Solicitadoria e Ação Executiva | Estudos #5

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ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #5 DEZEMBRO 2017 – DEZEMBRO 2018 €9,00



ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #5 DEZEMBRO 2017 – DEZEMBRO 2018


LABOR IMPROBUS

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OMNIA VINCIT

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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #5

dezembro 2017 – dezembro 2018

Ficha Técnica Diretor Paulo Teixeira Editora Edite Gaspar Colaboram nesta edição Carla Taipina Marta, Carla Vieira, Cláudia Pereira, Cláudio Cardoso, Diana Leiras, Domingo Bello Janeiro, Isa Raquel Pinto Pereira, Lurdes Varregoso Mesquita, Manuel de Almeida, Melanie Oliveira Neiva Santos, Ricardo Manuel Simões Loureiro, Susana Ferreira dos Santos. Conselho Geral Tel. 213 894 200 | Fax 213 534 870 geral@osae.pt Conselho Regional do Porto Tel. 222 074 700 | Fax 222 054 140 c.r.porto@osae.pt Conselho Regional de Coimbra Tel. 239 070 690/1 c.r.coimbra@osae.pt Conselho Regional de Lisboa Tel. 213 800 030 | Fax 213 534 834 c.r.lisboa@osae.pt Design Atelier Gráficos à Lapa www.graficosalapa.pt Impressão Lidergraf, Artes Gráficas, S.A. Tiragem 5500 Exemplares Periodicidade Anual ISSN 2182-9225 Depósito legal 358745/13 Registo na ERC com o n.º 126587 Sede da Redação e do Editor Rua Artilharia 1, n.º 63 | 1250-038 Lisboa N.º de contribuinte do proprietário 500 963 126 Propriedade Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução Rua Artilharia 1, n.º 63 | 1250-038 Lisboa Tel. 213 894 200 | Fax 213 534 870 E-mail: geral@osae.pt www.osae.pt Os trabalhos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. ESTATUTO EDITORIAL disponível em http://osae.pt/pt/pag/OSAE/estatutos-editoriais/1/1/1/361

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ESTUDOS#5

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Nota introdutória

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A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO MANDATO Carla Taipina Marta e Cláudia Pereira

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O PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO Carla Vieira

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DA EVENTUAL RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO SOLICITADOR BREVE CONTRIBUTO PARA A SUA COMPREENSÃO Cláudio Cardoso

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CONSIDERAÇÕES SUBSTANTIVAS E PROCESSUAIS EM TORNO DA DESERDAÇÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVO Diana Leiras

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CONSIDERACIONES SOBRE LA AUTOTUTELA EN ESPAÑA COMO MODELO PARA PORTUGAL Domingo Bello Janeiro

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O DOCUMENTO PARTICULAR AUTENTICADO NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS Isa Raquel Pinto Pereira

77

TUTELA CAUTELAR NO ESPAÇO EUROPEU DE JUSTIÇA: A DECISÃO EUROPEIA DE ARRESTO DE CONTAS Lurdes Varregoso Mesquita

95

“DO CONTRATO DE DOAÇÃO” Manuel de Almeida

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REFLEXÕES EM TORNO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA Melanie Oliveira Neiva Santos

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PROCESSO DE INSOLVÊNCIA “A IMPORTÂNCIA DA FASE DE LIQUIDAÇÃO” Ricardo Manuel Simões Loureiro

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A PRIVACIDADE DO TRABALHADOR E A UTILIZAÇÃO DAS TIC Susana Ferreira dos Santos

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Nota Introdutória

A

edição, que agora vem a lume, resulta, sobretudo, de um esforço humilde e contínuo de colaborar na administração da Justiça através de contributos que, dignificando e prestigiando a nossa classe, promovam realmente o seu aperfeiçoamento e especialização profissionais, fomentando, ainda, o desenvolvimento de algumas das matérias jurídicas mais relevantes para o exercício das nossas profissões. Esta «paráfrase» intencional de algumas das nossas atribuições estatutárias elucida-nos do sentido e propósito da publicação destes Estudos que, num futuro que imaginamos próximo, terá a colaboração permanente de várias Instituições de Ensino Superior, por forma a reforçar o carácter científico da mesma. A recente criação do Instituto de Formação da Ordem – o Instituto de Formação Botto Machado – enquadra-se plenamente nos desígnios avençados e pretende-se que seja um marco na consolidação da qualidade das nossas publicações e, especialmente, da nossa formação, inicial e contínua.

Paulo Teixeira 1.º Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO MANDATO

CARLA TAIPINA MARTA Solicitadora. Mestranda em Solicitadoria – Ramo: Solicitadoria de Empresa. CLÁUDIA PEREIRA Licenciada em Solicitadoria e Administração | ISCAC. Estudante de pós-graduação na Faculdade de Direito de Coimbra.

RESUMO Com a celebração do 40.º aniversário da Constituição da República Portuguesa e perante a recente alteração ao Código de Processo Civil, considerámos oportuno analisar o mandato judicial na esfera do solicitador. Esta análise prende-se com a incongruência normativa que deriva destes diplomas legais e que colide com o disposto na Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto – diploma que regula os actos próprios dos advogados e dos solicitadores. Na nossa Constituição nenhuma referência é feita ao patrocínio forense exercido por solicitador e o Código de Processo Civil deixa o solicitador na sala de espera.

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A Insustentável Leveza Do Mandato

«O mandato judicial só pode ser exercido por advogados e solicitadores»1.

I. INTRODUÇÃO

O

mandato, conforme define o Código Civil2, no artigo 1157.º, é o «contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra». No presente escrito, dedicaremos a nossa atenção ao mandato judicial3 – uma modalidade especial do mandato4. Mais concretamente, o que pode ser exercido por solicitador. Aquele que, aqui, nos interessa. O mandato judicial é o negócio jurídico bilateral5 no qual uma das partes, o mandante, confere poderes de representação em juízo a um profissional do foro, o mandatário. A sua constituição é efectuada através da outorga de procuração, na qual são conferidos os poderes forenses necessários para o desempenho cabal das suas funções6. O mandato está intimamente ligado ao direito de acesso aos tribunais – um direito fundamental, necessário a uma justiça mais equitativa e igualitária. Neste conspecto, o patrocínio judiciário, atenta a complexidade do nosso sistema judicial, com um cunho ainda bastante conservador, é imprescindível ao controlo do processo, de forma a assegurar os direitos constitucionalmente consagrados a todos os cidadãos. O solicitador enquanto profissional do foro, inscrito na Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, tem competências, entre outras, para o exercício do mandato judicial. No nosso ordenamento jurídico e na praxis judiciária, o mandato judicial exercido por solicitador é muitas vezes amputado. Neste sentido, veja-se o (novo) Código de Processo Civil, que, pese embora permita o seu exercício, com algumas limitações, não refere o solicitador em vários normativos onde o mesmo tem competência plena. O legislador optou pela utilização da expressão “advogado”, quando a mais adequada seria “mandatário”. Em face do exposto, poder-se-á, num rasgo de desatenção, supor que estamos a fazer uma comparação entre profissionais. Não estamos. Consideramos a colaboração imprescindível e a concorrência saudável.

II. AS LINHAS DE ORIENTAÇÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O direito processual civil ou vulgarmente conhecido por processo civil é um ramo do direito público que assegura a prossecução e garantia do direito substantivo.

Artigo 32.º, primeira parte, do Decreto-Lei n.º 29 637, de 28 de Maio de 1939. Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro. 3 Igualmente designado por mandato forense. 4 Acerca das restantes modalidades especiais do mandato, vide LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações. Volume III – Contratos em especial. Coimbra: Almedina, 2010, pp. 435 e seguintes. 5 Cfr. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4.ª Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, pp. 385 e seguintes. 6 Tal-qualmente refere PRATA, Ana. Dicionário Jurídico. Volume I. 5.ª Edição. Almedina, Coimbra: 2008, p. 904. 1 2

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O Código de Processo Civil de 1961, que esteve em vigor até 31 de Agosto de 20137, deve grande parte da sua regulamentação ao Código de Processo Civil de 19398. Este diploma – o Código de 1939 –, foi preparado por Alberto dos Reis, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Com a entrada em vigor deste diploma é assinalada uma revolução profunda no direito processual civil, visto ter sido considerado bastante evoluído para a época. Será por esta razão que Alberto dos Reis, ainda hoje, continua a ser uma figura fundamental no direito processual civil e os seus seis volumes do “Código de Processo Civil Anotado” continuam a figurar nas bibliotecas dos juristas processualistas. Com o falecimento de Alberto dos Reis, em 1955, Antunes Varela, Ministro da Justiça à data, viu-se encarregue de prosseguir a tarefa já pensada por aquele e que passava por reformular o Código, de acordo com as necessidades sentidas. Destarte, nomeia uma comissão de juristas para proceder à referida reforma do processo civil, na qual presidiu a todas as reuniões, incumbindo-se da redacção final dos novos textos com a colaboração distinguida dos Conselheiros José Osório e Lopes Cardoso. Numa fase inicial, a revisão visava solucionar as críticas apontadas pelos meios forenses. No entanto, a referida revisão acabou por ampliar-se a todo o diploma. Originando um novo Código de Processo Civil, tanto no aspecto formal, como na substância das disposições. Pelo Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961, que entrou em vigor a 24 de Abril de 1962, é aprovado o Código de Processo Civil de 1961. Este modelo de código, apesar de sucessiva e profundamente alterado, manteve-se em vigor até 2013. Até à entrada em vigor do (novo) Código de Processo Civil, o Código de 1961 foi alvo de setenta e uma alterações, devendo destacar-se as mais relevantes: – a de 1967 – por força da aprovação do Código Civil de 1966; – a de 1985 – a chamada reforma intercalar do processo; – a profunda reforma de 1995/1996; – a de 2003 com a reforma da acção executiva e, por fim, a reforma dos recursos civis e a remodelação da acção executiva em 2008. Com a assinatura, no dia 17 de Maio de 2011, do Memorando de Entendimento entre o Estado Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, a Ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, é confrontada com a imposição da revisão do Código de Processo Civil. Não obstante, os trabalhos de revisão do Código de Processo Civil já tinham, formalmente, sido iniciados pelo Ministro da Justiça Alberto Sousa Martins, através do Despacho n.º 64/2010, de 18 de Dezembro de 2009 (entretanto, suspensos no final de 2010). Com as exigentes metas temporais do memorando, até ao final de 2011, a Ministra da Justiça resolveu renomear, em 7 de Setembro de 2011, a antiga Comissão para Elaboração de Propostas de Alteração ao Código de Processo Civil para preparar uma proposta, cujas áreas-chave, alvo de aperfeiçoamento, já se encontravam identificadas no Memorando, nomeadamente a consolidação da legislação para todos os processos de execução presentes a Tribunal, conferindo aos juízes poderes para despachar processos de forma mais célere, reduzindo a carga administrativa dos juízes e impondo o cumprimento de prazos legais para os processos

Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961, revogado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho. Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 29637, de 28 de Maio e que entrou em vigor no dia 1 de Outubro.

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judiciais e, em particular, para os procedimentos de injunção e para os processos executivos e de insolvência9. Não se deixará de referir, que, paralelamente a este trabalho, a Comissão teve ainda de iniciar os trabalhos de revisão da Organização Judiciária, que visava alterar a Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, com o objectivo de reduzir o número de Comarcas e criar Tribunais Especializados. O (novo) Código de Processo Civil foi aprovado pela Lei n.º 43/2013, de 26 de Junho10, entrando em vigor no dia 1 de Setembro do mesmo ano. De acordo com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII11, esta reforma é tratada como sendo a mais profunda realizada no direito processual desde 1939. Numa leve análise ao referido memorando, é possível identificar os principais objectivos e alterações de que o novo diploma foi alvo. De entre eles, destaca-se «uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo», criando «um novo modelo de processo simples e flexível, despojado de injustificados formalismos e floreados adjectivos, centrando decisivamente na análise e resolução das questões essenciais ligadas ao mérito da causa». As profundas alterações não se verificam apenas na sistematização (praticamente nenhuma disposição do novo Código corresponde numericamente às do Código de 1961), mas também na sua substância. Os princípios basilares do processo civil mantêm-se, no seu essencial, inalterados, estando a sua maioria tipificada na parte inicial do Código. A celeridade processual foi um dos principais objectivos desta reforma e que se destaca, entre outros, no controlo dos prazos estabelecidos, na limitação dos articulados, no melhoramento do princípio da oralidade, na inadiabilidade e na programação das audiências de discussão e julgamento e no desincentivo do uso de comportamentos dilatórios, com a concomitante aplicação de multas. O poder de direcção do processo pelo juiz foi reforçado, principalmente na adequação formal, ao «permitir a prática dos actos que melhor se ajustem aos fins do processo» que se visam atingir. Por fim, o (novo) Código determinou uma significativa reformulação das regras relativas às formas do processo civil declarativo. Este processo passa a ter forma única.

III. O SOLICITADOR E O MANDATO JUDICIAL O caminho que nos trouxe até aqui foi longo. Firme. De evolução constante. Desde o pretérito ano de 1174 – ainda a fundação de Portugal se observava de perto –, até este momento12. Momento em que a profissão de solicitador é reconhecida no nosso ordenamento jurídico e na praxis judiciária. Todavia, muito ainda há por percorrer.

9 Cfr. tradução do conteúdo do Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, de 17 de Maio de 2011, p. 32, disponível em: www.portugal.gov.pt/media/371372/mou_pt_20110517.pdf. 10 Actualmente já conta com três alterações, sendo a última resultante da Lei n.º 122/2015, de 1 de Setembro. 11 Cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, p. 4, disponível em www.dgpj.mj.pt. 12 Acerca da evolução da profissão, conferir a resenha histórica que nos é oferecida no sítio da internet da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, acessível em http://osae.pt/pt/pag/osae/resumo-historico/1/1/1/88.

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De harmonia com o preceituado no artigo 91.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (EOSAE)13-14, a admissão como associado efectivo depende da titularidade do grau académico de licenciado em solicitadoria ou direito e de aprovação no estágio profissional de acesso à profissão nos respectivos exames finais 15. Somente os solicitadores com inscrição em vigor na Ordem, além dos advogados, podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão, designadamente exercer o mandato judicial, nos termos da lei, em regime de profissão liberal remunerada, conforme estatui o artigo 136.º do EOSAE. Os solicitadores têm um largo espectro de actuação. Para além do mandato forense, são actos próprios dos solicitadores16 a consulta jurídica, a elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios ten- Somente os solicitadores com dentes à constituição, alteração ou extinção de negócios inscrição em vigor na Ordem, jurídicos, designadamente os praticados junto de conserva- além dos advogados, podem, tórias e cartórios notariais, a negociação tendente à cobran- em todo o território nacional e ça de créditos e o exercício do mandato no âmbito de recla- perante qualquer jurisdição, mação ou impugnação de actos administrativos ou instância, autoridade ou tributários, conforme dispõe o artigo 1.º da Lei 49/2004, de entidade pública ou privada, 24 de Agosto17. Mas não só. praticar actos próprios da Com a introdução no nosso ordenamento jurídico do profissão, designadamente Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março18, foram simplifi- exercer o mandato judicial, cados os controlos de natureza administrativa e os solicita- nos termos da lei, em regime de dores, entre outros juristas e entidades, passaram a poder profissão liberal remunerada, efectuar todo o tipo de reconhecimentos e termos de conforme estatui o artigo 136.º autenticação. Entretanto, o Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 do EOSAE. de Julho19, concretizou a desformalização dos actos que estavam sujeitos a escritura pública e alargou a outros juristas, incluindo os solicitadores, as competências para determinados actos que, até esse momento, se encontravam na esfera dos notários. Os direitos e os deveres dos solicitadores ocupam lugar de destaque no EOSAE. A eles se dedicam os artigos 150.º e seguintes. Atento o disposto no artigo 150.º, os solicitadores podem, no exercício da sua profissão, requerer, por escrito ou oralmente, em qualquer tribunal ou Aprovado pela Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro. De ora em diante, abreviadamente, designado por EOSAE. 15 No que tange à admissão, não deveremos perder a lembrança de que «se há actividades que dependem do Estado, são realmente as profissões liberais: só devem a sua raridade, logo o seu monopólio, à protecção do Estado, que define o direito de entrada nessas profissões» – Cfr. BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. Curso no Collége de France (1989-1992). Tradução Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2014, p. 177. 16 Actos que são, de igual modo, próprios dos advogados. 17 Diploma que fixa o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita. 18 Decreto-Lei que actualiza e flexibiliza os modelos de governo das sociedades anónimas, adopta medidas de simplificação e eliminação de actos e procedimentos notariais e registrais e aprova o novo regime jurídico da dissolução e da liquidação de entidades comerciais. 19 Este diploma adopta medidas de simplificação, desmaterialização e eliminação de actos e procedimentos no âmbito do registo predial e actos conexos. 13 14

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serviço público, o exame de processos, livros ou documentos que não tenham carácter reservado ou secreto, bem como a passagem de certidões, sem necessidade de exibir procuração (n.º 1). A recusa do exame ou da certidão a que se aludiu anteriormente deve ser justificada imediatamente e por escrito (n.º 2). Os solicitadores têm o direito de comunicar, pessoal e reservadamente, com os seus clientes, mesmo quando estes se encontrem detidos ou presos (n.º 3). Mais. Refere o artigo 151.º que nas audiências de julgamento os solicitadores dispõem de bancada. No que tange aos deveres específicos, disciplina o artigo 152.º. Segundo este preceito, compete aos solicitadores a verificação da identidade do cliente e dos representantes do mesmo, assim como os poderes de representação conferidos a estes últimos. Compete, do mesmo modo, efectuar a recusa do mandato ou da nomeação oficiosa para causa que seja conexa com outra em que representem ou tenham representado a parte contrária. Entre as suas obrigações, encontramos, ainda, o dever de não contactar ou manter relações com a parte contrária ou com contra-interessados, quando representados por solicitador ou advogado, salvo se por estes forem previamente autorizados. Estão, de igual modo, sujeitos à prestação das informações que lhes sejam pedidas pela parte, relativas ao estado das diligências que lhes foram cometidas, e comunicar-lhe prontamente a sua realização ou a respectiva frustração, com indicação das suas causas. O uso do trajo profissional quando pleiteiem oralmente e a utilização do selo de autenticação nos reconhecimentos de assinatura, nas traduções, na certificação de traduções, na certificação de fotocópias e na autenticação de documentos, integram os seus deveres específicos. Pese embora todas estas atribuições e deveres, é no mandato judicial que iremos deter a nossa atenção. E, é neste instante que percepcionamos que nem sempre o legislador tomou as melhores opções de forma a salvaguardar a actuação equitativa do solicitador no exercício dos actos que lhe estão cometidos. Ferindo princípios fundamentais. Tal-qualmente referimos, o mandato forense encabeça o elenco de actos próprios dos solicitadores. No entanto, o Código de Processo Civil é espartano quanto aos solicitadores. Deixando-os, na grande maioria dos casos, na sala de espera20. O Código de Processo Civil – instrumento fundamental ao exercício do mandato judicial –, enferma de uma série de irregularidades. Em vários artigos identifica, tão-somente, o “advogado” quando, em nosso entendimento, deveria fazer constar o “mandatário”, atento o facto de ambos os profissionais – solicitadores e advogados – terem competência para o exercício do mandato judicial. Bem sabemos que, no âmbito do mandato judicial, as competências do solicitador são restritas. Contudo, a questão que se impõe é a de saber se estas competências limitadas serão motivo para exclusão numa grande parte das normas do Código de Processo Civil. Naturalmente, esta questão leva-nos a outra: não deveria o legislador, na feitura das normas, ter presente os princípios consagrados constitucionalmente? Outras questões se seguirão. 20 Esta entrada condicionada não se circunscreve ao Código de Processo Civil. A título de exemplo, adiantamos dois diplomas que aduzem limitações. A Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto –, que faz uma clara distinção entre solicitadores (artigo 15.º) e advogados (artigo 12.º). Entre a participação na administração da justiça, no exercício do mandato judicial, e o patrocínio forense – afecto apenas aos advogados. Outro dos exemplos é o Regime Jurídico do Processo de Inventário – Lei n.º 23/2013, de 05 de Março. Este regime remete-nos para um processo no qual se visou simplificar a tramitação. Exige, no entanto, a constituição obrigatória de advogado, se forem suscitadas ou discutidas questões de direito. Dificilmente o não serão.

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É certo que deambulando pelos tribunais, são poucas ou nenhumas as vezes em que presenciamos o exercício do mandato judicial por parte do solicitador. Quando na nossa sociedade se fala em mandato, associa-se unicamente ao advogado, ficando de lado o solicitador. Porém, já Luís Vaz de Camões, in Sonetos, escrevia: «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades». Em pleno século XXI e perante a reforma profunda no direito processual civil, que, segundo a exposição de motivos, já não tinha lugar desde o Código de 1939, continuará a fazer sentido estarmos perante um código de cunho conservador? Até à entrada em vigor do actual Código de Processo Civil21, o diploma anterior – o Código de 1961–, seguiu em muito as linhas de orientação do Código de 1939. Este último, no seu artigo 32.º sob a epígrafe «quem pode exercer o mandato» já disponha que «o mandato só pode ser exercido por advogado ou solicitador». Porém, ambos os códigos, o de 1939 e o de 1961, nas suas disposições normativas mencionavam, abundantemente, a designação “advogado” ao invés de “mandatário”. No entanto, uma das possíveis razões para esta designação prender-se-ia com a tipificação da acção declarativa quanto à forma (ordinária, sumária e sumaríssima), sendo o critério principal da sua aplicabilidade o do valor da causa. As disposições gerais e comuns da acção declarativa encontravam-se tipificadas na acção ordinária, que, por sua vez, eram aplicáveis à acção sumária e sumaríssima em tudo o que não estivesse prevenido numa e noutra pelas disposições que lhe eram próprias (artigos 463.º e 464.º do CPC de 1961). Na acção ordinária, o solicitador não tinha qualquer competência para o exercício do mandato. Veja-se, neste sentido, a conjugação do disposto no artigo 461.º do CPC de 1961, em que «se o valor da causa exceder a alçada do tribunal da relação22, empregar-se-á o processo ordinário» e por sua vez, o artigo 32.º, n.º 1, al. a), do CPC de 1961 em que «é obrigatória a constituição de advogado: al. a) nas causas de competência de tribunais com alçada em que seja admissível recurso ordinário»23. Em face do exposto, não faria sentido fazer qualquer tipo de reparo ao explanado no subtítulo I, do título II, do Código de 196124, quando o legislador referia o “advogado” e não o “mandatário”. Tal designação era correcta, porquanto o solicitador não tinha qualquer competência para o exercício do mandato na acção ordinária, sendo a actuação da exclusividade do advogado. No que tange às disposições gerais, o mesmo não se poderá dizer. Nas disposições gerais, é possível verificar que o legislador fez constar “advogado” quando deveria ter consignado “mandatário”. Tomemos como exemplo os seguintes artigos, que passamos a transcrever: «Artigo 42.º do Código de 1961 Assistência técnica aos advogados 1 – Quando no processo se suscitem questões de natureza técnica para as quais não tenha a necessária preparação, pode o advogado fazer-se assistir, durante a produção da prova e a Doravante, abreviadamente, designado por CPC. A alçada do Tribunal da Relação é de 30.000,00 (artigo 31.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto). Nota nossa. 23 Segundo o disposto no artigo 678.º, n.º 1, do CPC de 1961, «o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçado do tribunal de que se recorre (…)». Nota nossa. 24 Inerente às disposições que são próprias ao processo declarativo que segue a forma ordinária. 21

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discussão da causa, de pessoa dotada de competência especial para se ocupar das questões suscitadas. 2 – Até 10 dias antes da audiência de discussão e julgamento, o advogado indicará no processo a pessoa que escolheu e as questões para que reputa conveniente a sua assistência, dando-se logo conhecimento do facto ao advogado da parte contrária, que pode usar de igual direito. 3 – A intervenção pode ser recusada, quando se julgue desnecessária. 4 – Em relação às questões para que tenha sido designado, o técnico tem os mesmos direitos e deveres que o advogado, mas deve prestar o seu concurso sob a direcção deste e não pode produzir alegações orais. Artigo 266.º-B do Código de 1961 Dever de recíproca correcção 1 – Todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correcção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade. 2 – Nenhuma das partes deve usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessária ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra, ou do respeito devido às instituições. 3 – Se ocorrerem justificados obstáculos ao início pontual das diligências, deve o juiz comunicá-los aos advogados e a secretaria às partes e demais intervenientes processuais, dentro dos trinta minutos subsequentes a hora designada para o seu início. 4 – A falta da comunicação referida no número anterior implica a dispensa automática dos intervenientes processuais comprovadamente presentes, constando obrigatoriamente da acta tal ocorrência.» Olhando de relance para os artigos transcritos e para o próprio Código, constatamos que os mesmos não faziam parte integrante das disposições onde só o advogado tinha competência exclusiva. Dessas disposições, face à conjugação dos artigos 32.º e 33.º, concluía-se que o patrocínio judiciário podia ser exercido por advogado, solicitador e até pelas próprias partes, auto-representando-se. No concernente às questões suscitadas, mais nada haverá a acrescentar, uma vez que o código foi revogado pela Lei n.º 43/2013, de 26 de Junho. Actualmente estamos perante um novo Código de Processo Civil, que entrou em vigor no dia 1 de Setembro. Muito se tem dito sobre este (novo) Código. Para Menezes Leitão25, a «reforma do processo civil talvez fosse justificada, uma vez que o actual Código de 1961 – que no fundo não passava de uma reforma do Código de 1939 – era já uma manta de retalhos tão grande que se justificasse plenamente uma reforma». Contudo vai mais longe ao afirmar que «este tipo de reforma, que constitui uma reforma feita à pressão (…) parece ter sido lançada apenas para perturbar o trabalho dos advogados e magistrados». Conforme anteriormente enunciado, os trabalhos de revisão do CPC tinham de estar concluídos num espaço de tempo limitado. Importa, de igual modo, referir que paralelamente a Cfr. Leitão, Luís Manuel Telles de Menezes, “Notas Breves sobre o Código de Processo Civil de 2013”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, Abril/Set 2013, pp. 423 e seguintes.

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esta revisão, a comissão se deparou com a necessidade de reformular a Lei de Organização Judiciária. Deste modo, a comissão nomeada teve pouco mais de 3 meses para apresentar uma proposta para o novo Código de Processo Civil e para a Lei da Organização Judiciária. «Depressa e bem não há quem», conforme nos ensina a sabedoria popular. Será que o (novo) Código de Processo Civil é verdadeiramente um novo Código? Para Lebre de Freitas26, «o novo Código de Processo Civil (CPC) é que ele não é um novo CPC. Trata-se, sim, de uma pequena reforma da lei processual (…), que pretende aperfeiçoar e rematar a grande reforma empreendida em 1995-1996». A grande reviravolta causada por este novo código prende-se, essencialmente, com a nova renumeração dos artigos. Poderá dizer-se que alguns artigos ficaram melhor localizados, sendo disso exemplo, os princípios gerais concentrados no início do código e os pressupostos específicos da acção executiva transferidos para o capítulo respectivo. Não obs- Será que o (novo) tante, há outras renumerações que deixam muito a desejar, Código de Processo Civil sendo disso exemplo as “provas” que foram colocadas na é verdadeiramente parte geral do código. A produção da prova faz parte de um novo Código? uma fase processual – instrução do processo –, e o seu devido lugar é a seguir à fase da gestão inicial do processo e da audiência prévia. Na opinião do Lebre de Freitas27, o legislador deveria ter-se preocupado mais com o destinatário da lei, uma vez que esta nova renumeração dificulta a consulta do código para quem estava habituado a uma certa numeração que figurava no nosso ordenamento há vários anos. Em jeito de lamentar, não se poderá deixar de expor que, estando perante um “novo código de processo civil”, o legislador não tenha inserido os diplomas avulsos existentes no nosso ordenamento, dos quais destacamos a acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato e respectiva injunção28, o regime especial relativo aos atrasos de pagamentos em transacções comerciais29 e o procedimento europeu de injunção30. Feita uma abordagem simplista do actual CPC, constata-se que os Códigos de 1939 e 1961 continuam bastante presentes. Desta feita, não podemos concluir que estamos perante uma profunda reforma, conforme pretendeu demonstrar o legislador na Exposição de Motivos. Estamos ante algumas alterações que, grosso modo, pretendem aperfeiçoar a reforma feita em 1995-1996. Uma grande e profunda reforma foi intentada com o Código de 1939. Essa foi a grande reforma no direito processual civil e será, muito seguramente, por esta razão que passado quase um século ainda está tão presente nas nossas vidas. Se de uma profunda reforma se tratasse, o legislador teria, com certeza, o cuidado de adequar determinados termos à actual sociedade. Poderá dizer-se, a título de conclusão, 26 Cfr. FREITAS, José Lebre,“Sobre o Novo Código de Processo Civil (uma visão de fora), in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, Jan/Mar 2013, pp. 23 e seguintes. 27 Que se infere no artigo mencionado na nota antecedente. 28 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 11 de Agosto. 29 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio. 30 Aprovado pelo Regulamento (CE) n.º 1896/2006.

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que a intenção do legislador era alterar o referido diploma – como aconteceu –, mas, certamente, foram várias as ideias que ficaram no papel. Não é difícil perceber que nesta árdua tarefa o legislador teve um grande inimigo: o tempo. Voltando ao tema central do nosso escrito – o mandato judicial – e folheando o Código de Processo Civil é de fácil observação que o vocábulo “advogado” continua bastante presente. Estando em pleno século XXI e em face de um diploma que tipifica os Actos Próprios dos Advogados e dos Solicitadores, o qual dispõe que é um acto próprio destes dois profissionais do foro o exercício do mandato forense, não se compreende a razão de o legislador manter a designação de “advogado”, quando é sua intenção referir-se ao “mandatário”. No anterior código, apesar de tudo, ainda se compreendia que a expressão “advogado” estivesse muito presente, dado que a acção ordinária era da competência exclusiva dos advogados e preenchia a maioria das disposições do código. No actual código só há uma forma de processo declarativo. Esta forma de processo tanto pode ser intervencionada por advogado ou por solicitador, tendo para o efeito de observar o disposto do artigo 40.º que tipifica as causas na qual a constituição de advogado é obrigatória. Neste sentido, deveria ser acolhida a designação “mandatário”, em substituição de “advogado” quando é sua intenção (do legislador) referir-se ao primeiro. Já são várias as disposições que contemplam (e bem!) a designação “mandatário”. A título exemplificativo: «Artigo 7.º (artigo 266.º CPC 1961) Princípio da cooperação 1 – Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. 2 – O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência. 3 – As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º. 4 – Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.» Contudo, ainda podemos encontrar as seguintes situações: «Artigo 50.º (artigo 42.º CPC 1961) Assistência técnica aos advogados 1 – Quando no processo se suscitem questões de natureza técnica para as quais não tenha a necessária preparação, pode o advogado fazer-se assistir, durante a produção da prova e a discussão da causa, de pessoa dotada de competência especial para se ocupar das questões suscitadas.

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2 – Até 10 dias antes da audiência final, o advogado indica no processo a pessoa que escolheu e as questões para que reputa conveniente a sua assistência, dando-se logo conhecimento do facto ao advogado da parte contrária, que pode usar de igual direito. 3 – A intervenção pode ser recusada quando se julgue desnecessária. 4 – Em relação às questões para que tenha sido designado, o técnico tem os mesmos direitos e deveres que o advogado, mas deve prestar o seu concurso sob a direção deste e Neste sentido, deveria ser não pode produzir alegações orais.» acolhida a designação “mandatário”, em substituição Em face deste artigo, a questão que se coloca é a de saber de “advogado” quando é sua se o solicitador não tem direito a assistência técnica. Não seria, intenção (do legislador) porventura, mais adequado o uso da palavra “mandatário”? referir-se ao primeiro. Fica a questão.

IV. O MANDATO JUDICIAL: QUE CONSTITUCIONALIDADE? Todas as dúvidas anteriormente formuladas levam-nos a uma viagem ao interior da nossa Constituição, numa altura em que o nosso normativo superior celebra o seu 40.º aniversário. Quarenta anos e oito revisões depois, nem uma única menção ao solicitador. A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 208.º, preceitua que «a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça». Atentos os actos próprios dos advogados e dos solicitadores, impõe-se uma análise à exclusão destes últimos na protecção que deve ser assegurada no exercício do patrocínio forense. Esta análise remete-nos, em primeira instância, para o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa31-32. Um dos princípios basilares dos direitos fundamentais. Nesta abordagem, teremos de ter sempre presente que «o facto de a constituição, para além de criar, proclamar os direitos fundamentais significa o reconhecimento de que estes decorrem de uma realidade preexistente em que se baseia a nossa Constituição – “a dignidade da pessoa humana”»33. No que respeita aos solicitadores e ao mandato, em nosso entendimento, essa realidade existe. Inexiste, tão só, o seu reconhecimento no nosso normativo superior. Segundo a norma vertida no artigo 13.º da CRP, todos os cidadãos34 têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (n.º 1). Mas não só. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual (n.º 2).

Aprovado pelo Decreto de 10 de Abril de 1976. De ora em diante, de forma abreviada, designada por CRP. 33 Cfr. VAZ, Manuel Afonso, “et al.”. Direito Constitucional – O Sistema Constitucional Português. 2.ª Edição. Porto: Universidade Católica Editora, 2015, p. 202. 34 «Estende-se também a «substratos sociais»», cfr. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 416. 31 32

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O princípio da igualdade deve estar presente na criação do direito, uma vez que se impõe ao legislador a obrigação, em termos de conteúdo, de promover a igualdade das pessoas. A lei é um instrumento da justiça material, pelo que deve, concomitantemente, concretizar o princípio da igualdade, vinculando o próprio legislador. Caracteriza-se pela igualdade na aplicação e quanto à criação do direito35. Do ponto de vista da metódica, de uma forma sumária, este princípio encerra sub-princípios: proibição do arbítrio, proibição da discriminação e obrigação de diferenciação. O primeiro, da proibição do arbítrio, é um princípio de controlo negativo – tratamento igual para o que é igual e diferente para o que é diferente. Quanto à proibição da discriminação, é o critério do n.º 2, do artigo 13.º, da CRP. Este critério remete-nos para um impedimento de diferenciação de comportamentos com base na ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. Por último, a obrigação de diferenciação, como forma de equilibrar a desigualdade de oportunidades36. Na dogmática do princípio da igualdade, é imprescindível a distinção entre razão justificativa da diferenciação e fim da norma que contém a diferenciação. O princípio da igualdade não pode, contudo, «ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular. O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável»37. O princípio da igualdade deve promover uma igualdade formal e uma igualdade material. É esta igualdade que nos parece afastada da nossa Constituição no que aos solicitadores respeita – e que ecoa em outros diplomas legais38 –, conforme demonstrado no capítulo antecedente. Neste particular, parece-nos existir uma situação de discriminação que não se justifica. Para além do princípio da igualdade, teremos, de igual modo, que chamar o princípio geral da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da CRP. Este princípio é a concretização da tutela jurisdicional efectiva. O princípio da tutela jurisdicional efectiva está associado aos direitos e garantias dos administrados a que alude o artigo 268.º da CRP. O direito de acesso aos tribunais envolve a existência de uma rede de tribunais, o apoio judiciário – uma medida de natureza positiva –, o processo justo, o direito a uma decisão em prazo razoável e a necessidade da urgência para alguns processos. Paralelamente, envolve a constituição de mandatário, porquanto o nosso sistema judiciário39, na maior parte dos casos, não está preparado para receber as

Cfr. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria …, ob. cit., pp. 426 e seguintes. Neste sentido, CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 4.ª Edição Revista. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp. 338 e 339. 37 Cfr. segmento do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 107/2011, 1.ª Secção, datado de 1 de Março de 2011, (Carlos Pamplona de Oliveira). 38 Uma vez que os direitos fundamentais não se encontram circunscritos à lei constitucional. 39 Com excepção, eventualmente, dos Julgados de Paz. 35

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partes auto-representadas40. O contrato de mandato pode ser celebrado com solicitador, advogado, ou com ambos, conjuntamente. Em via de princípio, não podem os solicitadores ser afastados da protecção inerente ao exercício do mandato a que alude o artigo 208.º da CRP41. Neste conspecto, dado que o mandato judicial pode ser exercido por solicitadores, afigurar-se-nos-ia como adequada a expressão «mandatários».

V. CONCLUSÃO Com a celebração do 40.º aniversário da CRP e perante a No nosso normativo superior recente alteração ao CPC, considerámos oportuno analisar o nenhuma referência é feita ao mandato judicial na esfera do solicitador. Conforme já referi- solicitador, mas, por sua vez, a do, o mandato forense é poucas vezes exercido pelo solicita- lei que regula os actos próprios dor. No entanto, não é razão para sustentar um estatuto de dos advogados e dos desigualdade para com o advogado. No nosso normativo solicitadores faz-lhe referência superior nenhuma referência é feita ao solicitador, mas, por ao tipificar que tem competência sua vez, a lei que regula os actos próprios dos advogados e para o exercício do mandato dos solicitadores faz-lhe referência ao tipificar que tem com- forense. petência para o exercício do mandato forense. Neste sentido, podemos concluir que estamos perante uma incongruência normativa. Os solicitadores muito têm evoluído, sendo destacável a passagem do seu órgão de tutela de Câmara a Ordem. Não obstante todo o caminho percorrido, muito ainda há para ser feito. Principalmente na óptica do mandatário. Dispondo desta competência, na nossa singela opinião, é de lamentar que seja tão pouco usada. É obrigação dos solicitadores demostrar que são capazes de exercer, de forma elevada, o mandato judicial. Dispõem, desde logo, de uma ferramenta essencial – a licenciatura na qual abarcam os conhecimentos fundamenais. Falta, tão-só, a prática forense. Esta prática compreende, entre outras, a elaboração de requerimentos e a preparação subjacente ao acto de pleitear em audiências de discussão e julgamento. Deste modo, deveriam ser criadas condições para que fosse possível ao solicitador estudar e aprender a desempenhar o seu papel enquanto mandatário – porque em boa verdade, muito há para aprender. Os advogados, neste aspecto, são fundamentais, considerando a sua colaboração indispensável.

Para um desenvolvimento da problemática da auto-representação vide RODRIGUES, Carlos Emanuel Pina Almeida. “Uma análise sobre a obrigatoriedade do patrocínio judiciário no âmbito do processo declarativo comum”, in Revista da Ordem dos Advogados, Jul./Dez. 2015, Ano 75, Lisboa. 41 «A violação do princípio constitucional da igualdade subentende uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminatória, sendo certo que, a este propósito, a jurisprudência constitucional tem insistentemente sublinhado não proibir aquele princípio que se criem distinções, desde que estas não sejam arbitrárias ou desprovidas de fundamento material bastante» – segmento do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 204/03, 3.ª Secção, datado de 28.04.2003 (Tavares da Costa), acedido e consultado em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/ acordaos/20030204.html. 40

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Para além do nosso normativo superior, muitos outros diplomas têm incongruências ao elencar o “advogado”, quando, efectivamente deveriam referir-se ao “mandatário”. No nosso ordenamento, conforme já referido, o mandatário tanto poderá ser o solicitador como o advogado. Um dos normativos analisados no presente escrito foi o CPC, no qual o papel do mandato forense está abundantemente presente. Conclui-se que, no tocante ao mandato judicial, pouco ou nada se alterou do anterior para este novo CPC, continuando a figurar o “advogado” como se estivesse isolado no exercício do mandato forense. Deixando o solicitador na sala de espera. Como nota final, numa altura em que a protecção na parentalidade está na ordem do dia, deixamos mais uma questão que se prende com o facto de os solicitadores não possuírem um normativo que tipifique os seus direitos no adiamento de actos processuais, como por exemplo julgamentos em que intervenham enquanto mandatários, em caso de maternidade, paternidade ou, até mesmo, luto. Os advogados possuem tal normativo. Veja-se, neste sentido, o Decreto-Lei n.º 131/2009, de 1 de Junho. Os solicitadores não têm o mesmo direito de igualdade? Deixamos um convite à reflexão. Perante os princípios basilares da nossa Constituição, parece-nos pertinente deixar o alerta, quer à Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, quer ao próprio legislador, no sentido de alcançar uma equidade quanto às competências no âmbito do patrocínio forense no que concerne aos solicitadores. Equidade essa que abrangesse a protecção jurídica, designadamente a nomeação do solicitador nas causa para as quais tenha competência plena. Esta nomeação é de fácil constatação, uma vez que o pedido de apoio judiciário ou consulta jurídica para ser validado necessita, impreterivelmente, da indicação, entre outros, do tipo e valor da acção. Artigo redigido em Dezembro de 2016 Artigo escrito segundo o antigo acordo ortográfico

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Monografias BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. Curso no Collége de France (1989-1992). Tradução Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2014. CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 4.ª Edição Revista. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2014. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2003. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações. Volume III – Contratos em especial, Coimbra: Almedina, 2010.

PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4.ª Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. PRATA, Ana. Dicionário Jurídico. Volume I. 5.ª Edição. Coimbra: Almedina, 2008. VAZ, Manuel Afonso, “et al.”. Direito Constitucional – O Sistema Constitucional Português. 2.ª Edição. Porto: Universidade Católica Editora, 2015.

Publicações em série Cfr. FREITAS, José Lebre,“Sobre o Novo Código de Processo Civil (uma visão de fora), in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, Jan/Mar 2013. LEITÃO, Luís Manuel Telles de Menezes, “Notas Breves sobre o Código de Processo Civil de 2013”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, Abril/Set 2013.

RODRIGUES, Carlos Emanuel Pina Almeida. “Uma análise sobre a obrigatoriedade do patrocínio judiciário no âmbito do processo declarativo comum”, in Revista da Ordem dos Advogados. Jul./Dez. 2015. Ano 75, Lisboa.

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O PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO CARLA VIEIRA Solicitadora e Mestre em Solicitadoria

RESUMO O Processo Especial de Revitalização (PER) é um processo pré-insolvencial, atualmente direcionado exclusivamente às empresas que estão em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, cujo objetivo é a reestruturação do passivo das empresas. Contudo, até à entrada em vigor do Decreto-lei 79/2017, de 30 de junho, não havia consenso por parte dos tribunais na aplicação deste processo especial, na medida em que divergiam quanto à sua aplicação: se se destinava apenas às empresas ou também às pessoas singulares. Assim, a introdução do Decreto-lei 79/2017, de 30 de junho, veio esclarecer inequivocamente que a aplicação deste processo apenas se destina às empresas.

O Processo Especial de Revitalização inicia-se com a apresentação de um requerimento ao tribunal para encetar negociações com os credores para aprovação de um plano de recuperação, que contemplará uma proposta de reestruturação do passivo da empresa. Este processo é uma alternativa à insolvência das empresas, que visa manter a empresa em funcionamento e proteger os postos de trabalho. É um processo de curta duração, uma vez que o processo especial de revitalização tem carácter urgente, face aos demais processos.

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O Processo Especial De Revitalização

1. O PER E A SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA

O

Processo Especial de Revitalização ou PER é um mecanismo de recuperação de empresas que surgiu por inspiração da Lei norte-americana, tendo sido também já consagrado na legislação de outros Estados-Membros da União Europeia. O processo especial de revitalização permite que qualquer empresa estabeleça negociações com os respetivos credores, de modo a concluir com estes um acordo que conduza à sua revitalização económica, possibilitando-lhe manter-se ativa na sua atividade comercial. Esta medida de recuperação surge no âmbito do “Programa Revitalizar”, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2012, de 3 de fevereiro. Este programa de ação do Governo “visa dar uma resposta estratégica global à importância que presentemente assume a temática da revitalização do tecido empresarial em Portugal” e cujo objetivo foi a implantação de instrumentos válidos de recuperação de empresas e pessoas singulares que se encontram em dificuldades financeiras mas que ainda são economicamente viáveis. Para a execução da Resolução de Conselho de Ministros 42/2016 de 18 de agosto, no âmbito do “Programa Capitalizar”, foi alterado o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas através do Decreto-Lei 79/2017, de 30 de junho, com o objetivo, no que concerne a este tema, de “promover estruturas financeiras mais equilibradas, reduzindo os passivos das empresas economicamente viáveis, ainda que com níveis excessivos de endividamento”. Para a credibilização do PER, foram implementadas medidas que visam dificultar o acesso a este mecanismo, foi reforçada a transparência e desenhado um processo que fosse dirigido às empresas, sem deixar de parte a possibilidade de acesso para as pessoas singulares não titulares de empresas ou comerciantes. Foi prioridade criar condições que contribuam para a sobrevivência de empresas consideradas “economicamente viáveis, impulsionando movimentos de reorganização e regeneração das mesmas”. É um processo de carácter urgente, tendo, por isso, prioridade face aos demais processos judiciais. O PER é um processo pré-insolvencial, direcionado exclusivamente para empresas, uma vez que o supremo Tribunal de Justiça foi relutante quanto à aplicação do PER às pessoas singulares, às quais é aplicado o plano de pagamento previsto no artigo 250.º e 251.º do CIRE. A empresa terá que estar em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, ou seja, terá que se encontrar com dificuldades sérias para o cumprimento pontual das obrigações, nomeadamente por falta de liquidez ou pela não obtenção de crédito; este requisito não estava definido no Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), e era difícil de o reconhecer na prática, bem como de distingui-lo da insolvência atual. Com efeito, a recente alteração do CIRE vem alterar este paradigma, na medida em que é agora exigida a declaração que atesta não se encontrar em situação de insolvência atual. A empresa que esteja impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações já se encontra em situação de insolvência, o que conduz à impossibilidade do recurso a este ins­ tituto. Até à mais recente alteração nada garantia que as empresas insolventes não recorressem­a este processo, na medida em que o próprio regime deixava margem para isso, porém foi limitado o acesso a este regime, com a alteração do disposto no n.º 2, do artigo 17.ºA, do CIRE, que introduziu a apresentação de declaração subscrita, há não mais de 30 dias,

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por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual, conforme os critérios previstos no artigo 3.º do CIRE. Para além desta declaração, o PER inicia-se por requerimento através de manifestação de vontade da empresa e do credor ou credores que, não estando especialmente relacionados com a empresa, sejam titulares de pelo menos 10/prct. de créditos não subordinados. E através de declaração escrita e assinada, pela empresa e credor, onde ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação e manifeste a vontade de encetar negociações. Esta declaração deve ser datada e assinada por todos os declarantes, para seguidamente ser apresentada ao juiz do tribunal competente para declarar a sua insolvência. São estes os documentos bastantes para que o processo se inicie.

2. O PER E A SUA TRAMITAÇÃO

Para a credibilização do PER, foram implementadas medidas que visam dificultar o acesso a este mecanismo, foi reforçada a transparência e desenhado um processo que fosse dirigi­do às empresas, sem deixar de parte a possibilidade de acesso para as pessoas singulares não titulares de empresas ou comerciantes. Foi prioridade criar condições que contribuam para a sobrevivência de empresas consideradas “economicamente viáveis, impulsionando movimentos de reorganização e regeneração das mesmas”. É um processo de carácter urgente, tendo, por isso, prioridade face aos demais processos judiciais.

A empresa apresenta no tribunal competente requerimento comunicando a manifestação de vontade de iniciarem as negociações conducentes à sua revitalização, juntando a declaração subscrita, há menos de 30 dias, por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual, conforme os critérios previstos no artigo 3.º do CIRE, e proposta do plano de recuperação com a descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia da empresa, para ser declarada a sua insolvência. Após a comunicação, o juiz nomeia, por despacho, o Administrador Judicial Provisório e determina a respetiva publicidade (nos termos equivalentes ao que a lei prevê para a sentença de declaração de insolvência) e registo, para assegurar total transparência e conhecimento por todos os interessados, podendo assim dar lugar à respetiva reclamação de créditos e garantir a segurança do comércio jurídico. Para além da comunicação, a empresa deve remeter ao tribunal as cópias dos documentos legalmente exigidos para a petição de insolvência, de acordo com o n.º 1, do artigo 24.º do CIRE. Estes documentos poderão ser um pouco numerosos atendendo à curta duração do processo, sendo necessários os seguintes: a relação de todos os credores; as relações das ações e execuções pendentes contra a empresa; um documento que explicite a atividade económica da empresa; a relação de bens que a empresa detenha em regime de arrendamento, aluguer ou locação financeira ou em venda com reserva de propriedade; e, tendo a empresa contabilidade organizada, deve juntar as contas anuais relativas aos três últimos exercícios, relatórios de gestão, de fiscalização e de auditoria e outros documentos; tratando-se de sociedade em regime de consolidação de contas, relatórios, consolidação de gestão, entre outros, relatórios de contas especiais e informações trimestrais e semestrais, mapa de pessoal ao serviço; finalmente, se for o caso, o documento em que identifica o autor da sucessão.

