr. nº 1 do Artº 1424º-A, do Código Civil

1⁸ “A responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas, salvo se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fração, que prescinde da declaração do administrador, aceitando, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio.”, cfr. nº 3 do Artº 1424º-A, do Código Civil

1⁹ A declaração seria emitida nos exatos termos previstos no nº 1 do Artº 1424º-A, do Código Civil, mas a sua emissão seria efetuada pelo Administrador Provisório, nos termos e para os efeitos do nºs 1 e 2 do Artº 1435º-A, conjugado com a alínea q) do nº 1 do Artº 1436º, ambos do Código Civil.

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A declaração deve ser (i) datada e (ii) encerrada com a assinatura do Administrador, sendo reconhecida a sua assinatura com poderes para o ato (por verificação da ata de eleição do Administrador) ou se possível através de assinatura digital, nos moldes já identificados.

A declaração deverá ser entregue em formato físico ou digital, para que seja exibida às partes no ato da titulação e arquivada pelo titulador, como já referimos anteriormente.

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CONCLUSÃO

Com a elaboração do presente artigo, foi nosso objetivo ir ao encontro de algumas dúvidas que ainda grassam na nossa praça e também nos afetam diariamente, nomeadamente quanto (i) à Emissão da Declaração do nº 1 do Artigo 1424º-A, do Código Civil, (ii) à inevitabilidade do adquirente prescindir da referida Declaração, caso a mesma não seja exibida no ato de celebração do contrato, as hipóteses aventadas de (iii) emissão de Declaração pelo Alienante que assume a não existência de qualquer dívida ou encargo relativo ao condomínio, ficando responsável, caso os mesmos venham a ser apurados, ou (iv) emissão da Declaração do nº 1 do Artigo 1424º-A, do Código Civil pelo Administrador Provisório (caso o Condomínio ainda não se encontre constituído ou se encontre em constituição) nos termos e para os efeitos dos nºs 1 e 2 do Artigo 1435-A, do Código Civil.

Não foi nosso objetivo indicar formas procedimentais diversas das existentes e enraizadas, mas tão só, tentar aproximar as partes quanto a um tema que por vezes não é pacífico e torna moroso o procedimento de alienação de uma fração autónoma por ausência de uma declaração, que quiçá, poderá/poderia também ser emitida de forma diversa, como indicado, pois, que a opção do adquirente prescindir da referida declaração, nem sempre é bem aceite pelo adquirente de boa-fé, pelos mais variados motivos.

É um tema importante, que carece de continuidade de estudo e discussão, pois no nosso entender ainda necessita de muito aperfeiçoamento, pois que se tal não fosse uma realidade, não teria carecido até hoje da necessidade de emissão dos inúmeros pareceres publicitados.

Deixamos aqui o nosso pequeno contributo para uma eventual melhoria desta temática, pois sentimos, na prática e no dia-a-dia que é uma questão “ainda” polémica e controversa.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- Raimundo, Miguel Assis - Responsabilidade do adquirente de fração autónoma por prestações de condomínio já vencidas. Cadernos de Direito Privado n.º 26, abril/junho 2009;

- Moura, Paulo Namora de; Sousa, M. Peixoto de – Propriedade Horizontal, Vida Económica, 1995

- Passinhas, Sandra, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal,

Almedina Coimbra, 2ª Edição, 2009; Azevedo, Filipa Isabel Ribeiro Moreira - Contrato de compra e venda de fração autónoma –principais questões sobre a (in)transmissibilidade das dívidas de condomínio para o comprador, REVISTA ELECTRÓNICA DE DIREITO – JUNHO 2018 – N.º 2 (V. 16), DOI 10.24840/2182-9845 2018-0002 0003

ARTIGOS / CONFERÊNCIAS / LEGISLAÇÃO - ONLINE

As alterações da Propriedade Horizontal – Ordem dos Advogados – Conselho Regional de Faro

As Alterações ao Regime da Propriedade Horizontal – Ordem dos Advogados – Conselho Regional do Porto consultado em 17-11-2023

Ley 49/1960, de 21 de julio, sobre propriedade horizontal, modificada pela Ley 8/1999, de 6 de abril consultada em 17-11-2023

Décret n° 2020-153 du 21 février 2020, pris pour l’application de l’article 10-1 de la loi n° 65-557 du 10 juillet 1965, consultada em 17-11-2023

Articolo 1130 – n.º 9 – Codice civile e Articolo 63 – Disposizioni per l’attuazione del Codice Civile e disposizioni transitorie,

Azevedo, Filipa Isabel Ribeiro Moreira - Contrato de compra e venda de fração autónoma –principais questões sobre a (in)transmissibilidade das dívidas de condomínio para o comprador, REVISTA ELECTRÓNICA DE DIREITO, consultada em 17-11-202

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LEGISLAÇÃO

Revisão/Alteração do Regime da Propriedade Horizontal: Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro

Regime da Propriedade Horizontal: Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de outubro

Regime da Propriedade Horizontal: Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro

Contas Poupança-Condomínio: Decreto-Lei n.º 269/94, de 25 de outubro

Regulamento Geral do Ruído: Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de janeiro

Código Civil – Propriedade Horizontal: Artigos 14140 a 14380-A Ley 49/1960, de 21 de julio, sobre propriedade horizontal, modificada pela Ley 8/1999, de 6 de abril (Espanha) n° 2020-153 du 21 février 2020, pris pour l’application de l’article 10-1 de la loi n° 65-557 du 10 juillet 1965 (França)

Articolo 1130 – n.º 9 – Codice civile e Articolo 63 – Disposizioni per l’attuazione del Codice Civile e disposizioni transitorie (Itália)

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BREVE REFLEXÃO SOBRE A PENHORABILIDADE DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA EM PORTUGAL E NOS PRINCIPAIS ORDENAMENTOS JURÍDICOS EUROPEUS E BRASILEIRO

VANESSA ISABEL SILVA MACEDO Mestranda em Direito com especialização na área das ciências jurídico-empresariais Universidade Lusófona – Centro Universitário do Porto

Resumo

O presente estudo recorta os desenvolvimentos doutrinários e jurisprudenciais mais importantes na esfera das garantias executivas, traçando no seu domínio dogmático uma análise critica das diferentes perspetivas da penhora da casa de morada de família.

Palavras-chave: penhora, casa de morada de família, garantia executiva, processo executivo, execução.

Summary:

This study examines the most significant doctrinal and jurisprudential developments in the realm of enforcement guarantees, providing a critical analysis within its doctrinal scope of the various perspectives on the attachment of the family residence.

Keywords: attachment, family residence, enforcement guarantee, execution process, enforcement

1. Introdução

A questão desenvolvida neste estudo consiste unicamente em saber se a casa de morada de família pode ser objeto de penhora em sede executiva.

De forma a avaliar a penhorabilidade da casa de morada de família, analisar-se-á doutrina e jurisprudência relevantes na área jurídico-familiar e processual executiva, de modo a refletirmos de forma conclusiva acerca desta temática.

Neste sentido, vai importar perceber, sobretudo, em que consiste a casa de morada de família no ordenamento jurídico português, trazendo consigo a necessidade de um conceito de família, bem como menção à sua crescente relevância no seio da sociedade e da ordem juridica ao longo do tempo.

Importa, também, destacar a importância da penhora enquanto garantia do processo executivo, analisando este instituto em geral, nomeadamente no que respeita a bens móveis, bens imóveis e bens absolutamente impenhoráveis. Fazendo, ainda, a distinção entre a casa de morada de família e os bens indispensáveis a qualquer economia doméstica.

Posteriormente, dar-se-á um especial destaque à penhorabilidade da casa de morada de família, bem como os seus meios de proteção no contexto português.

Por fim, e em sede de direito comparado, será feita uma breve alusão à questão da (im)penhorabilidade da casa de morada de família em vários ordenamentos jurídicos europeus e brasileiro.

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2. A casa de morada de família

Não podemos olhar o conceito de família como uma realidade estática, uma vez que este tem sofrido evoluções notórias a nível sociológico e jurídico. É notória a alteração da extensão deste conceito no que diz respeito ao exercício do poder e da autoridade no seu seio1.

Atualmente, a família considera-se fundamental no contexto da nossa sociedade, encontrando-se tutelada “em numerosos instrumentos de direito internacional de proteção dos direitos fundamentais, desde logo pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 16º.), pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 23º.) e pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (artigo 10º.). Nestes instrumentos, a família é qualificada de «elemento natural e fundamental da sociedade» (artigo 16º., nº. 3, da DUDH, e 23º., nº. 1, do PIDCP) ou «núcleo elementar natural e fundamental da sociedade» (artigo 10º., nº. 1, do PIDESC)”2 , por isso, é importante que haja uma proteção jurídica da vida familiar.

Devido á importância da família, esta não é apenas tutelada pelo direito internacional. É, também, merecedora de uma proteção especial que lhe é conferida pelo artigo 67º da Constituição da República Portuguesa (CRP), nomeadamente pelo facto de avaliar a família “como um elemento fundamental da sociedade”, atribuindo-lhe “direito à proteção da sociedade e do Estado e a efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”.

Neste sentido, consoante as tarefas elencadas no nº2 do artigo 67º da CRP, compete ao Estado, destacando-se, especialmente neste âmbito, a aliena a), no que se refere á incumbência de o Estado “promover a independência social e económica dos agregados familiares”.

Deste modo, é importante conferir uma proteção especial à casa de morada de família dos cidadãos.

Apesar de não existir uma definição expressa do conceito “casa de morada de família”, esta pode ser entendida como aquela “que constitua a residência habitual principal do agregado familiar, ou seja, aquela residência, determinável caso por caso, que pela sua estabilidade e solidez seja a sede e o centro principal da maioria dos interesses, das tradições e das aspirações familiares em apreço”3 ou como sendo “o lugar onde a família cumpre as suas funções relativamente aos cônjuges e aos seus filhos e onde assume os seus compromissos perante terceiros”4 .

Assim sendo, a casa de morada de família encontra-se protegida pelo facto de ela mesma constituir um meio de proteger a família, procurando assegurar a sua estabilidade e unidade. A jurisprudência e a doutrina portuguesa sustentam a proteção da casa de morada de família no entendimento de que se considera a mesma como um espaço essencial para a preservação do núcleo familiar e para a promoção do bem-estar dos seus membros.

O Tribunal da Relação de Lisboa argumenta que não se realiza a venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando a mesma seja utilizada somente para esse fim.⁵

1 Para mais, consultar: OLIVEIRA, GUILHERME DE, Manual de Direito da Família

2 SILVEIRA, ALESSANDRA; CANOTILHO, MARIANA, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, 2013, Almedina, p. 113

3 SILVEIRA, ALESSANDRA; CANOTILHO, MARIANA, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, 2013, Almedina, p. 113 SOUSA,

⁴ CAPELO DE, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, Coimbra Editora, p. 246.

⁵ Ac. Do TRL, de 24 de Março de 2022, proc. 1320/11.4TBMTA-C.L1-2, no qual se refere: “A penhora sobre o bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente está sujeita às condições previstas no artigo 244.º – art. 219º, nº 5, do CPPTributário, com a redação introduzida pela Lei nº 13/2016 de 23/5.”

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Marco Carvalho Gonçalves, defende que o objetivo do legislador foi o de impedir a venda da cada de morada de família no âmbito dos processos de execução fiscal, protegendo, por esta via, o executado e o seu agregado familiar (pelo que, de acordo com o TRL, fez as alterações introduzidas pela Lei nº 13/2016 de 23/05).⁶

Deste modo, a proteção da casa de morada de família encontra-se ancorada em diversos elementos:

1. Valor da Família – a CRP⁷consagra a proteção da família como um dos valores fundamentais, pelo que, a casa de morada de família é vista como um espaço que abriga essa unidade familiar, capaz de lhe proporcionar segurança e estabilidade.

2. Dignidade Humana – a casa é o lugar onde os indivíduos encontram refúgio, privacidade e capacidade de se desenvolverem como seres humanos⁸. A preservação da casa de morada de família está diretamente relacionada com a salvaguarda da dignidade dos seus ocupantes. Deste modo, a casa desempenha um papel central na dignidade humana.

3. Estabilidade Familiar – a casa de morada de família constitui um espaço seguro e constante, permitindo que os membros da família criem laços sólidos e mantenham um ambiente propicio ao crescimento emocional e à coesão, fazendo com que a proteção da casa de morada de família contribua para a estabilidade das relações familiares.

4. Interesse dos Menores – a proteção da casa de morada de família é crucial para a promoção do interesse superior das crianças⁹, uma vez que, a estabilidade do ambiente onde vivem é fundamental para que tenham um desenvolvimento saudável e equilibrado.

5. Vedação de Intromissões1⁰– a casa de morada de família representa um espaço inviolável e seguro, pelo que a proteção da mesma pretende limitar intervenções externas que possam prejudicar a privacidade e a autonomia dos membros da família.

6. Preservação do Vínculo Conjugal – muitas vezes a casa de morada de família é o símbolo da relação conjugal, pelo que a proteção da mesma contribui para a manutenção do vínculo existente entre os cônjuges, permitindo a criação de um ambiente onde os mesmos possam resolver conflitos e fortalecer a relação.11

Neste sentido, a casa de morada e família é considera um espaço de valor inestimável para a unidade familiar e para o bem-estar dos seus membros, pelo que, a sua proteção é justificada por princípios constitucionais, direitos fundamentais e pela compreensão da importância da habitação estável para a construção de relações familiares saudáveis e duradouras.

⁶ MARCO CARVALHO GONÇALVES, Lições de Processo Civil Executivo, 4ª ed., p. 536

⁷ O art. 67º, nº1 CRP considera a família como um elemento fundamental da sociedade, por isso mesmo o valor da família é considerado um dos pilares protetores da casa de morada de familia.

⁸ A habitação é um direito fundamental dos cidadãos consagrado no artigo 65º CRP. O nº1deste artigo permite-nos perceber que a habitação constitui um lugar onde os indivíduos possam viver em condições de higiene e conforto, onde se preserve a intimidade pessoal e privada, revelando assim a proteção da dignidade humana.

⁹ O art. 13º CRP consagra o princípio da igualdade, de acordo com o qual todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e sejam iguais perante a lei, fazendo com que tenhamos, além de procurar a igualdade entre os cidadãos, procurar, também, a equidade entre os mesmos. Deste modo, sendo as crianças uma parte mais fragilizada da sociedade, é importante protegê-las, por isso, sendo a casa de morada de família um ambiente estável, é importante que a mesma seja protegida a fim de salvaguardar o superior interesse das crianças.