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O Processo Especial De Revitalização

Proferido despacho de nomeação do Administrador Judicial Provisório, este é, de imediato, notificado à empresa, devendo esta comunicar o início das negociações com os credores que não subscreveram a declaração com vista à sua revitalização, por meio de carta registada, onde os convida a participar nas negociações em curso e informa que a documentação junta à mencionada declaração, bem como a proposta de plano, está disponível na secretaria do tribunal, para consulta. Os credores que pretendam participar nas negociações devem declará-lo por meio de carta registada, enquanto se mantiverem as negociações. 2.1. Efeitos decorrentes da instauração do PER Após a nomeação do Administrador Judicial Provisório, o PER obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa, durante o tempo que subsistirem as negociações. Assim, suspendem-se as respetivas ações em curso, tais como penhoras e diligências executivas que corram contra a empresa, extinguindo-se logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação, salvo quando se preveja a sua continuação. Para além deste, também determina a suspensão de todos os prazos de prescrição e caducidade oponíveis pela empresa. A partir do qual e durante todo o tempo que perdurarem todas as negociações não pode ser suspensa a prestação dos serviços públicos essenciais. Para defesa dos interesses dos credores, a empresa fica impedida de praticar atos de especial relevo, sem prévia autorização pelo Administrador Judicial Provisório, que deve ser requerida e concedida por escrito pelo mesmo, no prazo de cinco dias, sendo que a falta de resposta corresponde à declaração de recusa de autorização. Há lugar à suspensão dos processos de insolvência anteriores, na data de publicação no portal Citius do despacho de nomeação do Administrador Judicial Provisório, quando não haja sido proferida sentença declaratória de insolvência, extinguindo-se quando for aprovado e homologado o plano de recuperação. 2.2. Funções do Administrador Judicial Provisório no PER O Administrador Judicial Provisório tem um papel crucial para o bom andamento do processo. Compete-lhe participar nas negociações, orientar e fiscalizar o decurso dos trabalhos e a sua regularidade, assegurando que as partes não adotam expedientes dilatórios, inúteis e/ou prejudiciais à sua boa marcha. Compete-lhe ainda, elaborar a lista provisória de créditos e emitir parecer sobre a situação em que se situa a empresa. Quando o processo findar sem obtenção de acordo conducente à revitalização da empresa, e se tal se afigurar, compete-lhe também requerer a insolvência desta. 2.3. Reclamação de créditos O credor dispõe de 20 dias para reclamar créditos, contados da data da publicação no portal Citius do despacho de nomeação. As reclamações devem ser remetidas ao Administrador Judicial Provisório, que tem o prazo de cinco dias para elaborar a lista provisória de créditos e apresentá-la na secretaria do tribunal para publicação no portal Citius.

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Carla Vieira

A lista provisória de créditos pode ser impugnada pelos credores no prazo de 5 dias úteis, sendo que o juiz dispõe de igual prazo para decidir sobre as impugnações. Não sendo impugnada, converte-se de imediato em definitiva. 2.4. Negociações A empresa presta toda a informação pertinente aos seus credores e ao Administrador Judicial Provisório, para que as negociações se realizem de forma transparente e com equidade, sendo que o Administrador Judicial Provisório e os credores devem ter sempre informação atualizada e completa. As negociações orientam-se pelos termos convencionados entre todos os intervenientes ou, na falta de acordo, pelas regras definidas pelo Administrador Judicial Provisório. Participam os peritos, se considerarem oportuno, cabendo a cada parte suportar os custos dos peritos que tenha contratado, exceto se resultar expressamente do plano de recuperação que venha a ser aprovado. 2.5. Prazo das negociações Findo o prazo para as impugnações, os declarantes dispõem de dois meses para concluir as negociações encetadas, o qual pode ser prorrogado por mais um mês, mediante acordo prévio e escrito entre a empresa e o Administrador Judicial Provisório, estando assim as negociações no âmbito do PER, limitadas ao prazo máximo de três meses. O acordo deve ser junto aos autos e publicado no portal Citius. 2.6. Consequências advenientes de informações incorretas A empresa, bem como os seus administradores de direito ou de facto, são solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorreção das comunicações ou informações a estes prestadas. O credor deve instaurar uma ação autónoma, para se fazer valer do seu direito indemnizatório.

A empresa presta toda a informação pertinente aos seus credores e ao Administrador Judicial Provisório, para que as negociações se realizem de forma transparente e com equi­dade, sendo que o Administrador Judicial Provisório e os credores devem ter sempre infor­mação atualizada e completa. O credor tem agora a possibilidade de alegar nos autos circunstâncias suscetíveis de levar à não homologação do plano depositado pela empresa, tendo esta a faculdade de alterar o plano em conformidade e proceder ao depósito da nova versão, dispondo de prazos para tal. O encerramento do processo especial de revitalização sem que haja acordo conducente à revitalização impede a empresa de recorrer ao mesmo no prazo de dois anos.

2.7. Conclusão das negociações As negociações para a revitalização da empresa devem terminar com a aprovação de um plano de recuperação. A aprovação deste plano pode ser unânime ou por maioria.

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O Processo Especial De Revitalização

O credor tem agora a possibilidade de alegar nos autos circunstâncias suscetíveis de levar à não homologação do plano depositado pela empresa, tendo esta a faculdade de alterar o plano em conformidade e de proceder ao depósito da nova versão, dispondo de prazos para tal. A conclusão das negociações com aprovação unânime do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa requer a intervenção de todos os credores e assinatura destes, bem como documentação que prove a sua aprovação, tudo atestado pelo Administrador Judicial Provisório, sendo o plano remetido ao processo, para homologação ou recusa pelo juiz. Em caso de homologação, o plano de recuperação produz de imediato os seus efeitos. Este plano de recuperação considera-se aprovado quando recolher mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, estando presentes ou representados, pelo menos, um terço dos créditos com direito de voto. Ou se recolher o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade de créditos com direito de voto e destes votos mais de metade correspondentes a créditos não subordinados. Não são consideradas as abstenções e o quórum deliberativo é calculado com base na lista de créditos. O juiz pode computar os créditos que tenham sido impugnados se considerar que há probabilidade séria de tais créditos deverem ser reconhecidos. O plano de recuperação é votado por escrito com intervenção dos credores que pode apenas consistir em aprovação ou rejeição, no prazo não superior a 10 dias, sendo os votos remetidos ao Administrador Judicial Provisório, que os abre junto da empresa e elabora um documento com o resultado da votação. Após a aprovação do plano de recuperação, o juiz decide se homologa ou recusa, nos 10 dias seguintes à receção da documentação comprovativa. A decisão do juiz vincula os credores, mesmo os que não hajam participado nas negociações, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal. 2.8. Conclusão do processo sem acordo conducente à revitalização Quando concluam antecipadamente que não é possível acordo, ou caso tenha sido ultrapassado o prazo de 2 meses das negociações, é encerrado o processo negocial, sendo comunicado tal facto pelo administrador ao processo e publicado no portal Citius. Se a empresa não se encontrar ainda em insolvência, extingue-se o PER e todos os seus efeitos, ou encontrando-se já em insolvência, o encerramento do processo acarreta a insolvência da mesma, devendo ser declarada pelo juiz, nos três dias úteis seguintes, a contar da receção pelo tribunal da comunicação atrás referenciada. O Administrador Judicial Provisório, mediante a informação de que disponha e após ouvir a empresa e os credores, emite parecer se aquela se encontra insolvente e, se assim for, requer a insolvência e o PER é apenso ao respetivo processo. A empresa pode pôr termo ao PER, se entender por conveniente e independentemente de qualquer causa, devendo comunicá-lo ao Administrador Judicial Provisório, ao tribunal e aos credores, por meio de carta registada. O encerramento do processo especial de revitalização sem que haja acordo conducente à revitalização impede a empresa de recorrer ao mesmo no prazo de dois anos.

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SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA ESTUDOS #5


Carla Vieira

2.9. Homologação de acordos extrajudiciais O PER pode ser utilizado como forma de homologação de acordos extrajudiciais de revitalização da empresa. Neste caso, o PER inicia-se pela apresentação de acordo assinado pela empresa e pelos credores, que representam pelo menos a maioria dos votos, este acordo deve ser acompanhado pelos documentos acima mencionados e carece de homologação do acordo por parte do juiz.

ESQUEMA DA TRAMITAÇÃO PROCESSUAL DO PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO

Declaração inicial

Requerimento judicial

Despacho nomeação AJP

Publicação Citius

Comunicação aos credores

Decisão Lista definitiva

Impugnação

Publicação da Lista provisória

Reclamação de créditos

Aprovação unânime

Extinção do PER ou Insolvência

Homologação Negociações

Aprovação não unânime Não aprovação requerente

Não Homologação oficioso

Parecer do AJP credores

Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico

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O Processo Especial De Revitalização

Referências Bibliográficas Resolução de Conselho de Ministros n.º 11/2012, publicada no Diário da República n.º 25, Série I de 03 de fevereiro de 2012. Resolução do Conselho de Ministros n.º 42/2016, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 158 de 18 de Agosto de 2016. SERRA, Catarina - Revitalização – A designação e o misterioso objeto designado. O processo homónimo (PER) e as suas ligações com a insolvência (situação e processo) e com o SIREVE. Em 1.º Congresso de Direito da Insolvência. Almedina, Março de 2013.

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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - Revista n.º 6148/12.1TBBRG.G1.S1 - 6.ª Secção. Fonseca Ramos (Relator) de 25-03-2014. Código da Insolvência e Recuperação de Empresas. 3.ª Edição. Edições Almedina, janeiro de 2014. Decreto-lei 79/2017, de 30 de junho.


DA EVENTUAL RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO SOLICITADOR* BREVE CONTRIBUTO PARA A SUA COMPREENSÃO CLÁUDIO CARDOSO Solicitador

RESUMO Embora já se encontrasse prevista no antigo Código do Processo Tributário, a figura tributária do gestor de bens ou direitos de não residentes permanece pouco conhecida e estudada nos diversos fóruns do mundo jurídico. Na verdade, apesar de parecer como que adormecida no ordenamento jurídico-tributário – calm like a bomb – estamos convictos que o atual e periclitante contexto de produção reiterada de défices orçamentais colocam uma crescente pressão sobre o credor público na consolidação orçamental que, mais cedo ou mais tarde, despertará a sua necessidade (interesse…?) de recorrer a este meio jurídico… Nesta medida e, uma vez que, o artigo 27.º LGT institui um dos regimes de responsabilidade tributária mais gravosos do nosso ordenamento jurídico-tributário,

reputa-se de relevante conveniência: proceder ao correto enquadramento deste sujeito passivo no seio das diferentes titularidades passivas; indagar sobre a verdadeira natureza do presente regime; auscultar a posição da autoridade tributária sobre a matéria e identificar os meios de reação ao dispor do responsável tributário.

* E outros profissionais tais como advogados e contabilistas certificados.

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Da Eventual Responsabilidade Tributária Do solicitador

I. MOTIVAÇÕES

O

solicitador é por definição um procurador, um profissional a quem é confiada a representação dos direitos e a prática de atos em nome e por conta do seu cliente junto das diversas instâncias públicas e privadas, tendo definidos por lei os seus atos próprios1. No exercício das suas competências, o solicitador participa com frequência na formação da relação jurídica intersubjetiva entre a ATA e o contribuinte, seu cliente. Na origem desta relação estão atos tributários2, que não são mais que liquidações de impostos efetuadas aos seus clientes, culminando na constituição de créditos da Fazenda Pública sobre estes. Créditos estes que podem acarretar responsabilidade tributária para o solicitador quando está em causa a representação e prática de atos em nome ou por conta de clientes não residentes em território nacional. Na verdade, a responsabilidade tributária dos gestores de bens ou direitos dos não residentes não tem sido alvo de tratamento doutrinal adequado e o suporte da jurisprudência a esta matéria tem sido exíguo, se não mesmo inexistente. Não obstante, esta matéria reveste-se de particular relevância para a atividade dos solicitadores e outros profissionais como advogados e contabilistas certificados. Relevância revigorada nos dias correntes, onde à diáspora das gerações anteriores acresce uma nova vaga emigratória de jovens e menos jovens, que embora perdendo a qualidade de residentes fiscais, mantêm fortes laços sentimentais e patrimoniais no seu país de origem que carecem de ser geridos, papel exercido não raras vezes por estes profissionais. Também a recente criação de regimes fiscais claramente mais favoráveis destinados à captação de rendimentos de determinados grupos de profissionais estrangeiros3, ou ainda o galopante fenómeno das empresas de domiciliação de entidades estrangeiras, implicarão uma crescente responsabilidade destes profissionais perante o fisco. Devendo estes profissionais ser conhecedores deste regime de responsabilidade, sob pena de poderem vir a ser fiscalmente responsáveis por dívidas tributárias dos seus clientes. Porém, a abordagem desta matéria numa base adequada deve ser feita mediante a utilização de uma estrutura de pensamento e análise suficientemente esclarecedora, que permita identificar claramente as situações envolvidas e com nitidez recortar o respetivo regime jurídico aplicável. Assim, iniciaremos com uma sucinta conceptualização das várias espécies de sujeitos passivos da relação jurídica tributária, dedicando algumas palavras aos institutos da solidariedade e responsabilidade tributária, dando, enfim, particular enfoque à figura e regime do gestor de bens ou direitos de entidades não residentes, que de longe nos parece ser a situação que maior risco e responsabilidade implica para os solicitadores na prossecução da sua atividade.

Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto. Para uma análise e definição de ato tributário aprofundada sugerimos a leitura de: ROCHA, Joaquim Freitas da, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, págs. 14 e ss. 3 Tendo em particular atenção o regime fiscal para o residente não habitual, instituído pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, muito embora residente não habitual, é considerado residente para todos efeitos legais. 1 2

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II. NOÇÕES E ESPÉCIES DE SUJEITOS PASSIVOS Partindo da terminologia usada pelo legislador no artigo 18.º, n.º 3 LGT, sendo também a adotada por José Casalta Nabais4, podemos distinguir três tipos de titularidades passivas na relação tributária: o contribuinte, o devedor do imposto e sujeito passivo5. O contribuinte será a pessoa (singular ou coletiva) relativamente à qual se verifica a manifestação de capacidade contributiva cujo ordenamento jurídico tributário visa tributar, por outras palavras, é a pessoa que consta das normas de incidência pessoal dos códigos fiscais relativamente à qual o facto tributário se verifica. A maioria das vezes, o contribuinte apresenta-se como um devedor fiscal qualificado, na medida em que podemos dizer tratar-se de um contribuinte direto, pois revela-se como um devedor direto (e não indireto, como o substituto tributário), originário (e não derivado, como o sucessor legal) e principal (e não acessório, como o responsável tributário). Concluin- Concluindo, podemos dizer que do, podemos dizer que o contribuinte direto é a pessoa que o contribuinte direto é a pessoa possui uma ligação incindível com o facto tributário, na que possui uma ligação medida em que é quem principalmente e antes de mais incindível com o facto tributário, aufere as vantagens que precisamente se visam tributar. A na medida em que é quem este respeito, pense-se a título de exemplo, no IMT devido principalmente e antes de mais pelo adquirente de um imóvel, no IUC devido pelo proprie- aufere as vantagens que tário de um veículo automóvel ou ainda o que sucede no IRS precisamente se visam tributar. devido pelos salários auferidos por um trabalhador. Todavia, o contribuinte pode, também, revelar-se a título indireto, como sendo os casos em que sofre a subtração patrimonial pela tributação por efeito de repercussão do imposto, sendo disso exemplo clássico os impostos sobre o consumo, nos quais é o consumidor final quem economicamente suporta o imposto. Muito mais se poderia tecer a respeito dos contribuintes indiretos, designadamente da destrinça doutrinal entre contribuinte de direito e contribuinte de facto, contudo não nos cumpre aprofundar mais considerações acerca destes, por extravaso do objeto deste estudo. Por sua banda, o devedor do imposto, será a entidade que estará obrigada a satisfazer, a concretizar a prestação junto do credor tributário. Numa abordagem simplista, poderíamos ser induzidos a concluir que o devedor do imposto resumir-se-ia ao devedor originário ou devedor principal, isto é, aquele que numa primeira linha satisfaz a prestação tributária, no entanto, como adiante veremos, a figura do devedor do imposto abarca os devedores a título indireto (substitutos)6, derivado (sucessores) e acessórios (responsáveis). NABAIS, José Casalta, Direito Fiscal, 8ª Edição, Almedina, 2015, Coimbra, pág. 245 e ss. Joaquim Freitas Rocha, efetua uma distinção conceptual entre sujeito passivo direto e sujeito passivo indireto, subdividindo-se este nos substitutos tributários, sucessores tributários e responsáveis tributários, cfr. ROCHA, Joaquim Freitas da, Apontamentos De Direito Tributário (A Relação Jurídica Tributária), 2012, Braga, AEDUM, pág. 25. 6 Retomando aqui o exemplo do trabalhador que aufere um salário por conta da prestação do seu trabalho e que por isso é o contribuinte, por força do dever de retenção imposto por lei em sede de IRS, o devedor originário do imposto é o substituto fiscal, isto é, a entidade pagadora de rendimentos sujeitos a tributação. É a esta entidade que o Estado exige em primeiro lugar o pagamento do imposto devido e retido. 4 5

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Da Eventual Responsabilidade Tributária Do solicitador

Por fim, o sujeito passivo da relação tributária, é a pessoa que por força da lei está adstrita ao cumprimento de obrigações tributárias, seja à prestação do imposto propriamente dito, seja às demais obrigações acessórias e declarativas. Recorde-se o anterior exemplo relativo aos impostos sobre o consumo segundo o qual, por efeito da repercussão, o consumidor final é o suportador económico do imposto, sem que no entanto se encontre sujeito a qualquer outro tipo obrigação em sede tributária, seja de repercussão legal ou seja de natureza acessória como a entrega de declarações à ATA, pelo que, pela nossa parte, erradamente se andará a atribuir a qualidade de sujeito passivo ao consumidor final, não sendo este mais que um contribuinte a titulo indireto, isto é, o titular de um índice de capacidade contributiva traduzido no consumo que se visa tributar. Entendimento este que nos parece o mais consentâneo com a hermenêutica do artigo 18.º, n.º 4, al. a) LGT cujo texto normativo prescreve que “não é sujeito passivo quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos ermos das leis tributárias”. Casos existem em que o devedor do imposto não coincide com o sujeito passivo, sendo o exemplo mais paradigmático o das sociedades sujeitas ao regime da transparência fiscal7. Segundo este regime, estas sociedades embora sujeitos passivos de IRC, não se consubstanciam em devedoras desse imposto, uma vez que os seus lucros são tributados na esfera patrimonial dos sócios em sede de IRS. Como vemos, a LGT fornece uma definição positiva de sujeito passivo no número 3 do seu artigo 18.º, e uma definição negativa no seu número 4. Com efeito, estabelece este normativo que não é sujeito passivo quem: i) suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias e; ii) deva prestar informações sobre assuntos tributários de terceiros, exibir documentos, emitir laudo em processo administrativo ou judicial ou permitir o acesso a imóveis ou locais de trabalho.

III. SOLIDARIEDADE TRIBUTÁRIA E RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA Verifiquemos agora as situações de pluralidade de sujeitos no polo passivo da relação tributária. Contrariamente ao que sucede no direito civilístico, onde o instituto da responsabilidade possui um amplo campo de abrangência, no âmbito do direito tributário, tendo em conta que nele labora um conceito restrito de responsabilidade, torna-se necessário destrinçar responsabilidade tributária de solidariedade tributária. Pese embora, não raras vezes se faça referência à figura da responsabilidade no sentido impróprio de responsabilidade por dívidas próprias e alheias. Assim, seguindo o critério utilizado pelo legislador ordinário, podem ser distinguidas as seguintes dimensões da responsabilidade (lato sensu): por dívidas próprias (quando está em causa a responsabilidade por dívidas do próprio contribuinte direto a titulo singular, isto é, da pessoa que consta das normas de incidência do imposto em causa, ou no caso do facto tributário ser realizado em conjunto por mais que uma pessoa solidariedade tributária passiva); responsabilidade tributária por dívidas alheias stritu sensu (o 7

Reguladas nos artigos 6.º e 12.º do CIRC e 2.º CIRS.

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terceiro que por força da lei responde pela dívida do contribuinte), que se subdivide em responsabilidade tributária solidária e responsabilidade tributária subsidiária. Esquematicamente: Contribuinte direto singular

Por dívidas próprias

Solidariedade tributária passiva Responsabilidade lato sensu Responsabilidade tributária solidária Por dívidas alheias stritu sensu Responsabilidade tributária subsidiária

A. Da Solidariedade Tributária Quando, no artigo 21.º LGT, o legislador fiscal faz referência à solidariedade tributária passiva, está, ressalvada melhor opinião, a empregar um termo do ramo do direito civil, mais concretamente do Direito das Obrigações, pelo que em obediência ao comando do número 2 do artigo 11º LGT, devemos interpreta-lo e aplica-lo conforme o instituto das obrigações solidárias civis, mormente da solidariedade entre devedores. O CC8 define que uma obrigação é solidária, quando um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir de per si a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles9. Por razões óbvias ocupar-nos-emos apenas da primeira parte da definição: a solidariedade entre devedores. Quando várias pessoas se acham na posição de sujeito passivo de um mesmo vínculo tributário, a lei fiscal considera-os solidariamente obrigados, estipulando o legislador no número 1 do artigo 21.º LGT que, salvo disposição legal em contrário, são solidariamente responsáveis aquelas pessoas relativamente às quais se verifiquem os pressupostos do facto tributário. Nos termos do regime geral da solidariedade dos artigos 518.º e seguintes do CC, o credor tributário pode exigir de um só codevedor a totalidade da prestação tributária. Isto é, de acordo com o artigo 518.º CC, não é lícito ao devedor solidário opor o benefício da divisão10; e, ainda que chame os outros codevedores à demanda, não poderá por isso liberar-se de satisfazer a prestação por inteiro. Todavia, e nestes termos, ao devedor solidário que tenha satisfeito a prestação tributária por inteiro, é-lhe reconhecido o direito de regresso sobre os demais codevedores, relativamente ao montante que excedeu a parte que lhe competia satisfazer, conforme estabelece o artigo 524.º CC.

Artigo 512.º, n.º 1 CC. Outro caso importante em que subsiste o regime da solidariedade passiva é o das obrigações comerciais no qual os co-obrigados são solidários, salva estipulação contrária, cfr. artigo 100.º do Código Comercial (CCom.). 10 Não pode exigir apenas pagar a sua quota-parte. 8 9

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Da Eventual Responsabilidade Tributária Do solicitador

Estamos perante uma situação de pluralidade passiva, cujo facto tributário se verifica ab initio em relação a mais que uma pessoa, significando que a relação tributária já nasce com mais que um sujeito no seu polo passivo. Com efeito, está aqui em causa a responsabilidade originária por divididas tributárias, que por norma é do contribuinte direto. Sendo obrigados solidários aqueles que preencham os pressupostos do facto tributário, isto é, quando os sujeitos tenham realizado conjuntamente o facto tributário ao qual a lei liga o nascimento da obrigação tributária. Pensemos a título ilustrativo no regime da compropriedade de imóveis relativamente ao IMI. Nestes casos, por força do artigo 21.º, n.º 1 LGT, são solidariamente responsáveis pela prestação do imposto, todos os comproprietários do prédio, sem embargo do posterior exercício do direito de regresso, nos termos gerais, por parte comproprietário que efetuou o pagamento do imposto contra os demais comproprietários. De acordo com este normativo resulta que, sempre que os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais que uma pessoa, todas elas são solidariamente responsáveis pelo cumprimento da divida tributária11. Igualmente sucede nas dívidas de IRS quando estão em causa agregados familiares, onde o credor tributário pode exigir o pagamento integral da divida a qualquer um dos cônjuges, quando estes tenham optado pela tributação conjunta. Note-se que os agregados familiares não se configuram como sujeitos passivos de IRS, são somente uma espécie de unidade económico-fiscal de raízes constitucionais12, agregadora dos rendimentos e deduções, admitidas por lei, dos elementos que o constituem nos termos do artigo 13.º CIRS, conservando estes, em qualquer caso, a qualidade de sujeitos passivos. Diferente situação de solidariedade tributária é aquela em que nos termos do número 2 do artigo 21.º LGT, os sócios de sociedades de responsabilidade ilimitada13 (ou entidades sujeitas ao mesmo regime), na liquidação destas, poderem responder solidariamente com estas e entre si, pelos impostos em dívida, sendo que não se vislumbra aqui uma pluralidade passiva ab initio. Relativamente às garantias de defesa, procedimentais ou processuais dos obrigados solidários, serão as mesmas que assistem o contribuinte direto em situação normal: reclamação (artigo 68.º e ss. do CPPT), pedido de revisão de ato tributário (artigo 78.º LGT), pedido de revisão da matéria coletável (artigos 91.º e 92.º LGT), impugnação judicial (artigos 99.º e ss. CPPT) e oposição à execução fiscal (artigo 204.º CPPT) nos termos do artigo 22.º, n.º 5 LGT. 11 Relativamente ao exemplo dado da compropriedade de prédios, temos que relativamente à incidência pessoal, o artigo 8.º, n.º 1 CIMI refere “o imposto é devido pelo proprietário do prédio em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeitar”, assim, relativamente aos prédios em compropriedade o pressuposto do facto tributário, verifica-se em relação a mais que uma pessoa, sendo todas elas solidariamente responsáveis pelo pagamento do imposto. Outro exemplo similar, é o do IUC, que segundo a norma de incidência pessoal do artigo 3.º, n.º 1 CIUC, será sujeito passivo do imposto, as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados. Estando o veículo registado em nome de mais de uma pessoa, o pressuposto do facto tributário é verificado em relação a todas elas, constituindo, assim, causa geradora de solidariedade tributária pelo pagamento do respetivo imposto, eventuais juros e outros encargos legais. 12 Raízes que se prendem com a imposição constitucional de personalização do imposto e salvaguarda da família – artigo 104º, n.º 1 CRP. 13 Visa-se aqui as sociedades de estrato predominantemente pessoal, nomeadamente as sociedades comerciais em nome coletivo reguladas nos artigos 175.º e ss. do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

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B. Da Responsabilidade Tributária (sentido estrito)14 A grosso modo, podemos definir responsabilidade tributária quando alguém, por força da lei, é chamado ao cumprimento de obrigações tributárias alheias, isto é, pela dívida tributária de outra pessoa ou entidade - o contribuinte direto ou como refere Joaquim Freitas da Rocha o sujeito passivo originário - na medida em que esta não se mostra capaz de a satisfazer e, porque o responsável em virtude das suas funções encontra-se em posição de influenciar o seu comportamento ou na incumbência de o fiscalizar de algum modo15. A responsabilidade tributária traduz-se, mutatis mutandis, numa garantia pessoal sob a forma de fiança legal. Uma fiança no sentido em que se acrescenta um património terceiro (do responsável) ao do contribuinte direto, por aquele ser inexistente ou insuficiente para satisfação da prestação tributária e acrescidos, e legal pois esta fiança opera ex lege, isto é, apenas se realiza quando a lei o ditar, e nunca por vontade das partes16. Além do fim de A responsabilidade tributária garantia atribuído por alguns autores, Soares Martinez acres- traduz-se, mutatis mutandis, centa à responsabilidade tributária uma teleologia repressi- numa garantia pessoal sob a va e de punição de irregularidades17. Pela nossa parte, atri- forma de fiança legal. Uma buir à responsabilidade tributária uma intencionalidade fiança no sentido em que se punitiva não nos parece ser o mais coerente com o espirito acrescenta um património legislativo e a sistematização do nosso Ordenamento Jurídi- terceiro (do responsável) ao do co. Em nosso modesto entender, cremos que da repressão e contribuinte direto, por aquele punição de comportamentos ocupa-se a legislação penal e ser inexistente ou insuficiente contraordenacional, e no que ao domínio do direito tributá- para satisfação da prestação rio diz respeito, o RGIT. Acompanhamos pois, a corrente que tributária e acrescidos, e legal defende o cariz garantistico do instituto da responsabilidade pois esta fiança opera ex lege, tributária, aliás, só assim indo-se ao encontro do fim publicis- isto é, apenas se realiza quando ta da relação jurídica tributária, traduzido na perceção de a lei o ditar, e nunca por vontade receita destinada ao financiamento dos bens públicos e à das partes. satisfação das necessidades de natureza coletiva18, sendo parte do motivo maior do Estado: a prossecução do interesse público. A LGT desenha o quadro geral da responsabilidade tributária nos artigos 22.º e 23.º da LGT. No número 1 do artigo 22.º da LGT define-se que o campo de abrangência da responsabilidade tributária cobre a totalidade da dívida tributária, os juros e demais encargos legais. 14 Trata-se de uma verdadeira norma de incidência tributária, pelo que o seu regime está sujeito ao apertado princípio da legalidade tributária e da reserva de lei relativa da Assembleia da República nos termos do artigo 8.º, n.º 2, al. b) LGT e 165.º, n.º 1, al. i) CRP, o que significa que esta matéria só pode ser regulada via lei ou decreto-lei autorizado pela Assembleia da República. 15 VASQUES, Sérgio, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2012, Coimbra, pág. 349 e ss. 16 Convoca-se aqui o princípio subjacente à intransmissibilidade da obrigação tributária decorrente da conjugação do artigo 29.º, n.º 3 com o artigo 36.º, n.º 2, ambos da LGT. 17 MARTINEZ, Pedro Soares, Direito Fiscal, 10.ª Edição, Almedina, 2000, Coimbra, pág. 251. 18 Esta corrente adquire especial sustento na própria conceção de finanças públicas do nosso Estado, um Estado fiscal. Para aprofundamento desta matéria sugerimos a leitura do nosso artigo “A que estado chegamos, que Estado pretendemos?” disponível em: https://solicitadorclaudiocardoso.wordpress.com/2016/08/02/a-que-estado-chegamos-que-estado-pretendemos/.

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Resultando do número 2 do mesmo preceito que, para além dos sujeitos passivos originários19, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas. Sendo apenas solidária quando a lei expressamente o ditar, conforme preceitua o número 4. Questão diferente é a que tange às relações entre os diversos responsáveis tributários, no caso da sua pluralidade, como adiante melhor veremos. No que à responsabilidade tributária subsidiária diz respeito, este é o regime regra. Para esta existir, nos termos dos artigos 23.º, n.º 1 e 159.º da LGT e CPPT respetivamente, o órgão de execução fiscal terá que promover um ato administrativo, que se traduz no despacho que ordena a reversão do processo de execução fiscal primitivamente instaurado contra o sujeito passivo originário, procedendo, assim, à alteração subjetiva da instância. Sublinhamos que estamos perante um ato vinculado, pois a lei não confere um espaço de conformação mediante a atribuição de critérios de oportunidade ou conveniência ao órgão administrativo competente para tal ato. Este ato tem como pressuposto fundamental a inexistência ou fundada insuficiência dos bens penhoráveis do sujeito passivo originário e dos responsáveis solidários para solver a dívida exequenda, sem prejuízo do benefício da excussão20. Saliente-se que o princípio do inquisitório impõe ao Tribunal, sendo caso disso, um dever de aferição aprofundada acerca da insuficiência patrimonial daqueles. Mesmo nos casos de presunção legal de culpa - p.e. artigo 24.º, n.º 1, al. b) LGT – a reversão sempre depende da prévia audição do responsável nos termos do número 4 do artigo 23.º, consubstanciando-se no corolário dos princípios da proteção da confiança e da participação dos contribuintes no procedimento tributário decorrente do artigo 60.º LGT. Parece-nos consensual apontar a dupla natureza subsidiária e executiva, como característica basilar da responsabilidade tributária subsidiária. Subsidiária porque, apenas verificando-se a inexistência ou insuficiência de bens penhoráveis do sujeito passivo originário, poderá o órgão de execução fiscal reverter a execução instaurada originariamente contra aquele, agora contra os responsáveis tributários. A natureza executiva deriva precisamente do que vimos de dizer: o ataque ao património do responsável apenas poderá ser perpetrado por meio da reversão do processo executivo primitivo (previamente instaurado contra o devedor originário), isto é, a efetivação da responsabilidade subsidiária, apesar de determinada administrativamente, tem sempre lugar na instância executiva da cobrança do tributo. Do sobredito podemos concluir que, contrariamente ao que sucede na solidariedade tributária, onde se verifica uma pluralidade passiva a título originário, isto é ab initio, na responsabilidade subsidiária, a pluralidade passiva apenas se verifica ulteriormente, num estágio já patológico da relação jurídica tributária, em que o devedor originário incumpriu no prazo de pagamento voluntário do tributo e, vê por isso contra ele instaurado um processo executivo com vista à sua cobrança coerciva. Revertendo-se posteriormente o mesmo contra o responsável subsidiário, por constatar-se a insuficiência patrimonial do devedor originário para solver divida tributária, conquanto que estejam verificados os demais pressupostos legais. São as pessoas (singulares e coletivas) que constam das normas de incidência dos impostos, isto é, as pessoas titulares da manifestação de capacidade contributiva que o ordenamento jurídico tem em vista tributar, e que em primeira linha deverão suportar o desfalque patrimonial que o imposto implica. P.e.: sociedades anónimas face ao IRC. 20 Artigo 23.º, n.º 2 da LGT e 153.º, n.º 2, al. a) e b) CPPT. 19

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A reversão poderá materializar-se de duas formas, reverter simultaneamente contra todos os responsáveis, o que sucede quando estamos perante responsabilidade subsidiária (entre responsáveis, como impõe o artigo 160.º, n.º 1 CPPT21, ou reverter apenas contra um deles no caso de operar uma responsabilidade de natureza solidária (entre responsáveis). Todavia, há que ter em atenção que estamos diante duas realidades que não se confundem, a subsidiariedade que opera num plano de verticalidade (entre devedor originário e responsável tributário) por um lado, e a conjuntividade ou solidariedade que opera num plano de horizontalidade (entre os diferentes responsáveis tributários) por outro. Uma vez mais, esquematicamente: Devedor Originário/Contribuinte Direto Responsabilidade Subsidiária Vertical Responsável Tributário A Responsável Tributário B Responsabilidade solidária/subsidiária horizontal

No concernente ao plano da responsabilidade horizontal, verifica-se que, inversamente ao que acontece no regime da solidariedade tributária, na responsabilidade tributária subsidiária o artigo 160.º CPPT impõe o dever à ATA de quantificar a participação de cada um dos responsáveis subsidiários na quantia exequenda, pela qual responderão respetivamente. O que convoca a ideia de um vínculo obrigacional da natureza conjuntiva, no sentido em que aqui cada um dos devedores (responsáveis tributários) só está vinculado a prestar ao credor ou credores a sua parte na prestação e cada um dos credores só pode exigir do devedor ou devedores a parte que aquele cabe. A prestação é, assim, realizada por partes, prestando cada um dos devedores (responsáveis tributários) a parte a que se vinculou - o que a lei lhe atribui responsabilidade - e não recebendo cada um dos credores mais do que aquilo que lhe compete22. No âmbito da relação tributária esta consideração apenas fará sentido no caso de existir pluralidade de responsáveis, designadamente subsidiários entre si. Ainda uma breve nota no que toca ao direito de regresso que poderá assistir aos responsáveis subsidiários. Efetivamente, na responsabilidade subsidiária vertical ou solidária horizontal (entre responsáveis) não vislumbramos qualquer contenda ao exercício do direito de regresso nos termos da lei civil contra o devedor originário, posto que tal direito não reveste natureza tributária. Todavia, contrapõem-se aqui razões de utilidade praxiológica ao exercício desse direito, pois se tomarmos em linha de conta que o processo executivo reverteu contra os responsáveis por prévia fundada insuficiência ou inexistência de bens penhoráveis do devedor originário, em termos úteis, apenas fará sentido o exercício deste direito quando exista uma modificação da situação patrimonial do devedor originário. Pelo contrário, o direito de regresso, já se apresentará em termos mais auspiciosos em relação aos Caso em que o órgão de execução fiscal mandá-los-á citar todo. Porém, deve ter-se em atenção que a falta de citação de algum dos responsáveis não prejudica o andamento da execução contra os restantes, cf. artigo 160.º, n.º 2 CPPT. 22 MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de, Direito das Obrigações, Volume I – Introdução. Da Constituição das Obrigações, 11ª Edição, Almedina, 2014, Coimbra, pág. 147. 21

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corresponsáveis solidários no plano horizontal, quando existam, ou no caso da solidariedade tributária, que poderão não estar em situação de insolvência. Por fim, e sem prejuízo de outros, enumeramos alguns casos que a lei tipifica de responsabilidade tributária: a responsabilidade das pessoas que exercem funções de administração, gerência, fiscalização e contabilidade certificada (artigo 24.º LGT); a responsabilidade tributária dos titulares de estabelecimento individual de responsabilidade limitada (artigo 25.º LGT); a responsabilidade dos liquidatários das sociedades (artigo 26.º LGT); a responsabilidade dos gestores de bens e direitos de não residentes (artigo 27.º LGT) e a responsabilidade em caso de substituição tributária (artigo 28.º LGT). B.1 Da Reação à Reversão do Processo de Execução Fiscal A reversão efetiva-se com o chamamento ao processo do responsável subsidiário, mediante citação pessoal deste nos termos do artigo 35.º, n.º 2 CPPT. Mas a questão que ora se impõe é a de saber como poderá o revertido, agora executado, reagir à reversão. Aqui três situações podem ocorrer: i) o revertido discorda do ato tributário em sentido próprio, vulgo a liquidação do tributo, e pretende a sua anulação; ii) o revertido não põe em causa a legalidade da liquidação, outrossim a legalidade do próprio despacho que ordena a reversão; ou, iii) ambas a situações anteriores. À face do artigo 22.º, n.º 5 LGT, temos que: · No caso i), visando-se a anulação ou declaração de nulidade, parcial ou total, ou a sua inexistência, o meio procedimental para tal desiderato é a reclamação graciosa (artigo 68.º CPPT) ou o pedido de revisão do ato tributário (artigo 78.º LGT), e processualmente a impugnação judicial (artigo 99.º CPPT)23; · No caso ii), não se questionando aqui a legalidade do ato tributário, mas sim a legalidade do ato administrativo que ordena a reversão do processo – o despacho de reversão – nomeadamente porque não se verificam os seus pressupostos legais, p.e. ainda não está excutido o património do devedor originário (artigo 23.º, n.º 2 LGT) ou a reversão do processo não foi precedida da audição do responsável (artigos 23.º, n.º 4 e 60.º LGT), entendemos que o meio adequado será a oposição à execução fiscal, argumentando-se para tanto que o revertido é parte ilegítima nesta nos termos da alínea b), do número 1 do artigo 204.º CPPT24; · No caso iii), consubstanciando-se uma situação hibrida das anteriores, deverá o responsável tributário, nos prazos procedimentais e processuais respetivos, reagir por reclamação graciosa ou impugnação judicial (ou ambas) relativamente à legalidade da liquidação do tributo e, paralela e autonomamente por oposição à execução fiscal no que concerne aos pressupostos ou falta deles do ato que ordena a reversão do processo executivo com os fundamentos anteriores.

Sem embargo do princípio do duplo grau de decisão, não incluímos aqui o recurso hierárquico, uma vez que o objetivo deste procedimento consiste não na anulação da liquidação do imposto, pois a mesma não padecerá de qualquer ilegalidade, mas sim a sua revogação enquanto ato administrativo, por razões de mérito e não tanto de legalidade – artigos 66.º e ss. CPPT. 24 É tida como solução mais consensual entre a doutrina, contudo alguns autores, entre eles Joaquim Freitas da Rocha, advogam que o meio adequado de reação ao despacho de reversão é a reclamação para o tribunal tributário nos termos do artigo 276.º e ss. CPPT. 23

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Assim, facilmente se compreende a necessidade da disposição do número 5 do artigo 22.º LGT, no sentido que a notificação ou citação dos responsáveis deve conter os elementos essenciais da liquidação do imposto em divida, pois só sendo conhecedores de tais elementos estarão em condições de reagir à liquidação em termos de igualdade com o devedor originário.

IV. DA RESPONSABILIDADE DOS GESTORES DE BENS OU DIREITOS DE NÃO RESIDENTES E O SOLICITADOR Como já referido, o regime da responsabilidade dos gestores de bens ou direitos de não residentes é suscetível de implicar obrigações tributárias para os solicitadores na prossecução das suas competências legais. Com efeito, no número 1 do artigo 27.º da LGT estabelece-se ipsis verbis que, “os gestores de bens ou direitos de não residentes sem estabelecimento estável em território português são solidariamente responsáveis em relação a estes e entre si por todas as contribuições e impostos daqueles em relação ao exercício do seu cargo”. Desde logo verifica-se a presença de diferentes conceitos no corpo normativo em análise, os quais devem ser rigorosamente recortados e explanados. A. Solidariedade Passiva ou Responsabilidade Solidária em sentido estrito? Embora no plano processual25 esta questão pareça não implicar efeitos de monta para os solicitadores, ao menos para a compreensão e estruturação de ideias torna-se relevante determinar qual o regime aqui em causa. Os que, com algum hábito, lidam com estas matérias certamente já constataram que os termos “solidariedade” ou “solidariamente responsáveis” são frequentemente empregues pelo legislador com alguma ambiguidade e pouco rigor técnico-jurídico. Em matéria de gestores de bens ou direitos de não residentes o artigo 27.º, n.º 1 LGT dispõe que estes “são solidariamente responsáveis…”. Pelo que, à partida, somos levados em crer que este normativo insere-se no instituto da responsabilidade tributária em sentido estrito, mais concretamente na responsabilidade solidária. Mas, por outro lado, da análise da redação do artigo 21.º, n.º 1 do mesmo diploma, verifica-se que este dispõe gramaticalmente de igual forma (“… são solidariamente responsáveis”). Todavia, como já sabemos, o número 1 do artigo 21.º LGT não diz respeito à responsabilidade solidária em sentido estrito, outrossim à solidariedade passiva, como referem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, trata-se de uma solidariedade em sentido técnico ou jurídico caracterizada pela solidariedade de sujeitos e identidade de prestação26, na medida que os vários sujeitos do polo passivo da relação tributária realizaram conjuntamente o facto tributário ao qual a lei liga o nascimento da obrigação tributária.

25 Pois no plano procedimental, nomeadamente na notificação da liquidação do imposto sua caducidade e prescrição da obrigação, poderão surgir diferenças de regime mais significativas. 26 LEITE DE CAMPOS, Diogo, SILVA RODIRGUES, Benjamim e LOPES DE SOUSA, Jorge, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4ª Edição, Encontro da Escrita Editora, 2012, Lisboa, pág.212.

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Subsiste, portanto, a dúvida sobre qual a natureza do regime contido naquele primeiro normativo, se o do instituto da solidariedade tributária ou se o da responsabilidade tributária solidária, uma que vez que o legislador expressou-se de igual forma em ambos os normativos – “solidariamente responsáveis” – solicitamos o auxílio da doutrina para indagar sobre a verdadeira génese da solidariedade do regime previsto no artigo 27.º LGT. Pedro Soares Martinez27 ensina que, quando várias pessoas se acham na posição de sujeito passivo de um mesmo vínculo tributário, a lei fiscal considera-as solidariamente obrigadas. Complementando que, no regime da solidariedade passiva, quem realiza a prestação é igualmente sujeito passivo originário, contrariamente ao que sucede na responsabilidade solidária, em que de modo algum o responsável assume a qualidade de sujeito passivo originário. Ora, não se tratando o gestor de um sujeito passivo originário, este autor parece induzir que o regime em análise insere-se no instituto da responsabilidade tributária solidária. Sérgio Vasquez28 prossegue no mesmo entendimento, acrescentando que a responsabilidade “verifica-se logo que se dê a falta de pagamento de “contribuições e impostos” no decurso das suas funções”, isto é, o gestor apenas será “acionado” para o cumprimento da prestação tributária em caso de incumprimento do prazo de pagamento voluntário pelo responsável originário – a entidade não residente sem estabelecimento estável. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa29, nos seus comentários ao artigo 21.º LGT, defendem que, para que haja solidariedade tributária, não basta que os sujeitos estejam obrigados por imposição da lei, mas também tenham realizado conjuntamente o facto tributário do qual nasce a obrigação tributária, sendo que esta característica também serve para diferenciar a solidariedade passiva da responsabilidade solidária. Em abono desta ideia os autores afirmam que o estatuído no artigo 27.º LGT trata-se de responsabilidade solidária. Em sentido contrário, José Casalta Nabais30 e Domingos Pereira de Sousa31, advogam que a responsabilidade decorrente do artigo 27.º LGT enquadra-se no âmbito da solidariedade tributária passiva, isto é, consubstancia-se numa obrigação solidária pura nos termos dos artigos 512.º e seguinte do CC, como vimos no ponto A do Capitulo III. Já por sua vez, Joaquim Freitas da Rocha32, defende que a solidariedade tributária não deve ser confundida com responsabilidade solidária, pois nesta última, a pluralidade passiva não se verifica ab initio desde o momento da constituição da relação tributária, mas apenas surge numa fase posterior do seu desenvolvimento, isto é, apenas sucede após o decurso do prazo para pagamento voluntário pelo contribuinte direto. Pela nossa modesta parte, e por ora, tendemos a acompanhar a doutrina que vai no sentido de conferir natureza de responsabilidade solidária aos gestores, porém entendemos que algo mais se poderá argumentar em seu favor. Socorremo-nos, para tanto, da hermenêutica jurídica e das ferramentas dispostas pelo artigo 9.º CC, designadamente do elemento interpretativo lógico-sistemático, segundo o MARTINEZ, Pedro Soares, Op. Cit., pág. 245. VASQUES, Sérgio, Op. Cit., pág. 357. 29 LEITE DE CAMPOS, Diogo, SILVA RODRIGUES, Benjamim e LOPES DE SOUSA, Jorge, Op. Cit., pág. 212. 30 NABAIS, José Casalta, Op. Cit, pág. 261. 31 SOUSA, Domingos Pereira de, Direito Fiscal e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2013, Coimbra, pág. 215. 32 ROCHA, Joaquim Freitas da, Op. Cit., pág. 29. 27 28

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qual a norma a interpretar não existe isoladamente, pelo que as leis e normas interpretam-se umas às outras, na medida em que o Direito é um sistema de normas correlacionadas entre si. Cabendo, assim, ao intérprete determinar o sentido e alcance da lei tendo em conta a unicidade de todo o sistema jurídico, mormente do diploma legal que comporta a norma. Ora, a norma em apreço encontra-se ínsita na LGT, no Titulo II da Relação Jurídica Tributária, e dentro deste no Capitulo I que regula os sujeitos da relação jurídica tributária. Partindo do princípio que na estruturação e sistematização normativa da LGT o legislador pautou-se por uma base de critérios de ordenação lógica e coerente, segundo a qual os normativos com maior grau de correlação entre si foram integrados no mesmo título e capitulo, secção ou subsecção consoante o caso, será, no mínimo forçada, a interpretação que atribui a qualidade de solidariedade tributária passiva aos gestores referidos no artigo 27.º LGT. Se bem atentarmos, o capitulo I da LGT começa por definir a personalidade tributária (artigo 15.º), seguidamente a capacidade tributária (artigo 16.º) por estar estreitamente correlacionada com a aquela, seguindo por diante até ao artigo 21.º que se ocupa da solidariedade tributária passiva. Ora, se a vontade do legislador fosse a de conferir natureza de solidariedade tributária passiva à figura do gestor do artigo 27.º, seria incongruente para com a unicidade e sistematização do diploma, a regulação deste regime após do enquadramento normativo geral da responsabilidade tributária dos artigos 22.º e 23.º, e conjuntamente com situações tipificadas de responsabilidade subsidiária e solidária dos artigos 24.º a 28.º da LGT. Destarte, consideramos que a localização de tal norma não é inocente, porquanto, traduz o nexo intencional do legislador de tratar a situação prevista no artigo 27.º LGT como responsabilidade solidária por regula-la juntamente com casos de idêntica natureza. Ainda no que a esta matéria diz respeito, consideramos que a redação normativa do artigo 21.º da LGT padece de alguma imprecisão técnica, na medida em que quando se prescreve como estatuição da norma “solidariamente responsáveis”, o mais adequado seria estatuir-se “solidariamente obrigados”, limitando-se desta forma as dificuldades de interpretação e procedendo-se a uma correta separação dos regimes. Por fim, deixamos em aberto a discussão sobre se a natureza da responsabilidade em apreço pode, exclusive, ser subsidiária33 e não solidária, baseando-se para tanto na linguística utilizada pelo legislador no número 4 do artigo 22.º LGT. Interrogamo-nos se a utilização do advérbio “apenas” no corpo do normativo in fine faz subsumir a ideia de que a responsabilidade por dívidas de outrem é sempre subsidiária, podendo ser solidária, unicamente no respeitante às relações horizontais entre os diferentes responsáveis e quando legalmente prevista. Trata-se de uma abordagem muito particular e inovadora desta matéria face às demais, que no presente contexto não iremos aprofundar, remetendo-se maiores considerações para oportunidade futura. B. Entidade Não Residente Conforme se retira do preceito e respetiva epígrafe, estão expressamente excluídos os casos de gestão de bens ou direitos de pessoas singulares e de pessoas coletivas, que sejam Como parece sugerir: ROCHA, Joaquim Freitas da, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2008, Coimbra, pág. 271.