1⁰ O art. ⁶⁵º, nº1 CRP consagra o direito a habitação que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar, pelo que, a vedação de intromissões é um dos elementos estruturantes da proteção da casa de morada de família.

11 Sendo a família e o casamento direitos fundamentais prescritos no nº1 do art. 3⁶º CRP, percebemos que todos tem direito a constituir família e a contrair casamento em condições de plena igualdade, remetendo-nos para o princípio da igualdade presente no art. 13º CRP, fazendo com que seja importante proteger a casa de morada de família dos cidadãos de modo que se consiga atingir essa igualdade.

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É notório que a casa de morada de família, para além dos efeitos da proteção jurídica, também é relevante em termos processuais especialmente no que respeita à residência habitual da família,12

Por conseguinte, a casa de morada de família assume uma enorme relevância a nível nacional e internacional. Sendo a casa de morada de família entendida como uma garantia das condições para uma vida digna e um direito humano básico, é importante a sua proteção.

A nível nacional, a casa de morada de família é protegia através da impenhorabilidade da habitação própria permanente no que se refere aos processos de execução de dívidas, revelando-se ainda a enorme relevância da mesma através da existência de programas de apoio à habitação, bem como, de políticas nacionais de apoio às famílias de modo que estas consigam manter as suas casas.

No contexto internacional, o ordenamento jurídico alemão consagra no artigo 1046° do Código Civil Alemão a impenhorabilidade da casa de morada de família. No contexto inglês, o Tenant Fees Act 2019 e a Renting Homens (Amendment) (Wales) Act 2019 restringem o despejo repentino, revelando a importância da casa de morada de família. Em França, o seguro de habitação é obrigatório para todos os locatários ou proprietários, garantindo que em caso de ocorrência de uma catástrofe a habitação seja reparada ou substituída, revelando deste modo a grande importância da mesma.

Deste modo, a casa de morada de família é merecedora de uma especial atenção por parte do legislador, conferindo-lhe uma proteção processual acrescida.

3.Reflexão sobre a penhora

Neste contexto, importa compreender que a penhora se trata de um “ato judicial de apreensão dos bens do executado que ficam à disposição do tribunal para o exequente ser pago por eles.”13 O artigo 817° do Código Civil salienta que - como o património do devedor é garantia judicial das obrigações, pelo que está sujeito á execução para satisfação dos direitos dos credores1⁴

Pode ser feita penhora de coisas móveis e penhora de coisas imóveis. Neste sentido, importa distinguir o regime de penhora de coisas imóveis e o regime de penhora de coisas móveis, bem como a importância da penhora para o processo executivo.

A penhora constitui o primeiro passo para que o credor possa exigir ao devedor o cumprimento de uma obrigação que deveria ter sigo paga de forma voluntária. De acordo com o artigo 817º C.C. quando não se dá o cumprimento voluntário da obrigação, o credor tem o direito de exigir por via judicial o cumprimento da obrigação ao devedor e executar o seu património.1⁵ Importa, ainda, ressalvar que, o objeto da penhora não é a coisa penhorada, mas a relação juridica de natureza patrimonial ativa no património do executado cuja titularidade pode ser forçadamente transmitida na venda executiva.1⁶

12 Destacando-se a determinação da competência territorial do tribunal; a determinação da lei aplicável em questões de direito privado; bem como a determinação do lugar da “prestação debitória”.

13 PRATA, ANA, Dicionário Jurídico, Almedina, Coimbra, 2010, P. 1047.

1⁴ Conf. ROCHA, ANA, Os limites da penhorabilidade e os meios de defesa legalmente previstos quando violados, p.114: “não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor (…)A penhora é um ato executivo através do qual se apreendem judicialmente os bens a ela sujeitos, privando o executado do pleno exercício dos poderes sobre esses bens com vista a realização das finalidades a que tende a ação executiva para pagamento de quantia certa.”

1⁵ GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.307

1⁶ PINTO, RUI, Penhora, Venda e Pagamento, Lex, Lisboa, 2004, p.111⁷ Conf. GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.404: “a penhora de bens móveis não sujeitos a registo é realizada com a efetiva apreensão dos bens e a sua imediata remoção para depósito. (…) Com exceção das situações em que a natureza dos bens penhorados seja incompatível com o depósito, afigura-se que os bens móveis só não devem ser removidos se existir alguma perspetiva séria de o executado liquidar voluntariamente a divida exequenda (…), se tiver sido deduzida oposição à execução ou se existirem dúvidas em relação à propriedade efetiva desses bens”.

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A penhora de coisas móveis encontra-se regulada nos artigos 764º a 772º do Código Civil. Em conformidade com o artigo 205º do Código civil, são coisas imóveis todas aquelas que não são coisas móveis de acordo com o artigo 204º do Código Civil. Neste contexto, devemos diferenciar penhora de bens móveis sujeitos a registo e penhora de bens móveis não sujeitos a registo.

Quanto aos bens móveis, a regra geral é a do artigo 764º, nº1 do Código de Processo Civil, que nos diz que a mesma deve ser realizada com a efetiva apreensão dos bens e a sua imediata remoção para depósito, exceto nas situações em que a natureza dos bens não o permite, caso em que os bens só devem ser removidos caso haja sérios motivos para crer que o proprietário os irá liquidar1⁷“

Relativamente à penhora de bens móveis sujeitos a registo, são aplicáveis, com as devidas adaptações, as disposições previstas no Código de Processo Civil para a penhora de bens imóveis.

A penhora de bens imóveis é aquela que se mostra mais relevante quanto à temática da penhora da casa de morada de família, uma vez que esta é considera um bem imóvel de acordo com a classificação dos bens presente no artigo 204º C. Civil.

Sendo a casa de morada de família uma coisa imóvel, a penhora da mesma deve ser realizada através de comunicação eletrónica feita pelo agente de execução ao serviço de registo competente, conforme consta dos artigos 48º, nº1 do CRPredial e do 755º, nº1 CPCivil. Após a penhora constitui-se fiel depositário desse bem1⁸

Importa, ainda, salientar que existem determinados bens do executado que são absolutamente impenhoráveis (artigo 736º do Código de Processo Civil). De acordo com o Ac. Do STJ de 20.03.2018, proc.1064/10.2TBLSD-E.P1.S2 o regime da impenhorabilidade de bens visou a proteção de interesses vitais do executado, que o sistema entende deverem sobrepor-se aos do credor exequente. Neste sentido, a impenhorabilidade absoluta de certos bens tem como principal objetivo conciliar os interesses opostos do credor e do devedor, mas sempre tendo em vista a necessidade de garantir a mínima restrição possível aos direitos do credor.1⁹

O artigo 736º do Código de Processo Civil dá-nos o elenco dos bens absolutamente impenhoráveis, consagrando como tal os bens de domínio público, bens de culto publico, bens cuja apreensão seja injustificada ou ofensiva dos bons costumes, bens que sejam indispensáveis ao tratamento de doentes ou deficientes, e os animais de companhia.

1⁷ Conf. GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.404: “a penhora de bens móveis não sujeitos a registo é realizada com a efetiva apreensão dos bens e a sua imediata remoção para depósito. (…) Com exceção das situações em que a natureza dos bens penhorados seja incompatível com o depósito, afigura-se que os bens móveis só não devem ser removidos se existir alguma perspetiva séria de o executado liquidar voluntariamente a divida exequenda (…), se tiver sido deduzida oposição à execução ou se existirem dúvidas em relação à propriedade efetiva desses bens”.

1⁸ Conf. GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.396: “Uma vez penhorado o imóvel, é constituído fiel depositário desse bem o agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça, pessoa por este designada, salvo se o exequente consentir que seja nomeado como fiel depositário o próprio executado ou outra pessoa designada pelo agente de execução.” De acordo com o AC. Do TRP de 21 01 2003, proc.0222487, o fiel depositário deve tomar posse efetiva do bem penhorado, ainda que o mesmo se encontre ocupado por um terceiro detento de um direito real ou pessoal de gozo, exceto se deduzir embargos de terceiro contra a penhora e requerer a não entrega efetiva do imóvel ao fiel depositário ou diferimento de ocupação do mesmo.

1⁹ Conf. GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.319: “a consagração da impenhorabilidade absoluta de certos bens do executado procura conciliar os interesses antagónicos do credor e do devedor, sem descurar, em todo o caso, a necessidade de garantir a “mínima restrição possível aos direitos do credor””

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É de salientar que, não se deve entender a casa de morada de família como um bem indispensável a qualquer economia doméstica, devendo estes ser entendidos como bens que são absolutamente indispensáveis à satisfação das necessidades básicas e diárias da generalidade das pessoas, uma vez que a casa de morada de família não tem necessariamente de ser um bem próprio do executado, podendo, por exemplo, ser arrendada. Deste modo, a casa de morada de família não pode ser considerada um bem imprescindível à economia doméstica do executado, sendo, por isso, necessário que se tenha como referência um padrão mínimo de dignidade social e não o tipo de economia doméstica do executado.2⁰ O Tribunal da Relação de Lisboa já nos indicou aquilo que se deve entender como bens de primeira necessidade, portanto, bens que não devem ser penhorados. 21

4. Da penhorabilidade da casa de morada de família

A casa de morada de família não integra o elenco de bens impenhoráveis, pelo que, constitui um bem sujeito a penhora, ao contrário daquilo que acontecia nos anos vinte e trinta. 22 Atualmente, é possível penhorar a casa de morada de família, mas como esta é um bem importantíssimo para a vida familiar do executado, o legislador entendeu como necessário consagrar algumas restrições relativamente a atos de disposição acerca de determinados bens. 23

No processo executivo, o cônjuge do executado é sempre convocado quando a penhora incida sobre bem comum do casal. Pelo que, conforme o disposto no artigo 740º, nº1 do Código de Processo Civil, quando a penhora incida sobre bens comuns do casal, é facultado ao cônjuge do executado que, querendo, requeira no prazo de 20 dias a “separação de bens ou junt[e] certidão comprovativa da pendência da ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns”24, o que permite perceber que o legislador, tendo em conta a delicadeza que deve perseguir o processo executivo, protege o cônjuge do executado através mecanismos que lhe permitem salvaguardar o seu património, como é o caso do regime da separação de bens ou da possibilidade de prosseguir com a ação de separação de modo a que a execução não corra contra os bens comuns.

O legislador, além de atribuir uma especial intervenção do cônjuge do executado, também estabeleceu algumas exigências que limitam a penhora da casa de morada de família.

Desde logo no artigo 751º, nº3, alienas a) e b), onde se entende que é possível a penhora do imóvel destinado a “habitação própria permanente do executado”, quando a penhora de outros bens não permita a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses.2⁵

2⁰ FREITA, José Lebre de/ MENDES, Armindo Ribeiro, Código Civil Anotado, Vol. III, op.cit., p.349 21 AC. Do TRL de 16 11 2010, proc. 1030/10 0TJLSB-C.L1: “com toda a probabilidade, um pequeno frigorifico, um fogão, um relógio ou um rádio (e provavelmente todos os eletrodomésticos destinados à ajuda nas tarefas da casa) são, hoje, tão de primeira necessidade como as roupas de uso diário, e a sua venda ocasionaria mais prejuízos ao devedor do que benefícios ao credor”, na medida em que são bens de primeira necessidade, absolutamente essenciais à vida digna, pelo que, se os mesmos fossem vendidos teriam de ser comprados outros bens semelhantes que os substituíssem, levando assim à diminuição do património ativo do devedor e ao consequente aumento do passivo do mesmo.

22 Conf. COELHO, F.P.; OLIVEIRA, G., ob. cit., p. 390-391: “No direito português atual – ao contrário do que se passava nos anos vinte e trinta, em que as leis estabeleciam a impenhorabilidade do “casal de família” – a casa de morada de família não está protegida contra uma penhora”

23 Conf. CID, N.S., ob. cit., p. 246: “impedir que um cônjuge com plena capacidade (…) para o exercício de direitos, possa, por si só, decidir e realizar aquilo que, de acordo com o esquema patrimonial escolhido, estipulável ou imperativamente aplicável, e/ou para salvaguarda da estabilidade e unidade da família, pressupõe o consentimento de ambos”.

2⁴ Art. 740º, nº1 CPCivil

2⁵ O art. 751º, nº3, d) consagra, ainda, a ideia de que no caso de a dívida não exceder metade do valor da alçada do tribunal de primeira instancia ou não permitir a satisfação integral do autor do credor no prazo de 1⁸ meses ou no caso de a dívida exceder metade do valor da alçada do tribunal de 1ª instancia, é possível penhorar o imóvel destinado a habitação própria permanente, pelo que, a impenhorabilidade da casa de morada de família não é absoluta.

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Outra especificidade relativamente à casa de morada de família é que a lei abre uma exceção quanto ao bem imóvel penhorado que se encontra na alínea a) do nº 1 do artigo 756º do Código de Processo Civil, que estabelece que, o executado é o depositário do bem penhorado no caso de este constituir casa de habitação efetiva do mesmo.

O legislador também introduziu um sistema de suspensão da venda como forma de diminuir as consequências sentidas pela família. Deste modo, se o bem penhorado for a casa de habitação efetiva do embargante, o juiz pode determinar, a pedido deste, que a venda aguarde a decisão dos embargos proferida em primeira instância ou de recurso, mas apenas quando essa venda seja suscetível de causar prejuízo grave e dificilmente reparável ao executado.2⁶

O legislador concebeu o direito de remissão ao cônjuge e aos parentes em linha reta do executado, o que permite evitar que a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado. Deste modo, o legislador pretende evitar que os bens do executado saiam do seu património familiar – o mesmo acontece com a casa de morada de família.2⁷

Por fim, a lei protege o executado nas situações em que, após a venda executiva existam sérias dificuldades no realojamento do executado. Nesse caso, o agente de execução deve comunicar o facto à câmara municipal e às entidades competentes, conforme o estabelecido no artigo 861º, nº6 do Código de Processo Civil.

Deste modo, é possível perceber que, apesar de o legislador não ter incluído a casa de morada de família no elenco dos bens impenhoráveis, procurou fornecer-lhe uma maior proteção do que aquela que confere aos demais imóveis penhorados.