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residentes em território nacional. Trata-se de uma verdadeira norma de incidência que visa a responsabilização das pessoas que efetuem a gestão de bens ou direitos, de entidades residentes, tendo como escopo, por um lado, as funções que são acometidas a estas pessoas e, por outro, a especial relação que possuem com as entidades não residentes por si geridas em território português, uma vez que aquelas agem como verdadeiros intermediárias destes perante ATA. C. O Estabelecimento Estável de Empresas e Pessoas Coletivas A noção de estabelecimento estável poderá variar de acordo com o código do tributo em dívida ou com eventual convenção de dupla tributação, sendo caso disso. Aplica-se, portanto, a noção de estabelecimento estável da lei do tributo em causa, salvo se esta seja substituída por uma noção presente na convenção de dupla tributação entre Portugal e o Estado em causa. Todavia, a noção mais trivial e frequentemente aplicada é aquela que nos é dada pelo artigo 5.º, n.º 1 CIRC, segundo o qual, considera-se estabelecimento estável qualquer instalação fixa ou representação permanente através das quais seja exercida uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola. Um dos pressupostos de facto será precisamente a inexistência de estabelecimento estável do sujeito passivo originário. D. O Conceito de Gestor de Bens ou Direitos e Figuras Afins O conceito de gestor de bens ou direitos é um conceito estritamente tributário que se distingue do conceito civilístico do gestor de negócios34 e da figura do representante fiscal35. Apesar de à luz do artigo 17.º LGT, ser conferida ao gestor de negócios a possibilidade da prática de atos em matéria tributária que não sejam de natureza puramente pessoal36, a sua noção não se pode confundir com a de gestor de bens ou direitos do artigo 27.º. Na verdade, do artigo 464.º CC retiram-se tês pressupostos essenciais da gestão de negócios: i) assunção da direção de negócio alheio, ii) no interesse e por conta do dono do negócio, e iii) falta de autorização do dono do negócio. Constata-se que o terceiro e derradeiro pressuposto da gestão de negócios não se verifica relativamente ao gestor de bens ou direitos – a falta de autorização do dono do negócio. Sendo que não se pode recorrer a este instituto civil sempre que o gestor estiver autorizado ou vinculado por negócio jurídico a exercer a sua intervenção, p.e. procuração, mandato ou prestação de serviços37. Dita falta de autorização choca com a definição do artigo 27.º, n.º 2 LGT da gestão de bens ou direitos na medida em que é condito sine qua non a incumbência, por qualquer meio, da direção de negócios da entidade não residente, existindo neste campo clara incomunicabilidade destas figuras. No limite, pode-se dizer que existe um apelo às regras da gestão de negócios, no que diz respeito à direção de negócio alheio no interesse e por conta do respetivo dono (ente não residente), e um apelo às regras do Artigo 464.º CC. Figura prevista no artigo 19º., n.º 6 LGT, a qual não iremos abordar uma vez que a disposição conferidora de responsabilidade tributária a estas pessoas (número 3 do artigo 27.º LGT) foi revogada pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro. 36 A citação é um exemplo de ato puramente pessoal não praticável pelo gestor de negócios. 37 MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de, Op. Cit., pág. 442. 34 35

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mandato38, na exata medida em que uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra. Mas, tal factologia permite-nos afirmar com segurança que o gestor de bens ou direitos consubstancia-se numa figura híbrida incorporante das características da gestão de negócios e do mandato? Temos dúvidas…É uma questão que, pelas contingências de extensibilidade do estudo, procuraremos responder noutra sede. Por outro lado, ao represente fiscal incumbe, sobretudo e apenas, garantir o cumprimento das obrigações acessórias, previstas nos códigos fiscais. Este poderá, contudo, desempenhar simultaneamente a direção de negócios de entidade não residente, pelo que nesse e somente nesse caso, poderá ser-lhe assacada responsabilidade solidária relativamente à entidade não residente, não como representante fiscal mas na qualidade de gestor de bens ou direitos, verificados que estejam os demais pressupostos legais do presente preceito39. O número 2 do artigo 27.º LGT encarrega-se da definição de gestores de bens ou direitos, considerando-os todas aquelas pessoas singulares ou coletivas que assumam ou Os que, com algum hábito, lidam sejam incumbidas da direção de negócios de entidade não com estas matérias certamente residente em território português, agindo no interesse e por já constataram que os termos conta dessa entidade. Desvela-se claro que a direção de “solidariedade” ou negócios configura-se pressuposto central ao preenchimen- “solidariamente responsáveis” to da figura do gestor de bens ou direitos, não se compade- são frequentemente empregues cendo esta com uma qualquer gestão de cariz meramente pelo legislador com alguma ordinário, nomeadamente gestão de negócios ou mera ambiguidade e pouco rigor representação fiscal. técnico-jurídico. E. A Direção de Negócios Para que se possa falar em direção de negócios com propriedade, o gestor de bens ou direitos tem de possuir autonomia na formação da vontade da entidade não residente e na determinação dos atos por ela praticados. Dito de outro modo, nos casos em que o solicitador se limite a executar ordens e instruções do cliente não residente, sem qualquer influência autónoma na constituição do facto tributário, não estamos perante uma direção de negócios, mas, e como defende Suzana Costa40, perante o cumprimento de instruções emitidas por terceiros. De igual modo, o mandato judicial ou tributário41, não é suscetível de consubstanciar per si qualquer responsabilidade tributária, subsidiária ou solidária. Aliás, neste campo nunca se poderá subsumir a figura da gestão de bens ou direitos, uma vez que o que aqui está em causa são atos próprios do solicitador nos termos da Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, e não de gestão. Artigos 1157.º e seguintes CC. FERNANDES PIRES, José Maria, BULCÃO, Gonçalo, VIDAL, José Ramos, MENEZES, Maria João, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, Almedina, 2015, Coimbra, pág. 252. 40 FERNANDES DA COSTA, Suzana, O conceito fiscal de gestor de bens e direitos – e a sua (não aplicação) aos advogados e solicitadores que outorguem escritura em representação de clientes – a propósito do Ofício Circulado n. 60.084, de 28/11/2011, Maia Jurídica, 2011, Maia. 41 Artigo 5.º CPPT. 38 39

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Ademais, entendemos, que para existir direção de negócios na verdadeira aceção do artigo 27.º LGT, esta deverá compreender um conjunto material de atos de gestão42 e não a prática isolada de um único ato de gestão, como a outorga de uma escritura pública em representação de um cliente não residente. Isto porque, a prática de um único e isolado ato de gestão, não é consentânea com a ideia de uma direção efetiva, consistente e reiterada dos bens ou direitos da entidade não residente, conforme julgamos ser o espírito do preceito. Igualmente, e por maioria de razão, a assinatura e entrega de declarações de rendimentos pelo solicitador em representação da entidade não residente não poderá constituir facto gerador de responsabilidade solidária para aquele43, quanto muito poderá configurar-se num caso de gestão de negócios previsto pelo artigo 17.º LGT. A este respeito, a (ainda) DGCI, a pedido do então Conselho Regional do Norte da Câmara dos Solicitadores, pronunciou-se no sentido de que “o mandato não confere, em regra, qualquer responsabilidade nem solidária nem subsidiária ao mandatário pelo pagamento do imposto, mesmo que a sua nomeação seja obrigatória, porque ele realiza actos em nome e por conta do mandante, na esfera jurídica do qual se produzem os efeitos dos actos praticados”. F. A Posição da ATA Ciente da dificuldade da determinação do alcance do número 2 do artigo 27.º LGT, bem como da sua relevância para a atividade profissional dos advogados (e consequentemente solicitadores), a Direção de Serviços de Justiça Tributária da então DGSI emitiu o Ofício-Circulado n.º 60.084, de 28-11-2011, para esclarecer em que situações esta responsabilidade pode ser assacada a estes profissionais. Saliente-se que ao abrigo dos artigos 68.º-A e 56.º LGT e CPPT respetivamente, este ofício-circulado trata-se de um regulamento interno de natureza interpretativa, desprovido de eficácia geral e abstrata na aceção de atos normativos do artigo 112.º da CRP, pelo que, sendo vinculativo para a ATA, não é obrigatório para sujeitos passivos diretos e indiretos, pese embora possa ser invocado por estes, designadamente pelos solicitadores que sejam alvo de efetivação de responsabilidade solidária. Destacamos as seguintes traves mestres do dito ofício-circulado: · A consideração da figura do gestor de bens ou direitos como específica do direito tributário, sendo distinta de outras figuras jurídicas aparentemente afins, como acima verificamos. · O entendimento que deve ser efetuada uma análise casuística do conteúdo do mandato em cada caso em concreto, por forma a determinar se o mandatário possui a tal liberdade de atuação suficiente para que se possa concluir pela sua responsabilidade solidária na qualidade de gestor de bens ou direitos da entidade não residente sua representada. · O aclaramento de que o número 2 do artigo 27.º LGT não abarca o mandato judicial respeitante à prestação de serviços forenses, mesmo que em causas fiscais, muito menos a entrega da declaração de rendimentos, seja na qualidade de gestor de negócios, de mandatário ou procurador. · Determinação de que a intervenção mediante procuração ou mandato representativo, por exemplo em escritura pública de compra e venda de imóvel poderá constituir facto gerador 42 43

FERNANDES DA COSTA, Suzana, Op. Cit. A este respeito vide Conselho Geral da Ordem dos Advogados, Parecer n.º E-22/05 de 17/02/2006.

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de responsabilidade tributária solidária quanto ao cumprimento dos deveres de pagamento do imposto e de salvaguardas dos meios financeiros necessários para o efeito. Naturalmente que o que aqui está em causa é a responsabilidade pela mais-valia imobiliária realizada pelo alienante não residente tributável em sede de IRS nos termos do artigo 10.º CIRS, uma vez que, que quanto ao IMT e IS devidos pela transmissão de propriedade do prédio, têm os mesmos de ser liquidados e pagos previamente à titulação do negócio jurídico pelo adquirente em obediência ao preceituado nos artigos 22.º e 36.º CIMT e 21.º, n.º 4 CIS. · Sanciona-se ainda que, neste caso a ATA deve atender ao teor e limites da procuração ou mandato em concreto conferido pelos sujeitos passivos não residentes ao advogado (e solicitador), podendo esta em caso de dúvida, socorrer-se dos elementos complementares de que possa dispor para o seu esclarecimento e aferição do enquadramento legal aplicável. · Todavia, a ATA teve a virtude de fixar que a responsabilidade solidária dos gestores de bens ou direitos circunscreve-se ao imposto resultante dos atos praticados por estes no exercido do seu cargo. Pense-se no exemplo relativo à mais-valia imobiliária em sede de IRS, se o solicitador interveio uma única vez na formalização de negócio jurídico translativo em representação do seu cliente não residente, mesmo que investido de amplos e autónomos poderes de administração e gestão, apenas poderá ser solidariamente responsável pelo imposto em dívida respeitante à intervenção concretizada, não lhe podendo ser assacada responsabilidade pelo pagamento de outros tributos em dívida, cuja constituição dos factos tributários não logrou participar. · Por fim, mas não menos relevante, entende a ATA que o ato de liquidação deve ser notificado ao responsável solidário nos mesmos termos do devedor principal ou contribuinte direto, com indicação de que lhe aproveitam os mesmos meios de defesa. Do teor do presente ofício-circulado, parece retirar-se a ideia que a ATA pode lançar mão do artigo 27.º LGT, quando o solicitador, p.e., intervenha e outorgue na titulação de negócio jurídico de compra e venda de imóvel mediante procuração em representação do seu cliente não residente. Depreendendo-se ainda que nestes casos, a ATA deverá aferir do conteúdo da procuração emitida em favor do solicitador, podendo para tanto requerer a sua junção a este44 ou outras entidades, em caso de não estar na sua posse. Sem a junção aos autos e análise do teor da procuração, entendemos estar perante um vício de fundamentação por um lado, e uma deficiente instrução preparatória da execução que será movida contra o solicitador por outro, tendo-se esta por insuficiente, por incumprimento da demonstração dos pressupostos de facto do número 2 do artigo 27.º LGT, mormente a falta de comprovação do exercício efetivo da direção de negócios do cliente não residente. Ademais, julgamos que a mera existência de procuração com amplos e autónomos poderes de representação de entidade não residente sem que seja acompanhada do efetivo O sigilo profissional destes profissionais terá uma palavra importante a dizer nesta sede, nomeadamente nos termos do artigo 64.º, n.º 2 LGT e dos artigos 127.º e 141.º EOSAE.

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Da Eventual Responsabilidade Tributária Do solicitador

exercício dos respetivos poderes não se pode considerar condição bastante para o preenchimento da responsabilidade do artigo 27.º LGT. Na verdade, o facto gerador desta responsabilidade tributária assenta num critério substancial que se subsume na assunção e exercício de uma direção de negócios efetiva e factual e não tanto no critério meramente formal da existência documental de procuração atribuidora de tais poderes. Contudo, a existência formal e física de tal instrumento constituirá importante elemento de prova documental da referida direção de negócios nos termos da conjugação do artigo 342.º, n.º 1 CC com o artigo 74.º, n.º 1 LGT, pelo que, sempre que exista, deverá a mesma ser junta ao processo e o seu conteúdo analisado, conforme referido. Isto é, o ónus de prova da demonstração dos pressupostos de facto desta responsabilidade impende sobre a ATA enquanto exequente. A este respeito convoca-se o raciocínio relativo à prova da existência de gerência de facto no âmbito da responsabilidade subsidiária prevista no artigo 24.º, n.º 1 LGT, segundo o qual compete à ATA investigar e recolher os elementos comprovativos da gerência de facto, tais como cheques assinados pelo gerente de facto, movimentação de contas bancárias da responsável originária, entre outros. Se a ATA não fundamentar de facto e de direito os motivos sobre os quais entendeu instaurar a execução contra o responsável tributário, não poderá mais tarde, em sede de oposição, o tribunal substituir-se à ATA nesse dever de fundamentação. G. Reação à efetivação da responsabilidade solidária Em termos gerais, tal como sucede quanto à responsabilidade subsidiária, o número 5 do artigo 22.º LGT rege que as pessoas solidariamente responsáveis poderão reclamar ou impugnar a dívida cuja responsabilidade lhes for atribuída nos mesmos termos do devedor principal, devendo, para esse efeito, a notificação ou citação conter os elementos essenciais da sua liquidação, incluindo a fundamentação nos termos legais, para os mesmos efeitos que abordamos no ponto B.1 do Capítulo III, com as devidas adaptações. Em termos mais especificados, sublinhamos que o meio processual para discutir as questões tratadas no presente capítulo, será a oposição45 à execução fiscal a deduzir no prazo de 30 dias a contar da citação, mediante a qual o solicitador (executado) por entendido pela ATA como gestor de bens ou direitos, deverá invocar a sua ilegitimidade processual nos termos do artigo 204.º, n.º 1, al. b) CPPT, por não se encontrarem verificados os pressupostos de facto da responsabilidade prevista no artigo 27.º LGT, nomeadamente o incumprimento do dever de alegação e prova da existência da direção de negócios efetiva e de facto de entidade não residente nos termos supra analisados. Para além deste fundamento, nos raros tratamentos jurisprudenciais desta matéria, tem a jurisprudência46 entendido que, no caso do responsável solidário ter sido citado, sem que previamente tenha sido notificado da própria liquidação do tributo em falta, poder-se-á deduzir oposição à execução também com base na al. i), do número 1, do artigo 204.º CPPT.

Como meio judicial implica a prévia liquidação da taxa de justiça inicial, ou dedução do incidente de apoio judiciário, sendo que em ambos os caso terá o executado de prestar garantia idónea nos termos do artigo 199.º CPPT para suspensão da execução, ou requerer dispensa de prestação de garantia ao abrigo do artigo 52.º, n.º 4 LGT e 170.º CPPT. 46 Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo n.º 1880/03, de 17/03/2004. 45

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Saliente-se ainda que, pelo menos em princípio, aqui não haverá lugar a audição prévia à luz dos artigos 23.º, n.º 4 e 60.º LGT, uma vez que, nos casos de responsabilidade solidária, o responsável, apesar de não se configurar como o contribuinte direto, é executado originariamente nos mesmos termos deste.

V. CONCLUSÕES 1. Existem várias espécies de sujeitos passivos, nomeadamente o contribuinte direto ou indireto, o devedor do imposto e o sujeito passivo propriamente dito. 2. Situações existem em que, além do contribuinte direto, outras pessoas poderão ser responsáveis pela prestação do tributo, considerando-se essas pessoas sujeitos passivos, nos casos de responsabilidade tributária previstos na lei. 3. A solidariedade tributária não se confunde com a responsabilidade tributária. Está-se perante a primeira quando o facto tributário se verifica em relação a mais que uma pessoa ab initio desde a constituição da relação tributária e perante a segunda quando a pluralidade passiva se verifica num estágio ulterior da dita relação, nomeadamente quando contribuinte direto incumpriu no prazo para pagamento voluntário do tributo. 4. A responsabilidade tributária é, em regra, subsidiária face ao contribuinte direto, e apenas solidária quando a lei o determine. 5. O meio processual adequado para reagir ao despacho que ordena a reversão da execução fiscal contra o responsável subsidiário é a oposição à execução fiscal. 6. Em princípio, a natureza da responsabilidade dos gestores de bens ou direitos de entidades não residentes é solidária face a estas e entre si. 7. Estão expressamente excluídos os casos de gestão de bens ou direitos de pessoas singulares e de pessoas coletivas, que sejam residentes em território nacional. 8. A figura do gestor de bens ou direitos é um conceito estritamente tributário, e distinto de outras figuras como a gestão de negócios ou representação fiscal. 9. O exercício de uma direção de negócios de facto e efetiva por conta e no interesse da entidade não residente é condição central para que se verifique o preenchimento da figura do gestor de bens ou direitos, no entanto, dita direção de negócios não se subsume na mera entrega da declaração de rendimentos de tal entidade, ou na simples existência de procuração conferidora de amplos e autónomos poderes de gestão ao solicitador, sendo necessário que o exercício dos mesmos seja efetivo. Para verificação da direção de negócios exige-se uma autonomia do gestor de bens ou direitos na formação da vontade da entidade não residente conjuntamente com a prática de atos materiais de gestão. 10. Compete à ATA a demonstração da verificação dos pressupostos de facto do artigo 27.º LGT. 11. Como meio de defesa, o solicitador, executado enquanto responsável solidário, poderá apresentar reclamação graciosa ou impugnação relativamente à liquidação e deduzir oposição à execução fiscal. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico

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CONSIDERAÇÕES SUBSTANTIVAS E PROCESSUAIS EM TORNO DA DESERDAÇÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVO DIANA LEIRAS Docente no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave Mestre em Solicitadoria, Doutoranda em Direito

RESUMO O autor da sucessão pode ter deserdado o seu cônjuge (à semelhança de qualquer outro herdeiro legitimário), privando-o da sua legítima, caso este tenha adotado comportamento que a lei considera reprovável o suficiente para justificar a deserdação (que se efetiva através de testamento). Nessa hipótese produzem-se efeitos substantivos de relevo: pode funcionar o direito de acrescer a favor dos descendentes ou ascendentes chamados; em última instância o valor da legítima que seria atribuído ao cônjuge sobrevivo reverte a favor dos herdeiros legítimos. Os efeitos da deserdação estendem-se à sucessão legítima, pelo que o cônjuge sobrevivo deserdado também não sucede como herdeiro legítimo. A nível processual, a deserdação do cônjuge sobrevivo determina, em princípio, a perda da sua legitimidade para requerer e intervir no processo de inventário, como parte

principal, em todos os atos e termos do processo. Só assim não será, se o cônjuge sobrevivo, embora sem capacidade sucessória por força da deserdação for cônjuge meeiro, caso em que importa proceder à separação das meações e fazer adjudicações de bens a favor daquele e da herança a partilhar. A deserdação do cônjuge sobrevivo pode gerar a dedução de incidentes, que constituem procedimentos anómalos ao processo, que o atrasam no alcance da sua finalidade – a realização da partilha hereditária.

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I. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

O

cônjuge sobrevivo integra o elenco dos herdeiros legitimários, conjuntamente com os descendentes e ascendentes (artigo 2157.º Código Civil1), sucedendo na primeira ou na segunda classe de sucessíveis: na primeira, se concorre com descendentes ou sozinho; na segunda, se concorre com ascendentes [artigo 2133.º, n.º 1, als a) e b) e n.º 2 2]. Tendo lugar a sucessão legítima, o que se verifica quando o de cujos não dispôs válida e eficazmente de toda a sua quota disponível (artigo 2131.º), o cônjuge sobrevivo é também chamado a suceder nesta modalidade de sucessão – como herdeiro legítimo3. Pode, ainda, ser chamado a suceder no âmbito da sucessão voluntária –sucessão testamentária ou contratual – se o falecido manifestou vontade nesse sentido, através da outorga de testamento ou de pacto sucessório4. Contudo, para que o cônjuge supérstite efetivamente venha a receber a sua legítima tem de cumprir cumulativamente determinados pressupostos – os chamados pressupostos da vocação sucessória. Preceitua o artigo 2032.º, n.º 1 que, “aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia de sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade”. Daqui se extrai que são três esses pressupostos: 1) prevalência na hierarquia de sucessíveis, 2) existência do chamado antes e após o óbito, e 3) capacidade sucessória5. Em matéria de capacidade sucessória vale o princípio geral que rege toda a matéria da capacidade jurídica, isto é, a capacidade é a regra, a incapacidade a exceção. Assim, são capazes de suceder todas as pessoas singulares e coletivas que a lei não declare como incapazes (artigo 2033.º). A deserdação (artigos 2166.º e 2167.º) e a indignidade (artigos 2034.º a 2038.º) constituem causas de incapacidade sucessória. Neste estudo, tal como decorre do seu título, iremos dedicar-nos ao estudo da deserdação do cônjuge sobrevivo, tendo em conta os seus efeitos não só no âmbito do direito substantivo – direito sucessório – , mas também no âmbito do direito adjetivo, ou seja, também analisando os efeitos sentidos ao nível do processo de inventário.

II. DESERDAÇÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVO Entende-se por deserdação o ato (testamentário) pelo qual o autor da sucessão priva da legítima o herdeiro legitimário, indicando expressamente a causa dessa privação. Esta é a noção que flui do texto do artigo 2166.º, e da qual extraímos, em primeiro lugar, que o

Diploma a que pertencerão todos preceitos indicados no presente artigo sem menção da respetiva fonte. Esta norma pertence ao regime da sucessão legítima, mas é aplicável, assim como os artigos subsequentes, à sucessão legitimária por força da remissão constante do artigo 2157.º. Estabelece este preceito que, “São herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima”. 3 Nos mesmos termos referenciados [artigo 2133.º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 2]. 4 A liberdade de disposição está limitada pelo sistema de legítimas. Os pactos sucessórios não são, no nosso ordenamento jurídico, livremente admitidos (artigo 2028.º). 5 Capelo de Sousa, R., Lições de Direito das Sucessões, 4.a ed. (reimpressão), vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 282. 1 2

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cônjuge supérstite deserdado fica privado do seu direito legitimário6 e, em segundo lugar, que o autor da sucessão não o pode deserdar arbitrariamente e por simples manifestação de vontade, tendo de o fazer, necessariamente, mediante manifestação expressa em testamento e com invocação do fundamento justificativo da deserdação. Na medida em que a incapacidade por deserdação não vigora antes da manifestação de vontade pelo autor da sucessão7, essa vontade assume um relevante papel: a lei delega no autor da sucessão, exclusivamente, o juízo sobre se o seu cônjuge (ou qualquer outro herdeiro legitimário), apesar de uma certa gravidade das faltas cometidas, deverá ser ou não excluído da sucessão legitimária, o que terá de ser feito através de uma forma solene e específica (o testamento) e com expressa declaração de causa8. Contudo, ainda que a deserdação não opere automaticamente, pela simples verificação de uma das ocorrências do artigo 2166.º 9, concordamos com Branca Cruz quando afirma que, “tendo no testamento a sua fonte necessária, a deserdação opera automaticamente, a partir da abertura da sucessão”, mesmo que o testamento deserdatório só venha a ser “conhecido posteriormente”10. O elenco (taxativo) dos fundamentos que justificam a deserdação consta das várias alíneas que integram o n.º 1 do artigo 2166.º, sendo que, como alerta França Pitão, há que fazer uma restrição importante na lei quando se está a analisar o caso específico do cônjuge sobrevivo: eliminar a referência que em qualquer das alíneas se faz à pessoa do cônjuge do autor da sucessão11, uma vez que neste caso foi ele próprio que praticou o ato que justifica a sua deserdação. Constituem fundamentos de deserdação do cônjuge sobrevivo (artigo 2166.º): a) Condenação por prática de um crime doloso contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão, ou de algum descendente, ascendente, adotante ou adotado, correspondente a uma pena superior a seis meses de prisão. No que respeita a esta causa justificativa de deserdação, importa referir que um crime é doloso quando reúna dois elementos: um elemento volitivo (e a partir daí distinguem-se três espécies de dolo: direto, necessário e eventual) e um elemento intelectual (deve haver por parte do agente, conhecimento de que está a praticar um facto ilícito)12. O artigo 2133.º, n.º 3 refere outras causas de exclusão do cônjuge supérstite da sucessão legitimária (e legítima): separação judicial de pessoas e bens e divórcio com sentença transitada em julgado, admitindo-se que venha ainda a transitar em julgado na sequência do disposto no artigo 1785.º, n.º 3 (se o falecimento se dá na pendência da ação de separação judicial de pessoas e bens ou de divórcio, os herdeiros do cônjuge falecido podem continuar a ação para efeitos patrimoniais. Consideramos que a referência do legislador ao divórcio para estes efeitos é de todo desnecessária, na medida em que, havendo divórcio, o conceito de “cônjuge” não se aplica, e, por isso, não há sucessão do cônjuge sobrevivo). 7 Ao contrário do que acontece com a indignidade, cujo funcionamento não depende de vontade manifestada pelo de cujos (artigo 2037.º). 8 Capelo de Sousa, R., Lições de Direito das Sucessões, v. i…cit., p. 139, nota 279. A indicação expressa da causa é essencial, até para permitir a impugnação por parte do herdeiro legitimário deserdado. 9 Ac. da RC de 19.10.2010, proc. n.º 214/07.2TBSBG.C1. citando Pereira Coelho, F., Direito das Sucessões – Lições ao curso de 1973-1974, Coimbra, 1992, pp. 111 e 112. 10 Martins da Cruz, B., Reflexões críticas sobre a indignidade e a deserdação, Coimbra, Almedina, 1986, p. 53. 11 França Pitão, J., A Posição do cônjuge sobrevivo no atual Direito Sucessório português, 4.a ed. revista, atualizada e aumentada, Coimbra, Almedina, 2005, p. 61. 12 Sobre esta matéria, vejam-se, por todos Correia, E. Direito Criminal, Coimbra, Almedina, 2016, e Maia Gonçalves, M., Código Penal português – anotado e comentado, 18.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007. 6

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b) Condenação por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas. O artigo 365.º, do Código Penal, dá-nos a definição de denúncia caluniosa nos seguintes termos “Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena prisão até três anos ou com pena de multa”. Notemos que a denúncia caluniosa é sempre revestida de uma certa publicidade, quanto mais não seja, em virtude da abertura do inquérito preliminar pela autoridade pública perante quem é feita a denúncia, dado que esta autoridade terá de proceder a investigações com vista a prosseguir-se, ou não com o processo-crime (tudo isto, apesar do carácter secreto do processo de inquérito)13. A outra hipótese prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 2166.º é a do crime de falso testemunho, a que se referem os artigos 360.º e seguintes, do Código Penal. c) Ter, sem justa causa, recusado ao autor da sucessão os devidos alimentos. Os artigos 2003.º e seguintes do Código Civil ocupam-se da matéria dos alimentos, sendo aqui importante chamar atenção sobretudo para o disposto no artigo 2009.º, que se refere às “Pessoas obrigadas a alimentos”. Este preceito apresenta uma ordem pela qual as pessoas obrigadas a alimentos estão vinculadas a fazê-lo, e em que o cônjuge aparece precisamente em primeiro lugar. Tem-se entendido que apenas há fundamento que justifica a deserdação com base nesta alínea se o herdeiro legitimário em questão (neste caso, o cônjuge supérstite) estiver contratual ou judicialmente obrigado a prestar alimentos ao autor da sucessão, isto é, que não só seja uma pessoa obrigada a prestar alimentos, nos termos do referido artigo 2009.º, mas que tal obrigação também resulte de acordo negocial ou de imposição judicial14.

III. EFEITOS DA DESERDAÇÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVO Antes de procedermos à análise dos efeitos da deserdação do cônjuge sobrevivo, importa referirmos dois aspetos primários: 1) sendo a deserdação efetuada (necessariamente) por testamento, este tem de estar em vigor à data do óbito do testador, ou seja, é necessário que o testamento que inclui a deserdação não tenha sido revogado pelo testador, e ainda que o mesmo não padeça de vícios; e 2) não há uniformidade doutrinal sobre se a deserdação somente afeta a sucessão legitimária, ou se também exclui o deserdado da sucessão legítima15. Estabelece o artigo 2166.º, n.º 2 que, “O deserdado é equiparado ao indigno para todos os efeitos legais”. Por força desta remissão, os efeitos legais da deserdação são os mesmos da indignidade, que se encontram previstos no artigo 2037.º. Assim, existindo deserdação do cônjuge sobrevivo, a devolução da sucessão àquele é havida como inexistente, sendo ele considerado, para todos os efeitos, possuidor de má-fé dos respetivos bens (artigo 2037.º, França Pitão, J., op. cit., p. 61. Vid. v.g. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 214/07TBSBG.C1, de 19.10.2010, disponível em www.dgsi.pt – consulta efetuada em 01.10.2016. 15 Esta questão, pela sua importância, será analisada de forma autónoma no ponto IV. 13 14

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n.º 1). Ora, nesta conjuntura, importa responder à questão: qual será o destino da parte da herança que seria atribuída imperativamente ao cônjuge sobrevivo (a chamada “legítima”), caso este não fosse incapaz de suceder ao seu consorte pré-morto por ter sido por ele deserdado? A deserdação verifica-se necessariamente na sucessão legal, pelo que está prejudicado o direito de representação regulado nos artigos 2039.º e seguintes, atendendo ao disposto no artigo 2042.º, que estabelece: “Na sucessão legal, a representação tem sempre lugar, na linha reta, em benefício dos descendentes de filho do autor da sucessão e, na linha colateral, em benefício dos descendentes do irmão do falecido, qualquer que seja num caso ou no outro, o grau de parentesco”. Da leitura desta norma extraímos que não está prevista a possibilidade de eventuais descendentes do cônjuge sobrevivo (que poderão não ser descendentes do de cuius) o representarem, recebendo a sua legítima. Poderá, contudo, funcionar um outro modo de vocação indireta, o chamado direito de acrescer, que está presente, O autor da sucessão pode ter para a sucessão legal, no artigo 2137.º, n.º 2. Estabelece deserdado o seu cônjuge (à este preceito que se “(…) apenas algum ou alguns dos semelhança de qualquer outro sucessíveis não puderem ou não quiserem aceitar, a sua herdeiro legitimário), privando-o parte acrescerá à dos outros sucessíveis da mesma classe da sua legítima, caso este tenha que com ele concorram à herança, sem prejuízo do dispos- adotado comportamento que a to no artigo 2143.º”. Assim, se o cônjuge concorre à suces- lei considera reprovável o são com descendentes (primeira classe de sucessíveis), a suficiente para justificar a sua legítima acresce a estes, que a receberão em partes deserdação (que se efetiva iguais; se concorre com ascendentes (segunda classe de através de testamento). sucessíveis) a sua legítima acresce a estes, também em partes iguais (princípio da divisão por cabeça, consagrado no artigo 2136.º)16. Se, por seu turno, o cônjuge sobrevivo deserdado era o único herdeiro legitimário, não se abrirá a sucessão legitimária, ficando a sua legítima (metade neste caso, ex vi artigo 2158.º) inteiramente para livre disposição do testador, sendo em última instância (ou seja, na falta dessa disposição) distribuída através de sucessão legítima17. Em relação às atribuições preferenciais exclusivas do cônjuge sobrevivo, correspondentes ao direito a ser encabeçado, no momento da partilha no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respetivo recheio (consagradas nos artigos

O artigo 2143.º não se aplica ao caso concreto, pois que estabelece em que modos se verifica o acrescer na hipótese de ser algum ou alguns dos ascendentes a não suceder: a quota vaga acresce à dos outros ascendentes que concorram à sucessão, e só se eles não existirem é que acrescerá à do cônjuge sobrevivo. 17 A ordem da sucessão legítima consta do artigo 2133.º, n.º 1, e não sendo de aplicar as três primeira classes, seguem-se os colaterais até ao 4.º grau, onde se incluem, designadamente os irmãos e os sobrinhos, e por último, ou seja, na última classe de sucessíveis surge o Estado. Para que efetivamente o Estado venha a suceder terá de ser proposta em tribunal uma ação de liquidação da herança vaga em benefício do Estado (artigos 938.º a 940.º, Código de Processo Civil), que tem como objeto o reconhecimento judicial da inexistência de outros sucessíveis legítimos (artigos 2152.º a 2155.º). 16

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2103.º-A a 2103.º), concordamos com Capelo de Sousa quando afirma que o cônjuge sobrevivo deserdado não as poderá exercer, dado terem lugar iure sucessorio 18.

IV. EXTENSÃO DOS EFEITOS DA DESERDAÇÃO À SUCESSÃO LEGÍTIMA Coloca-se a questão da extensão dos efeitos da deserdação a outra modalidade de sucessão para além da sucessão legitimária19, designadamente à sucessão legítima, que constitui, a par daquela, uma modalidade de sucessão legal (artigo 2027.º). Notemos que as doações em vida que o de cujos tenha feito em favor do seu cônjuge (que lhe sobreviveu) não são prejudicadas pela sua deserdação, mesmo que tenham sido realizadas por conta da legítima, uma vez que estas já produziram efeito aquando da sua realização e têm causas próprias de revogação. Para que a doação não produza mais efeitos terá de ser proposta uma ação de revogação por ingratidão do donatário, tal como resulta do artigo 974.º. A ocorrência de alguma das situações que justificam a deserdação do donatário permite a revogação da doação por ingratidão, o mesmo acontecendo no caso de aquele se tornar incapaz de suceder ao doador por indignidade. Para França Pitão “…a expressa deserdação do cônjuge (ou outro herdeiro legitimário) em testamento, não o impede de suceder, como herdeiro legítimo, na quota disponível ou no seu remanescente. Para a sucessão legítima existe outra forma de incapacidade sucessória – a incapacidade por indignidade prevista nos artigos 2034.º e seguintes”20. Por sua vez, Capelo de Sousa entende que embora da letra do artigo 2166.º, n.º 1 decorra expressamente que os deserdados são privados “da legítima”, o certo é que o n.º 2 do mesmo preceito os equipara aos indignos os quais carecem de capacidade sucessória, para qualquer espécie de sucessão, sem prejuízo do direito de representação (artigo 2037.º, n.º 2). Assim, entende este autor que os deserdados também estão afastados da sucessão legítima, só assim não acontecendo quando o de cujos, no testamento em que concretizou a deserdação tenha manifestado vontade (cfr. 18 Segundo Capelo de Sousa, R., Lições de Direito das Sucessões, v. ii…cit., p. 156, nota 392, “(…) as atribuições preferenciais dos artigos 2103.º-A e seguintes têm lugar iure sucessorio, parece-nos ser necessário, para as atribuições em causa se verificarem e mesmo que o seu valor não exceda o valor da meação, que o cônjuge seja sucessível do autor da sucessão (sobrevivendo-lhe e não se encontrando nalguma das situações do n.º 3 do artigo 2133.º), que relativamente a ele seja capaz sucessoriamente (cfr. artigos 2034.º e 2166.º) e que seja seu aceitante de herança (cfr. artigos 2050.º e 2054.º, n.º 2, sem prejuízo do disposto nos artigos 2055.º e 2250.º, n.º 2)”. 19 Questão diversa desta, mas também muito debatida na doutrina, é a de saber se a indignidade se aplica no âmbito da sucessão legitimária. Se a resposta for negativa, significa que o sucessível legitimário só pode ser incapaz por deserdação e não por indignidade; se a resposta for positiva, então as causas de indignidade que encontramos no artigo 2034.º aplicam-se igualmente aos herdeiros legitimários. Está excluído do objeto do presente estudo a discussão dessa questão, mas deixamos nota neste estudo de que o entendimento a seguir deverá ser no sentido da extensão da indignidade à sucessão legitimária, estando, assim, o cônjuge sobrevivo, assim como qualquer outro herdeiro legitimário, sujeito às regras gerais dos artigos 2034.º-2038.º, podendo ser declarado indigno de suceder se praticar algum dos atos indicados no artigo 2034.º. Neste sentido afirmou Oliveira de Ascensão, J., “As atuais Coordenadas do Instituto da Indignidade Sucessória – análise dos problemas da indignidade tomada em si e na suas relações com figuras afins, principalmente a incapacidade e a deserdação”, in O Direito – Revista de Ciências Jurídicas e de Administração Pública, outubro/dezembro, 1969, p. 24, que “se o sucessível legitimário, somente puder ser afastado por declaração expressa do autor da sucessão, então não haveria maneira de o excluir nos casos em que por qualquer razão é impossível ao de cuius proceder a essa exclusão”. Também neste sentido, vid. Pereira Coelho, F., op. cit., p. 327; Gomes da Silva, N., Direito das Sucessões, Edição da Associação Académica, Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1978, pp. 221 e 222; e Pires de Lima, F./Antunes Varela, j., Noções Fundamentais de Direito Civil, ii, 5.ª ed., Coimbra, 1962, p. 209, nota 1. 20 França Pitão, J., op. cit., p. 63.

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artigo 2187.º) no sentido da limitação da privação à sucessão legitimária e admissão à sucessão legítima do sucessível em causa (artigos 2131.º e 2179.º, n.º 1)21. Concordamos com a posição de Capelo de Sousa, ou seja, somos do entendimento de o cônjuge sobrevivo deserdado (ou qualquer outro herdeiro legitimário na mesma situação) ficar afastado não só na sucessão legitimária, como também na sucessão legítima (que eventualmente houvesse lugar). Isto porque, tendo a sucessão legítima na sua base a presunção da vontade do autor da sucessão, é presumível que, pretendendo afastar o seu cônjuge da sucessão legitimária por força de comportamento reprovável deste, também o quisesse afastar no outro caso em que a lei o chama a suceder. Da aplicação prática deste entendimento resulta que, na realização da partilha, o cônjuge sobrevivo não é considerado nem na sucessão legitimária, nem na sucessão legítima, com as consequências legais que daí decorrem.

V. REABILITAÇÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVO DESERDADO O cônjuge sobrevivo deserdado pode readquirir a capacidade sucessória se o autor da sucessão expressamente o reabilitar em testamento ou escritura pública (artigo 2038.º, n.º 1 ex vi artigo 2166.º, n.º 2). Neste caso, a reabilitação é expressa, pois o testador manifestou expressamente a sua vontade no sentido de “perdoar” o cônjuge pelo seu comportamento. Esta não é, contudo, a forma mais frequente de reabilitação do deserdado, já que para tal basta a revogação, pelo testador, do testamento (ou da cláusula testamentária inserida num testamento com uma pluralidade de deixas) através do qual efetuou a deserdação. Salientemos que, a reabilitação tácita, constante do artigo 2038.º, n.º 2, não se aplica na sucessão legal, mas tão só na sucessão testamentária, pois esta processa-se quando o testador, conhecendo o comportamento que fundamenta a deserdação, contempla o herdeiro legitimário em testamento, podendo ele suceder, mas tão só dentro dos limites da disposição testamentária. Assim, se o testador faz um testamento a favor do seu cônjuge, após ter outorgado testamento em que o deserda (situação que consideramos improvável, mas possível), ele não readquire capacidade sucessória na sucessão legitimária (e legítima), tendo apenas capacidade para suceder na sucessão testamentária: “dentro dos limites da disposição testamentária”.

VI. IMPUGNAÇÃO DA DESERDAÇÃO O cônjuge supérstite pode não concordar com a sua deserdação, podendo nessa hipótese propor uma ação de impugnação da deserdação, tal como decorre do artigo 2167.º. Essa ação terá como fundamento a inexistência da causa de deserdação invocada pelo de cujos, e tem de ser proposta no prazo de dois anos a contar da abertura do testamento, sob pena de caducidade. Contudo, apesar de a lei referir o início da contagem do prazo à abertura do testamento, parece que implicitamente exigirá também o conhecimento dele e da

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Capelo de Sousa, R., Lições de Direito das Sucessões, v. ii…cit., p. 142, nota 381.

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deserdação por parte do deserdado, por analogia designadamente com o artigo 2059.º, n.º 1, CC (caducidade de aceitar a herança)22.

VII. IMPLICAÇÕES PROCESSUAIS DA DESERDAÇÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVO – PROCESSO DE INVENTÁRIO O cônjuge sobrevivo, na sua qualidade de herdeiro legal (legitimário e, eventualmente, também legítimo), tem interesse direto na partilha da herança, já que, sendo ele titular de uma quota hereditária23, necessita, impreterivelmente, da realização da partilha para que sejam determinados os bens da herança que irão preencher essa quota. Ora, reconhecendo o artigo 4.º, n.º 1, al. a), do Regime Jurídico do Processo de Inventário24, aos interessados diretos na partilha, legitimidade para requerer25 e intervir no processo de inventário, como partes principais, em todos os atos e termos do processo de inventário, não há dúvida de que na conjuntura de o cônjuge sobrevivo efetivamente ser titular desse interesse26 poderá requerer processo de inventário e intervir nesse processo, nos amplos termos mencionados27. Contudo, se o cônjuge sobrevivo tiver sido deserdado, essa legitimidade, pelo menos a que se baseia na sua qualidade de herdeiro legitimário (ou legítimo)28, não lhe será reconhecida, por não existir o tal interesse direto. Só assim não será, se o cônjuge sobrevivo for meeiro. Ora vejamos: 22 Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 214/07.2TBSBG.C1 – disponível em www.dgsi.pt – consulta efetuada em 03.10.2016. 23 Quota em propriedade e não em usufruto, como acontece v.g à luz do Código Civil Espanhol (artigo 834.º, Código Civil espanhol). 24 O qual foi aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 março (artigo 2.º desta Lei), e a que nos referiremos como “RJPI”. 25 “O ter ou não interesse direto na partilha é que comanda a legitimidade para requerer”. Cfr. Lopes Cardoso, A., Partilhas Judiciais, vol. i, Coimbra, Almedina, 6.ª ed., 2015, p. 301. 26 A partilha consiste no fim e objetivo último do processo de inventário, uma vez que é por meio dela que se dá a entrada dos bens da herança no património dos sucessores. Assim, é através da partilha que cessa a situação de indivisão da herança, sendo atribuídos a cada herdeiro bens determinados, sobre os quais passam a incidir direitos individuais, cfr. Paiva, E./ Cabrita, H., Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 175. 27 Os interessados, aqui incluído o cônjuge supérstite, intervirão no decurso e ao longo do processo de inventário, sendo normalmente o requerente, desde o seu início e por virtude da apresentação do requerimento de inventário, o cabeça de casal, se não for o requerente, desde a sua citação para prestar declarações e, os demais interessados com a respetiva citação, a ter no lugar no seguimento das declarações do cabeça de casal, em que foram como tal identificados. Vid. a este propósito os artigos 24.º e 28.º, RJPI. 28 Para a hipótese de reabilitação tácita (artigo 2038.º, n.º 2), ter em atenção que o cônjuge supérstite pode ter sido beneficiado em testamento pelo de cujos, e na hipótese de ter sido beneficiado com uma quota da herança ou com o usufruto de quota da herança, terá legitimidade para requerer inventário, por força do interesse direto que tem na partilha: no primeiro caso, é herdeiro, tendo uma quota hereditária para preencher com bens hereditários; e no segundo caso (e apesar de ser legatário) necessita da partilha para determinar os bens sobre que vai incidir o seu direito de usufruto (artigo 2030.º, n.º 2, 1.ª parte e n.º 4). Se, por ventura, tiver sido beneficiado com um bem certo e determinado, o mesmo é dizer, tiver sido nomeado legatário (artigo 2030.º, n.º 2, 2.ª parte) ou tiver recebido uma doação feita pelo de cujos, não terá legitimidade para requerer, mas tão só para intervir (desde que existam herdeiros legitimários), sendo essa intervenção delimitada a determinados atos e termos do processo: “Se existirem herdeiros legitimários, os legatários e os donatários são admitidos a intervir em todos os atos, termos e diligências suscetíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e de implicar eventual redução das respetivas liberalidades”. Não existindo herdeiros legitimários e sendo o cônjuge supérstite legatário, pode intervir nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos”. Vid. artigo 4.º, n.os 2 e 3, RJPI.