Importa ter em conta que, embora o direito à habitação esteja constitucionalmente constituído, o “direito à habitação não é um direito que se sobreponha a qualquer outro, nomeadamente, ao direito de propriedade”2⁸, também ele constitucionalmente constituído. Pelo que, embora o direito de propriedade e o direito à habitação estejam constitucionalmente constituídos, os mesmos não se podem sobrepor à execução por dividas, pois estaríamos a sacrificar património alheio.2⁹ No entanto, temos de ter em conta que mesmo a dimensão positiva do direito à habitação, enquanto direito à aquisição de propriedade, o mesmo não se confunde com o direito de propriedade, uma vez que o direito de propriedade diz respeito á posse legal de bens, enquanto o direito à aquisição de propriedade se refere ao direito de alguém adquirir um bem ativo vindo-se a tornar seu proprietário.3⁰

2⁶ Conf. SANTOS, Inês da Mota, A (im)penhorabilidade da casa de morada de família, p.21: “Assim, se “o bem penhorado for a casa de habitação efetiva do embargante, o juiz pode, a requerimento daquele, determinar que a venda aguarde a decisão proferida em 1ª instância sobre os embargos, quando tal venda seja suscetível de causar prejuízo grave e dificilmente reparável”. De igual forma, “[e]nquanto a sentença estiver pendente de recurso, se o bem penhorado for a casa de habitação efetiva do executado, o juiz pode, a requerimento daquele, determinar que a venda aguarde a decisão definitiva, quando aquela seja suscetível de causar prejuízo grave e dificilmente reparável”

2⁷ Conf FREITAS, J.L., ob. cit., p. 385: “ao cônjuge e aos parentes em linha reta do executado um especial direito de preferência, denominado direito de remissão (…), [evitando] a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado.”

2⁸ Acórdão do STJ de 05/03/2015, processo nº 3762/12 9TBCSC-B.L1.S1

2⁹ Conf. ANOTILHO, J.J.G.; MOREIRA, V., ob. cit., p. 858.: “promoção da independência social e económica das famílias depende da realização de outros direitos sociais, a começar pelo direito à habitação e pela proteção especial da «morada de família», mas não pode cancelar a execução por dívidas”

3⁰ Conf. MIRANDA, JORGE; MEDEIROS, RUI, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2010, Coimbra Editora, p. 665-666.: “o direito à habitação não confunde com o direito de propriedade, mesmo na sua dimensão positiva enquanto direito à aquisição da propriedade.”

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Relativamente aos ordenamentos jurídicos estrangeiros, o Brasil adota uma posição contrária aquela que vigora em Portugal, ou seja, como fundamento na proteção do direito á habitação e da dignidade da pessoa humana, instituiu-se a impenhorabilidade da casa de morada de família.31 No ordenamento jurídico alemão também se considera impenhorável a casa de morada de família e, em Inglaterra restringe-se o despejo repentino.

Posto isto, é possível afirmar de forma segura que, embora existam outros ordenamentos jurídicos onde vigora a impenhorabilidade da casa de morada de família; no ordenamento jurídico português, a casa de morada de família é um bem penhorável, embora lhe tenha sido atribuída pelo legislador um regime de proteção especial por se tratar de um bem que assume uma enorme relevância na vida da sociedade em geral, ao ponto de ser merecedor de tutela constitucional.

31 Conf. GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.400: “em sede de direito comparado, (…) no ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 1º da Lei nº 8009/90 determina, quanto à impenhorabilidade do bem de família, que “o imóvel residencial próprio do casal, ou da identidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”. Excluem-se desta regra de impenhorabilidade “os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos” (art. 2º) bem como os casos em que a execução seja movida por determinados credores, designadamente, o titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou aquisição do imóvel, o credor hipotecário ou o credor de pensão alimentícia”

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5. Conclusão

Com o presente artigo, analisou-se a importância que é atribuída à casa de morada de família no nosso ordenamento jurídico. Tendo sido feito uma breve resenha da penhora em geral, bem como da penhora da casa de morada de família de um modo mais aprofundado, bem como dos seus meios de proteção no ordenamento jurídico português, fazendo, também, uma brevíssima referência á impenhorabilidade da habitação efetiva da família em alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros.

Como foi possível constatar, o legislador tem como finalidade proteger de forma ampla a casa de morada de família, uma vez que o direito á habitação se encontra constitucionalmente consagrado, pelo que, o Estado deve garantir habitação a todos os cidadãos. A importância da habitação não decorre apenas do direito nacional, mas também do direito internacional, uma vez que, decorre, de entre outros diplomas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Relativamente à penhora, existem bens penhoráveis e bens absolutamente impenhoráveis, sendo que a casa de morada de família não faz parte deste segundo grupo.

Não optando por consagrar a impenhorabilidade deste bem como acontece no ordenamento jurídico brasileiro, o legislador português opta por fornece algumas medidas especiais de proteção da casa de morada de família, como é o caso, por exemplo, de permitir ao cônjuge do executado que processa à separação de bens se assim o entender.

Neste sentido, embora o direito à habitação esteja constitucionalmente consagrado, este não é um direito que se sobrepõe ao direito de propriedade, também este constitucionalmente aclamado. É, portanto, um direito que permite a aquisição de propriedade.

Salientou-se, ainda, que o direito à habitação não se confunde com o direito à casa de morada de família, o que justifica a opção do legislador português em permitir a penhorabilidade da habitação própria e permanente da família do executado, pois o direito à habitação refere-se ao direito á habitação efetiva e não ao direito de habitação própria.

Trata-se de um direito que tem por base a dignada da pessoa humana, nomeadamente na sua faceta de dignidade de vida, não devendo por isso ter-se em conta o contexto económico do executado, pelo que, existe a possibilidade de penhora da casa de morada de família no ordenamento jurídico português.

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Referencias jurisprudenciais:

AC. Do TRL de 16.11.2010, proc. 1030/10.0TJLSB-C.L1

AC. Do TRP de 21.01.2003, proc.0222487

Acórdão do STJ de 05/03/2015, processo nº 3762/12.9TBCSC-B.L1.S1

Referencias bibliográficas:

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CAPELO DE, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, Coimbra Editora, p. 246.

CID, N.S., ob. cit., p. 246

COELHO, F.P.; OLIVEIRA, G., ob. cit., p. 390-391:

FREITA, José Lebre de/ MENDES, Armindo Ribeiro, Código Civil Anotado, Vol. III, op.cit., p.349

FREITAS, J.L., ob. cit., p. 385;

GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.307

GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.404:

GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.319:

GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.396:

GONÇALVES, MARCO CARVALHO, Lições de processo executivo, Almedina, 2022, P.400

MARCO CARVALHO GONÇALVES, Lições de Processo Civil Executivo, 4ª ed., p. 536.

MIRANDA, JORGE; MEDEIROS, RUI, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2010, Coimbra Editora, p. 665-666;

OLIVEIRA, GUILHERME DE, Manual de Direito da Família

PINTO, RUI, Penhora, Venda e Pagamento, Lex, Lisboa, 2004, p.11

PRATA, ANA, Dicionário Jurídico, Almedina, Coimbra, 2010, P. 1047.

ROCHA, ANA, Os limites da penhorabilidade e os meios de defesa legalmente previstos quando violados, p.114

SANTOS, Inês da Mota, A (im)penhorabilidade da casa de morada de família, p.21

SILVEIRA, ALESSANDRA; CANOTILHO, MARIANA, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, 2013, Almedina, p. 113

SILVEIRA, ALESSANDRA; CANOTILHO, MARIANA, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, 2013, Almedina, p. 113 SOUSA,

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A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS GERENTES E ADMINISTRADORES PARA COM A SOCIEDADE

ANDRÉ FILIPE MACHADO DA COSTA

Número de Estagiário:269

Trabalho de Investigação

Resumo

Por violação de deveres legais e contratuais, os membros dos órgãos de administração (podendo ser denominados gerentes ou administradores) podem ser responsabilizados civilmente por danos que causarem à própria sociedade comercial que exercem funções.

Assim, será estudado os variados deveres legais que se aplicam ao órgão de administração, bem como o regime da responsabilidade civil destes por violação de tais deveres.

Palavras-chave: deveres, administradores, gerentes, responsabilidade civil, sociedade comercial.

Lista de Siglas

a contrariu sensu art. arts.

CC

C.Civil CCom CIRE CPEREF CSC DL etc. Ibidem Idem n.º Op. cit. p. pp. ROA segs. STJ TRL

A contrário. Artigo.

Artigos.

Código Civil. Código Civil.

Código Comercial.

Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.

Código das Sociedades Comerciais.

Decreto-Lei.

Et cetera, significando entre outros.

Mesmo autor e mesma obra.

Mesmo autor, mesma obra e mesma página. Número.

Obra citada.

Página. Páginas.

Revista da Ordem dos Advogados.

Seguintes.

Supremo Tribunal de Justiça.

Tribunal da Relação de Lisboa.

ÍNDICE

RESUMO

SIGLAS E ABREVIATURAS

ÍNDICE

INTRODUÇÃO

1. DEVERES DOS GERENTES E ADMINISTRADORES

2. PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS GERENTES E ADMINISTRADORES PARA COM A SOCIEDADE

3. RESPONSABILIDADE PLURAL DOS GERENTES E ADMINISTRADORES

4. POSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO OU LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DOS GERENTES E ADMINISTRADORES PREVIAMENTE

5. AÇÕES SOCIAIS DE RESPONSABILIDADE CIVIL DOS GERENTES E ADMINISTRADORES PARA COM A SOCIEDADE

6. RESPONSABILIDADE CIVIL DOS GERENTES E ADMINISTRADORES QUANTO À DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA FORTUITA DA SOCIEDADE COMERCIAL

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INTRODUÇÃO

O artigo 980.º CC define o contrato de sociedade como aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa atividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa atividade. Desta forma, é possível determinar certos elementos que são necessários para a constituição de uma sociedade comercial: “a) a associação ou agrupamento de pessoas; b) o fundo patrimonial; c) o objeto (exercício em comum de certa atividade económica que não seja de mera fruição); d) o fim (obtenção de lucros para serem repartidos pelos associados)”1 , podendo adotar uma das formas previstas no artigo 1.º n.º 3 CSC, enumerando: Sociedades em Nome Coletivo, Sociedade por Quotas, Sociedade Anónima e Sociedade em Comandita Simples ou por Ações (para o presente trabalho, devido a serem as sociedades com mais relevância atual em Portugal, tem como foco as Sociedades por Quotas e as Sociedades Anónimas).

Uma sociedade comercial é, portanto, uma pessoa coletiva e, por isso, “atuam através de órgãos, isto é, através de centros institucionalizados de poderes funcionais a exercer por pessoa ou pessoas com o objetivo de formar e/ou exprimir vontade juridicamente imputável às sociedades”2. Podemos destacar três tipologias de órgãos que, comparando-se com a figura do corpo humano, “o órgão de deliberação é o cérebro da sociedade, o órgão de administração é os músculos da sociedade e o órgão de fiscalização é a consciência da sociedade”3 .

“Interessa aqui especialmente a distinção dos órgãos sociais segundo a competência: órgãos de formação de vontade ou deliberativos-internos (tomam decisões expressando a vontade social, mas quase nunca a manifestam para o exterior – não tratam com terceiros), órgãos de administração e representação (gerem as atividades sociais e representam as sociedades perante terceiros, a quem fazem e de quem recebem declarações de vontade) e órgãos de fiscalização ou controlo (fiscalizam sobretudo a atuação dos membros do órgão de administração)”⁴

O que mais releva para o presente trabalho de investigação é o órgão de administração. Por um lado, nas Sociedades por Quotas, este órgão é denominado por gerência, nos termos dos artigos 252.º a 261.º CSC, em que “a lei confere toda a liberdade de escolha aos sócios. A sociedade pode ser administrada e representada por um ou mais gerentes […] e podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade”⁵, ou seja, este órgão não precisa de ser necessariamente composto pelos sócios. Por outro lado, nas Sociedades Anónimas, com base no disposto nos artigos 278.º n.º 1 e 2, 390.º n.º 2 e 424.º n.º 2 CSC, pode ser através de Conselho de Administração (modelo tradicional ou monístico), Conselho de Administração Executivo (modelo germânico) ou administrador único (este último caso apenas no caso do capital social não exceder o valor de duzentos mil euros).

Desta forma, o presente trabalho de investigação está estruturado com, primeiramente, a apresentação dos deveres legais dos gerentes e administradores, sendo, de seguida, apresentados os pressupostos cumulativos da responsabilidade civil, a modalidade de responsabilidade plural se estivermos perante mais de um membro do órgão de administração que é responsabilizado, se existe possibilidade de excluir ou limitar a responsabilidade e a forma como a sociedade pode renunciar a indemnização, quais são os aspetos processuais de legitimidade das ações a terem de ser propostas para a responsabilidade civil e, por fim, a responsabilidade do órgão de administração perante uma declaração de insolvência quando esta é fortuita (e, por isso, não culposa).

1 COUTINHO DE ABREU, Jorge Manuel – Curso de Direito Comercial (Volume II – Das Sociedades), 6.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2019, p. 23.

2 Idem, p. 68.

3 POLÓNIA, Rui – Direito das Sociedades Comerciais, 1.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2022, p. 60.

⁴ COUTINHO DE ABREU, Jorge Manuel, op. cit., p. 68.

⁵ MENEZES CORDEIRO, António; GONÇALVES, Diogo Costa; CORREIA, Francisco Mendes; OLIVEIRA, Ana Perestrelo de –Código das Sociedades Comerciais Anotado e Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (DLA), 1.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2009, p. 664.

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A escolha deste tema prendeu-se com a importância desta temática ao nível societário, visto que os órgãos de administração são exercidos por pessoas singulares que, comummente, violam os seus deveres e, por isso, devem ser responsabilizados por terem um cargo ao que lhes é confiado com extrema importância.

Quanto à premissa jurídica do presente trabalho, a conclusão que se pretende é “Será que os gerentes e os administradores das sociedades comerciais podem ser responsabilizados civilmente por violação dos seus deveres quando foi proferida uma declaração de insolvência fortuita e, por isso, não culposa por estes?”.

Quanto à metodologia utilizada no presente trabalho, primeiramente foi aplicada a metodologia de investigação jurídica descritiva, privilegiando o direito criado pelo legislador sem posições críticas, onde são apresentados os variados deveres legais que são impostos aos gerentes e administradores, quanto aos pressupostos da sua responsabilidade civil, qual a modalidade quando existe responsabilidade plural de gerentes ou administradores, quanto à possibilidade de excluir ou se limitar a responsabilidade destes ou se pode renunciar pela sociedade o direito à indemnização e, finalmente, quanto às respetivas ações sociais que devem ser propostas. Além desta, também foi aplicada a metodologia de investigação jurídica doutrinal, onde existiu já posições críticas sobre os restantes assuntos e não meramente descritiva, e também a análise jurisprudencial dos tribunais superiores, principalmente quanto à análise dos diferentes deveres dos gerentes ou administradores, quanto às obrigações destes, quanto ao ónus de prova nos casos de responsabilidade civil destes, quanto ao prazo prescricional para a proposição das respetivas ações sociais e, finalmente, quanto à análise da premissa jurídica.