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O artigo 2101.º, n.º 1 concede o direito de exigir a partilha, não só aos co-herdeiros, mas também ao cônjuge meeiro29. Assim, não tendo o cônjuge sobrevivo a qualidade de herdeiro (seja porque não tem capacidade sucessória, ou até porque ele simplesmente não pretendendo suceder, repudiou a herança) continua a ter interesse direto na partilha por força do regime de bens que regeu na constância do casamento. Com efeito, se o regime de bens adotado foi um dos regimes da comunhão (comunhão de adquiridos30 ou comunhão geral de bens) 31, o processo de inventário destinado à partilha de herança – ou inventário comum – , a requerer no caso de não existir acordo entre os interessados sobre o modo como deve ser efetuada a partilha32, constitui o processo próprio para a partilha dos bens comuns do casal a ter lugar na sequência do óbito do cônjuge pré-falecido33. O processo de inventário, regulado nos artigos 79.º e 80.º, RJPI destina-se à partilha dos bens comuns do casal (quando não exista acordo entre os cônjuges) na sequência de divórcio, separação de pessoas e bens, nulidade ou anulação de casamento (n.º 1 daquele artigo 79.º), não se aplicando por isso no caso de dissolução do casamento por óbito34. Apesar de a partilha da herança e a partilha dos bens comuns do casal constituírem operações a realizar num mesmo processo de inventário (inventário comum), é preciso ter em conta que esta segunda tem de preceder aquela primeira, pois para determinação da herança a partilhar é necessário previamente separar as meações e fazer adjudicações de bens a favor do cônjuge supérstite e da herança a partilhar35. Por sua vez, se o casamento esteve submetido ao regime da separação de bens e não a um dos regimes da comunhão, não sendo o cônjuge sobrevivo deserdado, herdeiro nem meeiro, Como refere Capelo de Sousa, R., Lições de Direito das Sucessões, v. i…cit., p. 71, nota 132, a referência que é feita no artigo 2101.º, n.º 1 ao cônjuge meeiro não é despicienda, pois que embora este seja herdeiro legitimário (e eventualmente legítimo), desde a reforma do Código Civil operada em 1977, tal expressão tem a sua utilidade, em casos de incapacidade sucessória ou repúdio da herança por parte do cônjuge com o que este deixa de ser considerado herdeiro mas continuando a ter legitimidade para requerer inventário. 30 Desde a entrada em vigor do Código Civil vigente (1967) que o regime da comunhão de adquiridos passou a figurar como regime supletivo, ou seja, constitui, desde então, o regime a aplicar na falta de diferente estipulação (em convenção antenupcial) das partes (artigo 1717.º). 31 No regime da comunhão de adquiridos há bens próprios e bens comuns; consideram-se próprios dos cônjuges os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento, os que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação e os adquiridos na constância do casamento por virtude de direito próprio anterior; comuns são os bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento (artigos 1722.º e 1724.º). No regime da comunhão geral de bens são comuns todos os bens adquiridos, a título gratuito ou oneroso, antes ou na constância do casamento, com as exceções que constam do artigo 1733.º. Quer num regime, quer noutro, os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso (artigo 1730.º, n.º 1). 32 Vid. o artigo 2102.º, que respeita à forma da partilha hereditária. 33 O óbito provoca não só a abertura da sucessão e necessidade de partilha dos bens deixados pelo falecido, mas também a dissolução da comunhão conjugal e necessidade de partilha dos bens comuns do casal (artigos 1688.º e 1689.º). 34 Apesar de o legislador apenas se referir a “separação judicial de pessoas e bens”, a simples separação de bens também determina a necessidade de efetuar a partilha dos bens comuns do casal, sendo de aplicar igualmente esta tramitação nesse caso. Tal decorre do artigo 1770.º ao estabelecer que: “Após o trânsito em julgado da sentença que decretar a separação judicial de bens, o regime matrimonial, sem prejuízo do disposto em matéria de registo, passa a ser o da separação, procedendo-se à partilha do património comum como se o casamento tivesse sido dissolvido”. 35 O artigo 65.º, RJPI tem precisamente em conta a existência de meação do cônjuge sobrevivo no processo de inventário, em que é necessário proceder à divisão das meações: uma do inventariado (a distribuir pelos seus herdeiros) e outra do meeiro. Apesar de ali se fazer referência à existência de dois mapas neste caso, a prática notarial, na sequência do que já era a prática dos tribunais, tem lidado com estes casos de forma a que os montes respeitantes às meações constem de um só mapa. Cfr. Neto Ferreirinha, F., Processo de Inventário. Reflexões sobre o novo regime jurídico – Lei n.º 23/2013, de 5 de março, Almedina, Coimbra, 2014, p. 306. 29

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naturalmente, que por falta do interesse direto que o referido artigo 4.º, n.º 1, al. a), RJPI exige para o efeito, ele não tem legitimidade para requerer nem para intervir, como parte principal, em todos os atos e termos do processo de inventário destinado à partilha da herança do seu consorte pré-morto: não é titular de uma quota hereditária, nem tem direito a meação. Nesta hipótese, se o cônjuge sobrevivo deserdado vier a requerer inventário, verifica-se uma exceção dilatória de conhecimento oficioso pelo notário – ilegitimidade do requerente –, a qual conduz à absolvição da instância, a decretar nos termos do artigo 82.º, RJPI [artigos 577.º, al. e), 576.º, n.º 2, e 578.º, todos do Código de Processo Civil]. Mas os interessados no processo, após citados, também podem reagir, no prazo de 20 dias36, opondo-se ao inventário com fundamento na ilegitimidade do requerente [artigos 30.º, n.º 1, al. a) RJPI]37, sendo o incidente tramitado nos termos do artigo 31.º: depois de apresentado o requerimento, o notário notifica os interessados com legitimidade para intervir na questão suscitada para responder, em 15 dias; as provas são indicadas com os requerimentos e respostas; a resposta deverá ser apresentada no prazo de 10 dias (artigo 14.º, n.º 2, RJPI), seguindo-se a decisão do incidente pelo notário. A mesma tramitação será seguida, caso se impugne a legitimidade do cônjuge supérstite deserdado que foi indicado como interessado direto pelo cabeça de casal, no âmbito das suas declarações [artigo 30.º, n.º 1, al. b)], RJPI. Consideramos importante chamar a atenção para dois aspetos, ambos relacionados com a natureza necessariamente documental da prova da deserdação. O primeiro é que, apesar de ser aplicável aos incidentes deduzidos no processo de inventário o disposto no artigo 14.º, n.º 3, RJPI38 que estipula que “a falta de oposição determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório nos termos das disposições gerais e comuns”, no caso aqui em análise, a falta de oposição quanto à sua deserdação não determina a confissão desse facto – efeito da revelia a que se refere o artigo 567.º, Código de Processo Civil. E isto porque o artigo 568.º, do mesmo diploma, contempla casos em que “não se aplica o disposto no artigo anterior” e, na sua al. d), encontramos “Quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito”. Como sabemos, e já o dissemos aqui, a deserdação tem de constar de testamento (artigo 2166.º, n.º 1), o qual reveste forma documental39. O segundo é de que, tendo a remessa para os meios comuns, carácter excecional40 – apenas é admitida em relação a questões suscitadas que, “atenta a sua natureza ou a sua complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no âmbito do processo de inventário” (artigo 16.º, RJPI) – deve ser efetivamente o notário a decidir esta questão. Isto porque, sendo a prova da deserdação efetuada necessariamente através de documento, que 36 De acordo com o artigo 30.º, n.º 2, as faculdades previstas nas várias alíneas do n.º 1 do mesmo preceito “podem ser exercidas pelo cabeça de casal e pelo requerente do inventário, contando-se o prazo para o seu exercício da notificação do despacho que ordena as citações”. 37 Em caso de procedência da oposição, o inventário não poderá prosseguir os seus termos. A ilegitimidade do requerente constitui um dos fundamentos de oposição ao inventário cfr. Paiva, E./ Cabrita, H., op. cit., p. 98. Neste sentido também VV.AA, Regime Jurídico do Processo de Inventário, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 144. 38 Os artigos 14.º e 15.º, RJPI regulam as normas gerais dos incidentes do inventário, aplicáveis sempre que o incidente em causa não contenha norma própria relativamente aos aspetos que aqueles preceitos consagram. Vid. para maiores desenvolvimentos, Paiva, E./ Cabrita, H., op. cit., p. 33. 39 Sobre a forma do testamento vid. artigos 2204.º e seguintes. 40 Da conjugação dos n.os 1 e 4, do artigo 3.º, RJPI extrai-se a competência residual do cartório notarial/notário:“1. Compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra”;” 4. Ao notário compete dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns”.

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constitui o meio de prova a considerar pelo decisor, não estão reunidos os requisitos para que o notário se abstenha de decidir, remetendo os interessados para os meios judiciais41. A nosso ver, apenas se justifica a remessa para os meios comuns, a qual determina a suspensão do processo de inventário até que seja proferida decisão judicial definitiva (artigo 16.º, n.º 1, RJPI), se o cônjuge sobrevivo pretende impugnar a deserdação, direito de reação que se concretiza através da propositura de uma ação judicial de impugnação (artigo 2167.º). Pode também acontecer não ter sido o cônjuge sobrevivo deserdado a requerer inventário, mas ter sido ele o nomeado, pelo notário, para desempenhar o cargo de cabeça de casal42 (artigo 22.º, RJPI)43. Nesta hipótese, se o cônjuge sobrevivo deserdado é meeiro, ele tem competência para o cargo44, mas se não for, terá de ser outra pessoa a desempenhar o cargo, de acordo com a ordem constante do n.º 1 do artigo 2080.º, a menos que exista acordo entre todos os interessados no sentido de ser o cônjuge a desempenhar as funções de cabeça de casal, ainda que não tendo estatuto de interveniente no processo, tal como A deserdação do cônjuge permite o artigo 2084.º45. Na hipótese de o cônjuge sobrevi- supérstite determina, em vo não ter efetivamente essa competência, e não havendo o princípio, a perda da sua referido acordo, podem os interessados reagir no prazo de legitimidade para requerer e 20 dias a contar da sua citação, invocando o fundamento da intervir no processo de 1.ª parte, da al. c) do n.º 1 do artigo 30.º, RJPI: incompetência inventário, como parte principal, do cabeça de casal. No incidente, que seguirá os termos aci- em todos os atos e termos do ma indicados (artigo 31.º, RJPI), deve ser alegada a deserda- processo, sendo que essa ção do cônjuge sobrevivo e também o facto de ele não ser realidade pode motivar a meeiro. Como estamos perante um incidente de impugna- dedução de incidentes, que ção da competência do cabeça de casal, devemos chamar a como se sabe constituem atenção para o disposto no artigo 22.º, n.º 4, RJPI: o cabeça procedimentos anómalos ao de casal designado continuará a desempenhar as suas fun- processo que o atrasam no ções, até ser decidido o incidente. alcance da sua finalidade. Uma última nota para clarificarmos que ao unido de facto sobrevivo não assiste legitimidade para requerer e intervir 41 Como afirma Neto Ferreirinha, F., op. cit., p. 37, “(…) se a questão for facilmente resolúvel no próprio inventário, face à existência de prova documental, o processo não será suspenso, prosseguindo os seus termos”. 42 As funções do cabeça de casal revestem máxima importância. Incumbe-lhe administrar a herança, competindo-lhe, designadamente: cumprir no inventário os deveres que a lei lhe impuser, designadamente a prestação de declarações, a apresentação da relação de bens acompanhada dos documentos devidos e a prestação de todos os elementos necessários ao prosseguimento do inventário [artigo 2086.º, n.º 1, al. c)]. 43 A indicação do cabeça de casal de casal é efetuada pelo requerente do processo (artigos 21.º, n.º 1, RJPI), mas é o notário quem o nomeia. 44 Em princípio será o cônjuge sobrevivo, se for meeiro, a desempenhar o cargo de cabeça de casal, por estar em primeiro lugar na ordem de deferimento do cargo prevista no artigo 2080.º: 1. a) O cônjuge sobrevivo desempenha este cargo com preferência em relação aos demais, se não estando separado judicialmente de pessoas e bens, for herdeiro ou meeiro. Aliás, como vimos, o cônjuge meeiro tem legitimidade para requerer e intervir no processo de inventário destinado à partilha da herança do seu consorte pré-morto. O referido preceito exclui ainda o cônjuge caso esteja divorciado, o que não tem qualquer cabimento, pois, caso assim seja, ele já não é cônjuge, e antes de requerido inventário para partilha da herança é necessário proceder à partilha dos bens comuns do casal no caso de existirem, a partilha é realizada por acordo através da forma legal exigida, ou através do processo de inventário especificamente regulado nos artigos 79.º e 80.º, RJPI, com ela ficando desvanecido o interesse direto que porventura tinha sobre os bens da herança. 45 Estabelece este preceito que, “Por acordo de todos os interessados pode entregar-se a administração da herança e o exercício das funções de cabeça de casal a qualquer outra pessoa”.

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no processo de inventário. Com efeito, no nosso ordenamento jurídico não sendo o unido de facto sobrevivo herdeiro legal (a ele não se refere o artigo 2157.º, nem o artigo 2133.º) não é interessado direto na partilha, não sendo congratulado com a legitimidade para requerer e intervir no inventário46. Mas se o de cujos o instituiu herdeiro (em testamento), então já será titular do interesse direto que comanda a legitimidade para requerer e intervir em todos os atos e termos do processo47. Com efeito, como referiram Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, o casamento e a união de facto são situações materialmente diferentes, não havendo qualquer base legal para estender à união de facto as disposições que ao casamento se referem48.

VIII. CONCLUSÃO Ao cônjuge sobrevivo, por força da necessidade de proteção da família nuclear e dos fortes laços que, em princípio, manteve na constância do casamento com o seu consorte pré-falecido é atribuído ex lege o direito a uma parte da herança, designada de “legítima”. A deserdação corresponde a uma incapacidade sucessória de que o cônjuge sobrevivo, tal como qualquer outro herdeiro legitimário, pode sofrer, se tiver tido um comportamento que a lei considera reprovável o suficiente para determinar o seu afastamento da sucessão legitimária (e também legítima). O elenco das causas que permitem ao de cujos justificadamente deserdar um herdeiro legitimário é taxativo, resultando das várias alíneas que compõem o artigo 2166.º, n.º 1. A deserdação do cônjuge sobrevivo produz efeitos substantivos e processuais de relevo, na medida em que é necessário para a realização da partilha dar um destino à quota que lhe seria atribuída a título de legítima, caso cumprisse o conjunto dos pressupostos da vocação sucessória. Vimos que a solução passa pelo direito de acrescer (o direito de representação não funciona neste caso); em última instância, a quota vaga é atribuída, através de sucessão legítima, aos herdeiros legítimos. Aplicamos o mesmo raciocínio no que se refere à parte que, eventualmente, o cônjuge sobrevivo teria direito na sucessão legítima, pois entendemos que a deserdação se estende a esta modalidade de sucessão legal: seria essa a vontade do de cujus caso a tivesse manifestado. A deserdação do cônjuge supérstite determina, em princípio, a perda da sua legitimidade para requerer e intervir no processo de inventário, como parte principal, em todos os atos e termos do processo, sendo que essa realidade pode motivar a dedução de incidentes que,

Referiu Costa, A., A partilha em inventário. Incursão pelo novíssimo regime jurídico do processo de inventário, Porto, Vida Económica, 2015, p. 44, nota 69, que “Como se sabe, da existência da união de facto não resultam quaisquer direitos de natureza sucessória, pelo que a existência deste relacionamento não resulta legitimidade para que o sobrevivo possa ou tenha legitimidade para requerer inventário. Antes, o que pode resultar é tão só o facto de o sobrevivo poder solicitar alimentos da herança – cf. Artigo 2020.º do C.Civil. Cf. ainda a Lei n.º 7/2001, de 11 de maio alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto – União de facto, artigos 3.º a 6.º, 8.º”. 47 Se lhe tiver deixado um bem certo e determinado, terá legitimidade para intervir, enquanto legatário, mas apenas de forma limitada (artigo 4.º, n.º 2 e 3, RJPI). Também terá legitimidade para intervir (desde que existam herdeiros legitimários), de forma limitada, caso o de cujos em vida lhe tenha feito uma doação, (artigo 4.º, n.º 2, RJPI). 48 Pereira Coelho, F./Oliveira, G., Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 57. 46

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como se sabe, constituem procedimentos anómalos ao processo que o atrasam no alcance da sua finalidade. Esperamos ter contribuído para a aproximação dos profissionais forenses à problemática da deserdação do cônjuge sobrevivo, sobretudo no que respeita à aplicação do Regime Jurídico do Processo de Inventário, dada a sua tenra idade. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico

Referências Bibliográficas CAPELO DE SOUSA, R., Lições de Direito das Sucessões, 4.a ed. (reimpressão), vol. I e II, Coimbra, Coimbra Editora, 2012. CORREIA, E. Direito Criminal, Coimbra, Almedina, 2016, e Maia Gonçalves, M., Código Penal português – anotado e comentado, 18.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007. COSTA, A., A partilha em inventário. Incursão pelo novíssimo regime jurídico do processo de inventário, Porto, Vida Económica, 2015. FRANÇA PITÃO, J., A Posição do cônjuge sobrevivo no atual Direito Sucessório português, 4.a ed. revista, atualizada e aumentada, Coimbra, Almedina, 2005. GOMES DA SILVA, N., Direito das Sucessões, Edição da Associação Académica, Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1978. MARTINS DA CRUZ, B., Reflexões críticas sobre a indignidade e a deserdação, Coimbra, Almedina, 1986. NETO FERREIRINHA, F., Processo de Inventário. Reflexões sobre o novo regime jurídico – Lei n.º 23/2013, de 5 de março, Almedina, Coimbra, 2014.

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CONSIDERACIONES SOBRE LA AUTOTUTELA EN ESPAÑA COMO MODELO PARA PORTUGAL DOMINGO BELLO JANEIRO Catedrático de Derecho Civil de la Universidad de La Coruña Académico de Número de la Academia Gallega de Jurisprudencia y Legislación

RESUMO En la actualidad es indudable, y también en Portugal y España, el cambio social caracterizado por el envejecimiento de la población y la crisis de la tradicional familia patriarcal amplia, con la consiguiente disminución de su función de servir de apoyo de sus miembros mayores y de los discapacitados, siendo, con la evolución de las comunicaciones y la globalización, cada vez más frecuente el hecho de que los hijos vivan en ciudades o países diferentes a las de los mayores de la familia. El progresivo deterioro físico y psíquico con el transcurso de los años puede llevar a situaciones de dependencia difíciles de atender en las circunstancias de las sociedades actuales, sobre todo en los casos de demencia o Alzheimer en los que se hace necesario un mayor nivel de protección jurídica e institucional, lo cual exige que el ordenamiento jurídico preste una especial atención a los mayores.

En un país como España, y también Portugal, entre otros, en el que la justicia civil se encuentra crónicamente al borde del colapso, es un lujo, que no nos podemos permitir, prescindir de las técnicas de autonomía privada. La institución de la autotutela, introducida en la legislación estatal española por medio de la ley 41/2003, y, previamente, en el derecho catalán con la Ley 11/1996, de 26 de julio, que modifica la Ley 39/1991, de 30 de diciembre, de la Tutela e Instituciones Tutelares, con nueva regulación catalana de manera detallada en la Ley 25/2010, de 29 de julio, del libro segundo del Código civil de Cataluña, relativo a la persona y la familia, ha significado un verdadero hito, lo cual en Galicia también ha sido objeto de regulación en la Ley 2/2006, de 14 de junio de Derecho Civil de Galicia, que, por dicha razón, aparte de la regulación de la adopción, se encuentra recurrida ante el

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Consideraciones Sobre La Autotutela En España Como modelo Para portugal

Tribunal Constitucional, que ha declarado nulos dichos artículos en sentencia 133/2017 de 16 de noviembre (BOE de 20 de diciembre de 2017). La autotutela puede recomendarse para prever y decidir lo que puede acontecer en el futuro Mediante el nombramiento de tutor se protege realmente a la persona mayor ya que en los momentos en que ella no tenga la suficiente capacidad para gobernarse, habrá una tercera persona, designada por ella misma, que cuidará de su persona y de sus bienes, con todas las garantías legales. El derecho y la práctica del entorno de países semejantes nos sirven para pensar que hay que ir en este tema lo más lejos posible puesto que no hay duda de los efectos altamente positivos de la atribución de facultar expresamente a una persona para que pueda tomar decisiones sobre su futura asistencia personal y que así pueda buenamente ordenar, con el grado de precisión que considere más adecuado, el mejor modo de administración de su patrimonio, en el momento en que aún tiene determinada autonomía personal con la finalidad no disimulada de que pueda ir generando su eficacia de modo progresivo con anterioridad al momento en que el resto de la familia piense en la posibilidad de su incapacitación. Se trata de buscar las fórmulas jurídicas más adecuadas para posibilitar el tránsito progresivo de la autonomía personal plena a la dependencia de terceros y conseguir que el propio afectado, que es el principal afectado, pueda percibir que gestiona desde el comienzo, a su entera voluntad, el desarrollo de este proceso, lo que contribuye a su mejoría personal, evitando más angustias de las necesarias y tiene un efecto terapéutico consecuente que no se puede poner en duda.

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n la actualidad es indudable, y también en Portugal y España, el cambio social caracterizado por el envejecimiento de la población y la crisis de la tradicional familia patriarcal amplia, con la consiguiente disminución de su función de servir de apoyo de sus miembros mayores y de los discapacitados, siendo, con la evolución de las comunicaciones y la globalización, cada vez más frecuente el hecho de que los hijos vivan en ciudades o países diferentes a las de los mayores de la familia. El progresivo deterioro físico y psíquico con el transcurso de los años puede llevar a situaciones de dependencia difíciles de atender en las circunstancias de las sociedades actuales, sobre todo en los casos de demencia o Alzheimer en los que se hace necesario un mayor nivel de protección jurídica e institucional, lo cual exige que el ordenamiento jurídico preste una especial atención a los mayores. Con tal finalidad se aprobó en España la Ley 41/2003, de 18 de noviembre, de Protección patrimonial de las personas Con la autotutela se permite con discapacidad y de modificación del Código Civil, de la designar ante un notario, en un Ley de Enjuiciamiento Civil de la Normativa Tributaria con la testamento o documento regulación, por lo que ahora nos interesa, de la autotutela público notarial, a aquella que aparece por primera vez en nuestro derecho, mediante persona (física o jurídica sin la cual se permite que una persona capaz de obrar, en previ- ánimo de lucro) que uno quisiera sión de una futura incapacitación, por ejemplo cuando se le que fuera su tutor, en caso de diagnostica una enfermedad degenerativa, pueda adoptar que en un futuro, fuera las decisiones que estime oportunas y designar un tutor declarado incapaz. para sí mismo o, incluso, solicitar al juez su propia incapacitación. Con la autotutela se permite designar ante un notario, en un testamento o documento público notarial, a aquella persona (física o jurídica sin ánimo de lucro) que uno quisiera que fuera su tutor, en caso de que en un futuro, fuera declarado incapaz. En la misma escritura también se puede excluir expresamente a alguien para ejercer funciones tutelares, así como nombrar sustitutos y órganos de control o supervisión de la tutela. Asímismo, la persona puede dejar en ella reflejada su voluntad, es decir, puede dar instrucciones de cómo quiere que sea ejercida su tutela, tanto en lo que se refiere al cuidado de su persona como a la administración de sus bienes. Es importante señalar que cuando se otorgue la escritura de autotutela la persona debe conservar sus facultades intelectuales y por tanto decidir libremente lo que quiere hacer. La autotutela puede recomendarse para prever y decidir lo que puede acontecer en el futuro. Mediante el nombramiento de tutor se protege realmente a la persona mayor ya que en los momentos en que ella no tenga la suficiente capacidad para gobernarse, habrá una tercera persona, designada por ella misma, que cuidará de su persona y de sus bienes, con todas las garantías legales. Sin embargo, en la práctica hay pocas personas dispuestas a hacer de tutores, incluso entre los familiares cercanos. Es por ello que se hace necesaria la existencia de entidades que realicen las funciones de tutela que antes correspondían a los hijos o familiares. Con el fin de poder ejercer las tutelas con la dedicación y responsabilidad que requieren se necesitan importantes recursos tanto económicos como personales. Convendría, por tanto, intentar

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sensibilizar a la sociedad y a las instituciones para que apoyen a las entidades tutelares en la consecución de estos recursos. Es la única forma de que la protección de la persona mayor que nos ofrece el Derecho pueda ser, cada vez más, una realidad. En lo que se refiere al nombramiento de tutor, se preferirá, en primer lugar, al designado por el propio tutelado; después, al cónyuge que conviva con el tutelado; luego, a los padres; en cuarto lugar, a la persona o personas designadas por éstos en sus disposiciones de última voluntad y, por último, al descendiente, ascendiente o hermano que designe el juez. Asimismo, se prevé que la entidad pública a la que, en el respectivo territorio, esté encomendada la tutela de los incapaces cuando ninguna de estas personas que acabamos de mencionar sea nombrado tutor, asumirá por ministerio de la Ley la tutela del incapaz o cuando éste se encuentre en situación de desamparo, considerándose como tal la que se produce de hecho a causa del incumplimiento o del imposible o inadecuado ejercicio de los deberes que le incumben de conformidad a las leyes, cuando éstos queden privados de la necesaria asistencia moral o material. En un país como España, y también Portugal, entre otros, en el que la justicia civil se encuentra crónicamente al borde del colapso, es un lujo, que no nos podemos permitir, prescindir de las técnicas de autonomía privada por lo que la institución de la autotutela ha significado un paso adelante muy importante dado que es positivo facultar expresamente a una persona para que pueda tomar decisiones sobre su futura asistencia personal; y que pueda ordenar, con el grado de detalle que considere oportuno, la manera en que será administrado su patrimonio y serán aplicadas las rentas de sus bienes; de modo que pueda poner en marcha estos instrumentos de protección cuando todavía conserve una cierta autonomía personal, a fin de que pueda ir desplegando su eficacia progresivamente y no cuando los miembros de la familia crean que ha llegado la hora de incapacitarlo. La institución de la autotutela, introducida en la legislación estatal española por medio de la ley 41/2003, y, previamente, en el derecho catalán con la Ley 11/1996, de 26 de julio, que modifica la Ley 39/1991, de 30 de diciembre, de la Tutela e Instituciones Tutelares, con nueva regulación catalana de manera detallada en la Ley 25/2010, de 29 de julio, del libro segundo del Código civil de Cataluña, relativo a la persona y la familia, ha significado un verdadero hito, lo cual en Galicia también ha sido objeto de regulación en la Ley 2/2006, de 14 de junio de Derecho Civil de Galicia, que, por dicha razón, aparte de la regulación de la adopción, se encuentra recurrida ante el Tribunal Constitucional, que ha declarado nulos dichos preceptos en la citada sentencia 133/2017. La autotutela puede recomendarse para prever y decidir lo que puede acontecer en el futuro Mediante el nombramiento de tutor se protege realmente a la persona mayor ya que en los momentos en que ella no tenga la suficiente capacidad para gobernarse, habrá una tercera persona, designada por ella misma, que cuidará de su persona y de sus bienes, con todas las garantías legales. Sin embargo, en la práctica hay pocas personas dispuestas a hacer de tutores, incluso entre los familiares cercanos. Es por ello que se hace necesaria la existencia de entidades que realicen las funciones de tutela que antes correspondían a los hijos o familiares. Con el fin de poder ejercer las tutelas con la dedicación y responsabilidad que requieren se necesitan importantes recursos tanto económicos como personales. Convendría, por tanto, intentar sensibilizar a la sociedad y a las instituciones para que apoyen a las entidades tutelares en la

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consecución de estos recursos. Es la única forma de que la protección de la persona mayor que nos ofrece el Derecho pueda ser, cada vez más, una realidad. En lo que respecta a su naturaleza jurídica es un negocio jurídico de carácter unilateral, porque la declaración negocial procede “ex uno latere”, sin que, por tanto, se necesite para su perfección de la aceptación de nadie ni de ninguna otra parte, no siendo un negocio recepticio en tanto en cuanto no se requiere manifestación del nombrado. Tiene, en todo caso, carácter personalísimo, porque el negocio de autodelación de la tutela sólo puede ser llevado a efecto por el propio interesado, sin que sea delegable su realización en un tercero que no lo podría haber llevado a cabo y, desde luego, es un negocio jurìdico inter vivos, porque ha de producir sus efectos siempre en vida del declarante y nunca mortis causa, siendo solemne, en tanto que, para su validez, debe recogerse siempre en documento público notarial, así como revocable, al igual que sucede con el tes- En un país como España, tamento (artículo 737 del Código civil español), siendo y también Portugal, entre otros, mucho más correcto desde el punto de vista técnico la dic- en el que la justicia civil se ción del texto aragonés visto que habla de escritura pública encuentra crónicamente al al igual que se hace en Cataluña o Galicia en lugar de la men- borde del colapso, es un lujo, ción a documento público notarial que se contiene en el que no nos podemos permitir, vigente artículo 223 del Código Civil de España. prescindir de las técnicas de Para encontrarnos en la ley española con una definición autonomía privada por lo que la de lo que es Autotutela debemos acudir al Preámbulo de la institución de la autotutela ha misma ya que a lo largo de su artículado no aparece ninguna significado un paso adelante definición, tal y como habíamos apuntado anteriormente, muy importante dado que es de tal suerte que la definición que la ley nos ofrece es la de positivo facultar expresamente a “… la posibilidad que tiene una persona capaz de obrar de una persona para que pueda adoptar las disposiciones que estime convenientes en previ- tomar decisiones sobre su futura sión de su propia futura incapacitación, lo cual puede ser asistencia personal. especialmente importante en el caso de enfermedades degenerativas”, en términos que adolecen de rigor y preci- Convendría, por tanto, intentar sión como cuando se refiere a “cualquier disposición” y a sensibilizar a la sociedad y a las continuación añade “incluida la designación de tutor”, que instituciones para que apoyen a entra dentro de cualquier disposición y, sin embargo, no se las entidades tutelares en la especifica la autotutela negativa, es decir la exclusión de consecución de estos recursos. determinadas personas a que se refieren, en cambio, expre- Es la única forma de que la samente la normativa catalana, aragonesa y gallega, pudien- protección de la persona mayor do haberse aprovechado para referirse también de modo que nos ofrece el Derecho pueda expreso al curador, al que puede entenderse aludido al ser, cada vez más, una realidad. amparo de lo dispuesto en el artículo 291 del Código Civil. El artículo 223 del Código civil español queda, así, redactado en los siguientes términos: “Los padres podrán en testamento o documento público notarial nombrar tutor, establecer órganos de fiscalización de la tutela, así como designar las personas que hayan de integrarlos u ordenar cualquier disposición sobre la persona o bienes de sus hijos menores o incapacitados”, añadiéndose, a continuación que “asismismo, cualquier persona con la capacidad de obrar suficiente, en previsión de ser incapacitada judicialmente en el futuro, podrá en documento

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público notarial adoptar cualquier disposición relativa a su propia persona o bienes, incluida la designación de tutor. Los documentos públicos a los que se refiere el presente artículo se comunicarán de oficio por el notario autorizante al Registro Civil, para su indicación en la inscripción de nacimiento del interesado. En los procedimientos de incapacitación, el juez recabará certificación del Registro Civil y, en caso del registro de actos de última voluntad, a efectos de comprobar la existencia de las disposiciones a las que se refiere este artículo”. Por lo que respecta al primer párrafo de este artículo entiendo que la vía testamentaria, a que también se alude en Aragón, no es la más adecuada para recoger las disposiciones de la autotutela, ya que la autotutela es un negocio jurídico inter vivos, y el testamento es el prototipo de los negocios jurídicos mortis causa. Considero que la escritura pública es el medio idóneo para recoger la autotutela, y ello porque según el artículo 144.2 del del Reglamento Notarial en España, “contenido propio de las escrituras públicas son las declaraciones de voluntad, los actos jurídicos que impliquen prestación de consentimiento y los contratos de todas clases. Por el contrario el contenido de las actas son los “hechos jurídicos que por su índole peculiar no pueden calificarse de actos o contratos” tal y como dispone el artículo 144.3 del Reglamento Notarial citado, siendo, por todo ello más precisos los textos de Aragón, Cataluña o Galicia que hablan de escritura pública. Por lo demás, estimo que esa designación podría hacerse en escritura pública que tuviese por esencial finalidad otro negocio jurídico distinto, ya que del tenor literal del artículo 223 del Código civil español sólo se deduce que es preciso que la designación de tutor se haga en “documento público notarial” sin indicar en ninguna parte que ese documento público haya de tener por objeto único tal designación, por lo que también es criticable la referencia que se hace, al igual que en Aragón, a cualquier disposición, con falta de rigor. Por lo que respecta al segundo párrafo del supradicho artículo 223, entiendo que no solo los mayores de edad pueden realizar el negocio de la autotutela sino que también los menores de edad emancipados, ya que este artículo nos habla de “cualquier persona”, añadiendo “con la capacidad de obrar necesaria”, lo que originar problemas de interpretación por la falta de rigor del legislador en esa expresión, que es mucho más acertada y precisa en Aragón, que alude a “cualquier persona mayor de edad y con la capacidad de obrar suficiente”, precisándose en Galicia y Cataluña que se circunscribe a personas mayores de edad. Y pienso de acuerdo con el Código Civil español que se debería de reconocer al emancipado esa capacidad para la autotutela ya que el artículo 323 del Código civil le habilita “para regir su persona y bienes como si fuera mayor”, aunque le impide realizar por sí solo exclusivamente una serie de actos (tomar dinero a préstamo, gravar o enajenar bienes inmuebles y establecimientos mercantiles o industriales u objetos de extraordinario valor), para los que le exige la asistencia de sus padres o curador. Mas nótese que, en relación con estos actos, el consentimiento definitivo para su realización procede siempre del emancipado, no del curador, que tan sólo le presta asistencia, pero sin que en ningún momento la voluntad de aquél pueda ser sustituida por la de éste, ya que el curado no es un representante legal del emancipado. Pero, además el artículo 323 del Código civil en España entre estos actos que impide al menor emancipado realizar por sí solo no se encuentra el de la autotutela. Todas estas consideraciones me llevan a admitir que el menor emancipado, de acuerdo con el Código Civil español, debería poder realizar por sí solo el negocio jurídico de la autotutela.

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Con respecto a los dos últimos párrafos de este artículo, habría que haber adoptado una solución “a la catalana”, es decir, dado que esos negocios jurídicos de autotutela sólo podrían perfeccionarse por escritura pública, requisito ad solemnitatem, a efectos de su publicidad debería crearse un Registro especial al que los notarios vinieran obligados a dar cuenta de las escrituras de autotutela que vayan autorizando. Este Registro especial debería estar inserto en la Dirección General de los Registros y del Notariado y tener competencia en el ámbito estatal, según dicho autor, que es mucho más atinado que la regulación actual que se refiere al Registro Civil, donde aparece el nacimiento En lo que se refiere al nombramiento de tutor, se modifica el artículo 234 del Código civil español párrafo primero de tal manera que se preferirá, en primer lugar, al designado por el propio tutelado, conforme al párrafo segundo del artículo 223, tras lo que figura el cónyuge que conviva con el tutelado, los padres, la persona o personas designadas por éstos en sus disposiciones de última voluntad y, en último lugar, el descendiente, ascendiente o hermano que designe el juez”, si bien en 2003 no se modificó ni el resto de párrafos del artículo 234 ni los artículos 233 o 235 por lo que no le vinculan al Juez las disposiciones nombrando tutor dado que puede alterar el orden, en resolución motivada en beneficio del incapacitado, ignorando la designación del tutelado “en resolución motivada” a diferencia de la más rigurosa redacción aragonesa que se lo permite sólo por “circunstancias especiales”. Por último, se añade un nuevo párrafo al artículo 239 del Código civil de España de tal manera que este será su contenido: “La entidad pública a la que, en el respectivo territorio, esté encomendada la tutela de los incapaces cuando ninguna de las personas recogidas en el artículo 234 sea nombrado tutor, asumirá por ministerio de la Ley la tutela del incapaz o cuando éste se encuentre en situación de desamparo. Se considera como situación de desamparo la que se produce de hecho a causa del incumplimiento o del imposible o inadecuado ejercicio de los deberes que le incumben de conformidad a las leyes, cuando éstos queden privados de la necesaria asistencia moral o material”. Este nuevo párrafo al artículo 239 del Código civil de España viene a ser una especie de cláusula de salvaguardia para los casos de falta de nombramiento de tutor, donde se proclama sin ambigüedades, la responsabilidad de las

El derecho y la práctica del entorno de países semejantes nos sirven para pensar que hay que ir en este tema lo más lejos posible puesto que no hay duda de los efectos altamente positivos de la atribución de facultar expresamente a una persona para que pueda tomar decisiones sobre su futura asistencia personal y que así pueda buenamente ordenar, con el grado de precisión que considere más adecuado, el mejor modo de administración de su patrimonio, en el momento en que aún tiene determinada autonomía personal con la finalidad no disimulada de que pueda ir generando su eficacia de modo progresivo con anterioridad al momento en que el resto de la familia piense en la posibilidad de su incapacitación. Se trata de buscar las fórmulas jurídicas más adecuadas para posibilitar el tránsito progresivo de la autonomía personal plena a la dependencia de terceros y conseguir que el propio afectado, que es el principal afectado, pueda percibir que gestiona desde el comienzo, a su entera voluntad, el desarrollo de este proceso, lo que contribuye a su mejoría personal, evitando más angustias de las necesarias y tiene un efecto terapéutico consecuente que no se puede poner en duda.

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Administraciones públicas en la protección de los incapacitados desamparados. En el fondo se trata de un compromiso social a favor de las personas que no pueden valerse por sí mismas por razón de enfermedad o disminución psíquica y se encuentran desatendidas, ya sea porque no han sabido o podido tomar previsiones con anterioridad, o porque no se les asiste en su entorno familiar. La responsabilidad pública, ciertamente, debe ser subsidiaria, pero es ineludible y, por lo tanto, se debería instrumentar su ejercicio por vía de la delegación de funciones en profesionales o entidades no lucrativas que cumplan admirablemente estas finalidades de protección. Con este nuevo párrafo al artículo 239 del Código civil español se hace efectivo el artículo 49 de la Constitución Española que impone a los poderes públicos el deber de prestar a los disminuidos físicos, psíquicos y sensoriales la atención especializada que requieren y el amparo para disfrutar de los derechos que les corresponden como ciudadanos. El derecho y la práctica del entorno de países semejantes nos sirven para pensar que hay que ir en este tema lo más lejos posible puesto que no hay duda de los efectos altamente positivos de la atribución de facultar expresamente a una persona para que pueda tomar decisiones sobre su futura asistencia personal y que así pueda buenamente ordenar, con el grado de precisión que considere más adecuado, el mejor modo de administración de su patrimonio, en el momento en que aún tiene determinada autonomía personal con la finalidad no disimulada de que pueda ir generando su eficacia de modo progresivo con anterioridad al momento en que el resto de la familia piense en la posibilidad de su incapacitación. Se trata de buscar las fórmulas jurídicas más adecuadas para posibilitar el tránsito progresivo de la autonomía personal plena a la dependencia de terceros y conseguir que el propio afectado, que es el principal afectado, pueda percibir que gestiona desde el comienzo, a su entera voluntad, el desarrollo de este proceso, lo que contribuye a su mejoría personal, evitando más angustias de las necesarias y tiene un efecto terapéutico consecuente que no se puede poner en duda.

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O DOCUMENTO PARTICULAR AUTENTICADO NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS ISA RAQUEL PINTO PEREIRA Licenciada em Solicitadoria, Jurista

RESUMO A titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, em especial, por documento particular autenticado (documento propriamente dito e termo de autenticação), constitui assim um indispensável instrumento de trabalho para todas as entidades que titulam atos ou negócios jurídicos sobre imóveis. Atento o objetivo de desmaterialização dos atos e procedimentos de registo predial, o Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, (artigo 38.º n.º 1 e 3) cria condições para que os Solicitadores prestem serviços relacionados com bens imóveis, atuando no domínio da autenticação de documentos particulares, bem como reconhecimento presencial de assinaturas em documentos, primando pela segurança jurídica e salvaguarda da legalidade. Nesta senda, o Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, aprovou medidas de simplificação na área do registo predial,

com o intuito de eliminar formalidades e procedimentos registrais e notariais, permitindo, em alternativa à escritura pública que se torna facultativa, celebrar atos de compra e venda de imóveis por documento particular autenticado. Com a reformulação do regime, cuja vigência se inicia em 1 de janeiro de 2009, é criado um sistema de segurança adicional, através da realização obrigatória de um depósito eletrónico dos documentos relativos ao ato praticado por documento particular autenticado, que poderá ser efetuado em simultâneo com o pedido de registo predial, pela entidade autenticadora, reduzindo assim, formalidades dispensáveis nas áreas de registo predial.

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INTRODUÇÃO

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retende-se, com o presente estudo, englobar todas as formalidades e requisitos necessários que devem ser observados na titulação de negócios jurídicos sobre imóveis, designadamente num contrato de compra e venda celebrado por documento particular autenticado (DPA). Para que o processo de compra e venda decorra com a maior segurança jurídica para os intervenientes, o conjunto de procedimentos a realizar na aquisição de um imóvel requer um cuidado especial na verificação da documentação. O Estatuto do Notariado regula, no artigo 11.º, o princípio da legalidade, e face aos documentos apresentados ou exibidos, perante as disposições legais, deve a entidade que titula o ato, verificar especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal e substancial dos referidos documentos e a legalidade substancial do ato solicitado, devendo recusar a prática do ato quando forem nulos, cf. artigo 173.º n.º 1 a), do código do notariado (CN). Não constitui motivo de recusa a prática do ato meramente anulável, devendo, neste caso advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita. O Solicitador poderá auxiliar as partes na redação adequada do documento particular1 ou redigir ele próprio o documento/contrato que depois será assinado apenas pelas partes contratantes. Nada obsta que o Solicitador não possa elaborar o documento particular 2, é aconselhável face às exigências de requisitos e dos pressupostos a verificar, adequando, assim, a vontade das partes com a legalidade, especialmente os atos sujeitos a registo (Cf. artigo 41.º 42.º 46.º CN), e alertando para as obrigações fiscais inerente do contrato de compra e venda.

I. ESCRITURA PÚBLICA E DOCUMENTO PARTICULAR AUTENTICADO (DPA) Por exigência do artigo 80.º, (com as várias alíneas revogadas) do CN, até 1 de janeiro de 2009 e ressalvados os atos praticados nos termos da legislação especial previstos no artigo 81.º CN, certos atos que importassem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis, era exigida escritura pública3. 1 Os documentos particulares, sempre que autenticados por uma entidade competente, gozam da mesma força probatória que os autênticos. Cf. Artigo 35.º n.º 3 CN e 373 CC. 2 “Num primeiro momento, o documento particular é outorgado e assinado pelas partes. A entidade autenticadora não outorga o documento, não consigna as declarações de vontade das partes por forma expressa e adaptada ao normativo aplicável ao negócio jurídico por elas desejado, e não subscreve o documento com as partes. Poderá, quando muito, não como entidade autenticadora mas enquanto profissional habilitado e no exercício da sua função de aconselhamento técnico-jurídico, auxiliar as partes na redação do documento ou redigir ela própria o documento que depois será assumido e assinado pelas partes.” P.º R.P. 67/2009 SJC-CT, disponível em www.irn.mj.pt, 3 Vide, Dicionário Jurídico – Ana Prata – , Vol. I, 5.ª Edição, Pág. 607, de define escritura pública “É um documento autêntico, realizado pelo notário, que constitui a forma legal de alguns negócios jurídicos. O código do notariado enunciava, embora não taxativamente, os atos para cuja validade a lei exigia a escritura pública no seu artigo.º 89.º, contendo o novo código, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, no respetivo artigo 80.º, cuja última redação é a do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, (retificado pela declaração de retificação n.º 28-A/2006, de 26 de Maio), – uma enumeração muito mais sucinta. O n.º 1 deste artigo estabelece que se celebram, “em geral, por escritura pública, os atos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis”.

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Isa Raquel Pinto Pereira

Existem elementos que caracterizam a escritura pública e a diferenciam do documento particular autenticado, sendo que é um documento elaborado exclusivamente pelo notário e subscrito pelas partes, i.e., as declarações de vontade são consignadas de forma expressa e escrita, exprimindo e solenizando a vontade das partes conforme regula o artigo 42.º n.º 2 do CN. A competência para lavrar escrituras públicas pertence aos notários, conforme artigo 4.º n.º 2 alínea b) do CN, e estas são feitas nos livros de notas que são acervo do próprio cartório. – Cf. Artigo 36.º n.º 1 CN. O Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, adotou medidas que visam reduzir obstáculos burocráticos e fornecer toda a informação aos cidadãos, para a aquisição de imóveis, de forma célere, segura e com menores custos associados, adotando medidas de simplificação, desmaterialização e desformalização dos atos e procedimentos que incidem nos atos sobre imóveis. Revogou parcialmente o artigo 80.º do CN, passando a revelar, nesta matéria, o artigo 22.º do citado Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, que são válidos todos os atos O documento particular que constam das alíneas a) a g), do mesmo artigo, que forem autenticado passou a ser um celebrados por escritura pública ou por documento particu- meio alternativo à escritura lar autenticado. pública realizada pelo notário, O documento particular autenticado passou a ser um e a transparência pressuposta meio alternativo à escritura pública, realizada pelo notário, e pelo legislador demanda que as a transparência pressuposta pelo legislador demanda que as partes são livres de optar pela partes são livres de optar pela escritura pública ou pelo escritura pública ou pelo documento particular autenticado. Tornou-se obrigatório documento particular proceder ao depósito eletrónico na prática dos atos elenca- autenticado. dos no artigo 22.º do DL4. Neste sentido, o Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março5, atribui competência aos Solicitadores para autenticar documentos particulares. Surgem, assim, no ordenamento jurídico Português, novas entidades com competência para dar forma legal aos atos jurídicos extrajudiciais, através da autenticação de documento particular que as partes lhe apresentam. O n.º 2 do artigo 150.º do CN refere que, “Apresentado o documento para fins de autenticação”, a entidade que autentica “deve reduzir este a termo6”, no próprio contrato ou em folha anexa. Este diploma visa criar condições para que os solicitadores prestem serviços relacionados com negócios relativos a bens imóveis, com a inerente redução de custos para os cidadãos, prestando a assessoria necessária para uma mais cómoda e célere realização do negócio e evitando, aos cidadãos, deslocações desnecessárias aos serviços de registo. Como elemento de segurança adicional, o termo de autenticação implica a assunção de várias obrigações, designadamente obrigações de verificação, comunicação ou participação Escolhido o procedimento por DPA, deverão ser observadas as regras que lhes são próprias, Cf. Processo R.P. 67/2009 SJC-CT, disponível em www.irn.mj.pt 5 Atualmente com a redação atualizada pelo Decreto-Lei n.º 250/2012, de 23 de novembro. Cf. artigo 38.º do citado diploma. 6 Cf. artigo 151.º n.º 1 a) do CN, o termo de autenticação, para além dos requisitos do artigo 46.º n.º 1 alíneas a) a n), deve mencionar que as partes já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade. 4

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O DOCUMENTO PARTICULAR AUTENTICADO NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS

relacionadas com a prática dos atos, como resulta do artigo 23.º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, ou seja, as obrigações que têm os notários são as mesmas das entidades que procedem ao termo de autenticação nos documentos particulares. Prevê-se, neste diploma, que o termo de autenticação, para ter validade, deve realizar-se um depósito eletrónico dos documentos relativos ao ato praticado por documento particular autenticado, conforme preceitua o artigo 24.º n.º 2 do citado diploma.

II. A TITULAÇÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS POR DOCUMENTO PARTICULAR AUTENTICADO (DPA)7 O Contrato8 de compra e venda9 está regulado no Código Civil (CC), no seu artigo 874.º “Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.” É um contrato especial, típico ou nominado e real. Diz-se que é um contrato real quoad effectum, justamente por transferência do direito, designadamente real, objeto do negócio jurídico. Quanto à forma, a regra é a da consensualidade, i. e., os negócios jurídicos não dependem de forma especial, salvo quando a lei exigir, Cf. Artigo 299.º CC. Ora, para o contrato de compra e venda, preceitua o artigo 875 CC que só é válido “se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado.” A inobservância da forma legal acarreta a nulidade, conforme prevê o artigo 220.º CC. Posto isto, o contrato de compra e venda tem, necessariamente, de revestir forma legal. Constitui uma das fontes das obrigações e consiste no acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado, e aceitação, do outro), contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses.10 É fundamental que as declarações de vontade sejam de mútuo consenso e assim vigora no ordenamento jurídico português o princípio consensual, o direito de propriedade adquire-se, no caso de contrato, por mero efeito do mesmo, conforme artigo 1317.º alínea a) e artigo 408.º n.º 1 do CC. Um dos princípios de direito registral que o Solicitador deve ter o cuidado de verificar é a legitimação de direitos, ou seja, quem aliena ou quem onera tem de estar legitimado para o fazer, sem o que nunca poderia haver segurança no comércio jurídico.11 Os bens têm que O Documento Particular Autenticado vem titular atos anteriormente reservados exclusivamente a escritura pública. Vide, Dicionário Jurídico – Ana Prata – , Vol. I, 5.ª Edição, pág. 370, que define contrato “É o negócio jurídico bilateral ou plurilateral, isto é integrado por duas ou mais declarações negociais exprimindo vontades convergentes no sentido da realização de um objetivo comum que justifica a tutela do direito. É, pois, a convenção pela qual duas ou mais pessoas constituem, regulam, modificam ou extinguem relações jurídicas, regulando assim juridicamente, os seus interesses. O contrato é, o instrumento que a ordem jurídica faculta aos sujeitos para, por acordo, realizarem as operações económicas e sociais que lhes convêm, atribuindo a esses acordos carácter jurídico, isto é, vinculativo.” 9 Vide, Dicionário Jurídico – Ana Prata – , Vol. I, 5.ª Edição, Pág. 320, de define compra e venda “É um contrato com eficácia real, pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante um preço. Para além deste efeito essencial do contrato que é a transmissão da titularidade do direito, decorrem ainda da compra e venda obrigações para as partes: são elas a entregar a coisa vendida e a pagar o respetivo preço. 10 Cf. Antunes Varela – Das obrigações em geral – Vol. I, pág. 214. 11 J. A. Mouteira Guerreiro, Noções de Direito Registral, Coimbra Editora, página 72. 7 8

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estar definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo, conforme preceitua o artigo 9.º n.º 1 do Código de Registo Predial (CRP).