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1. DEVERES DOS GERENTES E ADMINISTRADORES

Quanto aos deveres que incumbem aos gerentes e administradores, destaca-se a existência de, por um lado, deveres específicos, que impõem uma determinada atuação ou omissão concreta, por estes decorrerem da própria lei, dos estatutos das sociedades, das deliberações dos sócios, não deixando “qualquer margem de discricionariedade ou ponderação ao administrador [e ao gerente]”⁶. Exemplificativamente, não podem ser praticados atos por administradores nem gerentes que violem o objeto social da sociedade, nos termos do artigo 6.º CSC. Por outro lado, “a conduta dos membros do órgão de administração é pautada por deveres gerais: deveres que não dizem «o que» o administrador deve fazer, mas fundamentalmente o «modo» como o deve fazer”⁷, decorrentes da relação de confiança que é depositada ao órgão de administração, deixando-lhes discricionariedade de atuação. O artigo 64.º n.º 1 CSC estabelece os deveres fundamentais dos gerentes ou administradores, sendo a atual redação proveniente do DL n.º 76-A/2006, de 29 de março, que reconhece e individualiza de forma geral (visto que tem aplicação em todas as sociedades comerciais) os dois direitos fundamentais de cuidado e de lealdade que deverão ser observados pelos gerentes e administradores.

Em termos dos deveres legalmente previstos dos gerentes e administradores, o artigo 64.º n.º 1 a) CSC indica o dever de cuidado, acrescentando que devem ter especial atenção na disponibilidade, competência técnica e conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito diligência de um gestor criterioso e ordenado.

“Quanto ao grau de diligência que lhes é exigido, o patamar é bem superior ao da generalidade do direito privado, esperando-se, dos administradores [e gerentes], que ajam de forma criteriosa e ordenada, não sendo, naturalmente, homens médios quanto ao conhecimento acerca das funções que desempenham”⁸ .

O que é exigido são critérios mais exigentes, uma vez que a figura do gestor criterioso e ordenado “surge como uma bitola mais exigente do que a comum: requer um esforço acrescido, por se dirigir a especialistas fiduciários, que gerem bens alheios”⁹, devendo ter em atenção “o máximo interesse da sociedade e com o cuidado que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares”1⁰. Desta forma, de acordo com este dever, deverão ter-se em conta

“todos os fatores que estiveram na base decisão do administrador, nomeadamente: o tipo, objeto e dimensão da sociedade, o setor económico da atividade social, a importância da decisão, o risco do negócio e a relevância do mesmo para a atividade da sociedade, o papel e a função exercida pelo administrador, etc.”11 .

Assim, conclusivamente, a diligência equivale

“ao grau de esforço exigível para determinar e executar a conduta que integra o cumprimento de um dever. Trata-se de uma regra de conduta, ou melhor: de parte de uma regra de conduta, que deve ser determinada independentemente de qualquer responsabilidade e, logo: de culpa. A violação do dever de diligência dá azo a ilicitude: não a mera medida de culpa. Aliás: a falta de diligência pode ser dolosa e não meramente negligente”12

⁶ NOVAIS, Amândio – A Responsabilidade Civil dos Administradores na Execução de Deliberações dos Sócios – Journal of Business and Legal Sciences / Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, Porto, 2016, p. 242.

⁷Ibidem

⁸ POLÓNIA, Rui, op. cit., pp. 66-67.

⁹ Acórdão do STJ de 01/04/2014 (Processo n.º 8717/06 0TBVFR.P1.S1).

1⁰ Acórdão do TRL de 12/07/2018 (Processo n.º 9003/08 6TBCSC.L2-1).

11 NOVAIS, Amândio, op. cit., p. 245.

12 MENEZES CORDEIRO, António – Os deveres fundamentais dos administradores das sociedades – ROA, Ano 66, Volume II, Lisboa, 2006.

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No que concerne ao dever previsto na alínea b) do destacado artigo, é imposto o dever de lealdade ao órgão de administração, tendo especial relevo no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores. Desta forma, podemos destacar um plano positivo, em que estes profissionais devem orientar “a sua atuação em função e no interesse da sociedade”13. A verdade é que os administradores e gerentes devem ter especial relevância

“(a) nas relações dos sócios com a sociedade e entre si, integrando a ideia básica de status do sócio; (b) nas relações da sociedade para com os sócios, implicando um alargamento ex bona fide da competência da assembleia geral; (c) nas relações dos administradores com a sociedade e com os próprios sócios”1⁴

Além disso, também apresenta um plano negativo, impondo-se “uma proibição geral […] atuar em prol da realização de outros interesses, próprios e/ou alheios – situações em que há conflitos de interesses”1⁵. O dever de lealdade pode ser manifestado no dever de neutralidade perante os acionistas, as atitudes a tomar perante ofertas públicas de aquisição de que as respetivas sociedades sejam alvo, situações de conflitos de interesses com a sociedade, proibição de concorrência e apropriação das oportunidades de negócio da sociedade1⁶ .

Finalmente, e especialmente para as Sociedades por Quotas, o artigo 254.º CSC, ainda, enuncia que os gerentes não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por conta própria ou alheia, atividade concorrente com o da sociedade.

Além da responsabilidade civil (que será estudado nos pontos 2. a 6. do presente trabalho de investigação), existem várias consequências jurídicas da violação dos deveres inerentes ao órgão de administração, que podem consistir na destituição, numa indemnização por lucros cessantes, na exigência do direito de ingresso nos negócios efetuados pelo sócio (tendo previsão normativa no artigo 180.º n.º 2 CSC quanto às Sociedades em Nome Coletivo e aplicando-se por analogia aos administradores) ou na restituição de todos os lucros recebidos pelo enriquecimento sem causa1⁷. Quanto à responsabilidade civil, é necessário a proposição de uma ação declarativa contra os membros de administração, distinguindo a sua responsabilidade para com a sociedade (com previsão normativa nos artigos 72.º a 77.º CSC), para com os credores sociais (destacado no artigo 78.º CSC) e para com sócios e terceiros (referido no artigo 79.º CSC). No presente trabalho de investigação (e nos próximos pontos em análise), apenas será destacado a responsabilidade dos gerentes e administradores para com a sociedade.

13 NOVAIS, Amândio, op. cit, p. 247

1⁴ Acórdão do STJ de 01/04/2014 (Processo n.º 8717/06.0TBVFR.P1.S1).

1⁵ NOVAIS, Amândio, op. cit., p. 247

1⁶ MENEZES CORDEIRO, António – Os deveres fundamentais dos administradores das sociedades, op. cit

1⁷ Acórdão do TRL de 12/⁰⁷/2⁰1⁸ (Processo n.º ⁹⁰⁰3/⁰⁸.⁶TBCSC.L2-1).

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2. PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS GERENTES E ADMINISTRADORES PARA COM A SOCIEDADE

O artigo 72.º n.º 1 CSC indica que os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por atos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais. Desta forma, esta responsabilidade subjetiva do órgão de administração carece que sejam preenchidos pressupostos cumulativos: “o facto (atos ou omissões praticados); a ilicitude (com preterição dos deveres legais ou contratuais); a culpa (presumida); o dano (danos a esta – à sociedade); e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (danos a esta causados por atos e omissões)”1⁸, nascendo a obrigação de indemnizar. Quanto à culpa, a verdade é que esta se presume ao órgão de administração, visto que o artigo 72.º n.º 1 do CSC refere que esta é excluída se estes provarem que procederam sem culpa e, ainda acrescenta o n.º 2, que é excluída se provar em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial, o que conclui que, conjuntamente com os deveres fundamentais consagrados no artigo 64.º CSC, que a obrigação dos administradores e dos gerentes é uma “obrigação de meios, podendo o gestor exonerar-se da responsabilidade ainda que o resultado da sua atividade não tenha sido o mais desejado”1⁹

Em termos de ónus da prova, a “sociedade demandante tem o ónus de provar os factos constitutivos do direito a indemnização (art.342º, nº1, do C.Civil), isto é, tem de provar que os atos ou omissões ilícitos do administradores causaram danos ao património social”2⁰, enquanto o “administrador só tem de provar que não teve culpa desde que se prove a violação de algum dos seus deveres legais ou contratuais, ou sejam a ilicitude de uma qualquer sua conduta”21 .

Além disso, o n.º 3 exclui ainda a responsabilidade do gerente ou administrador que não tenha participado na declaração de voto, desde que tenha exercido o seu direito de oposição (como acrescenta o n.º 4 do respetivo artigo).

A responsabilidade também é excluída na situação em que seja assente em deliberação dos sócios, mesmo sejam anuláveis, como dispõe o n.º 5 do mesmo artigo. A verdade é que, em princípio, os gerentes e os administradores estão obrigados a executar as deliberações dos sócios, como salienta os artigos 259.º e 405.º CSC, e, por isso, “a solução adotada faz todo o sentido se atentarmos que só haverá causa de justificação de ilicitude quando a prática do facto resulta do exercício de um direito ou, como no nosso caso, no cumprimento de um dever”22. A meu ver, faz sentido esta desresponsabilização do administrador ou do gerente, pois, também no seguimento de alguma doutrina, “foi intenção do legislador não colocar o administrador numa posição de responsabilidade por um facto que teve origem na vontade dos sócios”23

Finalmente, quanto a deliberações nulas, atendendo ao disposto no CSC (a contrariu sensu), parece que a desresponsabilização dos sócios não se aplica quanto a estas. A verdade é que é pacífico na doutrina, que entendem que o artigo 72.º n.º 5 CSC não se estende quanto a deliberações nulas, indicando que existe mesmo “um dever de não execução já que o administrador, mais que um «bom pai de família», será um «gestor criterioso e ordenado» e que, por isso, deve saber quando está perante uma deliberação ferida de vícios tão graves”24, sem prejuízo de o administrador ou gerente poder afastar a sua culpa nos termos com as restantes causas de desresponsabilização.

1⁸ FERREIRA, Paula Cristina Domingues Paz Dias – Responsabilidade Civil dos Administradores e Gerentes perante a Sociedade, Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2011, Dissertação de Mestrado.

1⁹ Acórdão do TRL de 11/11/2014 (Processo n.º 5314/06.3TVLSB.L1-7).

2⁰ Acórdão do TRL de 11/11/2014 (Processo n.º 5314/06 3TVLSB.L1-7).

21 Acórdão do TRL de 11/11/2014 (Processo n.º 5314/06.3TVLSB.L1-7).

22 NOVAIS, Amândio, op. cit., p. 256

23 Ibidem

2⁴ Idem, p. 260.

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3. RESPONSABILIDADE PLURAL DOS GERENTES E ADMINISTRADORES

Quanto à responsabilidade dos membros da administração, o artigo 73.º indica que se está perante uma responsabilidade solidária (com referência aos artigos 524.º CC e 100.º CCom), em que o direito de regresso só existe na medida das respetivas culpas e das consequências. Desta forma, esta solidariedade deve ser entendida “por referência aos gerentes responsáveis, isto é, entre os gerentes a quem é imputável a prática do ato gerador de prejuízo para a sociedade e determinante da responsabilidade e consequente obrigação de indemnizar”2⁵. Porém, é importante referir que a responsabilidade solidária “pressupõe a responsabilidade individual de, pelo menos, dois dos titulares dos órgãos de gestão. Não estando tal demonstrado, não pode o mesmo ser aplicado”2⁶, e o cumprimento por um dos obrigados libera os demais no cumprimento da indemnização integral, como refere o artigo 523.º CC.

4. POSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO OU LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DOS GERENTES

E ADMINISTRADORES PREVIAMENTE

É de salientar que não é possível existir renúncia quanto à responsabilidade dos gerentes ou administradores, sendo nula esta renúncia, seja ou não estabelecida no contrato de sociedade, como refere o artigo 74.º n.º 1 CSC. No entanto, a sociedade pode renunciar ao seu direito de indemnização proveniente da responsabilidade civil do órgão de administração ou transigir sobre ele apenas em deliberação expressa dos sócios sem oposição de, pelo menos, dez porcento do capital social, não podendo existir participação, obviamente, dos responsáveis civis (que violaram os seus deveres para com a sociedade), como estabelece o n.º 2 do respetivo artigo.

5. AÇÕES SOCIAIS DE RESPONSABILIDADE CIVIL DOS GERENTES E ADMINISTRADORES PARA COM A SOCIEDADE

Em termos de aspetos processuais, a verdade é que para efetivar a responsabilidade é necessária uma ação social. Por um lado, pode ser proposta uma ação ut universi, proposta pela sociedade comercial que tem de ser indemnizada, dependente de deliberação dos sócios tomada por maioria em assembleia geral (sem prejuízo da anulabilidade da deliberação caso não conste descrita na ordem do dia, como baseado nos artigos 58.º n.º 1 c) e 4 a), e 377.º n.º 8 CSC), desde que proposta no prazo de seis meses a contar da deliberação, nos termos previstos no artigo 75.º CSC. Por outro lado, pode ser proposta a ação ut singuli, salvaguardando a posição minoritária dos sócios, desde que possuam, pelo menos, cinco porcento do capital social, podem propor a ação social contra gerentes ou administradores, como dispõe o artigo 76.º CSC.

Por razões de segurança jurídica, o legislador estipulou um prazo geral prescricional para o exercício dos direitos no artigo 309.º CC de vinte anos. Porém, no entendimento do Acórdão do STJ do Processo nº 275/15.0T8AGH.L1.S1 de 06 de abril de 2017, o artigo 174.º CSC

“fixa, concretamente, em cinco anos o prazo de prescrição relativamente ao exercício de direitos da sociedade (n.º 1) […] por responsabilidade dos gerentes e administradores, tendo, assim, o legislador optado por um prazo substancialmente mais reduzido do que o prazo ordinário de 20 anos estabelecido no art. 309.º do CC, por ter considerado nefasta a indefinição de direitos por período de tempo tão dilatado”2⁷ .

2⁵ Acórdão do STJ de 14/05/2009 (Processo n.º 09B0563).

2⁶ Acórdão do STJ de 14/05/2009 (Processo n.º 09B0563).

2⁷ Acórdão do STJ de 06/04/2017 (Processo n.º 275/15.0T8AGH.L1.S1).

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6. RESPONSABILIDADE CIVIL DOS GERENTES E ADMINISTRADORES QUANTO À DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA FORTUITA DA SOCIEDADE COMERCIAL

O artigo 1.º CIRE define o processo de insolvência como um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores, baseado, nomeadamente, (1) na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente ou, quanto tal não se afigura possível, (2) na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. A situação de insolvência é definida pelo artigo 3.º do mesmo ato normativo, indicando que é nos casos em que o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas ou, apenas quanto às pessoas coletivas, quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo.

Quanto à sua qualificação, a insolvência pode ser culposa ou fortuita, como refere o artigo 185.º CIRE. Por um lado, a insolvência é culposa, como está indicado no artigo 186.º CIRE, quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e quando proferida assim na sentença do incidente de qualificação (como referencia o artigo 189.º CIRE). Por outro lado, a insolvência é fortuita quando, contrariamente ao disposto no artigo 186.º CIRE, não existiu atuação culposa do devedor nem dos seus administradores. A verdade é que anteriormente a declaração de falência (como era conhecido pelo CPEREF) inibia o falido em exercer comércio, estendendo-se aos administradores quando se tratasse de pessoas coletivas. Mas a verdade é que o CIRE

“alterou significativamente a incidência dessa inibição, que deixa de ser automática e de duração ilimitada, pois passa a ser apenas uma das consequências sancionatórias da qualificação da insolvência, no respetivo incidente (arts. 185º e segs.), como culposa, não se aplicando, portanto, em caso de qualificação da insolvência como fortuita”2⁸ .

A verdade é que a

“declaração de insolvência como fortuita apenas assume relevância para os administradores da sociedade insolvente, no âmbito do processo insolvencial, porquanto neste específico procedimento não são condenados a satisfazer qualquer indemnização aos credores daquela”2⁹ .

Porém, o entendimento do STJ no acórdão citado anteriormente indica que esta não condenação aos administradores (e, também, gerentes)

“não implica que […] não possam vir a ser demandados, pelos credores e/ou pelo administrador da insolvência, em representação desta, por prejuízos causados, fora daquele âmbito procedimental, isto é, em processo autónomo, nomeadamente em sede de responsabilidade contratual e subjetiva por danos ilícitos provocados pela inobservância de deveres específicos nos termos do disposto no art. 72.º do CSC”3⁰ .

Desta forma, mesmo que a insolvência não tenha sido motivada pelo órgão de administração da sociedade comercial, a verdade é que estes ainda podem ser responsáveis civilmente subjetivamente por violação dos seus deveres contratuais e legais, desde que se verifique os pressupostos exigidos e cumulativos previstos no artigo 72.º CSC (o que faz todo o sentido, visto que não é por ser proposto um processo de insolvência que o órgão de administração possa ficar impune e não ser responsabilizado por violação dos seus deveres). 2⁸

PUPO
J. A. –
/
, 11.ª
409 138
CORREIA, Miguel
Direito Comercial
Direito da Empresa
edição, Lisboa: EDIFORUM Edições Jurídicas, Lda., 2009, p.

CONCLUSÃO

Com a realização deste trabalho, é possível concluir que os gerentes e administradores de uma determinada sociedade comercial podem ser responsabilizados civilmente e subjetivamente caso violem algum dos seus deveres legais e contratuais, desde que na sua condute se verifiquem os pressupostos cumulativos previstos no artigo 72.º n.º 1 CSC: ação ou omissão (quando devia atuar) dos gerentes e administradores, ilicitude (que é a preterição dos seus deveres legais e contratuais), culpa (presumida, cabendo a estes a demonstração de factos que os desresponsabilizem), dano (à sociedade) e nexo de causalidade entre o facto realizado pelo órgão de administração (ou que foi omitido) e o dano. Caso cumpra todos os pressupostos indicados anteriormente, a verdade é que nasce uma obrigação de indemnização para estes gerentes e administradores que não cumpriram os seus deveres, sendo necessária a proposição de uma ação judicial, podendo ser proposta pela própria sociedade, mediante deliberação dos sócios nesse sentido, ou por uma parte minoritária dos sócios.

Quanto à premissa do presente trabalho de investigação, conclui-se que, mesmo em caso em que a sociedade comercial está declarada insolvente e, por isso, não tem capacidade de cumprir as suas obrigações ou o seu valor de passivo é superior ao valor ativo, os próprios gerentes ou administradores podem ser responsabilizados civilmente e subjetivamente por violação dos seus deveres, apesar de a causa para que a sociedade seja declarada insolvente não tenha sido por culpa da atuação pelo próprio órgão de administração.

139

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIBLIOGRAFIA:

COUTINHO DE ABREU, Jorge Manuel – Curso de Direito Comercial (Volume II – Das Sociedades), 6.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2019.

FERREIRA, Paula Cristina Domingues Paz Dias – Responsabilidade Civil dos Administradores e Gerentes perante a Sociedade, Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2011, Dissertação de Mestrado.

MENEZES CORDEIRO, António – Os deveres fundamentais dos administradores das sociedades –ROA, Ano 66, Volume II, Lisboa, 2006.

MENEZES CORDEIRO, António; GONÇALVES, Diogo Costa; CORREIA, Francisco Mendes; OLIVEIRA, Ana Perestrelo de – Código das Sociedades Comerciais Anotado e Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (DLA), 1.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2009.

NOVAIS, Amândio – A Responsabilidade Civil dos Administradores na Execução de Deliberação dos Sócios – Journal of Business and Legal Sciences / Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, Porto: Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto, 2016.

POLÓNIA, Rui – Direito das Sociedades Comerciais, 1.ª edição, Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2022.

PUPO CORREIA, Miguel J. A. – Direito Comercial / Direito da Empresa, 11.ª edição, Lisboa: EDIFORUM Edições Jurídicas, Lda., 2009.

LEGISLAÇÃO:

CÓDIGO CIVIL (DECRETO-LEI n.º 47344/66), D.R. I Série 274 (1966-11-25), pp. 1883-2086.

CÓDIGO COMERCIAL (CARTA DE LEI de 1888-06-18).

CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (DECRETO-LEI n.º 53/2004), D.R. I-A Série 66 (2004-03-18), pp. 1402-1465.

CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (DECRETO-LEI n.º 262/86), D.R. I Série 201 (1986-09-02), pp. 2293-2385.

CÓDIGO DOS PROCESSOS ESPECIAIS DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA E DA FALÊNCIA (DECRETO-LEI n.º 132/93), D.R. I-A Série 95 (1993-04-23), pp. 1976-2005.

DECRETO-LEI n.º 76-A/2006, D.R. I-A Série 63 (2006-03-29), pp. 2-190.

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JURISPRUDÊNCIA:

ACÓRDÃO do STJ de 14 de maio de 2009 (Processo n.º 09B0563), consultado a 22 de maio de 2023 e disponível em

ACÓRDÃO do STJ de 01 de abril de 2014 (Processo n.º 8717/06.0TBVFR.P1.S1), consultado a 22 de maio de 2023 e disponível em

ACÓRDÃO do STJ de 06 de abril de 2017 (Processo n.º 275/15.0T8AGH.L1.S1), consultado a 18 de maio de 2023 e disponível em

ACÓRDÃO do STJ de 26 de maio de 2021 (Processo n.º 5824/17.7T8GMR-J.G1.S1), consultado a 18 de maio de 2023 e disponível em

ACÓRDÃO do TRL de 11 de novembro de 2014 (Processo n.º 5314/06.3TVLSB.L1-7), consultado a 23 de maio de 2023 e disponível em

ACÓRDÃO do TRL de 12 de julho de 2018 (Processo n.º 9003/08.6TBCSC.L2-1), consultado a 22 de maio de 2023 e disponível em

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A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E O DIREITO

SARA ISABEL CAETANO FAMILIAR

Estagiária nº 338

ÍNDICE

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I: A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

CAPÍTILO II: A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E O DIREITO

CAPÍTULO III: A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E O DIREITO DE AUTOR

CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA WEBGRAFIA

Lista de Siglas

AGI – Inteligência Artificial Geral

ANI – Artificial Narrow Intelligence

Art. - Artigo

ASI - Superinteligência Artificial

CDADC - Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos

DL - Decreto-Lei

EUA - EStados Unidos da América

IA - Inteligência Artificial

Nº - Número

OSAE - rdem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

P. Pàgina

Pp. Páginas

RGPD - REgulamento Geral de Protecção de Dados

UE - União Europeia

Introdução

O presente trabalho respeita à Inteligência Artificial e é realizado no âmbito do Estágio para Solicitadores da OSAE de 2023.

Com este trabalho pretendo abordar um tema bastante atual que está sempre em evolução, a inteligência artificial, nomeadamente qual o seu papel no Direito.

Relativamente ao tema de inteligência artificial referirei como a mesma é definida pelo Parlamento Europeu, a primeira vez que se ouviu falar do conceito, os principais tipos de IA, quais as suas vantagens e desvantagens e alguns exemplos em que a mesma está presente no nosso dia a dia.

No que concerne à inteligência artificial e ao Direito exporei as dez mudanças que a IA veio fazer no Direito, segundo Henrique Sousa Antunes, e dois exemplos do que a IA poderá causar no Direto de acordo com um artigo jornalístico, sendo um referente a Portugal.

Abordarei ainda o tema da inteligência artificial e o Direito de Autor, mais concretamente a questão de saber se um produto resultante de inteligência artificial está ou não protegido pelo Direito de Autor.

Expostos os conteúdos a desenvolver neste trabalho, a organização do mesmo será a seguinte: o Capítulo I referir-se-á à inteligência artificial, de forma geral; o Capítulo II irá abordar o tema da inteligência artificial e o Direito e, por fim, o Capítulo III respeitará à inteligência artificial e Direito de Autor.

145

Capítulo I: a Inteligência artificial

Tendo como referência o Parlamento Europeu, poder-se-á definir Inteligência Artificial como a capacidade que uma máquina tem “para reproduzir competências semelhantes às humanas como é o caso do raciocínio, a aprendizagem, o planeamento e a criatividade”1, pois a IA permite que “os sistemas técnicos percebam o ambiente que os rodeia, lidem com o que percebem e resolvam problemas, agindo no sentido de alcançar um objetivo específico”2 .

Por muito tempo considerava-se a inteligência artificial um mito, sendo, todavia, reconhecida atualmente pela sociedade como uma realidade, sendo que as ideias referentes à mesma terão ocorrido antes mesmo de existir a tecnologia que as tornara possíveis.

“O ser humano sempre quis uma máquina que fizesse o trabalho de agir e pensar que nem ele”3 , existindo estudos de que este caminho começou durante a Segunda Guerra Mundial, visto que, em 1943, Warren McCulloch e Walter Pitts apresentaram um artigo em que se fala “pela primeira vez de redes neurais, estruturas de raciocínio artificiais em forma de modelo matemático que imitam o nosso sistema nervoso”⁴ .

A tecnologia foi evoluindo e com ela a IA, estando atualmente bastante presente no nosso quotidiano como, por exemplo, nas compras online, carros, cibersegurança, etc.

“A inteligência artificial é considerada primordial para a transformação digital da sociedade”⁵ , sendo atualmente uma das prioridades da UE.

Conforme a inteligência artificial foi ganhando mais visibilidade mais pessoas se debruçaram sobre o estudo da mesma. Deste modo, poder-se-á dizer de maneira geral que existem três tipos de inteligência artificial, a Artificial Narrow Intelligence (ANI), a Inteligência Artificial Geral (AGI), e a Superinteligência Artificial (ASI).

A ANI é considerada a IA fraca, pois “não se adapta às exigências de determinado sistema ou máquina”⁶, sendo tecnicamente classificada como “uma inteligência incapaz de reproduzir o comportamento humano, apenas simulá-lo”⁷. A ANI é habitualmente utilizada em funções como assistentes virtuais, como por exemplo Siri ou Alexa; reconhecimento facial; sistemas de carros autónomos; etc.

1 O que é a Inteligência Artificial e como funciona?, Parlamento Europeu (04/09/2020) (Atualizado em 26/03/2021), Disponível em:

2 O que é a Inteligência Artificial e como funciona?, Parlamento Europeu (04/09/2020) (Atualizado em 26/03/2021), Disponível em:

3 KLEINA, N. (2018), A história da Inteligência Artificial, Disponível em:

⁴ KLEINA, N. (2018), A história da Inteligência Artificial, Disponível em:

⁵ O que é a Inteligência Artificial e como funciona?, Parlamento Europeu (04/09/202) (Atualizado em 26/03/2021), Disponível em:

⁶ ARAÚJO, T., Quais são os principais tipos de inteligência artificial?, PEOPLE (21/12/2020) (Atualizado em 11/05/2022), Disponível em:

⁷ FERREIRA, K., Quais são os principais tipos de inteligência artificial e como usá-los (18/05/202), Disponível em:

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A AGI é vista como a IA forte ou nível humano, capaz de imitar a inteligência humana e, por conseguinte, realizar tarefas semelhantes ao do ser humano, adaptando-se a cada situação diferente e criando uma solução distinta para cada uma. Assim, poderemos referir-nos à AGI como “um sistema capaz de estudar e entender humanos para então lidar de maneira precisa com interações e comportamentos de usuários”⁸ .

Por fim, em relação à ASI, esta ainda é uma IA ainda em desenvolvimento, mas o próprio o nome o diz, é a IA mais poderosa, pois consegue tornar-se consciente e autónoma, isto é, “em vez de simplesmente replicar comportamentos humanos, ela supera essa capacidade”⁹ .

Como referido anteriormente, a IA já é uma realidade do nosso quotidiano, sendo que as áreas que mais beneficiam da mesma são a saúde, como por exemplo no diagnóstico de doenças e desenvolvimento de novos tratamentos; os negócios, como por exemplo na melhoria do serviço ao cliente; na agricultura, como por exemplo na previsão de padrões climáticos, melhorando o rendimento das colheitas e reduzindo o consumo de água; e no transporte, como por exemplo encontrando melhores rotas, melhorando, consequentemente, o fluxo de trânsito.

Todavia, nem tudo são rosas.

De acordo com Kaufman, o ser humano criou algo que não controla de forma precisa, sendo que especialistas em IA assumem não saber exatamente como é que estas máquinas funcionam ou como poderiam agir futuramente.

Uma das desvantagens do uso contínuo da IA apontada pelo Instituto Brasileiro de Coaching é o “isolamento social e, consequentemente, problemas físicos e mentais”1⁰ .

Posto isto, a conclusão é de que a IA tem de ser regulada, ou seja, têm de se criar leis que regulem a pesquisa e o desenvolvimento da IA.