III. DOCUMENTOS INSTRUTÓRIOS NECESSÁRIOS NA COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS Por razões de segurança jurídica e ordem pública, a lei estabelece cada vez mais limitações à celebração dos contratos de compra e venda, o que obriga a entidade que titula o ato à observância de determinados requisitos e à exigência de diversos documentos para a instrução do ato. Sob pena dos mesmos serem nulos, virem a ser anulados ou se mostrem irregulares. Previamente à titulação definitiva do imóvel, deverá proceder-se às formalidades12 necessárias de verificação da documentação do prédio. – Verificar se o princípio da legitimação de direitos é cumprido, ou seja, na transmissão de direitos sobre imóveis, não podem ser titulados atos, sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito, cf. artigo 9.º CRP e artigo 54.º n.º 2 CN13; – A verificação da identidade dos outorgantes deve ser efetuada cumprindo alguma das formas previstas no disposto no artigo 48.º CN; – Na identificação do prédio deve constar o número da respetiva inscrição na matriz ou de pedido de inscrição, nos termos do artigo 57.º n.º 1 do CN. A prova faz-se pela apresentação da caderneta predial, atualizada, que pode ser consultada e obtida eletronicamente, sem custos, no portal da Autoridade Tributária14; – Na identificação do prédio, a informação não pode ser contraditória com o que consta do registo ou da matriz, nos termos do artigo 58.º CN, não devem existir divergências quanto à localização, área e artigo da matriz. A descrição predial e a inscrição matricial devem estar em harmonia. Nos atos que contenham factos sujeitos a registo devem constar as menções obrigatórias referentes ao artigo 44.º n.º 1 a) a c) do CRP, artigo 47.º n.os 1 e 2 e artigo 54 n.º 1 CN; – Certidão Permanente da descrição predial atualizada, que pode ser consultada online, fazendo um pedido de subscrição na plataforma eletrónica, sendo atribuído um código de acesso que, após o validar, dará acesso aos registos em vigor daquele imóvel e aos que se encontram pendentes; – Se o prédio não estiver descrito, é necessário obter uma certidão negativa, emitida pela Conservatória do Registo Predial, da área da situação do prédio;

Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição, pág. 704, as formalidades “são atos ou factos complementares cuja satisfação ou verificação são exigidas para a prática do ato ou para a celebração do negócio.” 13 Exceções – cf. artigo 35.º do CRP “É dispensada a inscrição intermédia em nome dos titulares de bens ou direitos que façam parte de herança indivisa.” Se o primeiro ato de transmissão for posterior a 01 de Outubro de 1984, desde que exiba documento comprovativo da aquisição, para posterior cumprimento do princípio do trato sucessivo (em prédios situados em concelhos onde não tenha vigorado o registo obrigatório – cf. artigo 55.º CN e 9.º n.º 3 CRP. 14 www.portaldasfinancas.gov.pt/ 12

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– Na alienação e oneração de bens imóveis próprios ou comuns do casal, os artigos 1682.ºA e 1683 n.º 2 do CC referem que carece de consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime da separação de bens15. Não obstante, no regime da separação de bens, a alienação ou oneração da casa de morada de família carece sempre do consentimento de ambos os cônjuges, cf. artigo 1682.º-A n.º 2 CC; – Tratando-se da venda de uma fração autónoma de um prédio constituído em propriedade horizontal16, é necessário que se comprove a inscrição deste facto no registo, nos termos do artigo 62.º do CN. Averiguar a situação contributiva perante o condomínio (se existir) e será prudente solicitar uma cópia do regulamento de condomínio e das atas da assembleia de condóminos; – O Decreto-Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro, estabelece as limitações na transmissão de imóveis, classificados ou em vias de classificação como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal, cf. artigo 15 n.º 2 do citado DL. Se o imóvel for classificado como de interesse nacional cultural, público ou de interesse municipal, em zonas de recuperação, ou em vias de classificação, cf. artigo 35.º, gozando os seus comproprietários, o Estado (através do IPPAR), as Regiões Autónomas e os Municípios do Direito de Preferência, no caso de compra e venda. O exercício do direito de preferência está dependente da prévia comunicação aos serviços competentes, sem os quais será motivo impeditivo da realização do título, cf. artigo 36.º, n.º 1, e artigo 38.º, n.º 1, do DL. A comunicação do direito de preferência17 deverá ser dirigida ao serviço competente para a instrução do respetivo procedimento. A Portaria n.º 1535/2008, de 30 de dezembro, no artigo 27.º n.º 1, refere que a comunicação poderá ser feita no sítio da Internet www.casapronta.mj.pt 18 ou em www. predialonline.mj.pt. No prazo de 10 dias úteis, se nenhuma das entidades públicas, que possa exercer o direito de preferência, não se pronunciar, significa que não o querem exercer. Averiguar, além do direito de preferência supra mencionado, se deve ser feita alguma comunicação de direito de preferência de arrendatários “na compra e venda do local arrendado há mais de três anos” [cf. artigo 1091.º n.º 1, alínea a) CC], ou em determinadas circunstâncias, dos proprietários confinantes de terrenos rústicos de área inferior à unidade de cultura19; – O Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de agosto de 1951, aprova o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aplicável à exigência de apresentação da licença20 de construção ou de utilização, pelo que não haverá lugar à exibição da autorização da licença se se provar que o prédio foi construído anteriormente a essa data. A prova poderá ser 15 Se vigorar o regime de separação judicial de pessoas e bens é permitida a celebração de contratos de compra e venda entre cônjuges, cf. artigo 1714.º n.º 2 CC. 16 “O fim precípuo da constituição de um edifício em propriedade horizontal é o de assegurar a possibilidade de sobre as partes do mesmo, juridicamente autonomizadas, incidirem poderes jurídicos de titularidade singular” – Carvalho Fernandes, pág. 1/14, Da natureza jurídica do direito de propriedade horizontal. 17 A propósito do direito de preferência concedido ao município: Vide:http://balcaovirtual.cm-porto.pt/PT/cidadaos/ guiatematico/cul_tur_dpt/pat/pat_cull/direitopreferencia/Paginas/actividade.aspx 18 O Decreto-Lei n.º 263-A/2007, de 23 de Julho, criou o procedimento Casa Pronta. Permite a comunicação do direito de preferência às respetivas entidades, cf. artigo 18.º e 19.º. 19 As áreas de cultura, em Portugal Continental, estão definidas na Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril, enquanto não for publicada a Portaria a que se refere o artigo 49.º da Lei 111/2015, de 27 de Agosto, que estabelece o Regime Jurídico da Estruturação Fundiária. 20 Cf. artigo 8.º RGEU – A utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada, quando da alteração resultem modificações importantes nas suas características, carece de licença municipal.

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efetuada por uma certidão emitida pela conservatória do registo predial, certidão camarária ou através do ano de inscrição na matriz pela própria caderneta predial21; Nos termos do Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de julho, na transmissão do direito de propriedade de prédios urbanos e suas frações autónomas é exigível a apresentação da Autorização de utilização, cf. artigo 1.º n.º 1 do citado DL. No entanto, poderá ser dispensada da exibição, quando esteja anotada à descrição predial e o prédio não tenha sofrido alterações, cf. artigo 90.º-A alínea a) do CRP. A exigência da apresentação da autorização de utilização é uma forma de combater a transmissão de edificações clandestinas construídas sem que tenham sido precedidas das autorizações devidas, garante a conformidade com o projeto aprovado; as condições de licenciamento e o uso da autorização pelo respetivo alvará. Protege os interesses públicos e privados (Cf. artigo 74.º n.º 3 RJUE), vai no sentido de uma maior segurança no comércio jurídico imobiliário. A entidade que autenticar o documento particular deve consignar no título o número e a data da licença de utilização, cf. artigo 2.º n.º 6, bem como a advertência aos outorgantes relativa ao plasmado nos artigo 2.º, n.º 2, e artigo 3.º; – O regime jurídico da edificação e da urbanização aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro e alterado pela Lei n.º 60/2007, de 4 de setembro, regula as operações urbanísticas dos loteamentos urbanos. Dispõe o artigo 49.º, n.º 1, do DL citado, que nos títulos relativos a atos ou negócios jurídicos, que resulte a constituição de lotes, deve constar22 o número de alvará (cf. artigo 74.º n. 1 do RJUE), ou da comunicação prévia (cf. artigo 14.º n.º 2 do RJUE), a data da sua emissão, a data de caducidade e a certidão de registo predial. Refere o artigo 49.º n.º 2, 3 e 4, que numa primeira transmissão de prédios urbanos ou frações autónomas, construídos nos lotes, deve ser exibida, perante a entidade que autentica o negócio, comprovativo da receção provisória das obras de urbanização ou certidão comprovativa que a caução é suficiente para garantir a boa execução das obras de urbanização. Os negócios jurídicos praticados com violação da obrigatoriedade de exibição e identificação do alvará de loteamento ou da comunicação prévia são nulos, por incumprimento de disposições legais imperativas (cf. artigo 294 CC); – Verificar a existência da ficha técnica de habitação (FTH), criada pelo Decreto-Lei n.º 68/2004, de 25 de março. Nos termos do artigo 19.º do citado DL, o modelo da ficha técnica de habitação é aprovado pela Portaria 817/2004, de 16 de julho, e entrou em vigor a 16 de agosto de 200423, foi criada com o intuito de reforçar os direitos dos consumidores à informação e proteção dos seus direitos económicos, no âmbito da aquisição de prédio urbano para habitação. É um documento descritivo que contém um conjunto de informações (Cf. artigo 7.º, do citado DL) relativas às características da habitação à data da conclusão das obras e é da competência do técnico responsável da obra e do promotor imobiliário (Cf. artigo 4.º) atestar a correspondência das informações dela constante. (Apenas para os prédios edificados e em relação aos quais exista licença de utilização emitida ou requerida após 30 de março de 2004). A existência Em determinados concelhos, o RGEU entrou em vigor em data posterior a 07 de Agosto de 1951, pelo que só a partir dessa data é exigível a autorização de licença. 22 O artigo 4.º do RJUE elenca as operações urbanísticas sujeitas a licença administrativa, nas quais se incluem as operações de loteamento. 23 Artigo 5.º da citada portaria “A presente portaria entra em vigor 30 dias após a sua publicação”. 21

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pode ser anotada à descrição – artigo 90.º-A, n.º 1, alínea b) CRP, não dispensando a sua entrega física. Nos termos do artigo 9.º n.º 1 – Sem prejuízo de outras normas aplicáveis, não pode ser celebrado documento particular autenticado que envolva a aquisição da propriedade de prédio ou fração destinada a habitação sem que a entidade que autentica se certifique da existência da ficha técnica da habitação e de que a mesma é entregue ao comprador. O proprietário do imóvel tem a obrigação de conservar a FTH e, em caso de venda, transmiti-la ao novo proprietário. Em caso de perda ou extravio, o proprietário poderá obter uma segunda via junto do promotor do imóvel ou da Câmara Municipal da área, onde a mesma deve ser depositada. Embora não refira expressamente no preâmbulo, face ao explanado nos artigos 3.º n.º 3 e 9.º n.º 1 e 2, podemos concluir que a ficha técnica de habitação apenas é exigível para os negócios jurídicos onerosos. O próprio diploma, no artigo 2.º n.º 2, exclui expressamente da sua aplicação: “a) Aos prédios construídos antes da entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de agosto de 1951; b) Aos prédios que se encontrem edificados sobre os quais exista licença de utilização ou haja requerimento apresentado para a respetiva emissão à data da entrada em vigor do presente diploma.” – É necessário cumprir as obrigações de comunicação e participação impostas pelo artigo 23.º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, referentes ao artigo 49.º, n.os 1 e 5 do CIMT, salvo se o registo do ato for pedido por via eletrónica, é dispensada a participação às entidades públicas, devendo estas participações ser promovidas pelos serviços de registo, cf. artigo 24.º n.º 4, do DL; – Certificado energético, relativo ao desempenho energético dos edifícios, conforme consta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 194/2015, de 14 de setembro; – A partir de 1 de janeiro de 2009, todos os imóveis, quando transacionados ou arrendados deverão possuir um certificado energético, cuja responsabilidade de apresentação na celebração dos contratos é do atual proprietário. A inexistência de certificado energético (SCE) ou pré-certificado não é impedimento à celebração do contrato mas deve ser inserido a advertência das consequências24; – Intervenção de mediador imobiliário, nos negócios jurídicos sobre imóveis, deve fazer-se a menção, face à declaração dos intervenientes, da intervenção ou não de mediador imobiliário no negócio em causa, e das consequências de falsas declarações. Deve indicar a denominação social e número de licença. A Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, estabelece o regime jurídico a que fica sujeito o acesso e o exercício da atividade de mediação imobiliária; – Advertência – nos atos anuláveis ou ineficazes, a entidade que autentica não pode recusar a sua intervenção, mas deve advertir as partes da existência do vício e consignar no termo de autenticação a advertência que tenha feito. Cf. Artigo 174.º n.º 2 do CN; 24 Sistema Nacional de Certificação Energética e da Qualidade do Ar interior dos Edifícios – SCE, n.º 1 do artigo 3.º do DL 78/2006, de 4/4 e Portaria n.º 461/2007 de 5/6.

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– Cumprimento das obrigações fiscais, ao abrigo do artigo 25.º do Decreto-Lei 116/2008, de 4 de julho: a) IMPOSTO DE SELO – IS Um dos impostos25 que incidem sobre o contrato de compra e venda é o Imposto de Selo (IS).26 Um facto incide, normalmente, numa componente objetiva, i.e., a prática daquele facto é enquadrada numa das situações abrangidas pelo imposto; e numa componente subjetiva, que relaciona os sujeitos27 da obrigação tributária ao pagamento do imposto. Para haver lugar a imposto é necessário existir o facto tributário. “O facto tributário consiste no facto gerador do imposto que deriva ou é pelo menos influenciado nos seus contornos pela celebração dum negócio jurídico de determinado tipo, surgindo sempre a obrigação do imposto ligada à prática de atos, ao exercício de atividades e ao gozo de situações, que são disciplinadas enquanto tais pelo direito privado.” (Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo n.º 00312/04, de 18 de Janeiro de 2005).28 Determinada a matéria tributável e enquadrando-se o facto em alguma das previsões da Tabela Geral, é determinada, consequentemente, a operação aritmética consistente na aplicação da taxa do imposto à matéria coletável para determinação do montante líquido do imposto. Na aquisição onerosa do direito de propriedade sobre imóveis, aplica-se a taxa de 0,8% sobre o preço da transação.29 Ficam objetivamente sujeitos a IS, “todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.” Cf. Artigo 1.º n.º 1 do Código do Imposto de Selo (CIS), ocorridos em território nacional. O artigo 25.º n.º 3, do Decreto-lei n.º 116/2008, de 4 de julho, refere ainda que as entidades com competência para a autenticação de documentos particulares devem assegurar que o imposto de selo, com exceção da verba 1.2, deva ser liquidado nos prazos, termos e condições definidas para o IMT. Teixeira Ribeiro, in Lições de Finanças Públicas, 4.ª Edição, pág. 214, define imposto como: Uma prestação pecuniária – é uma prestação em dinheiro ou equivalente a dinheiro, exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos; – Coativa – O montante do imposto é estabelecido na lei ou por força da lei; – Unilateral – Ao pagamento do imposto não corresponde qualquer contraprestação por parte do Estado; – Sem carácter de sanção – O imposto não tem natureza de penalidade, como a multa. 26 Lei 150/99, de 11 de Setembro, aprova o Código do Imposto de Selo. 27 De uma forma sucinta, conforme resulta do artigo 18.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (LGT), “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” 28 No mesmo sentido Cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, Processo n.º 04816/01, de 11 de Março de 2003, disponível em www.dgsi.pt, “Facto tributário é, tal como ensina a doutrina e a jurisprudência, o facto material que produz efeitos jurídicos fiscais, ou seja, o facto que preenche os pressupostos legais da norma de incidência do imposto e que determina o nascimento da obrigação tributária.” 29 Tabela Geral do Imposto do Selo 1 – Aquisição de bens: 1.1 – Aquisição onerosa ou por doação do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito sobre imóveis, bem como a resolução, invalidade ou extinção, por mútuo consenso, dos respetivos contratos – sobre o valor... 0,8% 25 –

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Com a interpretação da norma que resulta do artigo 5.º alínea a) do CIS, – Nascimento da Obrigação Tributária – , que “A obrigação tributária considera-se constituída: a) Nos atos e contratos, no momento da assinatura dos outorgantes.” A liquidação de imposto, por princípio geral, é feita no momento em que se constitui a obrigação tributária, contudo, a liquidação deverá ser realizada antes de titulado o contrato. b) IMPOSTO MUNICIPAL SOBRE AS TRANSMISSÕES ONEROSAS DE IMÓVEIS – IMT Do contrato de compra e venda de imóveis estão inerentes obrigações fiscais, nomeadamente o IS e o IMT, refere o artigo 23.º n.º 4 do CIS, “tratando-se do imposto devido pelos atos ou contratos previstos na verba 1.1 da tabela geral, à liquidação de imposto aplicam-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMT.” Assim sendo, retiramos, que do artigo 2.º, n.º 1, do CIMT, de um modo geral, o imposto municipal de transmissões (IMT), “incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares30 desse direito, sobre bens imóveis situados em território nacional.” Não podem ser autenticados documentos particulares sem se encontrar pago ou assegurado o IMT e o IS, e do termo de autenticação deve constar o valor dos impostos liquidados e a data da liquidação, ou se estiver isento, apresentar o comprovativo do pedido, conforme artigo 25.º n.º 1, 2 e 3, do Decreto-Lei 116/2008, de 4 de julho. Como dever de cooperação com a Autoridade Tributária, o artigo 49.º do CIMT, impõe “os notários e outros funcionários ou entidades que desempenhem funções notariais, bem como as entidades e profissionais com competência para autenticar documentos particulares que titulem atos ou contratos sujeitos a registo predial, não podem lavrar as escrituras, quaisquer outros instrumentos notariais ou documentos particulares ou autenticar documentos particulares que operem transmissões de bens imóveis nem proceder ao reconhecimento de assinaturas nos contratos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 2.º,” nos casos em que a liquidação e o pagamento devam preceder o ato. Se for reconhecida alguma isenção, deverá mencionar-se no ato titulado e exigir o documento comprovativo que deve ficar arquivado, cf. artigo 49.º, n.º 3, CIMT. Sabemos que o IMT é devido pelas transmissões de factos tributários, cf. artigo 11.º, n.º 2, LGT, cuja causa pode ser um contrato de compra e venda, e qualquer que seja o título por que se operem, cf. artigo 1.º, n.º 1, do CIMT, englobando assim não só as transmissões efetuadas por escritura pública, como também por documento particular autenticado. Regra geral, a liquidação do IMT precede o ato ou facto translativo dos bens, cf. artigo 22.º, n.º 1, do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT) e a iniciativa da liquidação compete, regra geral, aos adquirentes, apresentando, em qualquer serviço de Finanças ou através da Internet, a declaração Modelo 1 do IMT, cf. artigo 19.º, n.º 1, do CIMT e deve conter os elementos constantes do artigo 20.º do CIMT. Havendo lugar ao pagamento de IMT deve ser liquidado antes de se concretizar a transmissão, cf. artigo 36.º, n.º 1, do CIMT. O montante que serve de base à liquidação de IMT é o valor tributário do imóvel ou o valor da transmissão, consoante aquele que for mais elevado, cf. artigo 12.º, n.º 1, do CIMT. 30 A figura parcelar é um direito em que pode dividir-se a propriedade plena, designadamente o usufruto, direito de superfície ou propriedade do solo, uso e habitação, servidões prediais.

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O montante a pagar de IMT é determinado mediante a aplicação de taxas previstas no CIMT, as quais se encontram distribuídas por escalões. Se a aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano se destinar exclusivamente a habitação própria e permanente cujo valor que serviria de base à liquidação não exceda os €92 407 (noventa e dois mil quatrocentos e sete euros), beneficia de isenção31 no pagamento de IMT, ao abrigo do disposto do artigo 17.º, n.º 1, alínea a) CIMT: “1 – As taxas do IMT são as seguintes: a) Aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente: Valor sobre que incide o IMT (em euros)

Taxas percentuais Marginal

Média (*)

Até 92 407

0

0

De mais de 92 407 e até 126 403

2

0,537 9

De mais de 126 403 e até 172 348

5

1,727 4

De mais de 172 348 e até 287 213

7

3,836 1

De mais de 287 213 e até 574 323

8

-

Superior a 574 323

6 (taxa única) (*) No limite superior do escalão

b) Aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação, não abrangidas pela alínea anterior: Valor sobre que incide o IMT (em euros) Até 92 407

Taxas percentuais Marginal 1

Média (*) 1

De mais de 92 407 e até 126 403

2

1,268 9

De mais de 126 403 e até 172 348

5

2,263 6

De mais de 172 348 e até 287 213

7

4,157 8

De mais de 287 213 e até 550 836

8

-

Superior a 550 836

6 (taxa única) (*) No limite superior do escalão

c) Aquisição de prédios rústicos – 5%; d) Aquisição de outros prédios urbanos e outras aquisições onerosas – 6,5%. “ O reconhecimento de isenção, embora sendo de reconhecimento automático, compete aos serviços da Autoridade Tributária, pelo que é sempre necessária a emissão do correspondente DUC, ainda que emitido a zero. Cf. artigo 10.º n.º 8 alínea c) do CIMT. É de realçar que deixam de beneficiar de isenção e de redução de taxas quando os imóveis não forem afetos à habitação própria e permanente, no prazo de 6 meses, a contar da data da aquisição ou quando aos imóveis for dado destino diferente daquele em que assentou o benefício, no prazo de 6 anos a contar da data da aquisição, salvo no caso de venda. 31

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IV. DEPÓSITO ELETRÓNICO E PEDIDO DE REGISTO Conferida a autenticidade dos documentos exibidos que instruem o documento particular, a entidade que titula deve reduzir este a termo, cf. artigo 150.º n.º 2 CN. O termo de autenticação é lavrado no próprio documento a que respeita ou em folha anexa – artigo 36.º n.º 4 do CN. É condição necessária conter os requisitos comuns dos instrumentos notariais estabelecidos no artigo 46 n.º 1 al. a) a n), e as menções do artigo 47.º n.º 1 al. a) do CN, bem como deve constar a menção da explicação do seu conteúdo, de modo que os outorgantes fiquem a conhecer, com rigor, o significado e os efeitos do ato, cf. artigo 151.º n.º 1 al. a) do CN. A leitura do termo, na presença simultânea de todos os intervenientes, que abrange todo o instrumento, incluindo o documento complementar, é efetuada antes de apostas as assinaturas, sendo que a inobservância de algum destes requisitos, poderá determinar como consequência a nulidade do ato, cf. artigo 70.º CN. A validade da autenticação dos documentos particulares que visem titular atos sujeitos a registo, depende de depósito eletrónico de todos os documentos que o instruam, conforme refere o artigo 24.º n.º 2 do Decreto-Lei 116/2008, de 4 de julho. Relativamente ao pedido de registo pela via eletrónica32, no âmbito das transações de imóveis / operações imobiliárias, este encontra-se regulado na portaria 1535/2008, de 30 de dezembro. Permite “a possibilidade de realizar o depósito eletrónico dos documentos particulares autenticados em simultâneo com o pedido online de atos de registo predial” cf. artigo 3.º alínea a). O depósito eletrónico a que se refere o artigo 6.º “dispensa o registo informático previsto na Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de Junho”.33 Neste sentido, o artigo 4.º n.º 1 da Portaria n.º 1535/2008, de 30/12, refere, igualmente, que estão sujeitos a depósito eletrónico os documentos particulares autenticados que titulem atos sujeitos a registo predial nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, bem como todos os documentos que os instruam e que devam ficar arquivados por não constarem de arquivo público, cf. artigo 8.º da Portaria 1535/2008, de 30/12. No contrato de compra e venda de imóveis34, o artigo 875.º refere que só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado. No âmbito legal da formalização de atos por documento particular autenticado cuja validade depende de depósito eletrónico, nos termos da Portaria n.º 1535/2008, de 30/1235, o depósito eletrónico do conteúdo integral do documento particular autenticado (e dos documentos que o instruem) é efetuado na plataforma eletrónica36 com o endereço www.predialonline.mj.pt 37 . Por razões de segurança jurídica, após a leitura e explicação do conteúdo do 32 O Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 02 de Agosto, aprova o Regime Jurídico dos Documentos Eletrónicos e da Assinatura Digital, cf. artigo 1.º e 2.º. 33 A Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de Junho, estabelece a competência dos Solicitadores para autenticar documentos particulares e condiciona a validade desses atos a registo em sistema informático, cuja competência no desenvolvimento e gestão dessa plataforma, designadamente ROAS (Registo Online dos Atos dos Solicitadores), incumbe à Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. Cf. Artigo 1.º e 2.º n.º 1 b), da citada Portaria. 34 O artigo 204 do CC refere que coisas imóveis são: a) os prédios rústicos e urbanos. 35 Previsto também no artigo 24.º n.º 3 do Decreto-Lei 116/2008, de 4 de julho. 36 Mantido pelo Instituto dos Registo e Notariado (IRN, I.P) 37 “O valor probatório dos documentos eletrónicos criados será o mesmo dos originais sujeitos a digitalização, e deve o envio ser feito por entidade com competência para a conferência dos documentos com os respetivos originais em formato de papel” Cf. Parecer proferido nos Processos CP 13/2009 SJC-CT e CP 31/2009 SJC-CT, disponível em www.irn.mj.pt

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documento particular e do termo de autenticação38, é realizado um procedimento, que é condição de validade do ato. Cf. Artigo 151.º CN. Conforme se transcreve do Parecer proferido no Proc. C.P. 40/2010 SJC-CT, disponível em www.irn.mj.pt, “O primeiro sentido a retirar do texto legal é que o depósito eletrónico deve ser efetuado na data, ou seja, no dia da realização da autenticação do documento particular. Ainda que do instrumento de autenticação do documento particular conste a hora em que se realizou, o prazo para o depósito eletrónico não é de horas, antes este depósito deverá ser efetuado no próprio dia da autenticação. Afigura-se-nos líquido que a lei não exige que o depósito eletrónico seja imediato, ou seja, efetuado logo de seguida à realização da autenticação do documento particular. Como também não se exige que o depósito eletrónico, que compete à entidade autenticadora (cf. Artigo 6.º n.º 1, da Portaria n.º 1535/2008), seja realizado na presença das partes outorgantes do instrumento de autenticação.”39 Havendo dificuldades de carácter técnico respeitantes ao funcionamento da plataforma40, não sendo possível o depósito eletrónico dos documentos nesse dia, refere o n.º 2 do artigo 7.º da Portaria n.º 3585/2008, de 4 de julho que “esse facto deve ser expressamente mencionado em documento instrutório a submeter, indicando o motivo da impossibilidade”, “devendo o depósito ser efetuado nas quarenta e oito horas seguintes.”41 Caso o depósito eletrónico não seja efetuado nos prazos e com os requisitos previstos na lei, consequentemente acarreta a invalidade da autenticação e o documento particular não adquire a natureza de documento particular autenticado.42 Contudo, a não submissão dos documentos instrutórios no mesmo procedimento do depósito eletrónico não tem como consequência a invalidade do depósito, mas consiste na necessidade de uma ulterior submissão, não obstante deva ser conjunta.

A validade da autenticação dos documentos particulares que visem titular atos sujeitos a registo, depende de depósito eletrónico de todos os documentos que o instruam, conforme refere o artigo 24.º, n.º 2 do Decreto-Lei 116/2008, de 4 de julho.

Com a eliminação da competência territorial das conservatórias tornou-se possível praticar qualquer ato de registo predial em qualquer das conservatórias, independentemente da localização geográfica do imóvel.

38 No documento particular apenas assinam os outorgantes. No termo de autenticação, assim os outorgantes, e por fim, a entidade que titula o ato. 39 Mesmo tratando-se de Sábado, Domingo ou Feriados, o depósito eletrónico deverá ser efetuado nesse dia. 40 Não se aplicam dificuldades respeitantes ao deficiente funcionamento do equipamento ou acesso à rede de internet. 41 Trata-se de um prazo legal e, em princípio, as regras da alínea d) do artigo 279.º não devem ser aplicadas aos prazos legais – Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, Vol. I, 1967, página 191. 42 Parecer proferido no Processo R.P. 54/2009 SJC-CT, disponível em www.irn.mj.pt, refere: “1.3 – Sustentámos que, em caso de invalidade do depósito eletrónico e da consequente invalidade da autenticação do documento particular, as partes, querendo aproveitar este documento particular, terão que confirmar novamente perante a entidade autenticadora (a mesma ou outra) o seu conteúdo, ou seja, terá que ocorrer nova autenticação, seguida de (novo) depósito eletrónico nos termos legalmente fixados.”

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Com a reforma do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, o registo predial tornou-se diretamente obrigatório.43 “O pedido de registo pode ser efetuado pessoalmente, por via eletrónica ou por correio”. Cf. Artigo 41-B CRP. Com a eliminação da competência territorial das conservatórias tornou-se possível praticar qualquer ato de registo predial em qualquer das conservatórias, independentemente da localização geográfica do imóvel. Refere o artigo 2.º, n.º 1, al. a), que os factos jurídicos que determinem a aquisição do direito de propriedade estão sujeitos a registo obrigatório, cf. artigo 8.º-A. O legislador não deixou na disponibilidade do adquirente do direito a obrigação de registar. No que respeita à promoção de atos de registo predial, o artigo 8.ºB estabelece que o registo44 deve ser promovido pelas entidades que autentiquem o documento particular45, (salvo quando não intervenham, cf. parte final daquele artigo). Sendo o registo promovido atempadamente, pela entidade que está obrigada a fazê-lo, e não tendo o mesmo sido rejeitado, é de considerar que a obrigação legal se cumpriu, independentemente do resultado da qualificação (artigo 8-A n.º 1, 8.º-A n.º 1 e 5, e 8.º-D n.º 1, do CRP). Refere o artigo 8.º-C n.º 1, do CRP, que “o registo deve ser pedido no prazo de dois meses a contar da data em que os factos tiverem sido titulados”. Entendemos que, aquando o pedido de registo online, já se tenha dado cumprimento ao disposto no artigo 72.º do CRP, o qual influenciará a qualificação do registo, só ingressará como definitivo46 se os encargos de natureza fiscal se encontrem assegurados ou pagos. É efetuado através da Internet com o endereço www.predialonline.mj.pt, acompanhado de todos os documentos necessários ao registo, designadamente, todos os que comprovem os factos constantes do pedido de registo. Após a submissão do pedido formulado online47, este é validado através da emissão de um comprovativo eletrónico (artigo 21.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30/12) e o sistema gera automaticamente uma referência de pagamento para os encargos devidos. Sob pena de não se considerar submetido e o pedido não ser anotado no diário, deve o pagamento ser efetuado no prazo estabelecido. As importâncias devidas pelo pedido de registo encontram-se estabelecidas no artigo 151.º CRP que refere qual o momento em que deve ser entregue e a quantia.48

O regime da obrigatoriedade do registo, apenas se aplica aos factos, ações e outros atos sujeitos a registo predial obrigatório que ocorram após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, cf. artigo 33.º do diploma. 44 Nos termos do artigo 39.º n.º 2 alínea b) do código de registo predial, em termos de representação, os solicitadores não carecem de procuração para promover o registo. 45 É necessário que a entidade que autentica o documento particular possua uma assinatura eletrónica qualificada. 46 “Nenhum facto, ato ou negócio jurídico relativo a bens imóveis sujeitos a registo pode ser definitivamente registado sem que se mostre pago o IMT que seja devido”, cf. artigo 50.º CIMT. 47 O pedido online de atos de registo predial uma redução emolumentar de 10%, cf. artigo 28.º n.º 26 do RERN. 48 “No momento do pedido deve ser entregue, a título de preparo, a quantia provável do total da conta. (n.º 1) e é responsável pelo pagamento dos emolumentos o sujeito ativo dos factos.” (n.º 2), do artigo 151.º do Código do Registo Predial. Entendemos que deverá ser conjugado com o artigo 8.º C do Código do Registo Predial, que determina que “a promoção do registo fora dos prazos, determina o pagamento acrescido da quantia igual à que estiver prevista a título de emolumento.” O emolumento propriamente dito é o que resulta do Regulamento Emolumentar dos Registos e do Notariado (RERN), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 322-A/2001, de 14 de Dezembro, designadamente o que consta do artigo 21.º. 43

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V. PARTICIPAÇÃO DOS ATOS – MODELO 1149 As entidades e os profissionais com competência para autenticar documentos particulares que titulem atos sujeitos a registo predial ou que intervenham nas operações previstas nas alíneas b), e), f ) e g), do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, são obrigados a enviar à Autoridade Tributária e Aduaneira, por via eletrónica, até ao dia 15 de cada mês, a relação de atos por si praticados, suscetíveis de produzir rendimentos sujeitos a IRS, através de declaração de modelo oficial50. Cf. Artigo 123.º CIRS.51 No mesmo sentido, o artigo 49.º n.º 4 alínea a) e n.º 5, do CIMT, atribui igualmente o prazo de 15 dias para submeterem a declaração Modelo 11. Ainda, no artigo 186.º n.º 1 do As entidades e os profissionais CN refere que a relação deve ser remetida até ao dia 15 de com competência para cada mês. Para dar cumprimento a todas estas comunica- autenticar documentos ções, o artigo 4.º da Portaria n.º 975/2004, de 3/8, estabelece particulares que titulem atos que a declaração deve ser enviada até ao fim dos prazos pre- sujeitos a registo predial ou que vistos nas disposições legais referenciadas [artigo 123.º do intervenham nas operações CIRS, 48.º, 49.º n.º 4 alínea a), e 51.º do CIMT e 63.º CIS], a previstas nas alíneas b), e), f) e participação (Modelo 1152) é única para todas as disposições g), do n.º 1 do artigo 10.º do legais, devendo ser respeitado o prazo, ou seja, deve ser CIRS, são obrigados a enviar à enviada até ao dia 15 de cada mês, ainda que não seja cele- Autoridade Tributária e brado qualquer ato ou contrato sujeito a IMT ou suscetíveis Aduaneira, por via eletrónica, de produzir rendimentos de IRS. até ao dia 15 de cada mês, a Decorre do artigo 24.º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 116/2008, relação de atos por si praticados, de 4 de julho, se o registo do ato for pedido por via eletrónica, suscetíveis de produzir é dispensada a obrigação de participação desse ato às entida- rendimentos sujeitos a IRS, des públicas, nos termos do n.º 3 do artigo anterior, devendo através de declaração de modelo estas participações ser promovidas pelos serviços de registo. oficial. Porém, o n.º 5 do artigo 49.º do CIMT, aditado pela Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro, especifica concretamente que compete às entidades e profissionais com competência para autenticar documentos particulares a remessa da declaração modelo 11. Da interpretação do artigo 7.º do CC depreendemos que havendo uma lei posterior, hierarquicamente equivalente, (é o caso das Leis e dos Decretos-Lei), e se regular a mesma matéria que era regulada na lei anterior, prefere a lei mais recente, considerando-se a anterior tacitamente revogada.53 “1. A declaração de modelo oficial, modelo 11, destina-se a dar cumprimento à obrigação constante dos artigos 123.º do CIRS, 48.º, 49.º n.º 4 alínea a) e 51.º do CIMT e 63.º do CIS”. Cf. Informação 1261/2010, P.º 2010/259, de 17.05.2010, da DIREÇÃO-GERAL DOS IMPOSTOS – DSIMT. 50 O modelo oficial da declaração modelo 11, e as tabelas I e II, que fazem parte integrante, foi aprovado pela Portaria n.º 975/2004, de 3/8. Cf. artigo 1.º e 2.º. 51 Cf. Obrigações Contributivas, disponível em: https://info.portaldasfinancas.gov.pt/nr/rdonlyres/e3671f76-2be8422a-a39b-97d6612d4c1c/0/obrigacoes_declarativas.pdf. 52 Deve ser submetida por transmissão eletrónica de dados, no portal www.portaldasfinanças.gov.pt após obtenção de senha de acesso, selecionando: Entidades públicas, Entregar; Obrigações acessórias, Modelo 11. 53 “Lex posterior derogat legi priori”. 49

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O DOCUMENTO PARTICULAR AUTENTICADO NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS

Parece-nos, assim, que, em face da interpretação supra, da norma do n.º 5 do artigo 49.º do CIMT resulta o mesmo conteúdo da que resultava do n.º 4 do artigo 24 do Decreto-Lei 116/2008, porquanto impende sobre as entidades que autenticam documentos particulares e abrange todos os atos por si titulados, independentemente da forma como o registo é posteriormente requerido. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico

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Bibliografia [Online] www.predialonline.mj.pt. CT, Processo n.º CP 13/2009 SJC – . [Online] www.irn.mj.pt. CT, Processo n.º CP 31/2009 SJC – . CT, Processo R.P. 54/2009 SJC – . [Online] www.irn.mj.pt. Decreto-Lei 263-A/2007, de 23 de Julho. Criou o Procedimento Casa Pronta. [Online] Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de Novembro. Código do Imposto Sobre as Pessoas Singulares. Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de Julho. [Online] Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto. [Online] Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de Julho. Código do Registo Predial. [Online] Decreto-Lei n.º 250/2012, de 23 de Novembro. [Online] Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 02 de Agosto. Aprova o Regime Jurídico dos Documentos Electrónicos e da Assinatura Digital. [Online] Decreto-Lei n.º 322-A/2011, de 14 de Dezembro. Aprova o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado. Decreto-Lei n.º 38 382, de 07 de Agosto de 1951. Regulamento Geral das Edificações Urbanas. [Online] Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro. Aprova a Lei Geral Tributária. [Online] Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro. Aprova o Código Civil. [Online] Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro. Regime Jurídico da Urbanização e Edificação. [Online] Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março. [Online] Decreto-Lei n.º 78/2006, de 04 de Abril. Aprova o Sistema Nacional de Certificação Energética e da Qualidade do Ar Interior nos Edifícios. [Online] FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO. Lições de Direitos Reais. s.l. : Quid Iuris. GUERREIRO, J. A. MOUTEIRA. 1993. Noções de Direito Registral (Predial e Comercial). s.l. : Coimbra Editora, 1993.

Impostos, Direção Geral dos. Informação 1261/2010, Processo n.º 2010/259, de 17 de Maio de 2010. [Online] www.portaldasfinanças.gov.pt. Instituto dos Registos e do Notariado. [Online] www.irn.mj.pt. JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, PIRES DE LIMA. Código Civil – Anotado – Volume I. s.l. : Coimbra Editora. Lei 150/99, de 11 de Setembro. Aprova o Código do Imposto de Selo. [Online] Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto. Estabele o Regime Jurídico da Estruturação Fundiária. [Online] Lei n.º 7-A/2016, de 03 de Março. Código do Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis. [Online] Notariado, Instituto dos Registos e. IRN, I.P. [Online] Portaria 461/2007, de 05 de Junho. Define a calendarização da aplicação do Sistema de Certificação Energética e da Qualidade do Ar Interior nos Edifícios. [Online] Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril. Define as áreas de cultura em Portugal Continental. [Online] Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de Junho. Registo Online dos Actos dos Solicitadores (ROAS). [Online] Portaria n.º 975/2004, de 03 de Agosto. Aprovou o Modelo Oficial da declaração Modelo 11. [Online] PRATA, ANA. 5.ª Edição. Dicionário Jurídico, Volume I. s.l. : Almedina, 5.ª Edição. Processo: R.P. 67/2009 SJC – CT . RIBEIRO, JOSÉ JOAQUIM TEIXEIRA. 2010. Lições de Finanças Públicas. s.l. : Coimbra Editora, 2010. Sul, Acórdão do Tribunal Central Administrativo do. Processo n.º 04816/01, de 11 de Março de 2003. [Online] www.dgsi.pt. VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES. 2015. Das Obrigações em Geral – Volume I. s.l. : Almedina, 2015. VASCONCELOS, PEDRO PAIS DE. 4.ª Edição. Teoria Geral do Direito Civil. s.l. : Almedina, 4.ª Edição. www.balcaovirtual.cm-porto.pt. Sobre o Direito de Preferência concedido ao Município. [Online]

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O DOCUMENTO PARTICULAR AUTENTICADO NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS

Lista de siglas e abreviaturas: Al. – Alínea CN – Código do Notariado Cf. – Conferir CIS – Código do Imposto de Selo CC. – Código Civil CIMT – Código do Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis CRP – Código do Registo Predial FTH – Ficha Técnica de Habitação LGT – Lei Geral Tributária IMT – Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis IPPAR – Instituto Português do Património Arquitetónico IS – Imposto de Selo

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IRN – Instituto dos Registos e do Notariado MOD. – Modelo RERN – Regulamento Emolumentar dos Registos e do Notariado. RJUE – Regime Jurídico da Urbanização e Edificação ROAS – Registo Online dos Atos dos Solicitadores i.e – Isto é. Vol. – Volume N.º – Número SCE – Sistema de Certificação Energética DPA – Documento Particular Autenticado DL – Decreto-Lei Pág. – Página RGEU – Regulamento Geral das Edificações Urbanas


TUTELA CAUTELAR NO ESPAÇO EUROPEU DE JUSTIÇA: A DECISÃO EUROPEIA DE ARRESTO DE CONTAS LURDES VARREGOSO MESQUITA Doutora em Direito Professora Adjunta do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave Professora Auxiliar Convidada da Universidade Portucalense Infante D. Henrique

RESUMO O Regulamento (UE) n.º 655/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um procedimento para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial, vem minimizar barreiras jurídicas no âmbito das medidas cautelares, em litígios transfronteiriços. Criada a decisão europeia de arresto de contas (DEAC), o credor, com um único procedimento, obtém uma ordem judicial que impedirá o levantamento ou a transferência de fundos que o devedor possua numa conta bancária no território da União Europeia. Assim se facilitará e tornará mais eficaz a cobrança de dívidas além-fronteiras, essencial na eliminação de custos e na integração europeia, com atenuação das barreiras jurídicas, como concretização de mais uma etapa do reconhecimento mútuo.

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TUTELA CAUTELAR NO ESPAÇO EUROPEU DE JUSTIÇA: A DECISÃO EUROPEIA DE ARRESTO DE CONTA

1. INTRODUÇÃO

O

mercado internacional e o mercado interno da União Europeia assentam o seu desenvolvimento na segurança jurídica, no aumento dos níveis de confiança e na diminuição do risco de cobrança. As medidas de combate ao incumprimento e aos problemas inerentes à cobrança transfronteiriça são um factor positivo para o desenvolvimento do mercado e da economia, beneficiam as empresas que actuam no espaço internacional e, também, os consumidores. Na defesa destes interesses, a União Europeia tem actuado com a criação de meios processuais que agilizam e tornam mais eficaz a cobrança de créditos e a respectiva execução. No espaço europeu de justiça, os cidadãos já dispõem de mecanismos simplificados de concessão do exequatur sobre decisões judiciais, transacções judiciais e «instrumentos autênticos», em matéria civil e comercial1. Mas a eficácia da cobrança transfronteiriça de créditos pecuniários carece ainda de medidas que protejam o credor das consequências negativas inerentes ao retardamento da execução transfronteiriça, que ainda persistem, designadamente para salvaguarda da garantia patrimonial do credor2. Ou seja, é necessário encontrar medidas cautelares que auxiliem os credores nos litígios transfronteiriços. O procedimento de decisão europeia de arresto de contas (DEAC) para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial, aprovado através do Regulamento (UE) n.º 655/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que entrará em vigor a 18 de janeiro de 2017, veio colmatar essa lacuna, pelo menos em relação ao património financeiro. O referido Regulamento proporciona ao credor3, através de um único procedimento, a obtenção da DEAC, que impedirá o levantamento ou a transferência de fundos que o O Regulamento Bruxelas I-bis [Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012] assegura a livre circulação desses títulos executivos, tornando automático o seu reconhecimento e força executória noutro Estado-Membro que não o de origem. 2 Está demonstrado que a efectiva cobrança transfronteiriça de uma dívida está cercada de obstáculos que a arrastam no tempo e a tornam demasiado onerosa, com a consequente desmotivação dos credores na concretização dos seus intentos e, naturalmente, benefício do devedor. Em especial, a obtenção de medidas provisórias com vista a serem arrestados activos do devedor reveste-se de dificuldades que se podem resumir nos aspectos seguintes: i) os vários ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros da União Europeia sujeitam a emissão de decisões de arresto a requisitos que são variáveis e que propiciam o forum shopping, embora atenuado com a revisão do o Regulamento Bruxelas I; ii) em virtude da falta de transparência, há Estados-Membros em que é quase impossível o credor recolher informações sobre a localização da conta bancária do devedor; iii) os custos com a obtenção e execução de uma decisão de arresto de contas bancárias em situações transfronteiriças são mais elevados; iv) as divergências entre os vários sistemas nacionais de execução provocam problemas aos credores, sobretudo ao nível da necessária celeridade em executar essas decisões, causando ineficácia das medidas provisórias. Cfr. Final Report – Impact Assessment on a Draft Legislative Proposal on the Attachment of Bank Accounts, Centre for Strategy & Evaluation Services (CSES), Londres, Janeiro de 2011. O resumo do referido relatório foi publicado pela Comissão [SEC(2011) 938 final, 25.7.2011] e o texto integral pode ser consultado em http://ec.europa.eu/justice/civil/files/bank_attachments_en.pdf. 3 Para efeitos do Regulamento, «credor» é uma pessoa singular domiciliada num Estado-Membro ou uma pessoa colectiva domiciliada num Estado-Membro ou qualquer outra entidade domiciliada num Estado-Membro, com capacidade jurídica para estar em juízo segundo a lei de um Estado-Membro e que requeira, ou tenha já obtido, uma decisão de arresto relativa a um crédito [artigo 4.º, n.º 6, do Regulamento (UE) n.º 655/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014]. De acordo com a definição consagrada, o elemento de conexão essencial é o domicílio num Estado-Membro da União Europeia, o que tem por finalidade evitar que créditos contraídos por pessoas singulares ou colectivas não domiciliadas na União Europeia contra outras aqui domiciliadas pudessem usar deste mecanismo. Sobre esta questão, cfr. VILAS ÁLVAREZ, D., El Reglamento por el que se crea una Orden Europea de Retención de Cuentas y Mercantiles: claves de su elaboración, La Ley mercantil, n.º 6, 2014, pp. 11-14. 1

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devedor possua numa conta bancária no território da União Europeia (artigo 1.º, n.º1 do Regulamento 655/20144). Nessa conformidade e ainda que o instrumento haja sido instituído como um mecanismo alternativo às medidas cautelares internas de cada Estado-Membro5 (artigo 1.º, n.º2), vai ser possível colocar os credores em idênticas condições, independentemente do país onde o tribunal competente se situa, permitir aos credores obter informações sobre a localização das contas bancárias dos devedores e reduzir as despesas e os atrasos na execução de uma decisão de arresto de contas em situações transfronteiriças. Não obstante as motivações de salvaguarda dos interesses dos credores, é desejável o salutar equilíbrio entre os direitos do credor e as garantias do devedor, numa adequada combinação entre a legislação europeia e os regimes jurídicos dos ordenamentos internos. Partindo do contexto em que foi prevista e criada a DEAC, procura-se justificar a suas motivações e identificar o seu âmbito de aplicação, descrevendo os respectivos contornos, assim como os procedimentos tendentes à obtenção dessa decisão. Os seus efeitos e as garantias do devedor são também analisados, de modo a compreender e avaliar a medida cautelar aprovada pelo legislador europeu.

2. O PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO E A LIVRE CIRCULAÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS O princípio de reconhecimento mútuo6 assumiu-se, desde Tampere7, como a pedra angular da cooperação judiciária europeia, sendo que desde esse momento foi adoptado na sua vertente processual, o que teve repercussão sobre o regime jurídico do reconhecimento e execução de decisões judiciais estrangeiras. Não fosse este princípio, as decisões estrangeiras, porque são expressão da soberania estadual, não veriam extravasar os seus efeitos além-fronteiras. Sem «reconhecimento mútuo» não seria possível a construção integral da União Europeia. A liberdade de pessoas, bens e serviços não é auto-suficiente na consolidação de um verdadeiro mercado único, pois a vertente económica só se satisfaz plenamente quando as pessoas acreditam, confiam e constatam a existência de uma justiça equitativa e respeitadora dos seus direitos fundamentais e a abolição de entraves à utilização dos sistemas judiciários dos demais Estados-Membros. A vertente processual do princípio do reconhecimento mútuo8 é um conceito que expressa a livre circulação de decisões judiciais, determinando que decisões proferidas num De ora em diante, as referências normativas sem indicação expressa do diploma a que respeitam reportam-se ao Regulamento (UE) n.º 655/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014. 5 A opção pelo carácter alternativo dos instrumentos de cobrança que têm origem no Direito Processual Civil Europeu tem sido a regra, sobretudo para atender ao princípio da subsidiariedade. 6 Sobre este tema, ver GUZMÁN ZAPATER, M., Un Elemento Federalizador para Europa: el Reconocimiento Mutuo en el Ámbito del Reconocimiento de Decisiones Judiciales, Revista de Derecho Comunitario Europeo, 2001, pp. 405 e ss.; MADURO, M. P., A Constituição Plural – Constitucionalismo e União Europeia, Lisboa, 2006, pp. 131 e ss. 7 Conselho Europeu realizado a 15 e 16 de Outubro de 1999. 8 O reconhecimento e a força executória das decisões judiciais estrangeiras são as duas vertentes do chamado reconhecimento em sentido amplo, que significa a atribuição a um acto externo de relevância na ordem jurídica interna. Tanto podem estar em causa efeitos desencadeados pela decisão externa segundo um Direito estrangeiro ou não-estadual (reconhecimento de efeitos, como caso julgado, formação de título registrável, alteração da ordem 4

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Estado-Membro possam produzir os seus efeitos nos demais congéneres, de forma que se pretende rápida e simples, e traduz-se num instrumento capaz de agilizar a actividade dos agentes económicos e o quotidiano dos cidadãos. Com a assumpção deste princípio, todos e cada um dos Estados-Membros aceita e reconhece que a legislação dos outros Estados é equivalente à sua, baseados em dois valores fundamentais: equivalência e confiança. Esta equivalência e confiança recíprocas, por sua vez, justificam-se com o facto de todos os sistemas judicias partilharem de valores idênticos, que proporcionam garantias aos cidadãos, designadamente quanto à salvaguarda de direitos fundamentais, onde se incluem as garantias processuais, assentes num processo justo e equitativo e afastando-se de quaisquer situações ou regimes jurídicos potenciadores ou geradores de indefesa. Só a partilha da democracia como regime político e de todos os princípios orientadores de um Estado de Direito, bem como dos direitos fundamentais dos cidadãos, numa acepção política, social e cultural, permitiu avançar neste sentido. Desta maneira, as autoridades de um Estado-Membro admitem-se sujeitas a aceitar, reciprocamente, as decisões de outro Estado-Membro como sendo equivalentes às decisões das suas próprias autoridades, ainda que o objecto da decisão em causa pudesse não ter, no Estado de destino, um tratamento exactamente igual àquele que teve no Estado de origem, dada a não «uniformização» das legislações. O reconhecimento mútuo no seu sentido tradicional toma a forma de um mecanismo de prevenção dos conflitos de leis, operando ex ante, porém, na vertente processual, o pressuposto que norteou e fez emergir o reconhecimento mútuo – ou seja, a equivalência entre as legislações – encontra-se mais diluído, pois cada ordenamento arroga-se de um regime processual mais ou menos próprio, sobretudo em matéria onde impera a regra lex fori regit processum9. No entanto, a lógica subjacente a essa nova fisionomia do princípio de reconhecimento mútuo assenta, tal como o seu congénere tradicional, numa estratégia de ultrapassar a falta ou inviabilidade de um processo imediato de harmonização das legislações. Na leitura de GUZMÁN ZAPATER, a introdução e expansão do princípio de reconhecimento mútuo na vertente processual não visa a harmonização da matéria processual no espaço intra comunitário, antes contraria essa tendência, tentando preservar as diferenças jurídicas10. Precisamente porque há diferenças e é necessário ultrapassá-las, sem que com isso se tornem – o que seria impossível – todos os sistemas iguais, o reconhecimento mútuo é a válvula de segurança que proporciona essa vantagem. A motivação e o propósito fundamental que presidiu à expansão do reconhecimento mútuo foi a supressão do exequatur, sempre mencionado como objectivo declarado e como o culminar das várias fases de desenvolvimento da aplicação do princípio.

jurídica por efeito de sentença em acção declarativa constitutiva), como a “execução” da decisão externa, ou seja, a atribuição de força executiva que assiste a um acto interno equivalente (exequatur). Sobre esta noção vide: GARAU SOBRINO, F. F., Lecciones de Derecho Procesal Civil Internacional, Palma, 2003, pp. 121 e ss.; PINHEIRO, L. L., Direito Internacional Privado. Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras. Vol. III., Coimbra, 2002, pp. 231-235; SÁNCHEZ JIMÉNEZ, M. A., Ejecución de Sentencias Extranjeras en España: Convenio de Bruselas de 1968 y Procedimiento Interno, Granada, 1998, pp. 1-6. 9 GUZMÁN ZAPATER, M., Un Elemento Federalizador para Europa: el Reconocimiento Mutuo en el Ámbito del Reconocimiento de Decisiones Judiciales, op. cit., pp. 426 e 427. 10 Idem, ibidem, pp. 424 e 425.