De acordo com o jornal Expresso, UE e EUA anunciaram um “projeto de código de conduta comum sobre Inteligência Artificial (IA), aberto a todos os países democráticos e que se aplicará voluntariamente ao setor”11, sendo que tanto os EUA como a UE partilham a perspetiva de que a IA oferece bastantes benefícios e “grandes oportunidades, mas também representam riscos para as nossas sociedades"12

Por fim, em relação a outro líder mundial, segundo o jornal Notícias ao minuto, a China está a preparar uma lei que regula a pesquisa e o desenvolvimento da IA, que será a primeira lei do país nesta matéria. Este projeto de lei diz que a “tecnologia deve ser uma força importante, que impulsione a modernização industrial e a transformação económica do país, até 2025”13 .

⁸ FERREIRA, K., Quais são os principais tipos de inteligência artificial e como usá-los (18/05/2021), Disponível em:

⁹ FERREIRA, K., Quais são os principais tipos de inteligência artificial e como usá-los (18/05/2021), Disponível em:

1⁰ Inteligência artificial: vantagens e desvantagens quanto ao seu uso, Disponível em:

11 EUA e UE anunciam código de conduta comum para Inteligência Artificial, Expresso (31/05/2023), Disponível em:

12 EUA e UE anunciam código de conduta comum para Inteligência Artificial, Expresso (31/05/2023), Disponível em:

13 China prepara lei para regular desenvolvimento da inteligência artificial, Notícias ao minuto (09/06/2023), Disponível em:

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Capítulo II: A inteligência artificial e o direito

A Inteligência Artificial no Direito é apenas fruto da evolução tecnológica que tem ocorrido nos últimos anos.

Como explanado no capítulo anterior a tecnologia tal como a conhecemos é algo indispensável no nosso quotidiano, tendo feito evoluir bastantes áreas profissionais, mas também marcando-nos nas relações pessoais, o que leva Henrique Sousa Antunes a afirmar que “o modo do Direito é, agora, desafiado pelo caráter disruptivo da inteligência artificial”1⁴ .

Ainda de acordo com Henrique Sousa Antunes, a tecnologia é autora da “mudança de alguns paradigmas sociais clássicos”1⁵ e, consequentemente, é necessário “um novo enquadramento legal que preste a confiança legitimamente devida pelos Estados aos seus cidadãos”1⁶ .

Para além disso, segundo Henrique Sousa Antunes, a IA e outras tecnologias provenientes “vêm aprofundando ou ocasionarão dez mudanças essenciais em paradigmas da sociedade atual”1⁷ , que, tendo em conta a sua natureza, é necessário que o Direito venha regular as “relações entre Estados e entre os Estados e os cidadãos, e na ordenação dos contactos entre as pessoas, singulares ou coletivas”1⁸ .

Desta forma, o Direito assenta nas seguintes dez mudanças:

i. Do Homem dinâmico ao Homem passivo, que é visível no trabalho e na mobilidade, sendo que, em relação ao trabalho, a evolução da IA “permitirá às máquinas tomar decisões livres através de processos autossuficientes de aprendizagem”1⁹, e relativamente à mobilidade, no que respeita a “situações de deslocação física”2⁰ .

ii. Da vontade esclarecida à vontade adormecida, pois, atualmente, é algo normal o acesso a “fontes de informação ou a um mercado virtual de bens e serviços a prestação de um consentimento ao tratamento de dados pessoais, esvaziando a consciência da declaração”21, sendo que se não assinalarmos a confirmação solicitada, referindo que tomamos conhecimento e que aceitamos o que nos dizem, nem podemos avançar no site, além de que, conforme vamos utilizando certo site, a oferta que temos é uma oferta programada de acordo com as nossas tendências, do consumidor, “induzindo-o a uma decisão que só teoricamente é livre. A vontade é anestesiada”22

iii. Da massificação à personalização, que vai um pouco ao encontro do que foi dito no ponto ii. no sentido em que os bens e serviços que nos são oferecidos são formatados à escolha do consumidor, de acordo com a recolha de dados que é realizada.

iv. Da privacidade à publicidade, nomeadamente no que respeita aos dados pessoais, sendo destacável o Direito Europeu com a aprovação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD).

v. De um mundo corpóreo a um mundo virtual, como por exemplo o “aparecimento das moedas virtuais, ou criptomoedas”23, que estão ligadas à “falta de transparência das operações financeiras”2⁴

1⁴ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p. 7

1⁵ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p. 9

1⁶ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p. 9

1⁷ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.13

1⁸ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.13

1⁹ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.15

2⁰ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.16

21 ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.19

22 ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.19

23 ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.27

2⁴ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.28

148

vi. Da realidade antropocêntrica à realidade maquinocêntrica, ou seja, “a colaboração entre seres humanos foi substituída pela interação entre a pessoa e a máquina ou entre máquinas”2⁵ , como por exemplo, num supermercado em que já existem as caixas de pagamento automático.

vii. De uma sociedade de riscos monocausais a uma sociedade de riscos multicausais, de modo que a “antecipação das lesões, e a consequente prevenção dos danos, é limitada pelo espaço livre de decisão dos sistemas que replicam a inteligência humana”2⁶ .

viii. Do lesante identificado ao lesante anónimo, em que a sociedade futuramente será apontada com o “crescimento do número de casos em que o lesado desconhece a quem imputar os seus danos”2⁷ .

ix. Da explicabilidade à inevitabilidade da opacidade, determinada pela evolução tecnológica e a complexidade dos sistemas de inteligência artificial. Segundo Henrique Sousa Antunes “os processos e as decisões tomadas têm de submeter-se a uma narrativa que os afetados possam entender”2⁸, visto que a convivência humana desenvolveu-se num modelo de explicabilidade, deixando o inexplicável para a espiritualidade.

x. De vários mundos a um Mundo só, no sentido em que “é o próprio conceito de rede que denuncia a ligação entre todos, num espaço sem barreiras”2⁹, quer sejam elas, físicas, de linguagem, culturais, económicas, etc.

De acordo com um artigo datado de 2019 da revista brasileira Época Negócios a Estónia, um dos países mais tecnologicamente desenvolvidos, está a desenvolver um “robô juiz” para analisar questões legais até 7.000,00€, com o intuito de diminuir a distribuição de processos por juízes e funcionários judiciais, focando-se as questões mais complexas nos “juízes humanos”.

No que respeita a Portugal, de acordo um artigo do jornal Diário de Notícias datado de 17 de fevereiro de 2023, “a inteligência artificial vai passar a ser utilizada para ajudar os cidadãos no acesso à justiça”3⁰, nomeadamente no que respeita a autenticar documentos e divulgar de forma anónima decisões judiciais, para além de auxiliar nos processos de concessão da nacionalidade.

Em suma, no que concerne ao Direito, a esperança é que a tecnologia, cada vez mais desenvolvida, ajude na celeridade nos processos, a amenizar falhas e a construir uma sociedade mais justa.

2⁵ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.30

2⁶ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, pp.33 e 34

2⁷ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.35

2⁸ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, pp.38 e 39

2⁹ ANTUNES, H (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora, p.41

3⁰ Governo avança com estratégia de inteligência artificial para a Justiça, Diário de Notícias (17/02/2023), Disponível em:

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Capítulo III: A inteligência artificial e o direito de autor

Analisando em concreto uma área do direito, poder-se-á dizer que o tema do direito de autor na área jurídica não é recente, visto que o tema da inteligência artificial aborda áreas que outras tecnologias já abordaram, mais concretamente no que respeita às obras geradas por computador (computer generated works).

Segundo José Alberto Vieira, “quando ligamos a inteligência artificial ao Direito de Autor estamos apenas defronte do trecho da atividade gerada pela inteligência artificial que consubstancia a produção de obras que possam, em termos formais, ser protegidas pelo Direito de Autor”31 .

Um exemplo de obras geradas por computados são as traduções, que são realizadas por um programa de computador, não por um ser humano e que são “um resultado expressivo, produto do funcionamento do software”32 e, portanto, não é em virtude do autor desse software nem do “realizador que desencadeou a instrução para a aplicação funcionar bem”33

Em relação ao Direito de Autor, a diferença entre, por exemplo, as obras geradas por computador e a inteligência artificial é tecnológica, não jurídica, no sentido e que a IA tem uma maior independência da máquina.

Atualmente um exemplo de inteligência artificial que está a dar bastante que falar é o ChatGPT, um exemplo de chatboots3⁴, visto que cria qualquer tipo de texto, desde um guia sobre pauliteiros a trabalhos ou exames da universidade.

Para analisarmos o Direito de Autor no que respeita à IA temos de partir da premissa de que o Direito de Autor protege obras e, portanto, observar o conceito de obra, previsto no art.1º/1 do DL nº 63/85, de 14 de março, doravante designado por Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos que, por sua vez será designado de forma simplificada CDADC.

Nos termos do art.1º/1 do CDADC define-se obras como “criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas”3⁵

Retornando ao exemplo das traduções percebemos que elas satisfazem o conceito de obra. Então porque não estão protegidas pelo Direito de Autor?

Para além do conceito de obra tem de se atender também aos requisitos de proteção que o Direito de Autor propõe para a proteção da expressão e que, de acordo com José Alberto Vieira “são, basicamente, no modo como entendemos, dois, a criação intelectual, criatividade e origem intelectual da expressão”3⁶

Relativamente à criatividade, no contexto da IA, deveremos continuar a conectá-la ao ato humano ou dissocia-se a criatividade da atividade humana? Por sua vez, no que respeita à autoria da obra, esta poderá ser uma autoria não humana? Ou seja, o Direito de Autor abrangerá a “possibilidade da proteção do produto expressivo de uma máquina”3⁷?

A orientação alemã assume a posição de que a “proteção da obra como criação espiritual individual”3⁸, ou seja, a proteção ocorre apenas relativamente a criações humanas. Relativamente à orientação norte-americana, esta segue, atualmente, também o raciocínio de que a “obra é produto da atividade humana”3⁹ .

31 ROCHA, M. e PEREIRA, R. (2022), Inteligência Artificial & Direito, Almedina, p.126

32 ROCHA, M. e PEREIRA, R. (2022), Inteligência Artificial & Direito, Almedina, p.127

33 ROCHA, M. e PEREIRA, R. (2022), Inteligência Artificial & Direito, Almedina, p.127

3⁴ De acordo com a Microsoft, um chatbot é uma aplicação de software utilizada para interagir numa conversação humana de uma forma natural.

3⁵ Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, Decreto Lei nº 63/85, de 14 de março, Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, Disponível em:

3⁶ ROCHA, M. e PEREIRA, R. (2022), Inteligência Artificial & Direito, Almedina, p.129

3⁷ ROCHA, M. e PEREIRA, R. (2022), Inteligência Artificial & Direito, Almedina, p.129

3⁸ ROCHA, M. e PEREIRA, R. (2022), Inteligência Artificial & Direito, Almedina, p.130

3⁹ ROCHA, M. e PEREIRA, R. (2022), Inteligência Artificial & Direito, Almedina, p.131

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Retornando à questão da proteção da IA ou obras geradas pelo computador pelo Direito de Autor, pode dizer-se que relativamente ao conceito de obra não existe qualquer problema, visto que o art.1º/1 do CDACD inclui que obra é expressão. Em relação à criatividade, a lei portuguesa associa também a criatividade à atividade humana. Por fim, quanto ao conceito de autoria, nos termos do art.27º/1 do CDACD, “autor é o criador intelectual da obra”, ou seja, atribuía ao ser humano.

Deste modo, poder-se-á chegar à conclusão que, nos dias de hoje, no que respeita o Direito de Autor, ainda não é possível proteger um produto resultante de inteligência artificial.

No que concerne ao futuro, José Alberto Vieira acredita a posição de Portugal será aquela que a Europa seguir, visto que “a importância do sistema jurídico português é muito diminuta no contexto internacional”⁴⁰ .

⁴⁰ ROCHA, M. e PEREIRA, R. (2022), Inteligência Artificial & Direito, Almedina, p.133 151

Consoante referido ao longo deste trabalho, a IA é atualmente algo indispensável no nosso quotidiano, sendo que as tecnologias de IA estão a desencadear uma quarta revolução industrial.

Como qualquer revolução industrial só com o desenvolver dela é que vamos tendo consciência do que realmente está a acontecer, não só das vantagens, mas também dos riscos da mesma.

A inteligência artificial pode fazer uma grande diferença nas nossas vidas, podendo ser para melhor ou para pior e, para que não ocorra o pior é que o Direito intervém.

É verdade que já existem esforços para que se regule a inteligência artificial, mas será que estes esforços serão rápidos o suficiente? Será que conseguem acompanhar a célere evolução das tecnologias? Provavelmente não, refletindo-se mais recentemente com as polémicas do ChatGPT e o direito de autor.

Como mencionando anteriormente, os problemas entre as tecnologias e o direito de autor não vem de agora, então porque é que ainda não se alterou esta lei?

Se antes já era necessário o CDACD sofrer alterações, com a aparição da inteligência artificial torna-se necessário.

Em suma, a inteligência artificial é uma tecnologia que está a ajudar imenso em várias áreas, mas também a preocupar em outras tantas e, focando no âmbito jurídico, está a mexer com todo o tipo de áreas do Direito que possam existir, como por exemplo, o direito de autor, direito de imagem, direito da propriedade intelectual, no âmbito dos contratos, responsabilidade civil, etc.

Conclusão
152

ANTUNES, H. (2020), Direito e Inteligência Artificial, Argumento, Universidade Católica Editora.

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DIREITO DAS SUCESSÕES

O DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

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SARA MARISA MERGULHÃO PINTO FERREIRA

Número de Estagiária: 319

“Todo o Direito das Sucessões existe em função de um facto, a morte. Apesar disto, o Direito das Sucessões traduz uma ideia de continuidade: em princípio, o património de quem faleceu não se extingue, nem fica ao abandono, cabendo a este ramo do Direito determinar a repartição entre os vivos das situações jurídicas patrimoniais que ficaram sem sujeito.”