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O princípio de reconhecimento mútuo na sua vertente processual não é fácil de enquadrar, nem de conceptualizar, assemelha-se mais a um conceito político, com contornos menos rigorosos do ponto de vista técnico-jurídico11.

3. MEDIDAS DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DE RECONHECIMENTO MÚTUO DAS DECISÕES JUDICIAIS EM MATÉRIA CIVIL E MERCANTIL A partir do momento em que o princípio de reconhecimento mútuo ganhou o seu espaço na vertente processual, designadamente ao serviço do reconhecimento das decisões judiciais em matéria civil e mercantil, tornou-se imprescindível criar condições e programar a sua aplicação. Nessa conformidade, o Conselho e a Comissão aprovaram, a 30 de Novembro de 2000, o Projecto de medidas para aplicação do princípio de reconhe- A motivação e o propósito cimento mútuo das decisões judiciais em matéria civil e fundamental que presidiu à mercantil12, através do qual foram traçados os domínios de expansão do reconhecimento aplicação do princípio, bem como os actos a implementar mútuo foi a supressão do e as metas a atingir para a concretização desse plano13. Este exequatur, sempre mencionado documento concretizou, em maior pormenor, as medidas como objectivo declarado e que de forma generalista haviam sido esboçadas no Plano como o culminar das várias fases de Acção de Viena14, em 1999. de desenvolvimento da Nas medidas a implementar, foram evidenciados os «cré- aplicação do princípio. ditos não contestados» e as «acções de pequeno montante»: aqueles como uma das primeiras áreas em que o exequatur devia ser suprimido, e estas como um campo atractivo para a definição de regras processuais comuns específicas ou de regras mínimas, para facilitar o reconhecimento e a execução das decisões. No âmbito do Regulamento Bruxelas I, impunha-se uma primeira etapa com acções concretamente definidas, que passaram pela criação do título executivo europeu para os créditos não contestados15, pela simplificação e aceleração da 11 Acompanhamos a opinião de GONZÁLEZ BEILFUSS, C., in El Proyecto de Medidas para la Aplicación del Principio de Reconocimiento Mutuo de las Resoluciones Judiciales en Materia Civil y Mercantil, Revista Española de Derecho Internacional, 2000, p. 662. 12 JO C 12, de 15.01.2001. 13 Para uma análise do Projecto de medidas para aplicação do princípio de reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria civil e mercantil ver BORRÁS, A., Hacia la Supresión del Exequatur en Europa in “Cooperación Jurídica Internacional en Materia Civil. El Convenio de Bruselas”, Cuadernos de Derecho Judicial, IV, 2001, pp. 17 e ss.; GONZÁLEZ BEILFUSS, C., El Proyecto de Medidas para la Aplicación del Principio de Reconocimiento Mutuo de las Resoluciones Judiciales en Materia Civil y Mercantil, op. cit., pp. 662 e ss.; GUZMÁN ZAPATER, M., Un Elemento Federalizador para Europa: el Reconocimiento Mutuo en el Ámbito del Reconocimiento de Decisiones Judiciales, op. cit. 14 Plano de acção do Conselho e da Comissão, de 3 de Dezembro de 1998 sobre a melhor forma de aplicar as disposições do Tratado de Amesterdão relativas à criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça JO C 19, de 23.01.1999. 15 Regulamento (CE) n.º 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados, JO L 143/15, de 30.4.2004.

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resolução de «acções de pequeno montante»16 transfronteiriças e pela supressão do exequatur para as pensões de alimentos17. Para a segunda e terceira etapas, foi projectada a revisão do referido Regulamento 44/2001, primeiro para um alargamento da supressão do exequatur e depois para a sua total supressão. E, a par disso, já se perspectivava a implementação de medidas destinadas a reforçar os efeitos, no Estado requerido, das decisões tomadas no Estado de origem, designadamente através da execução provisória e de medidas cautelares, incluindo a denominada, ao tempo, «penhora de contas bancárias»18, 19 e, ainda, de medidas que permitissem identificar elementos do património do devedor20. Face às medidas previstas e às metas estipuladas, a matéria foi evoluindo em conformidade e temos hoje um estádio satisfatoriamente avançado. A supressão do exequatur, denominador comum nas medidas de aplicação do princípio de reconhecimento mútuo é actualmente uma realidade em vários domínios de aplicação do princípio do reconhecimento mútuo. Conforme se previa desde a apresentação do Projecto de medidas para aplicação do princípio de reconhecimento mútuo, a executoriedade das decisões estrangeiras, proferidas dentro do espaço europeu de justiça, passaram a gozar do regime de «supressão» do exequatur, ou seja, “uma decisão proferida num Estado-Membro que aí tenha força executória pode ser executada noutro Estado-Membro sem que seja necessária qualquer declaração de executoriedade” (artigo 39.º do Regulamento 1215/2012 do Parlamento Europeu e do

Regulamento (CE) n.º 861/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, que estabelece um processo europeu para acções de pequeno montante, JO L 199/1, de 31.7.2007. 17 Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho, de 18 de Dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares, JO L 7/1, de 10.1.2009. 18 Nesta fase, a versão portuguesa ainda utilizava, erradamente, o termo «penhora». Aliás, o Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o «Livro Verde sobre uma maior eficácia na execução das decisões judiciais na União Europeia: Penhora de contas bancárias» (JO C 10/2, 15.1.2008) apontava uma crítica neste sentido, chamando a atenção que os termos utilizados para a identificação dos conceitos que por seu turno iriam definir a natureza da providência de carácter processual a criar, deviam obedecer a critérios de extremo rigor e precisão técnico-jurídica em qualquer das línguas comunitárias. Ora, sucedia que, pelo menos em cinco versões linguísticas, a designação utilizada pela Comissão para identificar a providência cautelar eventualmente desejável não era unívoca nem equivalente e podia conduzir a algumas confusões de carácter técnico-jurídico quanto à sua natureza jurídica. A correcção das traduções, em face da natureza jurídica da medida, devia ser assegurada para evitar incertezas baseadas apenas na desadequada terminologia usada. Com efeito, o termo «attachment», mesmo no seu sentido técnico-jurídico, era ambíguo, podendo designar quer o que em português se designa por «penhora» quer por «arresto». Mesmo em inglês, para a natureza jurídica da medida prevista melhor seria utilizar o termo «arrestment» ou «freezing order», para bem distinguir da figura do «garnishment». Por outro lado, apenas a tradução italiana «sequestro conservativo» traduzia correctamente o carácter preventivo e conservatório da medida; a «saisie» francesa com a explicação adicional de poder ser «délivrée par un tribunal siégeant en référé», cumpria o objectivo; já o «embargo» espanhol afigurava-se insuficiente para caracterizar o destino da medida. 19 Ver, sobre esta matéria: Livro Verde sobre uma maior eficácia na execução das decisões judiciais na União Europeia: penhora de contas bancárias [COM (2006) 618, Outubro de 2006]; Parecer do Comité Económico e Social Europeu relativo ao «Livro Verde sobre uma maior eficácia na execução das decisões judiciais na União Europeia: Penhora de contas bancárias», JO C 10/02, 15.1.2008; Resolução do Parlamento Europeu, de 25 de Outubro de 2007, relativo ao Livro Verde sobre uma maior eficácia na execução das decisões judiciais na União Europeia: penhora de contas bancárias [2007/2026 (INI)], JO C 263 E/655, 16.10.2008. 20 Sobre a transparência do património dos devedores, ver o Livro Verde da Comissão, de 6 de Março de 2008, sobre a execução eficaz das decisões judiciais na União Europeia: transparência do património dos devedores [COM (2008) 0128]; Parecer do Comité Económico e Social Europeu de 3 de Dezembro de 2008 e Parecer da Autoridade Europeia para a Protecção de Dados de 22 de Setembro de 2008, sobre o referido Livro Verde; Proposta de Resolução do Parlamento Europeu, de 6 de Abril de 2009, sobre a execução eficaz das decisões judiciais na União Europeia: transparência do património dos devedores [2008/2233 (INI)]. 16

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Conselho, de 12 de dezembro). Do mesmo modo, os actos autênticos e as transacções judiciais beneficiam da extensão desse regime (artigos 58.º e 59.º, do citado diploma). No âmbito da tutela cautelar, a prevista medida de constituição de uma providência cautelar que fosse ordenada num Estado-Membro e tivesse efeito noutro Estado-Membro, como garantia de um crédito reconhecido ou a reconhecer em acção própria, veio a concretizar-se através do Regulamento (UE) n.º 655/201421. Neste diploma, a União Europeia cria um procedimento que permite aos credores obter uma decisão europeia de arresto de contas bancárias, em matéria civil e comercial22.

4. DECISÃO EUROPEIA DE ARRESTO DE CONTA (DEAC) 4.1. Âmbito de aplicação A DEAC é um instrumento que apenas se destina a questões que tenham incidência transfronteiriça (artigo 2.º, n.º1). Na definição de «processos transfronteiriços», o critério subjacente é o da não coincidência entre o Estado-Membro onde se encontra a conta a arrestar e o do tribunal onde dá entrada o respectivo requerimento de acordo com as regras de competência aplicáveis (artigo 6.º) ou entre aquele e o do domicílio do credor23 (artigo 3.º). O Regulamento tem o seu âmbito material de aplicação decalcado do Regulamento Bruxelas I-bis que tem sido, aliás, a referência em todos os instrumentos de cobrança europeus que foram criados, os quais se designam de segunda geração24. Ou seja, é aplicável relativamente a créditos 21 Para análise dos antecedentes deste Regulamento, em especial na fase em que se discutia a proposta apresentada pela Comissão, ver MARTÍN DIZ, F., La Orden Europea de Embargo de Activos Bancarios, in “Cooperación judicial civil y penal en el nuevo escenario de Lisboa” (coord. ARANGUENA FANEGO, C.), Ed. Comares, Granada, 2011, pp. 133-147; Protección Procesal del Crédito Transfronterizo en la Unión Europea: Propuesta de Orden de Embargo de Activos Bancarios, Revista de Derecho Comunitario Europeo, num. 30, 2008, pp. 381-418; SENÉS MOTILLA, C., El Embargo Telemático de Cuentas Bancarias (Propuesta de regulación en Derecho Europeo), in “La e-justicia en la Unión Europea” (desarrollo en el ámbito europeo y en los ordenamientos nacionales) (coords. DE LA OLIVA SANTOS, A., GASCÓN INCHAUSTI, F. y AGUILERA MORALES, M.), Ed. Aranzadi Thomson Reuters, Cizur Menor (Navarra), 2012, pp. 91-111; El Embargo de Cuentas Bancarias (Aplicación en el proceso español y propuesta de Derecho europeo), in “El Derecho procesal español en el Siglo XX a golpe de tango”, Liber Amicorum, en homenaje y para celebrar su LXX cumpleaños (Dir. MONTERO AROCA, J.), Ed. Tirant Lo Blanch, Valencia, 2013, pp. 861-883; MIQUEL SALA, R., La futura orden europea de retención de cuentas para simplificar el cobro transfronterizo de deudas en materia civil y mercantil, Cuadernos de Derecho Transnacional, octubre 2012, vol. 4, núm. 2; MESQUITA, L. V., A (des)protecção do devedor na proposta de criação do procedimento europeu específico para o arresto de contas bancárias, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas”, Coimbra Editora, 2013, pp. 9991-1020. 22 Sobre o Regulamento (UE) n.º 655/2014, cfr. SENÉS MOTILLA, C., La Orden Europea de Retención de Cuentas (Reglamento [UE] 655/2014), www.dictumabogados.com, núm. 34, 14 de octubre de 2014; CORDÓN MORENO, F. J., “La Orden Europea de Retención de Cuentas (Reglamento 655/2014) desde la perspectiva de un proceso seguido en España”, www.gomezacebo-pombo.com , julho de 2014; VILAS ÁLVAREZ, D., El Reglamento por el que se crea una Orden Europea de Retención de Cuentas y Mercantiles: claves de su elaboración, La Ley mercantil, n.º 6, 2014. 23 Considerando que, quando o devedor é um consumidor, é sempre competente o tribunal do seu domicílio (artigo 6.º, n.º 2) e que isso pode originar uma situação em que é coincidente o Estado-Membro da conta a arrestar e o do tribunal onde deu entrada o pedido da providência, foi criada esta válvula de escape para o conceito de «processo transfronteiriço). 24 Designadamente, no Regulamento (CE) n.º 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados (JO L 143 de 30/04/2004); no Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento (JO L 399 de 30/12/2006) e no Regulamento (CE) n.º 861/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, que estabelece um processo europeu para as acções de pequeno montante (JO L 199 de 31/07/2007).

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pecuniários – pagamento de um montante específico ou determinável – em matéria civil e comercial, com excepção de créditos relacionados com processos de insolvência, com direitos patrimoniais resultantes de regimes matrimoniais ou equiparáveis, bem como de testamentos e sucessões, da segurança social; da arbitragem (artigo 2.º, n.os 1 e 2). Não estão abrangidas, em especial, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas (artigo 2.º, n.º 1). Por outro lado, ficam a salvo as contas a coberto de regimes de impenhorabilidade (artigo 2.º, n.os 3 e 4). 4.2. Contornos do procedimento: oportunidade da pretensão, fundamentos e efeitos da DEAC a) Requerimento da DEAC: oportunidade da pretensão O legislador distingue dois momentos em que o credor poderá requerer a DEAC: antes da obtenção de um título executivo e após a obtenção de um título executivo (artigo 5.º). Sendo que os títulos executivos em causa serão as decisões judiciais, as transacções judiciais e os instrumentos autênticos. Naturalmente, a identificação destes títulos é feita com base nos conceitos autónomos que o próprio diploma apresenta25 e que, salvo ligeiras modificações, em tudo correspondem aos que se usam nos diplomas que versam sobre o reconhecimento e a execução de decisões em matéria civil e comercial26 e sobre o título executivo europeu27. Dada a coerência legislativa, a densificação desses conceitos já não carece de considerações adicionais e pode ser feita por referência aos estudos já existentes a propósito dos mesmos28. Concretizando, o credor poderá requerer o arresto antes de dar início ao processo judicial principal, durante o decurso do processo ou, ainda, após estar na posse de um título executivo que foi obtido no Estado de origem mas que ainda não tem força executória no Estado de execução; ou, então, depois de já ter um título que possa ser executado no Estado de destino – por ser automaticamente executório ou por ter sido declarado executório nesse Estado-Membro – de forma a conseguir a melhor eficácia da execução. A obtenção da DEAC neste segundo momento pode ser uma vantagem não só quando o credor tem consciência de que no Estado de execução este processo é lento, mas ainda quando pretende utilizar este mecanismo também para determinar em que Estado-Membro o devedor dispõe de meios financeiros que justifiquem a acção executiva. Esta última vantagem existe porque o 25 Considera-se «Decisão judicial», qualquer decisão proferida por um tribunal dos Estado-Membro, independentemente da designação que lhe for dada, incluindo uma decisão relativa à determinação das custas do processo pelo secretário do tribunal (artigo 4.º, n.º 8); «Transacção judicial», uma transacção homologada por um tribunal de um Estado-Membro ou celebrada perante um tribunal de um Estado-Membro durante a tramitação do processo (artigo 4.º, n.º 9) e «Instrumento autêntico», um documento exarado ou registado como instrumento autêntico num Estado-Membro e cuja autenticidade: (a) se relacione com a assinatura e o conteúdo do instrumento, e (b) tenha sido confirmada por uma autoridade pública ou outra autoridade habilitada para o fazer (artigo 4.º, n.º 10). 26 Cfr. Regulamento (UE) 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. 27 Cfr. Regulamento (CE) 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados. 28 Cfr., designadamente, o nosso estudo sobre o título executivo europeu: O Título Executivo Europeu como instrumento de Cooperação Judiciária Civil na União Europeia – Implicações em Espanha e Portugal, Almedina, 2012, pp. 337-378.

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procedimento proposto tem a si associada a possibilidade de o credor realizar um pedido de obtenção de informações sobre a(s) conta(s) nos termos do artigo 14.º. Tendo em conta que os referidos dois momentos para requerer a emissão da DEAC se distinguem pela existência ou não do acertamento do direito invocado em documento dotado de força executória no Estado de destino, é justificável a diferença de tratamento – menos rígido no segundo momento – quanto à necessidade de alegação e prova de factos que fundamentem a pretensão [artigos 7.º, n.º 2 e 8.º, n.º 2, al. h)]. Por outro lado, quando o pedido de emissão da DEAC antecede a instauração do processo principal, este deve ser proposto no prazo de 30 dias a contar da data em que apresentou o pedido, ou no prazo de 14 dias a contar da data da concessão da decisão de arresto, consoante a que ocorrer em último lugar, sob pena de a DEAC poder ser revogada ou levantado o arresto (artigo 10.º, n.os 1 e 2). A pedido do devedor, o tribunal pode igualmente prorrogar esse prazo, por exemplo para que as partes possam regularizar o crédito, e nesse caso deve informar ambas No âmbito da tutela cautelar, as partes em conformidade. a prevista medida de constituição de uma providência b) Fundamentos do pedido da DEAC cautelar que fosse ordenada num Estado-Membro e tivesse Quanto aos fundamentos, o Regulamento não se afasta efeito noutro Estado-Membro, das razões que, na generalidade dos ordenamentos, justifi- como garantia de um crédito cam uma providência cautelar de arresto. Comungando dos reconhecido ou a reconhecer mesmos propósitos, exige-se a demonstração fundada do em acção própria, veio a fumus boni iuris e do periculum in mora (artigo 7.º, n.os 1 e 2). concretizar-se através do Contudo, a prova da probabilidade séria da existência do Regulamento (UE) n.º 655/2014. direito só é exigida caso o credor não possua título executivo Neste diploma, a União Europeia que tenha força executória no Estado-Membro de origem e cria um procedimento que seja reconhecido no Estado-Membro de execução de acor- permite aos credores obter uma do com a legislação europeia aplicável [artigos 7.º, n.º 2 e 8.º, decisão europeia de arresto de n.º 2, al. h)]. contas bancárias, em matéria Assim, para que seja emitida uma DEAC, o requerente civil e comercial. deve alegar e provar, sempre: – a necessidade urgente da emissão da medida, fundada no risco real de que, sem a mesma, a execução subsequente do crédito do credor contra o devedor seja frustrada ou consideravelmente dificultada. Não estando munido de título, o credor deve apresentar também elementos de prova suficientes para convencer o tribunal de que é provável que obtenha ganho de causa no processo principal contra o devedor, fazendo uma descrição de todas as circunstâncias relevantes invocadas como fundamento do crédito e, quando aplicável, dos juros pedidos, [artigos 7.º, n.º 2 e 8.º, n.º 2, al. h)]. Até aqui, nada de muito diferente em relação ao que se exige para a declaração de um arresto. Para conseguir o congelamento das contas e impedir qualquer transferência de fundos até que seja proferida uma decisão judicial, o credor deve convencer o tribunal da probabilidade séria da existência do direito de crédito que pretende ver garantido, logo, de que há grandes possibilidades quanto à procedência da acção judicial a propor ou a decorrer, e, ainda, de que se encontra em risco a execução da decisão judicial porque há indícios de que o devedor pode retirar ou dissipar os seus activos.

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TUTELA CAUTELAR NO ESPAÇO EUROPEU DE JUSTIÇA: A DECISÃO EUROPEIA DE ARRESTO DE CONTA

c) Efeitos da DEAC Quanto aos seus efeitos, a DEAC tem carácter meramente cautelar e, por isso, o seu efeito é apenas o congelamento da conta ou contas do devedor até ao montante requerido e pelo período de vigência da medida (nos termos do artigo 20.º) mas não permite, naturalmente, que se faça o pagamento. Assim, em termos imediatos o credor apenas (mas não de somenos importância) consegue a constituição de uma garantia do pagamento do seu crédito. O efectivo pagamento, por sua vez, está condicionado pelo recurso à competente execução. Por outro lado, considerando que podem surgir situações de credores concorrentes, visto que sobre a conta em causa pode recair mais do que um arresto ou arrestos e penhoras, o efectivo pagamento também dependerá da ordem de prioridade que é dada à DEAC, sendo que para esse fim o legislador europeu remete para a legislação nacional. O artigo 32.º prevê que a DEAC confere a mesma posição na ordem de prioridade dos credores que um instrumento de efeito equivalente previsto na legislação do Estado-Membro onde a conta bancária se encontre. Por fim, a DEAC representa mais um caso de supressão do exequatur, à semelhança do que sucede por exemplo com a injunção europeia, com a decisão proferida no âmbito do processo europeu para as acções de pequeno montante e com o título executivo europeu. Efectivamente, de acordo com o artigo 22.º, uma DEAC emitida num Estado-Membro é reconhecida e tem força executória noutro Estado-Membro sem que seja necessário qualquer outra declaração adicional sobre a sua executoriedade e sem que possa ser deduzida oposição a esse reconhecimento. Uma vez emitida a DEAC, o que ocorrerá através de formulário próprio (artigo 19.º) sempre que a decisão de arresto deva ser executada noutro Estado-Membro29 – documento que constituirá o título de circulação automática no espaço europeu – os seus efeitos podem não ser definitivos (artigo 20.º). Por um lado, estão previstos casos de revogação ou alteração da decisão (artigos 33.º, 34.º, 35.º) e, por outro, admite-se que a DEAC seja substituída por uma medida de execução de efeito equivalente nos termos da legislação nacional, caso em que só vigora até ocorrer essa substituição. De facto, o regime previsto contempla a possibilidade de o credor accionar o arresto no tribunal nacional – o que se justifica para maior eficácia na constituição de uma garantia – sendo que nesse caso deve ser dada informação, quando se requer a DEAC, sobre pedidos paralelos (artigo 16.º).

5. EQUILÍBRIO DO REGIME DA DEAC E (DES)PROTECÇÃO DO DEVEDOR É exigível um procedimento cujos contornos procurem um equilíbrio adequado entre o interesse do credor em obter uma decisão quando necessário e o interesse do devedor em prevenir abusos da decisão de arresto (Considerando 14 do Regulamento 655/2014).

29 De acordo com as regras de competência, há casos em que podem coincidir o Estado de emissão e o Estado de execução.

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a) Processo ex parte Tendo em conta os objectivos da medida cautelar, a DEAC é emitida num processo ex parte, ou seja, o devedor não é notificado do pedido de uma decisão de arresto nem ouvido antes de esta ser proferida. (artigo 11.º). Estamos perante uma cedência ao princípio do contraditório e ao princípio fair trail, na vertente do direito a um processo equitativo. O princípio do contraditório não pode ser considerado absoluto quando confrontado com um interesse que se entende prevalecente e desde que não seja definitivamente afastado mas apenas relegado para momento posterior à tomada de uma decisão, o que no caso da DEAC está assegurado pela consagração de «vias de recurso contra a DEAC» à disposição do requerido (artigos 33.º a 35.º). É assim que acontece em vários casos na nossa legislação interna, inclusive no caso da providência cautelar de arresto e também assim tem sido a orientação da jurisprudência europeia, designadamente no chamado acórdão Gambazzi30, onde se Em Portugal não se tem dado a afirmou: “É verdade que os direitos fundamentais, como o res- devida atenção a estas matérias peito dos direitos de defesa, não surgem como prerrogativas e continuamos num completo absolutas, podendo comportar restrições. Contudo, estas res- autismo, deixando os trições devem corresponder efectivamente a objectivos de profissionais forenses num interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não completo vazio e exigindo-lhes constituir, à luz do fim prosseguido, uma violação manifesta e um redobrado esforço na desmesurada dos direitos assim garantidos” (Número 29). aplicação concreta de medidas Assim, a aparente vantagem que é concedida ao credor como a injunção europeia, o não só não constitui incontornável violação do princípio do processo europeu, as acções de contraditório, como não provoca desequilíbrio absoluto de pequeno montante e o título posições visto que há mecanismos de correcção, a posteriori. executivo europeu. Ora, isso só Desde logo, o requerido será notificado da decisão de arresto pode conduzir a um e de todos os documentos apresentados pelo requerente desincentivo à utilização desses imediatamente após a aplicação da decisão e poderá reque- meios e, reflexamente, ao rer a sua revisão (artigos 28.º, 33.º a 35.º). Além disso, o deve- coarctar do direito à acção. dor tem a possibilidade de libertar os fundos que tem na conta arrestada se oferecer uma garantia alternativa (artigo 38.º). Poder-se-á dizer, no entanto, que optar por um processo inaudita parte pode conduzir a posições abusivas do credor no que respeita ao uso deste instrumento, mas, como se verá, o legislador também foi sensível a isso e criou formas de desincentivo à utilização incontrolada da DEAC, exigindo que o credor, em certas circunstâncias, preste caução (artigo 12.º). b) Exigência de constituição de garantia ao credor Uma das preocupações associadas à criação de um procedimento que permite ao credor obter uma DEAC, sobretudo porque pode recorrer a ela antes de o direito se encontrar acertado e declarado em documento com força executória e porque lhe assiste a vantagem do Acórdão do Tribunal de Justiça, de 2 de Abril de 2009, Marco Gambazzi contra Daimler Chrysler Canada Inc. e CIBC Mellon Trust Company (Processo C‑394/07) disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document. jsf?docid=73644&doclang=PT (consultado a 10 de abril de 2016).

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efeito surpresa sobre o devedor, é a utilização abusiva desse mecanismo, por exemplo com o único intuito de pressionar o devedor. Naturalmente, a garantia da tutela dos direitos do devedor espera-se que seja sempre salvaguardada pela bondade da decisão que o tribunal vem a proferir. De todo o modo, na medida em que a prova exigida é, como não podia deixar de ser dada a natureza cautelar da providência, a da mera probabilidade séria da existência do direito invocado, o tribunal pode confrontar-se com dúvidas em relação aos interesses em discussão. Assim sendo, para procurar um equilíbrio, antes de emitir uma DEAC, o tribunal exige-lhe que constitua uma garantia num montante suficiente para prevenir a utilização abusiva do procedimento previsto no presente regulamento e para assegurar a eventual indemnização do devedor por quaisquer prejuízos por este sofridos em resultado da decisão de arresto, na medida em que o credor seja responsável por tais danos, nos termos do artigo 13.º (artigo 12.º). Afigura-se uma boa solução e regista-se a intenção de protecção do devedor. c) Isenção de certos montantes Em nome da defesa da dignidade humana e do direito à vida, a execução da DEAC não pode afectar montantes que ponham em causa os direitos fundamentais. Dispõe o artigo 31.º que os montantes que são impenhoráveis ao abrigo da lei do Estado-Membro de execução dispõem ficam isentos de arresto nos termos do presente regulamento. Esta é, sem dúvida, uma medida que protege os devedores. No confronto entre os interesses do credor na satisfação do seu crédito – mesmo encontrando-se efectivamente declarado – e o direito que assiste a qualquer cidadão de não ser privado dos meios que lhe proporcionam o mínimo de subsistência, é este que prevalece. No contexto dos «montantes isentos de arresto», o legislador volta a articular a concretização da medida com a legislação dos ordenamentos internos. A concretização da ordem de arresto determinada pela DEAC respeitará esses limites e a entidade competente fa-lo-á de acordo com as normas do ordenamento onde a medida está a ser executada. Por isso, teremos a protecção do devedor, efectivamente, mas na exacta medida em que o seja pelo ordenamento interno do Estado de execução. d) Vias de «recurso» e protecção do devedor Salienta-se, como questão prévia, que o legislador usa uma terminologia imprecisa nas disposições dos artigos 33.º a 36.º quando aí consagra das denominadas «vias de recurso». Trata-se, na verdade, de mecanismos próprios e autónomos de impugnação ou reacção contra a medida de arresto decretada ou contra a execução. Assim, emitida a DEAC e congelada a conta ou contas bancárias do devedor, o requerido é notificado, nos termos do artigo 28.º. Entra-se, a partir daí, na fase em que o devedor pode fazer uso dos meios de impugnação que lhe assistem, nos termos dos artigos 33.º a 35.º. Sendo que esses mecanismos distinguem-se quanto aos fundamentos, quanto aos efeitos e quanto ao Estado-Membro onde são accionadas. São remetidos para o tribunal de origem (tribunal que emitiu a DEAC), essencialmente, os pedidos de revogação ou alteração da DEAC por motivo relacionado com falta de

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fundamento para a sua emissão – por exemplo, alegação de factos que contrariem a existência ou o montante do crédito ou o risco de dissipação de activos – ou com a alteração de circunstâncias (artigo 33.º). Por outro lado, é no Estado de execução que se ataca a DEAC por razões relacionadas, nomeadamente, com os montantes isentos de execução, com a perda ou suspensão do efeito executório do título executivo ou por contrariar a ordem pública (artigo 34.º). Nestes casos, o pedido é o de reduzir, fazer cessar ou pôr fim à DEAC. Acrescente-se, ainda, que sobre as decisões proferidas em sede de procedimento de revisão pode ser interposto recurso, regulado pela legislação nacional (artigo 37.º). Por fim, encontra-se expressamente prevista a possibilidade de recurso pela mão do requerente relativamente a uma decisão negativa, o que aliás vem no sentido que a doutrina defendia31. Assim, o requerente que veja recusada a emissão da DEAC pode recorrer da decisão do tribunal ou da autoridade de emissão no prazo de 30 dias a contar da notificação da mesma (artigo 21.º).

6. CONCLUSÃO A União Europeia continua a apostar no desenvolvimento do espaço europeu de justiça como instrumento de garantia de direitos fundamentais dos cidadãos mas também como veículo de consolidação e segurança das relações comerciais, tão necessária ao desenvolvimento económico. A criação da decisão europeia de arresto de contas bancárias em matéria civil e comercial é mais um instrumento que servirá o projecto da União Europeia em matéria de cooperação judiciária civil e comercial, sobretudo porque complementa as medidas já existentes e cumpre os objectivos da supressão do exequatur, garantindo a efectiva realização de um crédito reconhecido ou a reconhecer. Quanto à ponderação do equilíbrio entre os vários interesses em causa, a apreciação geral é positiva. Os objectivos da medida encontram-se cumpridos, designadamente a constituição de uma garantia do cumprimento de um crédito que opera através do efeito surpresa, com ajustada celeridade, com transparência e cooperação entre as entidades envolvidas, quer na emissão quer na execução da ordem de arresto. Por outro lado, os direitos do devedor apenas ficam temporariamente comprimidos, mas voltam à sua plenitude quando passam a poder ser exercidos, sem que fique em causa a utilidade da medida requerida. Além do mais, o regime proposto é especialmente sensível a um conjunto de indivíduos (consumidores, trabalhadores e segurados) que normalmente se apresentam como parte mais frágil nas relações jurídicas em que intervêm. Nesses casos, a proposta apresenta um regime que imprime uma maior flexibilidade nas regras de competência, procurando Esta questão não era pacífica, por exemplo, no regime jurídico do título executivo europeu. Mas a possibilidade de se interpor recurso da decisão que negasse a emissão de um título executivo europeu já era defendida por diversos autores. Cfr. GARCIMARTÍN ALFÉREZ, F. J., El Título Ejecutivo Europeo, Navarra, 2006, pp. 169 e 170; GARCIMARTÍN ALFÉREZ, F. J.; PRIETO JIMÉNEZ, M. J., La Supresión del Exequatur en Europa: El Título Ejecutivo Europeo, “La Ley”, n.º 6151, 2004, p. 1628; MARINHO, C. M., Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, Coimbra, 2008, pp. 154-156; RODRÍGUEZ VÁZQUEZ, M. A., El Título Ejecutivo Europeo, Madrid, 2005, p. 68.

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evitar que os mesmos fiquem onerados com a carga da mobilidade extraterritorial e, por essa razão, se resignem e, consequentemente, não exerçam o seu direito de acção ou o seu direito de contraditório. Assim, admite-se, excepcionalmente, que o tribunal competente seja o do seu domicílio. Porém, não obstante os esforços do legislador europeu, o êxito da medida – como aliás tem acontecido nos procedimentos europeus de segunda geração – estará também condicionado pela boa articulação com a legislação interna dos Estados-Membros e pelo eficiente funcionamento dos respectivos sistemas, bem como das entidades envolvidas32. A isto acresce, ainda, os problemas normalmente associados à terminologia técnico-jurídica e respectiva tradução que por vezes cria desfasamentos e equívocos indesejáveis. Por isso, esperamos que os Estados-Membros e, em especial, o legislador português, sejam sensíveis a esta realidade e procurem corresponder com medidas internas de adaptação e articulação com os procedimentos europeus. Em Portugal não se tem dado a devida atenção a estas matérias e continuamos num completo autismo, deixando os profissionais forenses num completo vazio e exigindo-lhes um redobrado esforço na aplicação concreta de medidas como a injunção europeia, o processo europeu, as acções de pequeno montante e o título executivo europeu. Ora, isso só pode conduzir a um desincentivo à utilização desses meios e, reflexamente, ao coarctar do direito à acção. Apesar de estes procedimentos serem criados através de regulamentos de aplicação directa, tem de haver consciência de que não se trata de regimes absolutamente auto-suficientes. Em grande parte dos Estados-Membros, como por exemplo na Bélgica, na Holanda e em Espanha, têm sido aprovados diplomas que tratam especificamente a aplicação interna dos instrumentos europeus de cobrança, mas, infelizmente, não tem sido essa a postura do nosso legislador. Artigo escrito segundo o antigo acordo ortográfico

Até 18 de julho de 2016, de acordo com o artigo 50.º, os Estados-Membros comunicam à Comissão várias informações necessárias à aplicação do Regulamento, designadamente: a) Os tribunais designados como sendo competentes para proferir decisões de arresto (artigo 6.º, n.º 4); b) A autoridade designada como competente para obter informações sobre contas (artigo 14.º); c) Os métodos para obter informações sobre contas previstos no seu direito nacional (artigo 14.º, n.º 5); d) Os tribunais para os quais pode ser interposto recurso (artigo 21.º); e) A autoridade ou autoridades designadas como competentes para a recepção, transmissão e notificação da decisão de arresto e de outros documentos nos termos do presente regulamento (artigo 4.º, ponto 14); f ) A autoridade competente para executar decisões de arresto nos termos do Capítulo 3; g) Em que medida o direito nacional permite o arresto de contas conjuntas ou de contas de mandatários (artigo 30.º); h) As regras aplicáveis aos montantes impenhoráveis segundo o direito nacional (artigo 31.º); i) Se, nos termos do respectivo direito nacional, os bancos têm direito a cobrar taxas pela aplicação de decisões nacionais equivalentes ou por prestar informações de contas e, em caso afirmativo, qual das partes é responsável provisoria e finalmente por pagar essas taxas (artigo 43.º); j) A tabela de taxas ou outro conjunto de regras que estabeleça as taxas aplicáveis cobradas por qualquer autoridade ou outro órgão envolvido no tratamento ou na execução da decisão de arresto (artigo 44.º); k) Se o direito nacional confere uma qualquer prioridade às decisões nacionais equivalentes (artigo 32.º); l) Os tribunais ou, quando aplicável, a autoridade de execução, competentes para efeitos de decidir de um recurso (artigo 33.º, n.º 1, artigo 34.º, n.º 1 ou 2); m) Os tribunais nos quais deve dar entrada o recurso, o prazo, se tiver sido fixado, em que esse recurso deve dar entrada nos termos do direito nacional, e o facto a partir do qual o prazo deve ser contado (artigo 37.º); n) Uma indicação das custas judiciais (artigo 42.º); e o) As línguas aceites para a tradução dos documentos (artigo 49.º, n.º 2).

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Referências Bibliográficas a) Doutrina BORRÁS, A., Hacia la Supresión del Exequatur en Europa in “Cooperación Jurídica Internacional en Materia Civil. El Convenio de Bruselas”, Cuadernos de Derecho Judicial, IV, 2001. CORDÓN MORENO, F. J., “La Orden Europea de Retención de Cuentas (Reglamento 655/2014) desde la perspectiva de un proceso seguido en España”, www.gomezacebo-pombo.com , julho de 2014. DOMÍNGUEZ RUIZ, L., La Orden Europea de Retención de Cuentas, Revista de Derecho Civil, n.º 4, vol. I, núm. 4, 2014, pp. 243–256; – Reclamación de deudas transfronterizas, Ed. Aranzadi Thomson Reuters, Cizur Menor (Navarra), 2013. GARAU SOBRINO, F. F., Lecciones de Derecho Procesal Civil Internacional, Palma, 2003. GARCIMARTÍN ALFÉREZ, F. J., El Título Ejecutivo Europeo, Navarra, 2006. GARCIMARTÍN ALFÉREZ, F.J.; PRIETO JIMÉNEZ, M. J., La Supresión del Exequatur en Europa: El Título Ejecutivo Europeo, “La Ley”, n.º 6151, 2004. GASCÓN INCAHUSTI, F., Medidas cautelares de proceso civil extranjero (Artículo 24 del Convenio de Bruselas), Ed. Comares, Granada, 1998; – Medidas cautelares (artículo 31 RBI), in “Derecho procesal civil europeo”. Volumen I. Competencia judicial internacional, reconocimiento y ejecución de resoluciones extranjeras en la Unión Europea (Dir. DE LA OLIVA SANTOS, A.), Ed. Aranzadi Thomson Reuters, Cizur Menor (Navarra), 2012, pp. 309-341. GONZÁLEZ BEILFUSS, C., in El Proyecto de Medidas para la Aplicación del Principio de Reconocimiento Mutuo de las Resoluciones Judiciales en Materia Civil y Mercantil, Revista Española de Derecho Internacional, 2000. GUZMÁN ZAPATER, M., Un Elemento Federalizador para Europa: el Reconocimiento Mutuo en el Ámbito del Reconocimiento de Decisiones Judiciales, Revista de Derecho Comunitario Europeo, 2001. HESS, B. (coord.), Estudo sobre a melhoria da execução das decisões judiciais na União Europeia (Study

n.º JAI/A3/2002/02, on Making more efficient the enforcement of judicial decisions within the European Union: Transparency of a Debtor’s Assets Attachment of Bank Accounts Provisional Enforcement and Protective Measures (Version of 2/18/2004) de Prof. Dr. Burkhard Hess, Director of the Institute of Comparative and Private International Law University of Heidelberg) disponível em: http://ec.europa.eu/civiljustice/publications/docs/ enforcement_judicial_decisions_180204_en.pdf (consultado a 10 de abril de 2016). MADURO, M. P., A Constituição Plural – Constitucionalismo e União Europeia, Lisboa, 2006. MARINHO, C. M., Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, Coimbra, 2008. MARTÍN DIZ, F., La Orden Europea de Embargo de Activos Bancarios, in “Cooperación judicial civil y penal en el nuevo escenario de Lisboa” (coord. ARANGUENA FANEGO, C.), Ed. Comares, Granada, 2011, pp. 133-147; – Protección Procesal del Crédito Transfronterizo en la Unión Europea: Propuesta de Orden de Embargo de Activos Bancarios, Revista de Derecho Comunitario Europeo, num. 30, 2008, pp. 381-418. MESQUITA, L. V., O Título Executivo Europeu como Instrumento de Cooperação Judiciária Civil na União Europeia – Implicações em Espanha e Portugal, Almedina, 2012. – A (des)protecção do devedor na proposta de criação do procedimento europeu específico para o arresto de contas bancárias, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas”, Coimbra Editora, 2013, pp. 9991-1020. MIQUEL SALA, R., La futura orden europea de retención de cuentas para simplificar el cobro transfronterizo de deudas en materia civil y mercantil, in Cuadernos de Derecho Transnacional, octubre 2012, vol. 4, núm. 2. Paz Martín, J., El Espacio Judicial Europeo en materia civil y la “quinta libertad comunitaria”: La reforma del modelo Bruselas I, Civitas. Revista española de derecho europeo, n.º. 36, 2010, pp. 565-588.

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PINHEIRO, L. L., Direito Internacional Privado. Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, Vol. III., Coimbra, 2002. RODRÍGUEZ VÁZQUEZ, M. A., El Título Ejecutivo Europeo, Madrid, 2005. SÁNCHEZ JIMÉNEZ, M. A., Ejecución de Sentencias Extranjeras en España: Convenio de Bruselas de 1968 y Procedimiento Interno, Granada, 1998. SENÉS MOTILLA, C., La Orden Europea de Retención de Cuentas (Reglamento [UE] 655/2014), www.dictumabogados.com, n.º 34, 14 de octubre de 2014; – El Embargo de Cuentas Bancarias (Aplicación en el proceso español y propuesta de Derecho europeo) in “El Derecho procesal español en el Siglo XX a golpe de tango”, Liber Amicorum, en homenaje y para celebrar su LXX cumpleaños (Dir. MONTERO AROCA, J.), Ed. Tirant Lo Blanch, Valencia, 2013, pp. 861-883; – El Embargo Telemático de Cuentas Bancarias (Propuesta de regulación en Derecho Europeo), in “La e-justicia en la Unión Europea” (desarrollo en el ámbito europeo y en los ordenamientos nacionales) (coords. DE LA OLIVA SANTOS, A., GASCÓN INCHAUSTI, F. y AGUILERA MORALES, M.), Ed. Aranzadi Thomson Reuters, Cizur Menor (Navarra), 2012, pp. 91-111. VILAS ÁLVAREZ, D., El Reglamento por el que se crea una Orden Europea de Retención de Cuentas y Mercantiles: claves de su elaboración, La Ley mercantil, n.º 6, 2014.

b) Jurisprudência Acórdão do Tribunal de Justiça, de 2 de Abril de 2009, Marco Gambazzi contra Daimler Chrysler Canada Inc. e CIBC Mellon Trust Company (Processo C‑394/07) disponível em http://curia.europa.eu/juris/ document/document.jsf?docid=73644&doclang=PT (consultado a 10 de abril de 2016).

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c) Documentos da União Europeia Projecto de medidas para aplicação do princípio de reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria civil e mercantil, aprovado pelo Conselho e Comissão, a 30 de Novembro de 2000 (JO C 12, de 15.01.2001). Livro Verde sobre uma maior eficácia na execução das decisões judiciais na União Europeia: «penhora» de contas bancárias [COM (2006) 618 final, 24.10.2006]. Resolução do Parlamento Europeu, de 25 de Outubro de 2007, acerca do Livro Verde sobre uma maior eficácia na execução das decisões judiciais na União Europeia: penhora de contas bancárias [2007/2026(INI)], JO C 263E, 16.10.2008). Resolução do Parlamento Europeu, de 25 de Novembro de 2009, de aplicação do Programa de Estocolmo para adopção de “propostas com vista a um sistema europeu simples e autónomo para a penhora de contas bancárias e o congelamento temporário de depósitos bancários” (número 95) disponível em http:// www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-// EP//NONSGML+TA+P7-TA-2009-0090+0+DOC+PDF +V0//PT (consultado a 10 de abril de 2016). Programa de Estocolmo, sob o título “Uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos” (JO C 115/01, 4.5.2010). Final Report – Impact Assessment on a Draft Legislative Proposal on the Attachment of Bank Accounts, Centre for Strategy & Evaluation Services (CSES), Londres, Janeiro de 2011 (resumo publicado pela Comissão (SEC(2011) 938 final, 25.7.2011) e texto integral consultado em: http://ec.europa.eu/justice/civil/files/ bank_attachments_en.pdf (10 de abril de 2016). Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que cria uma decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial (COM(2011) 445 final, 25.7.2011).


“DO CONTRATO DE DOAÇÃO” MANUEL DE ALMEIDA Mestre em Solicitadoria

RESUMO O contrato de doação normalmente não nos desperta tanta atenção. Esse facto deve-se, no nosso entender, equivocadamente, por se tratar de um contrato que não apresenta um maior grau de dificuldade na sua elaboração. Contudo, na nossa opinião, o contrato de doação é um dos mais complexos e que exige dos profissionais um absoluto domínio sobre a matéria. Há quem pretenda dispor em vida dos seus bens ou proceder à divisão dos mesmos, “antecipando” a partilha que ocorreria post mortem, através da doação. O contrato de doação, nominado, típico, sujeito à forma escrita, com carácter intrinsecamente pessoal e de livre revogabilidade é um contrato, regulado no Código Civil, pelo qual uma pessoa, por espírito de liberdade e à custa do seu património, dispõe de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em

benefício de outro contraente, sendo para isso fundamental a sua aceitação para a sua formação. Assim sendo, a doação tem, desde logo, como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa, e a assunção da obrigação, quando for esse o objeto do contrato. Este tema de grande interesse mostra-se de superlativa complexidade. Pela sua dimensão, não temos a pretensão de o aprofundar, mas sim facultar diretrizes, não abordando o tema de uma forma tradicional, apenas levantando questões que nos pareceram mais pertinentes, e se possível, dar sugestões, concordando ou discordando com os autores.

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“do Contrato De Doação”

I. NOÇÃO E GENERALIDADES

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doação encontra-se regulada no Código Civil, no título dos contratos em especial, nos artigos 940.º a 979.º do Código Civil (doravante CC). A definição de doação encontra-se plasmada no artigo 940.º do CC, que a define como “O contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberdade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente”. Sendo esta a regra, há, como iremos ver mais à frente, exceções e proibições. Ao contrário do que fizeram outros ordenamentos jurídicos, o nosso qualificou expressamente a doação como um contrato. Segundo Antunes Varela, contrato é um “acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade contrapostas mas harmonizáveis entre si que visam estabelecer uma composição unitária de interesses”. Tradicionalmente, a doação costumava ser qualificada apenas como um ato, uma vez que era dispensável a expressão da aceitação do donatário. Efetivamente, no Direito Romano a “donatio” não tinha autonomia, bastando para isso, por exemplo, a entrega da coisa. Entendeu o legislador, em 1966, e bem, na nossa perspetiva, considerar fundamental a aceitação para a formação do contrato de doação, com exceção da doação pura efetuada a incapaz, sendo, por isso, neste caso, um negócio unilateral e não um contrato (cfr. artigo 951.º n.º 2 CC). A doação, como regra, tem caráter contratual, motivo pelo qual carece de uma proposta e de uma aceitação. No entanto, os prazos para esta aceitação não são regulados pelo artigo 228.º do CC, uma vez que o n.º 1 do artigo 945.º do CC determina que esta aceitação apenas caduca com a morte do doador, com exceção feita se este, entretanto, a revogar, ao abrigo do n.º 1 do artigo 969.º do CC. Pelo facto supra referido, defendem Pires de Lima e Antunes Varela que enquanto não houver aceitação há apenas uma proposta contratual.

II. REQUISITOS ESSENCIAIS PARA A EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE DOAÇÃO Na definição/noção de doação prevista no artigo 940.º do CC, encontramos os três requisitos exigidos para que possamos dizer que estamos perante um contrato de doação, a saber: – Em primeiro lugar tem que haver a disposição gratuita de certos bens ou direitos, ou assunção de uma dívida em benefício do donatário, ou seja, atribuição patrimonial geradora de enriquecimento; – Por outro lado, há uma diminuição do património do doador; – Por último, tem que existir o espírito de liberdade, é o “animus donandi”. A atribuição patrimonial, geradora de um enriquecimento, o primeiro requisito, apresenta-se-nos sob a forma de transferência do doador para o donatário, ou seja, um ato que atribua a outrem uma concreta vantagem patrimonial, de um direito patrimonial ou de um direito real (ex: usufruto ou da nua propriedade, com reserva do usufruto para o doador), ainda que também possa transferir-se por doação de um direito de crédito (cfr. n.º 1 do artigo 578.º CC) ou

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Manuel De Almeida

ainda resultar do pagamento de uma dívida, caso em que também aqui se verifica a diminuição do património de um e o aumento do outro. Na realidade, em qualquer destes caso, o donatário sofre um incremento do seu património e o doador sofre uma diminuição no seu património. Forçoso será, então, dizer que a atribuição patrimonial seja gratuita. O segundo requisito, para que se considere que há uma doação, é que a atribuição patrimonial seja feita à custa do património do doador, ou seja, haja uma efetiva diminuição patrimonial. Com isto, excluímos da doação a prestação de serviço, o comodato, o mútuo sem juros, o não exercício de um direito de preferência. Exige-se, por isso, que haja uma diminuição do património do doador. Finalmente, requer-se também, para que haja contrato de doação, o espírito de liberalidade por parte do doador. Este ato de espírito de liberalidade tem que ser visível, caso contrá- A doação, como regra, rio não estará em condições de ser qualificado como contrato tem caráter contratual, motivo de doação. Esta liberalidade implica por parte do doador uma pelo qual carece de uma generosidade que se contrapõem com a necessidade ou proposta e de uma aceitação. dever. Apresente-se como exemplo aquele que cumpre uma obrigação natural, o qual não faz uma doação. Note-se, contudo, que este espírito de liberdade não deverá ser confundido com índole altruísta.

III. QUALIFICAÇÃO DO CONTRATO DE DOAÇÃO São várias as características que definem o contrato de doação. Com efeito, doação é um contrato nominado, isto porque a lei o reconhece como tal (cfr. artigo 940.º do CC); e típico, porque tem um regime estabelecido (cfr. artigos 940.º a 979.º do CC). Por outro lado, e por força do artigo 947.º CC, a doação é, por regra, sujeita à forma escrita (escritura pública ou documento particular autenticado, redacção dada pelo Decreto-lei 116/2008 de 4 de julho) no caso de bens imóveis, sendo consequentemente nula se não respeitar essa forma, conforme preceituado no artigo 220.º do CC. Porém, há exceções, concretamente a doação de coisas móveis se acompanhada de tradição da coisa doada (cfr artigo 947.º n.º 2 do CC). Porém, não se pode considerar válida (a doação) se esta (tradição da coisa doada) não se verificar. Por outro lado, o contrato de doação tem um caráter intrinsecamente pessoal, uma vez que o doador não poderá atribuir a terceiro a prerrogativa de designar a pessoa do donatário ou de determinar o objeto da doação, a não ser nos estritos casos estipulados no n.º 2 do artigo 2182.º do CC, como resulta do disposto n.º 1 do artigo 949.º do CC. Nem tão pouco poderão os representantes legais dos incapazes fazer doações em nome destes. Acresce ainda que o contrato de doação deve ser de livre revogabilidade. Isto ocorre nas seguintes situações: – Enquanto a proposta do doador não for aceite pelo donatário (cfr. n.º 1 do artigo 969.º do CC). Contudo, admitimos toda a lógica desta norma, uma vez que antes da aceitação só existe uma proposta e não uma doação; – Por ingratidão do donatário (cfr. artigo 970.º do CC); – O donatário falecer antes do doador; – O casamento vier a ser considerado nulo ou anulado e vier a ocorrer divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário.

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Pode considerar-se, ainda, que a doação é um contrato primordialmente consensual, ou seja, rege-se pelo princípio da consensualidade (cfr. artigo 408.º do CC), uma vez que a doação é um contrato de eficácia real, no sentido de que a transferência da propriedade ou da titularidade do direito se verifica em consequência do próprio contrato, sendo que nasce ali logo a obrigação do doador entregar a coisa doada, conforme estipulado na alínea b) do artigo 954.º do CC. Outra das características do contrato de doação é o facto de ser gratuito, considerando que só há sacrifícios económicos para uma das partes, ou seja, do doador. Nem sequer se verifica onerosidade em relação à doação com encargos prevista no artigo 963.º do CC, uma vez que este conceito de onerosidade é incompatível com a ideia de gratuitidade. Nos contratos onerosos, as prestações que incumbem às partes constituem as suas prestações correspetivas, são parte integrantes e obrigatórias do negócio realizado, enquanto que nos contratos gratuitos os encargos (modo) impostos ao beneficiário funcionam como simples limitações ou restrições à prestação do disponente (liberalidade) e não como o seu correspetivo (vide Antunes Varela, Ensaio sobre o conceito de modo). Assim, o n.º 1 do artigo 963.º do CC tem como intuito realçar o facto de a atribuição donativa não deixa de ser liberalidade pelo facto de o donatário assumir a obrigação de realizar certa prestação, sendo que, enquanto contrato gratuito, a doação será naturalmente um contrato não sinalagmático, por quanto só faz surgir obrigações para uma das partes. Como regra, vemos o contrato de doação de execução instantânea. No entanto, é admitido a possibilidade da doação abranger prestações periódicas, previsto no artigo 943.º do CC. Não confundir, contudo, com a doação de bens futuros, prevista no artigo 942.º do CC, que a lei não permite. Com efeito, neste contexto, o que se doa é o direito à prestação, como por exemplo, o direito a uma pensão vitalícia em benefício do donatário, mas que se extingue por morte do doador. Cada prestação é cumprida no momento próprio e com bens presentes relativamente ao momento.

IV. OBJETO DA DOAÇÃO O objeto da obrigação é a prestação devida ao donatário. Será o meio de satisfazer o interesse do donatário, que lhe irá proporcionar a vantagem que ele adquiriu com aquela doação. Por princípio, a doação pode ter por objeto mediato bens de qualquer natureza: – Móveis ou imóveis (cfr. artigos 204.º e 205.º do CC); – Coisa simples ou compostas (cfr. artigo 206.º do CC); – Fungíveis ou não fungíveis (cfr. artigo 207.º do CC); – Consumíveis ou não consumíveis (cfr. artigo 208.º do CC) e; – Divisíveis ou não divisíveis (cfr. artigo 209.º do CC). Porém, a doação de bens futuros, que já era proibida pelo código civil de 1867 no artigo 1453.º, continua a ser afastada por virtude da natureza especial do contrato de doação disposta no artigo 942.º do CC. Apesar de haver divergências quanto a esta questão (Antunes Varela defende que é possível a doação abranger bens futuros e, por outro lado, Cunha Gonçalves e Barbosa Lopes defendem que não é possível), nós entendemos esta proibição, uma

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vez que, conforme refere Mota Pinto “o fundamento deste preceito está na proteção das pessoas contra um ato suscetível de ser praticado mais levianamente do que a doação de bens presentes” e não estar totalmente seguro da sua implicação e até vir a não poder executar. Mais, poderia o doador não agir com a ponderação e a consciência que exige o contrato de doação. Refletindo no preceituado no artigo 211.º do CC, consideram-se bens futuros “as que não estão em poder do disponente, ou a que este não tem direito, ao tempo da declaração negocial”, considerando-se para este efeito coisas alheias, como bens futuros, sendo por isso a doação, e por força do artigo 956.º do CC, considerada nula. Para além disso, como já foi dito, a doação pressupõe a diminuição do património do doador. Ora, neste pressuposto, estando o doador a doar um bem que ainda não adquiriu, estaria em contradição com a noção preceituada no próprio artigo 940.º do CC. Contudo, a lei permite a venda de coisas futuras, como por exemplo, um lavrador vender a outrem a próxima colheita de cereais ou a produção de um pomar de macieiras. Estatui o artigo 399.º do CC que “É admitida a prestação de coisa futura sempre que a lei não o proíba“. Como já foi exposto, a expressão “ coisa futura” é, porém, usada, numa aceção ampla (artigo 211.º do CC), abrangendo não só as coisas que ainda carecem de existência, como as próprias coisas já existentes a que o disponente ainda não tem direito ao tempo da declaração negocial, A doação é um contrato pese embora esperar ter em momento posterior. Coloca-se primordialmente consensual, a questão: E se, contra a expetativas dos contraentes, a coisa ou seja, rege-se pelo princípio futura não chegar a existir? Em princípio, a obrigação extin- da consensualidade, uma vez gue-se total ou parcialmente, consoante os casos. que a doação é um contrato A realidade é que a lei permite a venda de coisa futuras, de eficácia real. mas não permite a doação de coisas futuras. Assim, os pressupostos argumentados para a proibição da doação de coisas futuras não servem também para a venda de coisas futuras? Efectivamente o legislador, com a proibição da doação de coisas futuras, quis proteger o doador contra um ato susceptível de ser praticado mais levianamente e a implicação de não poder executar a doação. Leva-nos a concluir que o legislador pensou que o doador poderia estar a fazer uma doação sem consciência do impacto que poderia ter essa doação no seu património. Mas não será de aplicar também à venda de coisas futuras? Será que o vendedor, à data da declaração negocial, não poderá estar a negociar algo que possa não saber bem as consequências que daí advêm? Eventualmente, poderá, também, não ter possibilidade de vir executar o contrato, como já vimos. Não seria de aplicar, na doação, também o princípio de a obrigação do doador extinguir-se total ou parcialmente consoante os casos? Ou seja, seria uma doação condicionada à sua possibilidade de concretização. Temos dúvidas quanto a esta interpretação. Pensamos que esta proibição assenta mais na falta de um pressuposto para caracterizar a doação, ou seja, a diminuição do património do doador, prevista no artigo 940.º do CC. Contudo, pensamos que as normas aplicadas à venda de coisas futuras poderiam ser também aplicadas, com as devidas adaptações, à doação de bens futuros. O n.º 2 do artigo 942.º do CC admite porém, por razões de ordem prática e para satisfazer interesses do comércio jurídico, que sejam feitas doações de uma universalidade, mas que continue no uso e fruição do doador, e abranjam as coisas singulares que venham de futuro

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a integrar a sua universalidade. Como exemplo, temos a doação de uma biblioteca, uma colecção de selos ou de moedas, de uma discoteca, um rebanho, uma garrafeira, etc. Aqui, o doador transmite não uma coisa simples, mas uma coisa composta. Estabelece o artigo 206.º do CC que “É havida como coisa composta, ou universalidade de facto, a pluralidade de coisas móveis que, pertencendo à mesma pessoa, têm um destino unitário”. Assim, caso venha a ingressar na universalidade de facto uma coisa simples, esta é havida como fazendo parte da universalidade, não se considerando, desta forma, uma doação de um bem futuro. Em relação ao objeto da doação, é pertinente, ainda, considerar duas situações: prestações periódicas, que já foi abordado anteriormente e, doação conjunta. Em relação a esta última, e segundo o n.º 1 do artigo 944.º do CC que “a doação feita a várias pessoas conjuntamente considera-se feita por partes iguais, sem que haja direito de acrescer entre os donatários, salvo se o doador houver declarado o contrário.”. A lei aqui estabelece claramente que, para além das partes serem iguais para cada um dos donatários, se um dos donatários não quiser ou não puder aceitar, não há direito de acrescer para os restantes (sobre direito de acrescer ver artigos 2301.º a 2307.º do CC). Então o que acontece? Ora, os bens que caberiam a esse donatário ou donatários mantêm-se na titularidade do doador. Por outro lado, segundo Pires de Lima e Antunes Varela, já se verificará o direito de acrescer, no caso especial da doação por morte convertida em testamento, por força do n.º 2 do artigo 946.º do CC. Neste caso, a doação será havida como disposição testamentária e sujeita às mesmas regras da sucessão testamentária. Ainda relativamente à doação conjunta e segundo o estabelecido no n.º 2 do artigo 944.º do CC, o direito de não acrescer entre os donatários não se aplica aos usufrutuários, ou seja, no caso de doação de usufruto a vários usufrutuários, caso um não queira ou não possa aceitar, os restantes têm direito de acrescer na parte.

V. CAPACIDADE PARA FAZER OU RECEBER DOAÇÕES A capacidade para fazer ou receber doações, estatuída nos artigos 948.º a 953.º do CC, prevê regras especiais para fazer (capacidade ativa) ou receber (capacidade passiva) doações. Dispõe o n.º 1 do artigo 948.º do CC que “têm capacidade para fazer doações todos os que podem contratar e dispor dos seus bens”, sublinhado nosso. Também aqui temos na lei, como defendem alguns autores, um reforço à proibição de doar bens futuros. Resulta daqui que a lei iguala a capacidade contratual prevista no artigo 67.º do CC “as pessoas podem ser sujeitos de quaisquer relações jurídicas, salvo disposição legal em contrário”. A “disposição legal em contrário” prevista na parte final deste artigo é a exclusão dos menores (cfr. artigos 122 e ss do CC), os interditos (cfr. artigos 138.º e ss) e os inabilitados (cfr. artigos 152.º e ss do CC). Concluímos, deste modo, que os incapazes não podem, portanto, fazer doações, nem mesmo os seus representantes o podem fazer em seu nome. Compreende-se bem esta impossibilidade uma vez que uma das características marcantes da doação é o espírito de liberalidade e o carácter pessoal da doação (cfr. artigo 949.º do CC). Esta capacidade ativa de fazer doações “é regulada pelo estado em que o doador se encontra ao tempo da declaração negocial” (cfr. n.º 2 do artigo 948.º do CC). Pode, porém, acontecer que, no momento da declaração, o doador tenha capacidade de doação e que no momento da aceitação já não tenha essa faculdade. Como sabemos, a proposta de doação só caduca

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com a morte do doador, podendo ser feita em qualquer altura da vida do mesmo, por força do artigo 969.º do CC. Efetivamente, a lei é clara, considerando como relevante o momento da declaração negocial. Ou seja, se no momento da aceitação o doador já não tiver capacidade ativa de doar, esta não perde a validade, uma vez que só interessa o momento da declaração e não o momento da aceitação. Quanto à capacidade para receber doações (capacidade passiva), dispõe o n.º 1 do artigo 950.º do CC que “Podem receber doações todos os que não estão especialmente inibidos de as aceitar por disposição da lei”. Também aqui, como na capacidade ativa, não houve desvios às regras gerais da capacidade contratual. Apenas são admitidas inibições previstas na lei, artigo 953.º do CC conjugado com os artigos 2192.º a 2198.º do CC. Por exceção, ou seja, nas doações puras, sem encargos para o donatário, a lei admite não ser necessário a sua aceitação, nem representação legal, uma vez que apenas o beneficia. Ao invés, nas doações com encargos, mantém-se a necessidade de aceitação, e muito bem, no nosso entender, pelo que exige a intervenção dos representantes legais do donatário. Prevê também a lei, doações a nascituros concedidos e Outra das características não concedidos desde que “sendo filhos de pessoa determina- do contrato de doação é o facto da, viva ao tempo da declaração de vontade do doador” pos- de ser gratuito, considerando suam capacidade para receber doações (Cfr. artigo 952.º do que só há sacrifícios económicos CC). Como se vê pela leitura do artigo 952.º do CC, a lei refe- para uma das partes, ou seja, re “pessoa determinada” o que pressupõe a menção a um só do doador. progenitor e não aos dois, compreendendo-se esta medida do legislador, uma vez que poderia dificultar a doação a nascituros concedidos fora do casamento. Esta capacidade passiva, ao contrário da capacidade ativa, é fixada no momento da aceitação e não na declaração negocial. Convém ainda esclarecer que estas doações são sempre condicionais, condição resolutiva, pois dependem sempre do nascimento completo e com vida. Como nota final, e segundo Menezes Leitão, não se justifica o interesse do legislador contemplar a doação a nascituros, uma vez que o doador o poderia fazer por testamento a favor desse ou mesmo a partir do momento em que esse viesse a nascer.

VI. EFEITOS ESSENCIAIS DAS DOAÇÕES Segundo o disposto no artigo 954.º do CC, a doação tem como efeitos essências: A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; A obrigação de entregar a coisa, e; A assunção da obrigação, quando for esse o objecto do contrato. Este artigo harmoniza-se com a noção de doação expressa no artigo 940.º do CC, ou seja, sempre que incida sobre coisa determinada a doação é um contrato de eficácia real, no sentido de que a transferência da propriedade ou da titularidade do direito se verifica em

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consequência do próprio contrato (cfr. n.º 1 do artigo 408.º do CC). Daqui nasce, desde logo, para o doador a obrigação de entregar a coisa doada. Esta eficácia equivale à eficácia do artigo 879.º do CC relativo à compra e venda. Porém, não há referência a preço, uma vez que a doação é gratuita, e na doação há referência à assunção da obrigação, que na compra e venda não existe. Daqui retiramos, desde logo, a diferença entre a onerosidade do contrato de compra e venda e a gratuitidade da doação. Estes efeitos são os essenciais, porém, muitos outros poderão haver, nomeadamente através de cláusulas acessórias introduzidas em cada um dos contratos, fruto da liberdade contratual prevista no artigo 405.º do CC. Por último, a entrega da coisa doada, prevista na alínea b) do artigo 954.º e artigo 955.º, ambos do CC, que correspondem, eliminado o n.º 3 do artigo 882.º do CC, a uma adaptação à compra e venda.

VII. DOAÇÕES ATÍPICAS Como já tivemos oportunidade de referir, a doação é um contrato nominado, isto porque a lei o reconhece como tal (cfr. artigo 940.º do CC); e típico, porque tem um regime estabelecido (cfr. 940.º a 979.º do CC). Contudo, e apesar das suas características especiais, não deixou o legislador de as incluir no nosso ordenamento jurídico. Assim, temos: A doação remuneratória, prevista no artigo 941.º do CC; A doação por morte, prevista no artigo 946.º do CC; A doação para casamento, prevista no artigo 1753.º e ss do CC; A doação entre casados, prevista nos artigos 1761.º a 1766.º do CC. A partilha em vida, prevista no artigo 2029.º do CC; A doação remuneratória, prevista no artigo 941.º do CC, caracteriza-se pela circunstância de que os serviços prestados não têm natureza de dívida exigível, ou seja, é importante que a remuneração dos serviços prestados não corresponda a uma qualquer obrigação do recetor. Esta doação (remuneratória) é, contudo, mais benéfica para o donatário, uma vez que não é revogável por ingratidão, e, por outro lado, goza do direito de serem as últimas doações objecto de redução por inoficiosidade. Já no que diz respeito à doação por morte, determina o n.º 1 do artigo 946.º do CC que “É proibida a doação por morte, salvo nos casos especialmente previsto na lei”. Concluímos, então, que a regra é a proibição, encontrando-se quase integralmente proibida no nosso direito, prevendo, contudo, exceções. Os casos de doação por morte especialmente previstos na lei são os que constam nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1700.º do CC (disposições por morte consideradas lícitas) e no n.º 2 do artigo 1755.º do CC (as doações que hajam de produzir os seus efeitos por morte do doador são havidas como pactos sucessórios e, como tais, estão sujeitas ao disposto nos artigos 1701.º e 1703 do CC, sem prejuízo do preceituado nos artigos seguintes). Por fim, e ainda relativamente à doação por morte, o disposto no n.º 2 do artigo 946.º do CC faz aplicação do princípio da conversão do negócio jurídico, que resulta do artigo 293.º do CC, ou seja, “o negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade”,

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salvaguardando que a doação tenha sido feita por escritura pública ou documento particular autenticado. Outra modalidade de doação atípica consiste na doação para casamento, prevista nos artigos 1753.º a 1760.º do CC, que consiste que a doação “é feita a um dos esposados, ou a ambos, em vista do seu casamento”. Assim, quer as doações entre esposados, quer as doações de terceiros a esposados podem ser celebradas tanto inter vivos como mortis causa, estando, assim, perante uma abolição à proibição da doação por morte prevista no artigo 946.º do CC, podendo, inclusive, abranger uma parte ou totalidade de herança futura, o que implica também a abolição da proibição da doação de bens futuros, prevista no artigo 942.º do CC. Uma vez que esta só produz efeitos na data da celebração do casamento, pode o doador estar a doar bens que ainda não se encontram na sua disponibilidade. Efetivamente, existe aqui uma condição relativamente à doação, ou seja, há doação no momento do casamento, ou não há doação se este não se concretizar; há, portanto, uma dependência de uma concretização. A doação entre casados é uma modalidade específica prevista nos artigos 1761.º a 1766.º do CC, na qual subsidia- A capacidade para fazer ou riamente se aplica o regime geral da doação previsto nos receber doações, estatuída nos artigos 940.º a 979.º do CC. Estabelecida no artigo 1765.º do artigos 948.º a 953.º do CC, CC, a especialidade principal desta modalidade é a sua livre prevê regras especiais para fazer revogabilidade, ao contrário do conceito geral do contrato (capacidade activa) ou receber de doação. No caso do regime geral de casamento ser o de (capacidade passiva) doações. separação de bens, prevê a lei a sua proibição (vfr. artigo 1762.º do CC). Esta imposição deve-se ao facto do receio de um dos cônjuges enriquecer à custa do outro. Contrariamente, estranha-se o facto do artigo 1720.º n.º 2 do CC já admitir a realização de doações entre nubentes, uma vez que por esta via se abre uma porta a que seja defraudada aquela disposição do artigo 1762.º do CC (é nula a doação entre casados, se vigorar imperativamente entre os cônjuges o regime da separação de bens). Outra particularidade da doação entre casados é a contradição com o disposto no artigo 947.º n.º 2 do CC. Dispõe este artigo que “a doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito”; por outro lado, estabelece o n.º 1 do artigo 1763.º do CC que “a doação de coisas móveis, ainda que acompanhada da tradição da coisa, deve constar de documento escrito”. Apesar desta aparente contradição, compreende-se esta norma, uma vez que havendo uma comunhão de vida normal, entre os cônjuges, dificilmente se consideraria que a tradição da coisa se efectivou, não se podendo atribuir à tradição os seus efeitos normais, ou seja, o desapossamento do doador. Por último, e para além da livre revogabilidade já mencionada, estabelece o artigo 1766.º do CC a sua caducidade em três situações, a saber: 1 – O donatário falecer antes do doador; 2 – O casamento vier a ser considerado nulo ou anulado, e; 3 – Vier a ocorrer divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário. Finalmente, o instituto da partilha em vida. Sobre este assunto e para mais desenvolvimento poderá ser consultada a obra “Mealha, Esperança Pereira, 2002. Partilha em vida e seus efeitos sucessórios, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol I.

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Prevista no artigo 2029.º do CC, o n.º 1 diz-nos que: “Não é havido por sucessório o contrato pelo qual alguém faz doação entre vivos, com ou sem reserva de usufruto, de todos os seus bens ou parte deles a algum ou alguns dos presumidos herdeiros legitimários, com o consentimento dos outros, e os donatários pagam ou se obrigam a pagar a estes o valor das partes que proporcionalmente lhes tocariam nos bens doados.”. Há quem reúna os seus herdeiros e familiares diretos e pretenda, em vida, proceder à divisão dos seus bens, “antecipando” a partilha que ocorreria post mortem, pressupondo que dessa forma haverá harmonia, evitando os dissabores que tantas vezes surgem com a partilha de heranças. Coloca-se a questão: É este comportamento juridicamente relevante? A partilha em vida é uma forma dos herdeiros começarem a usufruir da herança mais cedo, nada impedindo que alguém proceda à divisão do seu património em vida, embora seja conveniente, quanto a bens imóveis, reservar para si o respetivo usufruto vitalício, mediante escritura pública. Estamos, pois, perante uma doação a um presumido(s) herdeiro(s) legitimário(s), que assume o encargo de pagar aos outros presumidos herdeiros legitimários, bem como os herdeiros legitimários futuros ou posteriormente descobertos, com o acordo destes, o valor em dinheiro correspondente à parte que lhes caberia, inclusive este encargo. Para além disso, as tornas em dinheiro a pagar, se não forem pagas no momento, estão sujeitas a atualização nos termos gerais (Cfr. n.º 3 do artigo 2029.º do CC). A partilha em vida não é considerada um pacto sucessório, sendo, dessa forma, qualificada como uma modalidade específica de doação entre vivos. Há, no entanto, entanto uma clara função sucessória que consiste em favorecer algum ou alguns herdeiros legitimários, com encargos a favor dos restantes. Por este motivo, a doação entre vivos adquire algumas características especiais: – Pressupõe o consentimento não apenas do donatário, mas também dos outros presumidos herdeiros legitimários, o que não era de exigir numa comum doação com encargos; – Não parece dever ser sujeito ao regime de chamamento à colação (cfr. artigo 2104.º CC), nem a redução por inoficiosidade (cfr. artigo 2168.º do CC). Contudo, parece-nos uma posição com fundamento, porque se assim não fosse destruiria completamente os fins a que se destina a partilha em vida, que consiste, precisamente, em antecipar em vida do doador a repartição da herança que seria feita na abertura da sua morte. É de salientar, contudo, que a partilha em vida só poderá ser feita com os presumidos herdeiros legitimários, o que não poderá acontecer com os netos, estando os filhos vivos, dado que são estes, e não os netos, os herdeiros legitimários.

VIII. EXTINÇÃO DAS DOAÇÕES Quanto à extinção das doações, esta pode operar-se de três formas, a saber: a) Revogação da doação; b) Colação, e; c) Redução por inoficiosidade.

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Quanto à revogação das doações, estas podem ser por revogação da proposta de doação (cfr. artigo 969.º do CC) e ingratidão do donatário (cfr. artigo 970.º do CC). No artigo 969.º do CC, revogação da proposta de doação, estabelecem-se dois desvios às regras gerais de negócios jurídicos. Ou seja, o da livre revogação da proposta, enquanto esta não for aceite, prevista no n.º 1 do referido artigo, e o da não caducidade desta, prevista no n.º 2 do mesmo artigo. Contudo, depois de aceite, esta torna-se, em princípio, irrevogável, (cfr. artigo 230 º do CC). Quanto à ingratidão do donatário, o conceito jurídico pouco tem que a ver com o significado na linguagem comum. Segundo a linguagem comum, ingratidão é a “qualidade do que não agradece os favores ou ajudas, do que é ingrato” e a “falta de reconhecimento a um benefício recebido”. O conceito jurídico é mais restrito, senão vejamos o artigo 974.º do CC. “A doação pode ser revogada por ingratidão, quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador, ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação.” Assim, apenas é admitida a revogação por ingratidão caso pudesse ser qualificada, como justificativa de indignidade (cfr. artigo 2034.º do CC) ou de deserdação (cfr. artigo 2166.º do CC). Com isto, em relação às situações de indignidade, pode o donatário revogar a doação por ingratidão, nas seguintes situações: – O donatário ter sido condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o doador ou contra o se cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado, – Ter o donatário sido condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as pessoas referidas; – Ter o donatário, por meio de dolo ou coação, induzido o doador a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impedir; – Ter o doador dolosamente subtraído, ocultado, inutilizado, falsificado ou suprimido o testamento, antes ou depois do doador. Quanto à deserdação, são fundamentos de revogação por ingratidão: – Ter sido o donatário condenado por algum crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do doador, cônjuge, descendentes ou ascendentes, adotante ou adotado, caso o crime seja de pena superior a seis meses; – Ter sido o donatário condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas referidas; – Ter o donatário, sem justa causa, recusado ao doador ou ao seu cônjuge os devidos alimentos. Como vemos, o conceito jurídico de ingratidão é bem diferente do significado da linguagem comum. Quanto à segunda causa de extinção das doações (colação), ou se quisermos, a conferência dos bens doados, prevista nos artigos 2104.º a 2118.º e do CC, ela é imposta aos descendentes que pretendam entrar na sucessão. Para tal, devem restituir à massa da herança os bens que receberam, para efeitos de igualação da partilha, tanto em bens como os valores (cfr. n.º 1 do artigo 2104.º do CC).

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A colação assenta na presunção de que o de cujus, fazendo em vida alguma liberalidade a um seu presuntivo herdeiro legitimário, não quis avantaja-lo relativamente aos outros, mas tão-somente antecipar a transferência da legítima que viria a competir-lhe, promovendo, desta forma, certa igualação da partilha entre herdeiros legitimários. Por esse mesmo motivo, a lei confere a possibilidade de o doador “dispensar a colação pelo doador no ato da doação ou posteriormente” (cfr. n.º 1 do artigo 2113 do CC). No entanto, o n.º 2 do artigo 2113.º do CC diz-nos que se “a doação tiver sido acompanhada de alguma formalidade externa, só pela mesma forma, ou por testamento, pode ser dispensada a colação”. Neste contexto, a obrigação de conferir os bens ou valores doados recai sobre o donatário. A colação tem por objeto tudo quanto o falecido houver disposto gratuitamente em proveito dos descendentes (cfr. n.º 1 do artigo 2110.º do CC), incluindo as atribuições gratuitas que não pudessem ser qualificadas como doação nos termos do artigo 940.º do CC. A exceção deste preceituado está previsto no n.º 2 do artigo 2110.º do CC: “as despesas com o casamento, alimentos, estabelecimento e colocação dos descendentes, na medida em que se harmonizem com os usos e com a condição social e económica do falecido”. Segundo o artigo 2111.º do CC, também devem ser conferidos os frutos alcançados desde a abertura da sucessão. Neste ponto, deveremos ter em atenção que a conferência e a guarda destes frutos pelo cabeça de casal pressupõe o seu valor e não o fruto propriamente dito. Efetuando-se a doação pela imputação do valor dos bens doados, determina o n.º 1 do artigo 2109.º do CC atender, para efeitos do valor, o montante que têm à data da abertura da sucessão, e não o valor que tinham na altura da doação. Então, como referido anteriormente: “presume-se que o doador ou neste caso o autor da herança não quis beneficiar esse herdeiro em relação a outros, mas apenas antecipar o que posteriormente lhe viria a ser atribuído na herança” e “Também devem ser conferidos os frutos alcançados desde a abertura da sucessão”. Em face do exposto, não estará o legislador a favorecer um donatário com uma doação sem encargos e um donatário com uma doação com encargos, como por exemplo, doação com reserva de usufruto? Neste último caso, o donatário não teve acesso aos frutos realizados durante a vida do doador. Por outro lado, no primeiro caso (sem encargos), o donatário só tem que fazer a conferência dos frutos após a abertura da sucessão, usufruindo do que alcançou até a abertura da sucessão. Parece-nos haver aqui um real favorecimento de um dos presumidos herdeiros legitimários em detrimento de um ou outros herdeiros legitimários. Por fim, a redução por inoficiosidade, regulada nos artigos 2168.º a 2178.º do CC. Segundo o artigo 2168.º do CC, dizem-se inoficiosidades as liberalidades entre vivos ou por morte que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários. Contudo, e a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, estas podem ser objeto de redução por forma a que não venham a afetar a legítima em tanto quanto for necessário para que a mesma seja preenchida, conforme previsto no artigo 2169.º do CC. Efetivamente, todo este processo de tramitação e prazos encontra-se regulado, como já referido, nos artigos 2168.º a 2178.º do CC. Contudo, poder-se-ão levantar as mesmas questões que se levantaram em relação à colação com as devidas adaptações. Parece-nos que também aqui o doador poderá estar a beneficiar algum ou alguns herdeiros em detrimento de outros, nomeadamente no que refere ao artigo 2177.º do CC, onde está previsto que “o donatário é considerado, quanto a frutos e benfeitorias, possuidor de boa fé até à data do pedido de redução”; consequentemente, faz seus os frutos naturais alcançados até esse momento.

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Manuel De Almeida

IX. CONCLUSÃO Este tema mostrou-se de grande interesse, mau grado a superlativa complexidade. Pela sua dimensão, não tivemos nem temos a pretensão de o aprofundar, mas sim facultar diretrizes, não abordando o tema de uma forma tradicional, apenas levantando questões que nos pareceram com mais pertinência, e, se possível, dar sugestões, concordando ou discordando com os autores. Estamos cônscios de que muito ficou por dizer, nomeadamente no que se prende com a relação entre este tipo de contrato e o direito sucessório, que, apesar de ter sido abordado, não foi aprofundado como seria desejável. Na elaboração do tema e na bibliografia consultada, percebeu-se que, apesar de tudo, há consenso na interpretação, não deixando, no entanto, de haver posições contrárias. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico

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“do Contrato De Doação”

Referências Bibliográficas ANTUNES VARELA, J., M., 1980. Das Obrigações em Geral. Volume I. 3.ª Edição. Almedina. ANTUNES VARELA, J., M., 2000. Das Obrigações em Geral. Volume I. 10.ª Edição. Almedina. CHAVES, J., Q., 2009. Heranças e partilhas, Doações e Testamentos. 2.ª edição. Quid Juris GONZÁLVES, J., A., R., L., 2008. Direito e Prática Notarial – Formulários. 4.ª edição. Quid Juris. LEITÃO, L., M., T., de M., 2009. Direito das obrigações, Volume III. 6.ª Edição. Almedina.

WEBGRAFIA WWW.DGSI.PT WWW.PGDLISBOA.PT WWW.WIKIPEDIA.COM

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MEALHA, Esperança Pereira, 2002. Partilha em vida e seus efeitos sucessórios, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol I. MOTA PINTO, 1970. Cessão da Posição Contratual. NETO, A., 2009. Código Civil Anotado. 16.º Edição revista e actualizada. Ediforum.


REFLEXÕES EM TORNO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA MELANIE OLIVEIRA NEIVA SANTOS Prof. Adjunta do ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo/ Advogada / Mestre em Direito

RESUMO O direito de preferência pode resultar da lei ou de convenção e, neste último caso, encontra o seu campo de aplicação no domínio dos contratos onerosos. O exercício deste direito, independentemente da sua natureza legal ou convencional, suscita inúmeras divergências doutrinais e jurisprudenciais. Especialmente relevantes são as questões do conhecimento do preferente, rectius do teor da comunicação ao preferente, e da declaração de preferência. A letra da lei permite diversas soluções interpretativas apresentadas pela doutrina e pela jurisprudência a propósito do funcionamento do instituto. A ponderação do princípio da boa fé na aplicação da lei ao caso concreto reveste, pois, particular importância neste domínio, em nome da segurança jurídica.

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1. INTRODUÇÃO

O

instituto jurídico que nos propomos analisar assume especial relevância no ordenamento jurídico português por diferentes razões que aqui apontamos. Uma das razões, aduzida por OLIVEIRA ASCENSÃO1, reside no facto de, aparentemente, Portugal deter o recorde mundial das preferências concedidas pela lei. Nas palavras deste autor “(...) conceder preferências sai de graça, logo o legislador não pode perder nenhuma oportunidade. A prática que se avenha depois com as dificuldades que as preferências criam.”2 Entre estas dificuldades assinala a pluralidade heterogénea de preferentes, a sua hierarquização e, hierarquizados os preferentes, a pluralidade de titulares de preferências em cada classe3. Uma outra razão empresta importância à preferência e reside no facto de, no caso do pacto de preferência, ter aplicação no domínio dos contratos onerosos, conforme resulta da leitura conjugada dos artigos 414.º e 423.º do Código Civil 4, 5. O pacto de preferência reveste interesse sobretudo no caso da compra e venda, a matriz dos contratos onerosos atenta a norma ínsita no artigo 939.º. Ora, a autonomia privada manifesta-se, por excelência, na liberdade contratual e esta, por sua vez, vigora em maior medida nos contratos obrigacionais6. Evidenciada, pois, a importância do direito de preferência e a existência de dificuldades que o seu funcionamento coloca, o presente artigo visa trazer à colação problemáticas e soluções, pelo confronto de posições doutrinárias e jurisprudenciais. O tema é vasto e complexo pelo que uma análise exaustiva do mesmo não seria possível neste trabalho. Tal não nos dispensa, porém, do esforço em abordar, ainda que de forma sucinta, algumas das questões controversas e com manifesto interesse prático e, assim, prestar um contributo para a reflexão sobre a atualidade dos direitos de preferência que, de resto, continuam a surgir ex novo no nosso ordenamento jurídico7.

2. NOÇÃO E CARACTERIZAÇÃO “O pacto de preferência consiste na convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa”, noção legal que resulta do artigo 414.º. ASCENSÃO, Oliveira, Subarrendamento e direitos de preferência no novo regime do arrendamento urbano, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 51, Vol. I, Abril 1991, p. 58. 2 Ibidem. 3 Ibidem, p. 62. 4 Neste sentido COSTA, Almeida, Direito das Obrigações, 12.ª edição revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 2009, p. 444. 5 Salvo indicação em sentido contrário, os preceitos legais referidos são do Código Civil. 6 Neste sentido, PINTO, Mota, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed. act., 6.ª reimp., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p.104. 7 Sobre novas categorias de direitos legais de preferência no ordenamento jurídico português vide MIRANDA, F. Lobo, A atribuição de direitos legais de preferência em Portugal, dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Março 2015, pp.13-17. 1

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O direito de preferência pode resultar da aludida convenção – o pacto de preferência –, ou resultar da lei. No primeiro caso, o direito assume natureza convencional e, no segundo, constitui um direito legal de preferência. Em bom rigor e na esteira de PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA8, a obrigação de preferência pode ser assumida em quaisquer circunstâncias, não dependendo necessariamente de um pacto, pois o artigo 2235.º permite ao testador impor ao legatário tal obrigação. Por outro lado, o legislador abre a porta a outros contratos, que não exclusivamente o de compra e venda, ao estabelecer no artigo 423.º que “As disposições dos artigos anteriores relativas à compra e venda são extensivas, na parte aplicável, à obrigação de preferência que tiver por objeto outros contratos com ela compatíveis.”. A título de exemplo referem diferentes autores9 a locação, a sociedade, o contrato de fornecimento e o contrato constitutivo do direito de superfície. O titular do direito de preferência pode exercê-lo na compra do bem ou na realização de outro contrato compatível O pacto de preferência com a obrigação de preferência, desde que assuma celebrar é um contrato preliminar o contrato em igualdade de condições com o terceiro inte- de outro contrato ressado. aproximando-se O pacto de preferência é, assim, um contrato preliminar de neste sentido do outro contrato aproximando-se neste sentido do contrato- contrato-promessa. -promessa. Contudo, distingue-se deste pois, ao contrário do contrato-promessa em que o obrigado se vincula a realizar o negócio, a obrigação de preferência tem natureza condicional. Com efeito, neste último caso, o obrigado promete preferir se contratar. Na definição de MENEZES LEITÃO10, o pacto de preferência é “ a convenção pela qual alguém assume a obrigação de escolher outrem como contraente, nas mesmas condições negociadas com terceiro, no caso de decidir contratar.” Salientando ainda o autor a natureza unilateral do contrato porquanto no pacto de preferência “(...) apenas uma das partes assume uma obrigação, ficando a outra parte (o titular da preferência) livre de exercer ou não o seu direito.11” Porém e conforme nota ALMEDA COSTA “(…) permitem-se pactos de preferência recíprocos (ex.: se numa partilha se convenciona a preferência entre condividentes, para a hipótese de algum deles alienar a sua parte).12” A preferência será convencional ou legal consoante a natureza da fonte e a esta diferente natureza estão associados regimes outrossim diferentes. Assim, “o preferente convencional goza, em princípio, de um mero direito de crédito à conduta do obrigado à preferência, cujo inadimplemento dá apenas lugar a uma indemnização; ao invés o preferente legal desfruta, LIMA, Pires e VARELA, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed. rev. e act., reimp., Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 388. 9 Vide por todos COSTA, Almeida, op. cit. e LIMA, Pires de e VARELA, Antunes, op. cit. 10 LEITÃO, Menezes, Direito das Obrigações, Vol. I, 13.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 223. 11 Ibidem. 12 Op. cit. p. 444. 8

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mais do que isso, de um direito potestativo que lhe permitirá fazer seu o negócio realizado em violação da preferência (artigo 1410.º).13” Parafraseando OLIVEIRA ASCENSÃO, “Continua actuante o princípio da lei portuguesa de que as preferências legais têm natureza real.14”, o que permite ao seu titular exercer a preferência mesmo perante o terceiro adquirente. Segundo este autor podemos encontrar algo em comum em todas as preferências legais, “Pretende-se sempre permitir a alguém, com fundamento num direito de que é titular, adquirir outro direito no qual tem um interesse particular.”15 Cumpre ainda referir que o artigo 421.º, n.º 1 permite atribuir eficácia real à preferência obrigacional que respeite a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, se forem observados os requisitos de forma e de publicidade exigidos no artigo 413.º. E “Se a obrigação de preferência for imposta no testamento a herdeiro ou legatário, deve ser registada pelo beneficiário do encargo para poder ter eficácia real.16” Tratando-se, porém, de preferência legal, a sua eficácia em relação a terceiros não está dependente de registo. Alguns casos de preferências legais são as atribuídas ao arrendatário (artigo 1091.º), ao comproprietário (artigo 1409.º), ao proprietário do solo (artigo 1535.º), aos proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura (artigo 1380.º), aos co-herdeiros quando seja vendido ou dado em cumprimento a estranho um quinhão hereditário (artigo 2130.º, n.º 1). Existem também inúmeros direitos legais de preferência dispersos em legislação extravagante como dá nota ANA PRATA17 elencando alguns deles. As preferências convencionais, ainda que dotadas de eficácia real, nunca prevalecem sobre as legais. E, no caso das preferências convencionais sem eficácia real, não podem ser exercidas relativamente a alienações efetuadas em processo executivo, insolvencial ou casos análagos, solução que decorre da norma contida no artigo 422.º. Consequentemente, apenas os titulares de preferências legais e de preferências convencionais com eficácia real são notificados para exercer o seu direito na venda ou adjudicação dos bens.18

3. O PACTO DE PREFERÊNCIA: REQUISITOS SUBSTANCIAIS E FORMAIS Segundo ALMEIDA COSTA, não vale para o pacto de preferência, por ausência de preceito expresso, o princípio da equiparação subjacente ao contrato-promessa, posição que subscrevemos e pelo mesmo fundamento.19 Vigoram aqui as regras gerais dos contratos. No que respeita à forma o pacto de preferência está sujeito ao mesmo regime do contrato-promessa previsto no artigo 410.º n.º 2 e aplicável ex vi do artigo 415.º. Vale, assim, para o pacto de preferência, a liberdade de forma (219.º), sendo, porém, exigível documento Ibid. p. 453. Ibid. supra nota 1, p. 70. 15 ASCENSÃO, Oliveira, Preferência do arrendatário habitacional: notificação, caducidade, renúncia, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 53, Vol. III, 686. 16 JUSTO, Santos, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, p. 455. 17 PRATA, Ana, Dicionário Jurídico, Vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014, pp. 511 e ss. 18 Neste sentido COSTA, Almeida, op. cit., p. 454, nota 2. 19 No sentido, porém, da aplicação do princípio da equiparação vide CORDEIRO, Menezes, Direito das obrigações, Vol. I, pp. 488 e ss. apud COSTA, Almeida op. cit. p. 445, nota 1. 13

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particular sempre que para o contrato preferível for exigível documento particular ou autêntico (410.º n.º 2). Por outro lado, o pacto de preferência apenas terá que ser assinado pelo obrigado à preferência por se tratar de contrato unilateral.20 Se o direito de preferência decorrer de uma disposição testamentária, está coberto pela forma legal prevista para o testamento (artigos 2204.º a 2209.º).21 Salvo estipulação em contrário, são intransmissíveis em vida e por morte quer o direito, quer a obrigação de preferência (artigo 420.º). Para PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA “A regra da intransmissibilidade da preferência através da própria sucessão mortis causa tem a vantagem de evitar inúmeras dificuldades a que poderia dar lugar, entre os vários herdeiros, ou entre herdeiros e legatários, a solução oposta.22” Ainda para os citados autores, caso seja prevista a transmissibilidade do direito de preferência, tal estipulação pode resultar tacitamente da natureza do contrato.23

4. A COMUNICAÇÃO AO PREFERENTE Sob a epígrafe “Conhecimento do preferente”, dispõe o n.º 1 do artigo 416.º que, “Querendo vender a coisa que é objeto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projeto de venda e as cláusulas do respetivo contrato.” A formulação desta norma suscita as mais diversas posições na doutrina e a questão assume particular relevo por se tratar de dever legal cujo incumprimento pode fundamentar um pedido de indemnização ou uma ação de preferência, conforme mais adiante se verá. A primeira questão que se coloca é a do conteúdo da comunicação. A lei fala em projeto de venda e cláusulas do respetivo contrato. Parte da doutrina24 integra a previsão da norma com recurso ao disposto no n.º 1 do artigo 1028.º do Código do Processo Civil nos termos do qual, “Quando se pretenda que alguém seja notificado para exercer o direito de preferência, especificam-se no requerimento o preço e as restantes cláusulas do contrato projetado (…)”. Assim o preço, as condições de pagamento e as vantagens ou ónus que decorram do contrato preferível são julgados como elementos essenciais a comunicar ao preferente de modo a que este possa fundar a sua decisão. Para MENEZES LEITÃO, ao referir, a par do projeto de venda, as cláusulas do contrato, “a lei esclarece que não basta indicar os elementos gerais do contrato, mas que terão igualmente que ser comunicadas todas as estipulações particulares acordadas, que sejam relevantes para a decisão do exercício da preferência.25” ALMEIDA COSTA fala em comunicar “todos os Vide LEITÃO, Menezes, op. cit. pp. 223 e 224, COSTA, Almeida op. cit. p. 445 LIMA, Carlos, Direitos de preferência legal, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, Vol. III, dezembro 2005, p. 609. 22 Op. cit. p. 396, anotação ao artigo 420.º. 23 Ibidem. 24 Vide ASCENSÃO, Oliveira, Subarrendamento e direitos de preferência no novo regime de arrendamento urbano, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 51, Vol. I, Abril 1991, p. 64 e COSTA, Almeida, op. cit. , p. 447. 25 Op. cit., p. 226. 20

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elementos que se mostrem significativos para a formação da vontade de exercer ou não a preferência.26” A questão que mais divide a doutrina reside em saber se a comunicação a dirigir ao preferente deve conter a identidade do terceiro interessado. Uma posição, defendida por OLIVEIRA ASCENSÃO, entende que a letra da lei não exige a referência à pessoa a quem se projeta vender, “(…) não é essencial a identificação desta; aliás, não é uma cláusula do contrato.27” Outra posição, defendida por GALVÃO TELLES e MENEZES CORDEIRO, sustenta que, por força do princípio da boa fé, a comunicação deve referir o nome do terceiro interessado. Já CARLOS LIMA, sufraga a inclusão do nome do interessado na comunicação com o fundamento de que “(…) a expressão «projecto» utilizada no artigo 416.º abrange a identificação do terceiro. Talvez deva mesmo entender-se que essa expressão se reportará de um modo particular a essa componente subjectiva, uma vez que a dimensão objectiva tem a sua natural expressão nas «cláusulas do respectivo contrato: obrigação de comunicar o projecto de venda e as cláusulas…»28” Para PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, o nome do terceiro terá que ser indicado “(…) nas situações em que o não exercício da preferência implique que fiquem a subsistir relações jurídicas entre o terceiro e o titular da preferência, de que seriam exemplos a situação do comproprietário e do arrendatário.29” MENEZES LEITÃO entende que o nome do terceiro interessado deve ser indicado sempre que seja determinado e será necessário indicar a situação de indeterminação, no caso contrário. Esta última solução permite, segundo o autor, ultrapassar a dificuldade levantada por OLIVEIRA ASCENSÃO no caso de um contrato para pessoa a nomear. No que respeita ao preço, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 03.03.1983, que a venda por preço superior ao indicado na comunicação ao titular da preferência, o qual não a exerceu em tempo, não equivale a uma “alteração essencial” que permita de novo o exercício do direito que caducou.30 No que respeita aos destinatários da comunicação, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, em diferentes arestos, que esta deve ser endereçada a ambos os cônjuges no caso da preferência legal lhes pertencer em comum.31 Do lado do emitente da comunicação, CARLOS LIMA assinala que “apenas o obrigado à preferência tem legitimidade – substantiva – para fazer a comunicação, o que não impede, é claro, que a mesma possa ser feita por quem para o efeito tenha ligitimidade indirecta – v.g. mandatário”.32, 33 Ibid. p. 446. Ibid. p. 64. 28 LIMA, Carlos, Direitos legais de preferência, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, vol. III, dezembro 1993, p. 611. 29 LIMA, Pires e VARELA, Antunes apud LEITÃO, Menezes op.cit. p. 227. 30 Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 120, pp. 19 e ss, apud COSTA, Almeida, op. cit. pp. 446- 447, nota 3. 31 Acórdão de 04.11.1986, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 361, pp. 501 e ss, Assento de 25.06.1987, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 368, pp. 147 ss, apud Costa, Almeida, idem. 32 Op. cit. , p.610. 33 Sobre a comunicação efetuada por um terceiro vide o Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 02.03.1999 in Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, tomo I, pp. 131 e ss., apud Almeida Costa, op. cit., p. 448. 26

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ALMEIDA COSTA34 esclarece que o direito de preferência pode ser exercido ainda que o seu titular tenha tomado conhecimento do projeto de negócio por outro meio que não a comunicação prevista na lei. A comunicação pode ocorrer por via judicial ou extrajudicial. A notificação judicial para a preferência está regulada nos artigos 1028.º e seguintes do Código de Processo Civil e tem natureza facultativa. E, conforme assinala ALMEIDA COSTA35, não pode ser usada a notificação judicial avulsa porquanto a lei criou um processo de jurisdição voluntária para o efeito. No que respeita à notificação extrajudicial, a lei não exige forma, pelo que pode inclusivamente ser verbal (artigo 219.º). A solução legal é objeto de crítica por MENEZES LEITÃO36 que, como bem refere torna difícil a demonstração do seu (in)cumprimento em tribunal, razão pela qual é usual as partes optarem pela forma escrita para a comunicação e exercício da preferência. Por fim e sobre a matéria do ónus da prova da comunicação do projeto de venda e cláusulas do respetivo contra- O direito de preferência to pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, entre pode ser exercido ainda que outros, nos Acórdãos de 22.06.1982, 12.10.1982, 19.01.1984, o seu titular tenha tomado 04.01.1984.37 conhecimento do projeto de negócio por outro meio que não a comunicação 5. A DECLARAÇÃO DE PREFERÊNCIA prevista na lei. Recebida a comunicação pelo preferente, estipula a lei o prazo de 8 dias para este exercer o seu direito sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe tiver concedido prazo mais longo (artigo 416.º, n.º 2). Salientamos que, caso o preferente não exerça o direito de preferir, este caduca relativamente ao projeto de negócio que lhe foi comunicado. Se tal negócio não se vem a realizar, o titular da preferência dispõe de novo do direito de preferência em relação a outro negócio que o obrigado pretenda realizar. De igual modo se, ao invés de não exercer o direito, o preferente renunciá-lo expressamente, tal não obsta ao exercício do direito de preferência em relação a outro negócio que o obrigado pretenda realizar. ALMEIDA COSTA perfilha a posição de GALVÃO TELLES segundo a qual, “a declaração de preferência deve ser recebida pelo obrigado à preferência e não apenas expedida pelo seu beneficiário, dentro do prazo estabelecido.38” No que toca à possibilidade de uma renúncia antecipada pelo preferente e conforme explica ALMEIDA COSTA, esta é admitida no caso das preferências convencionais mas já não Op. cit. , p. 446-448, nota 3. Op. cit., p. 448, nota 1. 36 Op cit., p. 225. 37 Boletim do Ministério da Justiça n.º 318, pp. 415 e ss, n.º 320, pp. 416 e ss., n.º 333, pp. 369 e ss., n.º 342, pp. 351 e ss. apud Almeida Costa, op cit. p. 449, nota. 38 Op cit., p. 448, nota 2. 34 35

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será assim para a hipótese das preferências legais. Neste último caso, estão em causa razões de interese e ordem pública, pelo que admitir uma renúncia genérica e antecipada “(...) equivaleria a modificar o regime do direito potestativo em causa, fixado taxativamente por lei - , mas já se compreende a sua validade a respeito de um projecto concreto, nos mesmos termos em que se admite para as preferências convencionais.39” No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.10.1997, decidiu-se que a renúncia exercida por apenas um dos cônjuges, não afeta o direito ao exercício da preferência pelo cônjuge não renunciante.40 A comunicação e a aceitação da preferência podem desde logo configurar uma proposta e uma aceitação do contrato preferível, ficando assim o contrato concluído se estas manifestam vontade em vincular-se e for observada a forma legal para o negócio jurídico em causa. A notificação e a aceitação da preferência podem ainda configurar um contrato-promessa, caso tenha sido observada a respetiva forma, o que permitirá, em caso de incumprimento, o recurso à execução específica prevista no artigo 830.º.41 Feita a preferência na sequência de notificação judicial, a lei exige que o contrato seja celebrado no prazo de 20 dias (artigo 1028.º, n.º 2 do Código de Processo Civil). Se não for celebrado o contrato, no referido prazo de 20 dias, “(...) deve o preferente requerer, nos 10 dias subsequentes, que se designe dia e hora para a parte contrária receber o preço por termo no processo, sob pena de ser depositado, podendo o requerente depositá-lo no dia seguinte, se a parte contrária, devidamente notificada, não comparecer ou se recusar a receber o preço.” (artigo 1028.º, n.º 2/2.ª parte, do Código de Processo Civil).