Jorge Duarte Pinheiro, in “O Direito das Sucessões Contemporâneo”

Abreviaturas

Al. – Alínea

Art.º – Artigo

CC - Código Civil

CN - Código do Notariado

CRP - Constituição da República Portuguesa

Nº - Número

PMA - Procriação Medicamente Assistida

Ss - Seguintes

OSAE - Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução

ÍNDICE

ABREVIATURAS ÍNDICE

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I

1. DESFORMALIZAÇÃO DE CERTOS ATOS NOTARICAPÍTULO II

2. A VOCAÇÃO INDIRETA: O DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

2.1. A VOCAÇÃO SUCESSÓRIA

2.2. A VOCAÇÃO INDIRETA

2.3. O DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

2.3.1. A SUA NATUREZA JURÍDICA

2.3.2. OS SEUS BENEFECIÁRIOS

2.3.3. PRESSUPOSTOS DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

2.3.3.1. NA SUCESSÃO CONTRATUAL

2.3.3.2. NA SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA

2.3.3.3. SUCESSÃO LEGAL

CAPÍTULO III

3. EXTENSÃO DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

3.1. DESIGUALDADE DE GRAUS SUCESSÓRIOS

3.2. IGUALDADE DE GRAUS SUCESSÓRIOS COM PLURIDADE DE ESTIRPES

INTRODUÇÃO

Este trabalho é realizado no âmbito do estágio da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, ministrado pela mesma (OSAE), sob orientação da Doutora Sandra Costa. A finalidade deste é transpor os conhecimentos teóricos adquiridos na prática de modo a que este se torne frutífero. O tema escolhido foi no âmbito do Direito das Sucessões, uma vez que tenho a oportunidade de o relacionar com casos práticos com os quais tive contacto no âmbito da atividade desenvolvida em contexto de estágio no escritório da Dra. Sandra.

Com a realização do trabalho, foi possível verificar que estamos perante uma área do Direito que se afigura fundamental, o Direito das Sucessões, uma vez que a morte é um acontecimento inevitável e é necessário dar a continuidade possível às relações do de cuius.

O primeiro capítulo é composto por toda a matéria que considerei pertinente, onde é feita uma breve referência ao processo de desformalização de certos atos notariais, o que tornou possível a feitura de vários atos por um solicitador que antes não o eram.

No segundo capítulo é analisada uma especificidade do Direito das Sucessões, o direito de representação, onde é observada doutrina pertinente.

Finalmente, no terceiro capítulo é feita uma breve alusão à extensão, funcionamento e aos efeitos do direito de representação, assim como a diferenciação entre este e a transmissão do direito de suceder, que pode gerar uma certa confusão, mas como veremos, versam sobre matérias diferentes.

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CAPÍTULO I

1. DESFORMALIZAÇÃO DE CERTOS ATOS NOTARIAIS

Na atividade desenvolvida no estágio foi-me possível aperfeiçoar a parte prática das matérias estudadas até aqui, consegui perceber que através da atividade desenvolvida por estes profissionais forenses é possível assegurar um serviço seguro e que garante a satisfação plena dos interesses dos cidadãos.

Primeiramente importa fazer uma breve referência ao facto de os solicitadores terem competência na celebração de certos atos notariais, como o contrato de partilha, de compra e venda, entre muitos outros.

Desde 2008, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008 de 4 de julho, foram aprovadas várias medidas que conduziram a um processo de “simplificação, desmaterialização e desformalização da atos e processos”1, atos esses no âmbito do registo predial, mas também em matéria notarial, sendo que este leque de medidas faz parte do programa SIMPLEX2. Com a aplicação destas medidas, e de acordo com o interesse dos cidadãos e das empresas, foram simplificados os controlos administrativos, tendo sido retirados certos atos e práticas registrais e notariais que em nada facilitavam a vida do cidadão e das empresas.

Deste modo, o referido Decreto-Lei, criou as mediadas necessárias para que os advogados, os solicitadores, as câmaras de comércio e indústria, os notários e os serviços de registo possam praticar serviços ligados a negócios relativos a bens imóveis, sendo estes em regime de “balcão único”, através do qual foi possível reduzir os custos diretos e indiretos inerentes a esses atos. Sendo que os cidadãos podem deslocar-se a qualquer uma destas entidades para a realização de certos atos inerentes a imóveis e não só.

Foram tornadas facultativas as escrituras públicas relativas a diversos atos da vida dos cidadãos e das empresas, como por exemplo, as escrituras públicas de compra e venda e para constituição ou modificação de hipoteca voluntária sobre bens imóveis, assim como os contratos onerosos pelos quais se alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, aos quais sejam aplicáveis as regras de compra e venda. A escritura pública deixou ainda de ser obrigatória nos casos de doação de imóveis, de alienação de herança ou de quinhão hereditário e ainda nos casos de constituição de direito real de habitação periódica.

Todos os atos supra indicados passaram a poder ser realizados através de um documento particular autenticado3, sendo que estes podem ser praticadas por todas as entidades referidas anteriormente.

Contudo a Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro, criou um elemento de segurança adicional para os serviços prestados em regime de “balcão único”, ou seja, as entidades que praticarem atos através de documentos particulares autenticados estão obrigadas ao depósito eletrônico desses documentos. Tudo isto, para evitar que os cidadãos e as empresas tenham que se deslocar às conservatórias, ficando assim definido que os profissionais que prestem serviços em regime de “balcão único”, passam a ter que promover o respetivo registo destes.

Com tudo isto tornou-se possível a realização de um contrato de partilha, de compra e venda, entre muitos outros, por um solicitador, entre outros inúmeros serviços que este pode prestar na atualidade, o que faz com que este profissional esteja em ascensão em Portugal.

1 Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 116/2008 de 4 de julho, 1º parágrafo.

2 O SIMPLEX é um programa de simplificação administrativa e legislativa que pretende tornar mais fácil a vida dos cidadãos e das empresas na sua relação com a Administração e, simultaneamente, contribuir para aumentar a eficiência interna dos serviços públicos.

3 Encontra-se definido no artigo 35º/3 e 150º do CN, aprovado pelo Decreto-lei 207/95 de 14 de agosto.

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CAPÍTULO II

2. A VOCAÇÃO INDIRETA: O DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

2.1. A VOCAÇÃO SUCESSÓRIA

A morte vai ser o ponto de partida do Direito das Sucessões. Como refere o Oliveira de Ascensão⁴, a morte ( art.º 68/n.º1 do CC) é um fenómeno definitivo e irreversível e que consequentemente leva à descontinuidade da vida social. É aqui que entra o Direito das Sucessões, uma vez que, mesmo apesar da morte do de cuius, é necessário que os interesses criados na esfera jurídica deste prossigam, assegurando a continuidade justa desses interesses ainda que através de outra pessoa, a que vai passar a ocupar o lugar do falecido.

Primeiramente, importa perceber o que é a vocação sucessória. Atendendo ao artigo 2032º do CC, a vocação consiste no chamamento dos sucessíveis para titularem as relações jurídicas do de cuius, desde que tenham capacidade necessária para tal.

Segundo Cristina Araújo Dias, a vocação sucessória é o “chamamento dos sucessíveis (herdeiros e legatários) à titularidade das relações jurídicas transmissíveis do falecido”⁵ .

Enquanto que para Francisco Pereira Coelho, a vocação sucessória é “um chamamento ou uma chamada à sucessão, feita pela lei ou pelo de cuius no momento da morte (..), o sucessível é chamado à sucessão, isto é, é chamado a suceder nas relações jurídicas que integram a sucessão”⁶ .

A passo que, Jorge Duarte Pinheiro, defende que a vocação sucessória “traduz-se na atribuição ao sucessível do direito de suceder ou ius delationis”⁷, sendo que para este o direito de suceder trata-se da faculdade de aceitar ou repudiar a herança ou o legado, sendo assim um direito subjetivo potestativo, originário, isto porque é um direito que “não preexistia na esfera jurídica do de cuius”⁸, e também é instrumental, uma vez que a sua finalidade é permitir que os bens deixados pelo de cuius possam ser adquiridos. A passo que o ius delationis diz respeito aos casos de sucessão contratual e legal do Estado, onde não existe a necessidade de aceitar e sem a possibilidade de repudiar.

Deste modo podemos concluir que a vocação sucessória diz respeito ao facto de no momento da morte do de cuius serem chamados à sucessão do mesmo os seus sucessíveis, de modo que a que estes possam ocupar o lugar do falecido nas relações que forem transmissíveis de modo a dar continuidade possível à sua vida social.

2.2. A VOCAÇÃO INDIRETA

Entende-se por vocação indireta aquela que acontece quando um indivíduo é chamado à sucessão para substituir outro que não pode ou não quis aceitar a sucessão. Atendendo à doutrina nesta matéria, pode-se afirmar que existe concordância na sua definição.

⁴ Ascensão, José Oliveira, in «Direito Civil Sucessões», 5ª Edição Revista, Edição e Distribuição da Coimbra Editora, Coimbra, janeiro de 2000.

⁵ Dias, Cristina M. Araújo, «Lições de Direito das Sucessões», 1ª Edição, Edição e Distribuição da Editora Almedina, Coimbra, abril de 2010, página 99

⁶ Coelho, Francisco M. Pereira, «Lições de Direito das Sucessões», de 1992, página 94.

⁷ Pinheiro, Jorge Duarte, «O Direito das Sucessões Contemporâneo», 2ª Edição, Edição e Distribuição da Editora da Alameda da Universidade, Lisboa, fevereiro de 2017, página 188.

⁸ Pinheiro, Jorge Duarte, «O Direito das Sucessões Contemporâneo», 2ª Edição, Edição e Distribuição da Editora da Alameda da Universidade, Lisboa, fevereiro de 2017, página 188

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A vocação indireta pressupõe, não só que o sucessível que foi chamado primeiramente não possa ou não quis aceitar a sucessão, mas também que exista uma determinada ligação entre o sucessível primitivo e o que vai substitui-lo na sucessão do de cuius. Contudo, esta vocação pode ser confundida com o chamamento do sucessível subsequente, que também se dá quando alguém é chamado para substituir outro sucessível que não pode ou não quis aceitar a sucessão, mas unicamente graças à relação familiar que tem com o autor da sucessão. Por exemplo, quando A pré-falece aos pais, B e C, e a este lhe sobrevide um filho, D, caso D repudiasse a sucessão, seriam chamados enquanto sucessíveis legais subsequentes B e C, uma vez que estes são ascendentes do de cuius

A relação que tem de existir entre o sucessível primitivo e o que lhe substitui pode ser “um laço familiar ou resultar de disposição voluntária mortis causa, normalmente testamentária”⁹ .

Dentro da vocação indireta encontramos diversas modalidades, nomeadamente a substituição vulgar (art.º 2281 do CC), o direito de acrescer (art.º 2301 do CC) e o direito de representação (art.º 2039 do CC).

No presente trabalho apenas vamos ter em linha de conta o direito de representação, que foi a especificidade do Direito das Sucessões escolhida para uma análise mais profunda.

2.3. O DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

Atendendo ao disposto no artigo 2039º do CC, o direito de representação funciona “quando a lei chama os descendentes de um herdeiro ou legatário a ocupar a posição daquele que não pôde ou não quis aceitar a herança ou legado”.

2.3.1. A SUA NATUREZA JURÍDICA

Na doutrina tradicional, como por exemplo no código francês, estes viam o direito de representação como uma “ficção legal”1⁰, onde o representado sucedia diretamente ao de cuius, sendo que dessa forma iria ocupar um grau sucessório que não era verdadeiramente o seu. Tal preceito fazia com que não existisse qualquer exceção às regras de sucessão legítima, de onde se retira, e em harmonia com o nosso artigo 2135º do CC, que os parentes de grau mais próximo tem prioridade em relação aos de grau mais afastado.

Contudo, a doutrina moderna, considera que o direito de representação é uma exceção às regras da sucessão legítima, uma vez que este não é nenhuma “ficção legal”, mas sim uma substituição definida por lei, onde os descendentes do representado é que o substituem na sucessão.

Podemos concluir que, atualmente, a natureza jurídica do direito de representação, mais não é do que uma realidade de substituição legal.

Uma vez que estamos perante uma substituição definida por lei, pode-se ainda afirmar que a representação sucessória se concede “ex lege”11, isto porque este não é aplicado em conformidade com a vontade do autor da sucessão, mas estamos antes, perante uma imperatividade da lei na sucessão legitimária e supletiva nas outras sucessões.

⁹ Pinheiro, Jorge Duarte, «O Direito das Sucessões Contemporâneo», 2ª Edição, Edição e Distribuição da Editora da Alameda da Universidade, Lisboa, fevereiro de 2017, página 209 1⁰ Coelho, Francisco M. Pereira, «Lições de Direito das Sucessões», de 1992, página 165 11 Capelo de Sousa, Rabindranath, «Lições de Direito das Sucessões», 4ª edição, volume I, Coimbra Editora, agosto de 2000, página 330

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O direito de representação é “inequivocamente”12, como afirma o Dr. Jorge Duarte Pinheiro, uma vocação sucessória indireta, tal justifica-se pelo facto de o representante chamado só o ser, exclusivamente, pela relação que este tem com o representado, ou seja, uma relação de parentesco, relação essa de parentesco na linha reta descendente.

2.3.2. OS SEUS BENEFICIÁRIOS

Só podem ser beneficiários do direito de representação os que sejam, exclusivamente, descendentes do sucessível que não quis ou não pode aceitar a sucessão. Importa reter que, os descendentes podem ser, não só os descendentes biológicos do representado, mas também aqueles que adquiriram uma relação de filiação através de PMA ou por adoção.

Como este é o único caso onde a lei favorece os descendentes em relação ao cônjugue, pode afirmar-se que a finalidade do legislador seria proteger os parentes na linha reta descendente do sucessível designado, nos casos em que este não pudesse ou não quisesse aceitar a sucessão.

2.3.3. PRESSUPOSTOS DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

Para que o direito de representação possa operar nos diferentes tipos de sucessão é necessário que se verifiquem determinados pressupostos, sendo que estes variam em razão do título de vocação.

2.3.3.1. NA SUCESSÃO CONTRATUAL

Primeiramente importa recordar que, quando estamos perante uma designação contratual, onde é exigida a aceitação por parte do beneficiário préviamante à abertura da sucessão, e desde aí sem a faculdade de repúdio, pode dizer-se que neste caso não é aplicada de forma muito rigorosa a formúla da vocação indireta, nomeadamente “não poder ou não querer aceitar a sucessão”13 . Quer isto dizer que quando estamos perante uma sucessaõ contratual, deve afirmar-se que o beneficiário “não pode adquirir os bens doados por morte”1⁴ .

Apesar do disposto no art.º 2040 do CC, que afirma que o direito de representação se dá na sucessão legal e testamentária, no nº 2 do art.º 1703 do CC encontramos o único caso onde é possível acionar o direito de representação no âmbito da sucessão contratual. Este faz referência aos casos em que é feita uma doação mortis causa por um terceiro a favor de qualquer um dos esposados, quando exista predecesso do donatário. Tal determina que a doação para casamento não caduca desde que sobrevivam descendentes legítimos do donatário, sendo que estes são os que vão ser chamados a suceder em seu lugar, relativamente aos bens doados. Ou seja, é aqui que vai entar em ação o direito de representação, onde os descendentes do donatário vão ser chamados em seu lugar, quando este não pode adquirir tais bens do doador, uma vez que lhe terá pré-falecido.

Pode afirmar-se que o pressuposto do direito de representação na sucessao contratual, nada mais é, do que o facto de se tratar únicamente de uma doação por morte, onde releva o facto de o donatário não sobreviver ao doador, não tendo importância qualquer outra situação de não poder adquirir a doação. Importa ainda reter que os beneficiários não são todos os descendentes do donatário, apenas o são os descendentes comuns do casal, do casamento a que respeita a convenção antenupcial, com exclusão, por força da lei, daqueles que foram adotados pelo casal e seus descendentes.

12 Pinheiro, Jorge Duarte, «O Direito das Sucessões Contemporâneo», 2ª Edição, Edição e Distribuição da Editora da Alameda da Universidade, Lisboa, fevereiro de 2017, página 222

13 Conforme o disposto no art.º 2039 do CC.

1⁴ Pinheiro, Jorge Duarte, «O Direito das Sucessões Contemporâneo», 2ª Edição, Edição e Distribuição da Editora da Alameda da Universidade, Lisboa, fevereiro de 2017, página 209, nota nº380.

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Por fim, uma breve alusão ao facto do direito de representação ser apenas aplicável para os descendentes nascidos dentro do casamento, não faz com que exista descriminação relativamente aos descendetes nascidos fora do casamento, uma vez que são admitidos, execionalmete, os pactos sucessórios, e podem servir para alterar tal preceito. Contudo, o facto de o artigo supramencionado fazer referência a “legítimos” faz com que vá contra o disposto no art.º 36 da CRP no seu nº4, onde o legislador proíbe o uso de expressões descriminatórias relativas à filiação, o que é o caso.

E por fim, importa reter que, caso seja estipulado pelas partes, o direito de representação pode não funcionar, como por exemplo, quando as partes estipulem que deve funcionar a substituição direta num caso de pré-morte do donatário.

2.3.3.2. NA SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA

Aqui importa atender ao disposto no art.º 2041 do CC. Deste retira-se que os pressupostos que se devem verificar para que funcione o instituto do direito de representação são dois, a pré-morte ou o repúdio.

Na sucessão testamentária a representação tem lugar quando o representado pré-faleça ao testador, quer isto dizer que os decendentes vão representar o falecido na sucessão testamentário que o instituía como sucessível. O mesmo se verifica, quando o representado repúdia a herança ou o legado, atuando representativamente os seus descendentes, como se retira do art.º 2039 do CC.

Contudo é necessário atender aos casos dentro da sucessão testamentária onde não funciona o direito de representação. No caso de certo indíviduo ser declarado indígno e não ser reabilitado e nos casos de deserdação, faz com que não seja possível funcionar o direito de representação dos seus descendentes, isto retira-se através de uma análise contrario sensu do art.º 2037/2 do CC e ainda do art.º 2166/2 do CC, onde o deserdado é equiparado ao indigno. O legislador considerou que quando um sucessível seu for considerado indigno não funciona o direito de representação, para os seus descendentes, para se ir de encontro à vontade hipotética do testador.

Da mesma maneira no caso de ter sido designado substituto do herdeiro ou legatário, em relação ao fideicomissário e no legado de usufruto ou de outro direito pessoal não se verifica a representação (art.º 2041/2 do CC). No primeiro caso, o testador afasta tácitamente o direito de representação, uma vez que elege um substituto para o sucessível que não pode ou não quis aceitar. No segundo caso, tal disposição do legislador compreende-se uma vez que, atendendo ao art.º 2293/2 do CC, se o fideicomissário não poder ou não quiser aceitar a herança fica sem efeito a substituição, não havendo direito de representação para os seus descendentes, sendo que desta forma vai considerar-se que a titularidade dos bens hereditários foi adquirida de forma definitiva pelo fiduciário, desde a morte do testador. Esta solução é a mais favorável, isto porque apesar de o fiduciário ter aparência de um simples usufrutuário, na verdade é um proprietário dos bens fideicomitidos, sendo esta propriedade ad tempus, o que significa que os direitos retomarão de forma plena no caso de o fideicomissário não poder ou não querer aceitar a herança. Assim se o fideicomissário pré-falecer ao fiduciário este passa a ser considerado proprietário definitivo com efeitos retroativos, a passo que, quando o fideicomissário não poder ou não quiser aceitar a liberalidade após a morte do fiduciário, os bens fideicomitidos são devolvidos aos sucessíveis do fiduciário, uma vez que se considera retroativamente este como proprietário definitivo de tais bens desde a morte do testador. Finalmente no último caso, se o legatário não poder ou não quiser aceitar a liberalidade não são chamados os seus descendentes, ficando sem efeito tal legado, cujo objeto se vai reintegrar no patrimônio hereditário do de cuius. A razão de ser deste preceito parece justificar-se pela ideia de o testador beneficiar pessoalmente o instituído, o que não corresponderia à sua vontade “conjectural”1⁵ caso a representação funciona-se.

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1⁵ Coelho, Francisco M. Pereira, «Lições de Direito das Sucessões», de 1992, página 167.

Importa ainda reter que, caso o substituto designado não sobreviva ao de cuius não se verifica o direito de representação a favor dos descendentes, segundo o disposto no art.º 2317/b do CC, isto porque a vocação do substituto depende de verificação de uma condição suspensiva.

Como foi referido anteriormente, no âmbito da sucessão testamentária o que realmente releva e deve ser respeitado é a vontade do testador. Por considerar pertinente nesta matéria, o Acordão da Relação de Guimarães de 29/09/2009, considerou que “tendo o testador, relativamente ao remanescente da sua herança, instituído únicos e universais herdeiros, em comum e partes iguais, “os seus sobrinhos existentes à data da sua morte”, não pode o sobrinho que faleceu antes do testador ser representado na sucessão pelos seus descendentes”. Tal significa que, como o sobrinho pré-faleceu ao autor da sucessão não vai ser possível funcionar o direito de representação dos seus descentes, uma vez que estava disposto no testamento que o de cuius fez antes de morrer, que os seus únicos e universais herdeiros seriam os seus sobrinhos vivos na data da sua morte, pelo que tal se exclui os que lhe pré-faleceram, e não é possível o funcionamento do direito de representação neste caso.

2.3.3.3. SUCESSÃO LEGAL

No que respeita a sucessão legal existem dois pressupostos para poder entrar em ação o direito de representação, em concordância com o art.º 2042 do CC. O primeiro diz respeito à falta de parentes da 1ª ou da 3ª classe de sucessíveis (art.º 2133/1 do CC), nos casos de pré-morte, de incapacidade por indignidade, de deserdação, de ausência e de repúdio. O segundo pressuposto é a existência de descendentes do parente que foi excluído da sucessão.

Contudo é necessário atender às restrições existentes na sucessão legal, isto porque nem a todos os sucessíveis legais é possível a representação (art.º 2040 do CC). Para tal importa diferenciar a sucessão a nível da linha reta e da linha colateral. Ao nível da linha reta, o direito de representação funciona, tanto na sucessão legítima e legitimária, em benefício dos descendentes do filho do de cuius, sendo que já não se verifica o mesmo no caso dos descendentes de outros parentes legítimos ou legitimários. A passo que na linha colateral, só no que respeita à sucessão legítima, isto porque não existem herdeiros legitimários de parentes colateral, o direito de representação funciona a favor dos descendentes do irmão do falecido, não valendo a representação face a outros colaterais (art.º 2133º/1, al. d)), mesmo que estes tenham descendentes.

Antes de prosseguir, uma pequena nota, relativamente aos indivíduos adotados restritamente pelo de cuius, os seus descendentes também podem ser chamados à sucessão por direito de representação do adotante, isto segundo o art.º 1999/2 do CC.

Perante tais pressupostos é possível afirmar que a sucessão legal tem uma aplicação mais ampla, uma vez que dentro desta estão compreendidos quaisquer casos de impossibilidade jurídica de aceitação, fazendo assim uma análise extensiva do disposto no art.º 2037/2 do CC, de onde se retira que na sucessão legal a incapacidade do indigno em nada prejudica a representação por parte dos seus descentes. Um exemplo, caso M, mãe de A, e pré-falecida ao seu pai B, tivesse sido declarada indígna por qualquer uma das razões previstas no art.º 2034 do CC face ao autor da sucessão, B, o A poderia ser chamado a sucessão por direito de representação, uma vez que o facto de M ter sido declarada indigna em nada prejudica o direito de representação do seu descendente, A.

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CAPÍTULO III

3. EXTENSÃO DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

É necessário definir a extensão do direito de representação, ou seja, a área dos casos onde se aplica. Deste modo vai ser possível perceber o fundamento e as finalidades que o direito de representação pretende servir na prática.

Estamos perante a extensão do direto de representação quando “a representação tem lugar, ainda que todos os membros das várias estirpes estejam, relativamente ao autor da sucessão, no mesmo grau de parentesco, ou exista uma só estirpe”1⁶. Quer isto dizer que a representação funciona no caso de concorrerem à sucessão parentes de diferentes graus sucessórios, assim como no caso de igualdade de graus sucessórios com pluralidade de estirpes ou só no caso de existir uma única estirpe.

Seguidamente importa atender as diferentes situações possíveis e perceber qual a finalidade do direito de representação em cada uma delas.

3.1. DESIGUALDADE DE GRAUS SUCESSÓRIOS

O primeiro caso diz respeito às situações onde concorrem à herança parentes de diferentes graus sucessórios.

Por exemplo, imaginemos que A faleceu no estado de viúvo e deixou um filho, B, e dois netos, D e E, sendo que estes são filhos de um filho pré-falecido de A, C. Uma vez que D e E sucederam representativamente a A, vão ocupar a posição jurídica de C, sendo-lhes atribuídos os mesmos direitos e obrigações de que C seria titular se tivesse sucedido. Quer isto dizer que D e E vão herdar metade da herança de A, e a outra metade pertence a B.

Neste caso a finalidade do direito de representação é igualar os diversos graus sucessíveis, chamando à sucessão pessoas que de outra maneira não o seriam. Caso o direito de representação não existisse, D e E seriam excluídos, uma vez que seria dotado o princípio da sucessão legítima de que o parente mais próximo exclui os mais afastados (art.º 2135 do CC).

3.2. IGUALDADE DE GRAUS SUCESSÓRIOS COM PLURIDADE DE ESTIRPES

Quando os sucessíveis se encontram todos em pé de igualdade, isto é, quando se encontram todos no mesmo grau de parentesco em relação ao de cuius, o direito de representação já não pode funcionar para os parentes mais afastados sucederem, isto porque se encontram todos no mesmo grau sucessório.

De acordo com o disposto no art.º 2045 do CC, o direito de representação também opera quando todos os membros das diferentes estirpes estejam no mesmo grau de parentesco em relação ao autor da sucessão, o que vai gerar diversas consequências que importa ter em atenção.

Atendendo ao Acordão do Tribunal da Relação do Porto de 15/03/2011 e em concordância com o disposto no art.º 2039 do CC, pode observar-se que “o direito de representação opera para a estirpe, em benefício exclusivo dos descendentes do herdeiro pré-falecido, e não já do cônjuge do herdeiro”. Para se perceber tal preceito, vamos observar três exemplos práticos.

1⁶ Conforme disposto no art.º 2045 do CC. 166

No primeiro exemplo estamos perante uma igualdade de graus sucessórios com pluralidade de estirpes e desigualdade do nº de membros de cada estirpe. Imaginemos que A faleceu no estado de viúvo e tendo dois filhos, B e C, que lhe pré-faleceram ou repudiaram a herança, sendo que B tem dois filhos, D e E, a passo que C tem três filhos, F, G e H. Pela interpretação feita ao art.º 2044/1 do CC, cada estirpe vai receber aquilo que cada ascendente iria receber. Para simplificar, vamos supor que a herança de A é de 6000 euros, assim, vai caber à estirpe de B, 3000 euros e à de C também 3000 euros. Deste modo, como cada um vai receber de forma igualitária dentro do limite de cada estirpe, D e E vão receber cada um o valor de 1500 euros, a passo que, F, G e H apenas vão receber 1000 euros cada um.

Caso a faculdade do direito de representação não existisse a herança era dividida de forma diferente, seria dividida em partes iguais entre todos os netos, ou seja, cada um receberia 1200 euros.

O segundo exemplo diz respeito a um caso de igualdade de graus sucessórios com pluralidade de estirpes e igualdade do número de membros de cada estirpe. Supúnhamos que os filhos B e C faleceram antes de A, o autor da sucessão, e cada um deixou três filhos. Neste caso, quer a partilha fosse feita por estirpe ou por cabeça os valores seriam os mesmos, uma vez que cada um dos pré-falecidos deixou o mesmo número de descentes que os representaram na sucessão. Contudo não deixa de ser pertinente a partilha por estirpes. Imaginemos que um dos filhos de B repudiou a herança. Caso a partilha fosse feita por cabeça, iria funcionar o direito de acrescer para todos os netos, mas uma vez que funciona por estirpes, o que o filho de B repudiou apenas vai acrescer para os seus dois irmãos e não para os três primos deste. Mais uma vez esta solução resulta do disposto no art.º 2044/1 do CC.

Podemos concluir que continua a importar o facto de a partilha ser feita em razão de cada estirpe, isto porque vai ter implicações a nível do direito de acrescer dos membros da estirpe cujo componente não pode ou não quis aceitar a herança.

E por fim, o terceiro exemplo faz referência a um caso de igualdade de graus sucessórios com pluralidade de estirpes e igualdade do número de membros de cada estirpe. Imaginemos que A faleceu e deixou dois netos; D e E, filhos de B e C respetivamente. Supúnhamos ainda que A fizera a B uma doação de um bem no valor de 1000 euros, e deixou outros bens no valor de 3000 euros de herança. Uma vez que D vai suceder representativamente a A no lugar do seu ascendente B, pelo que terá de conferir na sua legítima a doação que A fez a B em vida, porque B estaria obrigado a tal, e D sucede tanto a nível de direitos como de obrigações. Esta é a solução oferecida pelo art.º 2106 do CC. Logo, D só receberá 1000 euros, isto porque tem de trazer à colação os bens que foram doados a B, no valor de 1000 euros, a passo que E vai receber 2000 euros.

Caso não funciona-se o direito de representação no caso supra referido, a partilha seria feita de outra forma, ou seja, os 3000 euros seriam divididos de forma igual por D e E. Desta forma podemos concluir que uma das consequências práticas do direito de representação assenta na obrigação do representante conferir na sua legítima os bens doados em vida ao representado pelo de cuius, nas relações entre os vários herdeiros.

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