6. A VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE PREFERÊNCIA No caso de violação da preferência com eficácia meramente obrigacional, assiste ao preferente o direito a uma indemnização por incumprimento (artigo 798.º), não lhe sendo possível opor o seu direito a terceiro adquirente. MENEZES LEITÃO aponta como hipóteses de incumprimento definitivo da obrigação de preferência, o caso do obrigado celebrar com terceiro um contrato incompatível com a preferência, sem efetuar a comunicação ao preferente ou tendo-a feito, se o titular do direito exercer a preferência tempestivamente.42 Para os casos de violação da obrigação de preferência com eficácia real, poderá o preferente lançar mão da ação de preferência, fazendo prevalecer o seu direito contra o terceiro. (Artigo 1410.º ex vi artigo 421.º, n.º 2). Conforme refere CARLOS LIMA43, a finalidade desta ação é a de “obter sentença que decrete a substituição do preferente como comprador no contrato de alienação que o vinculado à preferência celebrou com terceiro.” Neste mesmo sentido SANTOS JUSTO explica que “A procedência desta acção tem como resultado a Idem, p. 449. Coletânea de Jurisprudência - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, tomo 3, pp. 55 e ss, apud COSTA, Almeida, op. cit. , p. 448. 41 Neste sentido Menezes Leitão, op. cit., p. 228. 42 Op. cit., p. 230. 43 Op. cit., p.615. 39

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substituição, com efeito retroactivo, do adquirente pelo autor-preferente, tudo se passando como se o contrato tivesse sido celebrado entre o alienante e o preferente.44” Uma das questões que se levanta a propósito da ação de preferência e que divide a doutrina é a legitimidade passiva. As posições dividem-se entre o litisconsórcio necessário passivo e a desnecessidade de demandar o promitente faltoso, devendo ser demandado apenas o terceiro adquirente porque se encontra na posse da coisa. Esta última hipótese é sufragada pela maioria da doutrina que conta com autores como GALVÃO TELLES, ALMEIDA COSTA e MENEZES CORDEIRO. Diferentemente, MENEZES LEITÃO, SANTOS JUSTO e ANTUNES VARELA defendem estarmos perante uma situação de litisconsórcio necessário passivo, com o fundamento de que o que dá causa à ação é o incumprimento da obrigação de preferência, posição que perfilhamos. A ação deve ser intentada no prazo de 6 meses contados da data em que o titular do direito de preferência teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e con- Caso o preferente tando que deposite o preço nos 15 dias subsequentes à pro- não exerça o direito positura da ação (artigo 1410.º). de preferir este caduca O prazo fixado na lei é de caducidade e, como tal, de relativamente ao projeto conhecimento oficioso, nos termos conjugados do disposto de negócio que lhe foi nos artigos 298.º, n.º 2 e 333.º. Este prazo não pode ser modi- comunicado. ficado por via negocial por se tratar de matéria subtraída à disponibilidade das partes, pois equivaleria a alteração do regime de um direito real, neste caso de aquisição, regime que a lei fixa taxativamente.45 O prazo para depósito do preço é igualmente um prazo de caducidade. O sentido da palavra «preço» empregue no artigo 1410.º suscita divergência na doutrina. Para PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA a palavra não foi utilizada pelo legislador no seu sentido técnico ou rigoroso. Para estes autores, “Falando em preço, o legislador quer referir-se, com uma palavra só, a todas as despesas feitas pelo adquirente para adquirir a coisa: contraprestação paga ao alienante, sisa, despesas de escritura, de registo (quando obrigatório).46” Embora reconheça que a jurisprudência se tem inclinado para a orientação que a palavra deve ser interpretada no sentido técnico, abrangendo apenas a contraprestação do adquirente e já não despesas que este haja efetuado, ALMEIDA COSTA defende que a interpretação restritiva não parece contemplar adequadamente todos os interesses envolvidos47. No sentido da interpretação restritiva, pronunciaram-se o Supremo e as Relações em diversos arestos48, posição igualmente sufragada por OLIVEIRA ASCENSÃO. Op. cit., p.455. Neste sentido e em anotação ao artigo 1410.º, LIMA, Pires e VARELA, Antunes, Código Civil Anotado Vol. III, 2.ª ed. rev. e act., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 372. 46 Ibid., p. 374. 47 Op. cit., p.458-459. 48 Para uma resenha de jurisprudência neste sentido vide ABREU, Eridano de, Direito de Preferência, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 25-5-82, Anotação, Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, Vol. II, Mai-Set. 1983, p. 468, nota 2. 44 45

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Reflexões Em Torno Do Direito De Preferência

No caso de venda de coisa juntamente com outras, dispõe o artigo 417.º, n.os 1 e 2, que o depósito será proporcional ao preço praticado.49

7. CONCLUSÃO O funcionamento do instituto da preferência levanta diversas dúvidas interpretativas e dificuldades na sua aplicação. As problemáticas evidenciadas na presente abordagem colocam-se quer no regime geral da preferência, quer ao nível das preferências legais dispersas no Código Civil e em legislação extravagante. Atenta a incerteza interpretativa de diferentes normativos que regulam a preferência, o princípio da boa fé assume aqui especial relevo e deve nortear a atuação dos intervenientes em nome de uma maior segurança no tráfego jurídico. Muitas vezes a solução compreenderá, como refere ALMEIDA COSTA50, uma análise casuística da situação à luz dos princípios gerais da boa fé e do abuso de direito. Como bem sublinha OLIVEIRA ASCENSÃO, a lei não pretende burocratizar o comércio, as suas exigências assentam na valoração do interesse dos intervenientes, a apreciar segundo critérios de boa fé, “Mas não pretende, nem tornar soberano o preferente, nem diminuir em nada as capacidades negociais do proprietário.51” Será, pois, à luz dos princípios gerais de direito e tendo em conta os interesses das partes que as dificuldades levantadas pelo direito de preferência devem ser ultrapassadas. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico

Sobre a questão concreta da venda de coisa juntamente com outras, designadamente sobre os conceitos de preço global e prejuízo apreciável a que norma do artigo 417.º se refere vide CADETE, Carneiro, Da preferência do arrendatário habitacional, tese de mestrado em Direito, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, pp. 15-20. 50 Posição expressa a propósito da problemática da renúncia, op. cit., p. 449. 51 Preferência do arrendatário habitacional: notificação, caducidade, renúncia, Revista da Ordem dos Advogados, ano 53, III, p. 687. 49

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Bibliografia ABREU, Eridano, Direito de Preferência, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 25-5-82, Anotação, Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, Vol. II, mai-set. 1983, pp. 463 e ss. ASCENSÃO, Oliveira, Subarrendamento e direitos de preferência no novo regime do arrendamento urbano, Revista da Ordem dos Advogados, ano 51, Vol. I, abril 1991, pp. 45 e ss. ASCENSÃO, Oliveira, Preferência do arrendatário habitacional: notificação, caducidade, renúncia, Revista da Ordem dos Advogados, ano 53, Vol. III, dezembro 1993, pp. 683 e ss. CADETE, Carneiro, Da preferência do arrendatário habitacional, dissertação de mestrado em Direito, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, julho 2011 COSTA, Almeida, Direito das Obrigações, 12.ª ed. rev. e act., Almedina, Coimbra, 2009 JUSTO, Santos, Direitos Reais, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2012 LEITÃO, Menezes, Direito das Obrigações, Vol. I, 13.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016

LIMA, Carlos, Direitos legais de preferência, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, Vol. III, dezembro 2005, pp. 609 e ss. LIMA, Pires de / VARELA, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed. rev. e act., reimp., Vol. III, 2.ª ed. rev. e act., Coimbra Editora, Coimbra, 2011 e 1987 MENEZES, Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2000 MIRANDA, Lobo, Atribuição de direitos legais de preferência em Portugal, dissertação de mestrado em Direito, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Março 2015 NETO, Abílio, Código Civil Anotado, 10.ª ed. act., Ediforum, Lisboa, 1996 PINTO, Mota, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed. act., 6.ª reimp., Coimbra Editora, Coimbra, 1992 PRATA, Ana, Dicionário Jurídico, Vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014 SILVA, Duarte, Arrendamento rural, direito de preferência, venda de quotas de prédio, Revista do Ministério Público, n.º 43 (julho a setembro 1990), pp. 99-100.

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PROCESSO DE INSOLVÊNCIA “A IMPORTÂNCIA DA FASE DE LIQUIDAÇÃO” RICARDO MANUEL SIMÕES LOUREIRO Solicitador

RESUMO Nos tempos de hoje é trivial falar-se de insolvência, quer da pessoa singular, quer da pessoa coletiva. Quando se ouve falar de insolvência é quase instantâneo ter no pensamento a fase de liquidação, pensa-se logo na apreensão dos bens e venda destes em benefício dos credores. O processo de insolvência é um processo tendencialmente universal e misto, composto por uma fase declarativa, que consiste na declaração do devedor no estado de insolvente e uma fase executiva, que consiste na apreensão e liquidação dos bens do devedor, na identificação das dívidas e no pagamento aos credores. Integrada na fase executiva do procedimento de insolvência, a liquidação é um ato complexo de enorme relevo e importância para o prosseguimento. Não curaremos, aqui, de todo o procedimento de insolvência, mas tão só

da liquidação da massa insolvente, como um ato complexo, integrado na fase executiva, que visa a satisfação dos credores.

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PROCESSO DE INSOLVÊNCIA “A IMPORTÂNCIA DA FASE DE LIQUIDAÇÃO”

INTRODUÇÃO

O

processo de insolvência é um processo tendencialmente universal e misto, composto por: uma fase declarativa, que consiste na declaração do devedor no estado de insolvente; e uma fase executiva, que consiste na apreensão e liquidação dos bens do devedor, na identificação das dívidas e no pagamento aos credores. A liquidação é, integrada na fase executiva do procedimento de insolvência, um ato complexo de enorme relevo e importância para o prosseguimento do procedimento de insolvência. Assim, no presente trabalho, procuraremos analisar o regime legal aplicável à liquidação. Numa fase inicial, procuraremos enquadrar o tema, aludindo às formas de liquidação das sociedades comerciais, bem como enquadrar a liquidação no processo de insolvência. Seguidamente, analisaremos todo procedimento da liquidação, desde a abertura da fase de liquidação até à não existência da liquidação. Por último, faremos uma breve conclusão.

1. LIQUIDAÇÃO, GENERALIDADES No nosso ordenamento jurídico, em regra1, a liquidação ocorre quando as sociedades comerciais se dissolvem, ou seja, a liquidação é uma consequência da dissolução da sociedade. A dissolução de uma sociedade comercial traduz-se na cessação do funcionamento das atividades comerciais desenvolvidas pela sociedade, por manifestação da autonomia privada, ou por outro modo previsto na lei, pelo que estão enumerados na lei os casos de dissolução. Assim, como determina o artigo 146.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais2, salvo quando a lei disponha de outra forma: a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, nos termos dos artigos seguintes do presente capítulo, aplicando-se ainda, “nos casos de insolvência” e nos casos expressamente previstos na lei de liquidação judicial, “o disposto nas respetivas leis de processo”. Assim, a dissolução vem prevista nos artigos 141.º e seguintes do CSC. No que concerne à dissolução imediata, dispõe o artigo 141.º, n.º 1, do CSC o seguinte: a sociedade dissolve-se nos casos previstos no contrato e ainda: a) Pelo decurso do prazo fixado no contrato; b) Por deliberação dos sócios; c) Pela realização completa do objeto contratual; d) Pela ilicitude superveniente do objeto contratual; e) “Pela declaração de insolvência da sociedade”. Todavia, tratando-se de uma sociedade comercial, a liquidação no âmbito do processo de insolvência não se confunde, pela sua finalidade, com os demais processos de liquidação3. É o caso, como exemplo, de incorporação, fusão ou cisão de sociedades. Doravante, designado por CSC. 3 A liquidação visa a extinção da sociedade, contudo esta ocorre em momentos diferentes, Ac. do TRC, de 17-122014, proc. 39/10.8IDCBR-A.C1 (LUÍS COIMBRA), «- Só a extinção das sociedades - que ocorre com o registo do encerramento da respectiva liquidação e, no caso de insolvência, com o registo do encerramento do processo após o rateio final (se e quando o mesmo tiver lugar) -, e não a sua dissolução, é equiparável à morte das pessoas singulares.», in www.dgsi.pt. Outra diferença é, enquanto na insolvência, a liquidação do ativo visa a satisfação dos credores do devedor, sem atender ao passivo existente. Na liquidação societária, esta visa os interesses dos sócios, ou seja, tem por finalidade a partilha, pelos sócios, do ativo remanescente após a liquidação do passivo. 1 2

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Assim, o processo de insolvência tem como finalidade, de acordo com o artigo 1.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas4, a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou, como afigura o artigo 1.º, n.º 25, estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, o devedor pode requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização6-7, de acordo com o previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-J. Quer isto dizer que as leis preveem dois processos judiciais8: o processo de insolvência e o Processo Especial de Revitalização9. É também por o exposto que se distingue o processo de insolvência do PER10.

Doravante, designado por CIRE, DL n.º 53/2004, de 18 de março, alterado recentemente pelo DL n.º 79/2017, de 30 de junho, retificado pela Declaração de Retificação n.º 21/2017, de 25 de agosto. Sempre que for feita referência a um artigo sem menção do respetivo diploma legal, trata-se do CIRE, DL n.º 79/2017, de 30 de junho, retificado pela Declaração de Retificação n.º 21/2017, de 25 de agosto. 6 Ac. do STJ, de 25-11-2014, proc. 414/13.6TYLSB.L1.S1 (ANA PAULA BOULAROT) «I. A Lei disponibiliza aos devedores que se encontrem numa situação de insolvência meramente iminente dois meios judiciais: o processo de insolvência e o processo especial de revitalização. II. O PER aplica-se apenas naquelas situações em que ainda é possível a recuperação da empresa através da negociação com os respectivos credores com vista a com eles estabelecer um acordo nesse sentido de harmonia com o preceituado no artigo 17.º-A do CIRE, visando privilegiar, sempre que possível, a manutenção do devedor no giro comercial. III. É um processo negocial extrajudicial do devedor com os credores, com a orientação e fiscalização do administrador judicial provisório, focalizado na obtenção de um acordo para a revitalização da empresa, ao qual são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as regras específicas que pautam a homologação do plano insolvencial, maxime, as decorrentes do normativo inserto no artigo 195.º do CIRE, constante do Titulo IX, para o qual nos remete o artigo 17.º-F, n.º 5, do mesmo diploma. IV. A unidade do sistema jurídico, impõe que as leis se interpretem umas às outras, o que no caso em apreço conduz à asserção de que não contendo as regras especificas relativas ao PER – constantes dos artigos 17.º-A a 17.º-I, qualquer dispositivo específico de onde deflua quais os itens a observar aquando da elaboração do «plano» e remetendo aquele normativo, para o Titulo IX, respeitante ao «Plano de Insolvência», embora se destacando o que preceituam os artigos 215.º e 216.º, igualmente insertos naquele Titulo, mas não descartando a aplicação de todos os outros que o enformam, parece não se poder concluir que as regras respeitantes àquele plano insolvencial não tenham aplicação no PER. V. Embora sejam realidades diversas, porque o Plano de Revitalização é uma demarche pré-insolvencial e o Plano de Insolvência, insere-se já neste processo declarativo, não se anulam quer na forma, quer na substância, nem obedecem a um critério pré-definido, porque as situações variam, resultando daquele artigo 195.º do CIRE a enunciação dos elementos que o «plano» deverá conter, por forma a elucidar todos os intervenientes, com vista à sua aprovação e subsequente homologação pelo juiz.», in www.dgsi.pt. 7 Ac. do TRC, de 24-09-2013, proc. 995/12.1TBVNO-C.C1 (JOSÉ AVELINO GONÇALVES), «I – O processo especial de revitalização, representa uma verdadeira mudança de paradigma do regime insolvencial com vista à prossecução do interesse público, ligado ao funcionamento da economia e à satisfação dos interesses do colectivo de credores, de evitar a liquidação de patrimónios e o desaparecimento de agentes económicos e, consequentemente, de propiciar o êxito da revitalização do devedor, tratando-se de um processo de cariz marcadamente voluntário e extrajudicial, em que se privilegia o controlo pelos credores, restringindo o controlo jurisdicional à gestão processual. II - Porque a recuperação é agora elevada a fim essencial do CIRE, é evidente que a existência da revitalização leva, naturalmente, à suspensão de outras acções que contendam com o património do devedor, incluindo o próprio processo de insolvência, no qual não tenha sido, ainda, declarada a insolvência. III - Não tendo existido aprovação do plano, naturalmente o processo de revitalização é findo, dando origem, em princípio, ao processo de insolvência, caso se conclua no âmbito de tal procedimento que devedor já se encontra em situação de insolvência. IV - No entanto, se já existia processo de insolvência anteriormente proposto e que foi suspenso, deve a comunicação prevista no n.º 1 do artigoº 17-G ser dirigida ao mesmo, no qual deverá ser proferido despacho de cessação da suspensão e declarada a insolvência.», in www.dgsi.pt. 8 Neste sentido, vide ABREU, JORGE MANUEL COUTINHO DE, Curso de Direito Comercial, vol. I, 9.ª ed., Almedina, Coimbra: 2013, p. 322. 9 Doravante, designado por PER. 10 Neste sentido, vide EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, O Processo Especial de Revitalização, Almedina, Coimbra: 2015, p. 38. 4

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Ora, o processo de insolência visa a satisfação dos credores como primeira finalidade11: Pessoa Singular: Plano de Pagamentos/Liquidação do património; Pessoa Coletiva: Recuperação/Liquidação. Quanto às pessoas coletivas, nem sempre assim foi, antes da reforma de 2012, o processo de insolvência tinha como finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência12-13. Todavia, pode constar do plano de insolvência a liquidação do ativo. Posto isto, a liquidação da massa insolvente é uma das fases mais importantes do processo de insolvência. A liquidação tem como objetivo a satisfação, pelo menos parcial, dos credores do insolvente, para isso é necessário, mediante a alienação dos bens e a cobrança dos créditos compreendidos na massa insolvente, converter o património numa quantia pecuniária, que possa ser repartida por esses credores. A liquidação corre por apenso ao processo de insolvência, artigo 170.º, e encontra-se regulada nos artigos 156.º, e ss.. Contudo, para melhor compreendermos todo processo, afigura-se importante saber em que consiste a massa insolvente.

Acerca desta constatação, vide os acórdãos Ac. do STJ, de 10-04-2014, proc. 83/13.3TBMCD-B.P1.S1 (SALRETA PEREIRA) «I - O novo CIRE privilegia a recuperação da empresa, em lugar da liquidação do património do devedor insolvente e da repartição do produto obtido pelos seus credores. II - A homologação do plano de insolvência só deve ser rejeitada quando a diferenciação entre os credores é meramente arbitrária, sem qualquer fundamento objectivo e racional, o que não sucede se o tratamento diferenciado dado às instituições bancárias e financeiras está objectivamente fundamentado.», in www.dgsi.pt. Ac. do TRL, de 27-11-2014, proc. 19790/13.4T2SNT.L1 -8 (CATARINA MANSO) «- O novo CIRE privilegia a recuperação da empresa, em lugar da liquidação do património do devedor insolvente e da repartição do produto obtido pelos seus credores. - A homologação do plano de insolvência só deve ser rejeitada quando a diferenciação entre os credores é meramente arbitrária, sem qualquer fundamento objectivo e racional. - Nos termos do disposto no artigo 215.º, n.º 1, do CIRE, o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores, designadamente no caso de violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo.», in www.dgsi.pt. 12 Contudo, a previsão primordial do plano de insolvência já tinha sido prevista no CIRE, antes da reforma de 2009, o CIRE, neste sentido Catarina Serra, o CIRE «abre uma fase nova: elimina o primado da recuperação e apresenta o processo de insolvência como um “processo de execução universal” vocacionado para a liquidação do património do devedor com vista à satisfação dos credores», SERRA, CATARINA, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito. O Problema da Natureza do Processo de Liquidação Aplicável à Insolvência no Direito Português, Coimbra Editora, Coimbra: 2009, p. 201. 13 Ac. do TRL, de 15-11-2011, proc. 17860/11.2T2SNT-A.L1-7 (PIMENTEL MARCOS) «I - O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como escopo a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência. II - Estão sujeitos a apreensão todos os bens integrantes da massa insolvente, a qual abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo e que não estejam isentos de penhora; III - Sendo impenhoráveis dois terços dos vencimentos ou salários, nos termos do disposto no artigo 824.º, n.º 1, al. a), do C.P.C., nada impede que, em princípio, se proceda à apreensão, para a massa insolvente, do outro terço. IV - É possível a apreensão do produto do trabalho (vencimento/salário) ou da reforma do insolvente após a sua declaração de insolvência, competindo porém ao juiz determinar em cada caso, com base num critério de equidade, o montante que ficará sujeito à apreensão, tendo em conta o que se revelar indispensável à subsistência do insolvente, assim se conciliando a satisfação dos interesses dos credores com as necessidades básicas do devedor.», in www.dgsi.pt. 11

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2. MASSA INSOLVENTE 2.1. Conceito de massa insolvente O conceito de massa insolvente encontra-se plasmado no artigo 46.º. Por conseguinte, surge no n.º 1 deste artigo, a noção de massa insolvente. Deste preceito, podemos entender que a massa insolvente, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, incluindo os bens e direitos que ele, o insolvente, adquira na pendência do processo, com a finalidade primordial de satisfazer as suas próprias dívidas, artigo 51.º, e, só depois, a satisfação dos credores da insolvência. Contudo, o artigo 46.º n.º 1, não é livre de dificuldades14, entre outros problemas, principalmente no que concerne a bens futuros15. 14 Em sentido próximo, SILVA, PAULA COSTA E, “A liquidação da massa insolvente”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, vol. III, Lisboa: Dez. 2005, [713 – 744], pp. 715 e ss.. 15 Adotando o exemplo de Menezes Leitão, «uma herança que o devedor receba no decurso do processo de insolvência pertence integralmente à massa insolvente, não sendo possível ao devedor proceder ao seu repúdio (artigos 2062.º e ss. CC), uma vez que tal representaria um acto de disposição dos seus bens, que lhe é vedado, na medida em que essas faculdades se transferem para o administrador da insolvência.», LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, 5.ª ed., Almedina, Coimbra: 2013, p. 86. Aqui coloca-se o problema da aceitação ou do repúdio da herança (ou legado), a nosso ver o disposto no artigo 46.º, n.º 1, apenas se aplica aos casos previstos nos artigos 120.º e ss., não se aplicando ao caso do recebimento de uma herança (ou legado). No tratamento desta matéria, o legislador foi infeliz, deixando na livre interpretação da norma o seu alcance, ou seja, quais os bens e os direitos atingidos. Mais feliz, foi o legislador alemão que atendendo ao significado da relação familiar e dos princípios da relação sucessória, regulou esta matéria, especificando que, no caso do devedor, antes da abertura ou na pendência do processo de insolvência, receber uma herança ou legado, apenas o devedor tem o direito de a aceitar ou repudiar, se o devedor for um herdeiro limitado, o administrador da insolvência não pode transferir qualquer objeto que faça parte do espólio do falecido, sob pena dessa transferência ser inválida nos termos do §2115 do BGB, no que diz respeito ao herdeiro reversível do herdeiro que sucede à propriedade do falecido, §83 da InsO (insolvenzordnung), o §2115 do BGB, diz que, a disposição de um objeto da herança, que seja realizada por meio de execução de sentença ou por apreensão ou detenção ou pelo administrador no processo de insolvência é, no caso em que ocorre sucessão subsequente, ineficaz, na medida em que isso iria afetar negativamente o direito do herdeiro subsequente. Contudo, esta disposição, não é eficaz contra o credor de uma propriedade ou direito reconhecido sobre a herança, podendo este credor opor-se contra o herdeiro subsequente. No nosso ordenamento jurídico, a herança «serve um interesse objectivo, um interesse da comunidade social. (...) serve o interesse objectivo da continuidade das relações jurídicas: é essa a sua função.», COELHO, F. M. PEREIRA, Direito das Sucessões, J. Abrantes, Coimbra: 1992, p. 66. Posto isto, parece-nos que, se tal situação ocorrer, a herança reverter automaticamente para a massa insolvente, sem que seja por disposição do herdeiro, estamos perante uma norma inconstitucional, por violar o princípio da proporcionalidade, artigo 18.º, n.º 2 da CRP, bem como a violação do princípio do direito de propriedade, artigo 62.º, da CRP, nos termos em que o direito de propriedade tem como âmbito, não só, a liberdade de adquirir bens e a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário, mas também, a liberdade de os transmitir e o direito de não ser privado deles, sobre os componentes do âmbito do direito de propriedade, vide anotação ao artigo 62.º, nota IV, in CANOTILHO, J.J. GOMES/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra: 2007, p. 802. Sobre o direito à transmissão por morte do direito à propriedade privada, bem como os princípios constitucionais do Direito das Sucessões português, vide SOUSA, RABINDRANATH, CAPELO DE, Lições de Direito das Sucessões, Volume I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra: 2000, pp. 122 e ss.. Atendendo também ao disposto no artigo 2067.º, do CCiv., a sub-rogação dos credores ao herdeiro em caso deste repudiar a herança, esta norma não fará qualquer sentido, se a disposição da herança não for da livre vontade do herdeiro, tornando-se assim “letra morta”. Importa também, aludir ao direito de preferência dos co-herdeiros, artigo 2130.º, do CCiv.. Contudo, tratando-se de um indivíduo probo, numa situação normal sem a relação controversa, o devedor de uma prestação, com certeza que, se recebesse uma quantia pecuniária, o mesmo iria fazer face a essa prestação com essa quantia ou parte dela, posto isto, achamos que o devedor, pode e deve dispor de uma parte da sua quota da herança a favor da massa, contudo não poderá dispor da sua totalidade. Importa, também, atender ao disposto no artigo 603.º, do CCiv., em respeito às doações com cláusula de exclusão da responsabilidade por dívidas do beneficiário, certo é que «sem esta a possibilidade desta cláusula, ninguém se disporia, na verdade, a deixar ou a doar bens sujeitos a imediata execução.», LIMA, PIRES DE, ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. VI, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra: 2011, anotação ao artigo 603.º, nota 1.ª, p. 619.

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PROCESSO DE INSOLVÊNCIA “A IMPORTÂNCIA DA FASE DE LIQUIDAÇÃO”

Esta norma deve ser interpretada em conjunto com o artigo 601.º, do CCiv.16. Assim, a massa insolvente compreende, no caso de o insolvente ser casado no regime supletivo ou comunhão geral de bens, os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns17, artigo 1696.º, do CCiv., se as dívidas que deram origem à insolvência forem comunicáveis, respondem os bens comuns e solidariamente os bens próprios de cada um, artigo 1695.º, do CCiv.. Os bens de cada um dos cônjuges, próprios e comuns, são inventariados, mantidos e liquidados em separado, artigo 266.º. O que implica que, para liquidar o património do devedor, tem que haver partilha dos bens comuns, o que configura uma exceção ao princípio da imutabilidade do regime de bens e da convenção antenupcial, artigo 1715.º, n.º 1, al. d) do CCiv.. No caso do cônjuge do insolvente não ser parte no processo, este tem o direito de pedir a separação dos seus bens próprios, bem como, a sua meação nos bens comuns, da massa insolvente, artigo 141.º, n.º 1, al. b). Esta separação, também, pode ser ordenada pelo juiz, mediante requerimento do administrador da insolvência, instruído, no caso de existir, com o parecer favorável da comissão de credores, artigo 141.º, n.º 3. A massa insolvente compreende ainda, os bens que o devedor adquira na pendência do processo18, bem como, os bens que possam vir a reintegrar a esfera jurídica do devedor, pelo 16 O artigo 601.º, do CCiv., consagra o princípio de que, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, vide a este propósito, LIMA, PIRES DE, ANTUNES VARELA, op. cit., vol. I, p. 617. 17 Ac. do TRC, de 24-09-2013, proc. 1260/12.0TBGRD-A.C1 (MARIA INÊS MOURA), «1. O direito à meação do insolvente no património comum do casal formado por este e pela sua ex-mulher, é único e indiviso, não incidindo sobre bens concretos e determinados, sendo que só por via da separação dos bens e partilha com liquidação do património do casal há lugar a essa concretização. 2. O direito de propriedade sobre um imóvel não se confunde com o direito à meação no património comum, do qual esse imóvel faz parte. São realidades diferentes. 3. A garantia decorrente da hipoteca, só tem efeitos sobre o bem a que respeita, em concreto, e apenas pode ser considerada para efeitos da venda desse bem. 4. Em caso de venda do direito da meação do insolvente no património comum do ex-casal, a hipoteca da Recorrente não é afectada, porque não é o imóvel sobre o qual a mesma incide que é vendido. Quem adquire tal direito adquire uma parte do património comum no qual se integra um imóvel hipotecado. Apesar do direito passar para outro titular, o bem imóvel hipotecado continua a responder pela satisfação do crédito garantido, pois tal resulta da natureza da hipoteca enquanto direito real de garantia e da sequela que lhe anda associada. 5. O crédito da Recorrente terá de ser tido como comum, por existir apenas um único bem apreendido que é o direito à meação do insolvente no património comum do casal.», in www.dgsi.pt. 18 Ainda sobre a herança, vide Ac. do TRG, de 05-06-2014, proc. 253/13.4TBEPS-C.G1 (MANUEL BARGADO), «- A herança é uma universalidade jurídica de bens, pelo que cada interessado não tem uma quota-parte em cada um de todos esses bens mas uma quota referida àquela universalidade, ao conjunto de todos os bens, só pela partilha se determinando aqueles em que se concretiza a quota-parte ou quinhão de cada interessado. II – Assim, o que ficou atribuído ao insolvente foi a possibilidade de poder exercer naquela universalidade jurídica um seu direito próprio perante os restantes interessados no quinhão hereditário que possui na herança, ilíquida e indivisa, aberta por óbito do seu pai, legitimando-o, se e quando assim o entender, a dar os passos necessários tendentes a haver para si a quota-parte dos bens determinados que integram tal herança. III - Enquanto se não constatar a efectiva titularidade de algum bem concreto que constitui o acervo da herança, os protegidos com esta venda não desfrutam do atinente direito sobre certo e determinado bem da herança. IV- Não incidindo a apreensão dos autos de insolvência sobre o imóvel que integra o quinhão hereditário do insolvente, mas sobre o direito àquele quinhão, não funciona a preferência que para o Banco apelante resulta da hipoteca que oportunamente constituiu sobre aquele imóvel, já que na liquidação dos autos nunca poderá ser vendido o imóvel em questão (artigo 174).», in www.dgsi.pt.; Ac. do TRC, de 04-06-2013, proc. 1475/09.8TBTMR-I.C1 (FERNANDO MONTEIRO), «1.- O falido/insolvente não é um incapaz. 2.- A sua representação no que respeita à falência/insolvência, pelo Administrador desta, é limitada às questões de natureza patrimonial que interessem à massa insolvente. 3.- Mesmo que todos os bens do falido/insolvente estejam ou devam estar apreendidos para a massa insolvente, o estado daquele não afasta a sucessão. 4.- Em execução movida contra o falido, por acto praticado em momento posterior à declaração de falência, relativo a bem não apreendido para a massa, falecido aquele, devem ser habilitados os seus herdeiros, para com eles prosseguir o processo.», in www.dgsi.pt.

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exercício da resolução em beneficio da massa insolvente19-20 por parte do administrador da insolvência, artigo 120.º e seguintes. 2.2. Bens isentos de penhora No que concerne aos bens isentos de penhora, artigo 46.º, n.º 2, há que atender aos critérios do CPC, em concreto aos artigos 736.º, e ss, deste Código. Assim, podem ser integrados na massa insolvente, todos os bens que não sejam absoluta ou relativamente impenhoráveis21, contudo, o devedor pode apresentar, por iniciativa própria, voluntariamente, bens relativamente impenhoráveis para integrar a massa insolvente. São estes os bens, que o insolvente não pode administrar nem pode dispor, que são apreendidos pelo administrador

São estes os bens, que o insolvente não pode administrar nem pode dispor, que são apreendidos pelo administrador da insolvência, artigo 149.º, e separados do património geral, por forma a constituir um património autónomo, a massa insolvente.

19 Contudo, existem exceções, nem todos os atos são suscetíveis de resolução em beneficio da massa, vide artigo 120.º, n.º 6 e artigo 122, ambos do CIRE. 20 Acerca da resolução dos atos a favor da massa insolvente, vide os seguintes acórdãos: Ac. do STJ, de 20-03-2014, proc. 251/09.2TYVNG-I.P1 (AZEVEDO RAMOS),«1 – A resolução em benefício da massa insolvente é um instituto especial do processo de insolvência, que se destina à tutela da generalidade dos credores do insolvente, na medida em que permite ao Administrador da Insolvência que a eficácia dos negócios celebrados antes da declaração da insolvência possa ser destruída, verificados que sejam determinados requisitos. 2 – A declaração de resolução, efectuada pelo Administrador da Insolvência, deve indicar os concretos fundamentos invocados para legitimar o exercício desse direito potestativo, não podendo a deficiência de fundamentação da declaração de resolução ser suprida na contestação da respectiva acção de impugnação.», in www.dgsi.pt; Ac. do STJ, de 24-03-2015, proc. 3057/11.5TBPVZ-D.P2.S1 (Fernandes do Vale), «I - O legislador contrabalançou, prudentemente, os latos poderes de resolução em benefício da massa insolvente conferidos ao administrador da insolvência, contrapondo-lhes, nos termos do preceituado no artigo 125.º do CIRE, o direito de impugnação da resolução, quer pela outra parte (do acto resolvido), quer por iniciativa dos terceiros a quem a resolução seja oponível. II - Não há qualquer coincidência ou sobreposição entre o âmbito de previsão e aplicação dos artigos 286.º do CC e 125.º do CIRE: ali, contempla-se o regime legal de arguição e conhecimento da nulidade de que, eventualmente, enferme um acto jurídico, sempre pressupondo que a correspondente acção seja, nos casos em que são estabelecidos prazos legais da respectiva caducidade, tempestivamente instaurada; aqui, diversamente, estabelece-se um prazo de caducidade, peremptório-substantivo, de instauração da acção de impugnação da resolução operada em benefício da massa insolvente, a qual tanto pode visar a impugnação dos fundamentos fácticos da resolução levada a cabo pelo administrador da insolvência, como a impugnação da validade do próprio acto resolutivo por ocorrência de circunstancialismo determinante da respectiva nulidade.», in www.dgsi.pt; Ac. do STJ, de 07-10-2014, proc. 1393/11.0TBPMS-C.C1.S1 (PINTO DE ALMEIDA), «I. Embora a dação em pagamento constitua um modo normal de extinção de obrigações, o devedor não tem obrigação de efectuar essa prestação de substituição, não podendo esta ser imposta unilateralmente por qualquer das partes. II. A dação em pagamento de todo o património do devedor, em benefício de um único credor – representando uma liquidação antecipada e instantânea de todo esse património em favor deste –, não pode considerar-se usual no comércio jurídico, nem poderia ser exigida por esse credor. III. Assim, tendo essa dação ocorrido dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência, ela é resolúvel em benefício da massa insolvente, nos termos do artigo 121.º n.º 1 g) do CIRE.», in www.dgsi.pt. 21 Sobre o conceito de relativamente impenhorável, vide o Ac. do STJ de 30-06-2011, proc. 191/08.2TBSJM – H.P1. S1 (BETTENCOURT DE FARIA), «I- Para efeitos do artigo 46.º n.º 2 do CIRE, um terço do vencimento do insolvente não é um bem relativamente impenhorável. II- Com efeito, o conceito de bem relativamente impenhorável define-se, não só pela natureza do bem, como igualmente pela quota em questão, Assim, aquele terço, por sérum bem penhorável, deve ser apreendido para a massa insolvente.», in www.dgsi.pt.

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da insolvência, artigo 149.º22, e separados do património geral, por forma a constituir um património autónomo, a massa insolvente23.

3. ABERTURA DA FASE DE LIQUIDAÇÃO Uma das fases mais importantes do processo de insolvência é a liquidação da massa insolvente. A liquidação tem como objetivo a satisfação, pelo menos parcial, dos credores do insolvente, para isso, é necessário, mediante a alienação dos bens e a cobrança dos créditos compreendidos na massa insolvente, converter o património numa quantia pecuniária, que possa ser repartida por esses credores24. A liquidação corre por apenso ao processo de insolvência, artigo 170.º, e encontra-se regulada nos artigos 156.º, e ss.. 3.1. Início da liquidação Mesmo antes do início da fase de liquidação, o administrador da insolvência pode, imediatamente, encerrar os estabelecimentos do devedor, mas, para isso, tem que se verificar os seguintes requisitos, o parecer favorável da comissão de credores ou, se esta não existir, que o devedor não se oponha ou, independentemente dessa oposição, o juiz autorizar, por considerar que esta espera poderá se traduzir em uma diminuição considerável da massa insolvente25, artigo 157.º. A abertura da fase de liquidação está sujeita ao preenchimento em simultâneo de alguns requisitos, nomeadamente: o trânsito em julgado da sentença que declara a insolvência; e a realização da assembleia de apreciação do relatório26.

Ac. do TRL, de 17-12-2014, proc. 939/10.5TYLSB-H.L1-2 (SOUSA PINTO), «1 - A apreensão e posterior entrega do bem ao locador, no âmbito do processo a que se refere o Dec.-Lei n.º 149/95 de 24/06, com a redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 30/2008 de 25/02, nada tem a ver com a penhora de bens. 2 – Enquanto que na penhora estamos perante bens pertença do devedor, na apreensão à luz daqueles diplomas encontramo-nos face a bens pertença de terceiro. 3 – Dessa forma o bem apreendido não pode ser considerado como bem integrante da massa insolvente, dado que não é pertença do próprio insolvente. 4 - Assim, a menos que surja ou seja invocado outro fundamento legal que permita a apensação da providência cautelar prevista naqueles diplomas ao processo de insolvência, terá aquela de ser desapensada deste, prosseguindo autonomamente a sua tramitação, com a requerida a ser aí representada pela Exa Senhora Administradora da Insolvência.», in www.dgsi.pt. 23 Para mais desenvolvimento sobre este tema, vide por todos, FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO, JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª ed., Quid Juris Editora, Lisboa: 2015, anotação ao artigo 46.º, pp. 291 e ss.; MARTINS, LUÍS M., Processo de Insolvência Anotado e Comentado, 3.ª ed., Almedina, Coimbra: 2014, anotação ao artigo 46.º, pp. 191 e 192; EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, Manual de Direito da Insolvência, 5.ª ed., Almedina, Coimbra: 2013, pp. 248 e ss.; PRATA, ANA, JORGE MORAIS, RUI SIMÕES, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra: 2013, anotação ao artigo 46.º, pp. 151 e ss.; LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, op. cit., pp. 85 e 86; LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 7.ª ed., Almedina, Coimbra: 2013, anotação ao artigo 46.º, pp. 93 e 94; PLMJ, Sociedade de Advogados, AAVV, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 1.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra: 2012, anotação ao artigo 46.º, pp. 128 e 129; e SILVA, PAULA COSTA E, op. cit., pp. 715 e ss.. 24 EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, op. cit., p. 257. 25 LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, op. cit., p. 231. 26 Em sentido próximo, EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, op. cit., p. 257, SERRA, CATARINA, O Regime Português da Insolvência, 5.ª ed., Almedina, Coimbra: 2012, p. 134. 22

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3.1.1. Trânsito em julgado da sentença Uma sentença transita em julgado, quando não é suscetível de recurso ordinário ou não admita reclamação, artigo 628.º, do CPC, ex vi artigo 17.º. Quer isto dizer que, a sentença27 declarativa de insolvência, só transita em julgado se não tiver sido deduzida oposição, reclamação ou recurso, ou quando estes tenham sido julgados definitivamente improcedentes, que se traduz em, enquanto não existir uma decisão definitiva a liquidação e a partilha ficam suspensas28, artigos 40.º, n.º 3, e 42.º, n.º 329. 3.1.2. Da apreciação do relatório O segundo critério, para que o administrador possa iniciar a venda dos bens apreendidos para a massa insolvente, é que se tenha realizado a assembleia de apreciação do relatório. Contudo, na versão atual do CIRE, a assembleia deixou de ser obrigatória, desde que o juiz, na sentença que declara a insolvência, declare fundamentadamente, prescindir da realização desta30, artigo 36.º, n.º 1, al. n), in fine. O relatório a que a lei se refere, está consagrado no artigo 155.º, é elaborado pelo administrador da insolvência31, onde, além dos pareceres aludidos nas als. a); b); e c), deve, sempre que ache conveniente, conter um plano de insolvência, al. d), e ainda, todos os elementos, que ache, importantes para a tramitação ulterior do processo, al. e). Importa no n.º 2 deste artigo, ao relatório são anexados o inventário, elaborado nos termos do artigo 153.º, e a lista provisória de credores, elaborada nos termos do artigo 154.º. Uma vez elaborado é submetido para apreciação à assembleia de credores. A assembleia encontra-se regulada no artigo 156.º e ocorre no dia e hora designados na sentença que declara a insolvência, nos termos do artigo 36.º, n.º 1, al. n), entre 45 a 60 dias subsequentes. No caso de não ser designado dia para a realização da assembleia, nos termos do artigo 36.º, n.º 1, al. n), esta será realizada depois de passados 45 dias sobre a prolação da sentença de declaração da insolvência, independentemente da verificação do passivo, sem prejuízo dos bens, depreciáveis ou deterioráveis, que devido à sua natureza

Para distinção entre sentença e acordão, vide artigo 152.º, n.º 2 e n.º 3, do CPC. A este propósito, EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, op. cit., p. 257, LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, op. cit., (nota 349), p. 231, FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO, JOÃO LABAREDA, op. cit., anotação ao artigo 158.º, (pontos 6 e 7), p. 594, SILVA, PAULA COSTA E, op. cit., pp. 723 e ss.; MARTINS, LUÍS M., op. cit., comentário ao artigo 158.º, p. 377, e PLMJ, Sociedade de Advogados, AAVV, op. cit., comentário ao artigo 158.º, pp. 276 e 277. 29 Ac. do TRE, de 13-02-2014, proc. 26-O/2000.E1 (MARIA ALEXANDRA MOURA SANTOS) «Se a sentença declaratória da falência transitar em julgado, sem contra ela terem sido deduzidos embargos, a liquidação inicia-se logo após o trânsito. Se, porém, houver embargos à falência, então o início da venda dos bens é diferido para momento posterior. As situações de suspensão da liquidação do activo resumem-se aos casos da dedução de embargos à declaração de falência (artigo 129.º n.º 3) e do recurso da respectiva decisão que mantém a declaração de falência (artigo 228.º n.º 1).», in www.dgsi.pt. 30 Para mais desenvolvimento, vide PRATA, ANA, AAVV, op. cit., anotação ao artigo 156.º, (ponto 2), p. 435. 31 No âmbito das suas competências genéricas enunciadas no artigo 55.º, exercidas sobre a fiscalização do juiz, artigo 58.º, e da comissão de credores 68.º, n.º 1, se esta existir. 27 28

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podem ser vendidos imediatamente32, artigo 36.º, n.º 4, conjugado com o artigo 158.º, n.º 1 e n.º 233. Posto isto, verificados os requisitos, o administrador da insolvência pode iniciar a venda dos bens apreendidos para a massa insolvente, nos termos do artigo 158.º, n.º 1.

4. NÃO EXISTÊNCIA DA LIQUIDAÇÃO Existem certos casos em que o processo de liquidação pode vir a ser afetado, na medida em que os bens que compõem a massa insolvente não são liquidados, por se poder verificar a dispensa de liquidação, a interrupção da liquidação ou a suspensão da liquidação. Assim, se ocorrer dispensa de liquidação, esta nem sequer se inicia, sendo os credores satisfeitos por outra via. Já no caso de interrupção da liquidação, esta também não se inicia, mas, a verificação de determinada circunstância resulta no encerramento do processo, mesmo sem que a liquidação esteja concluída. No caso de haver suspensão da liquidação, esta inicia-se, mas o seu decurso fica temporariamente paralisado, enquanto se verificar determinada situação a que se atribui o seu efeito34. 4.1. Dispensa da liquidação Nos termos do artigo 171.º, a liquidação pode, mediante certas circunstâncias, ser objeto de dispensa. Assim, se o devedor for pessoa singular e a massa insolvente não compreender uma empresa, o juiz pode dispensar a liquidação da massa, no todo ou em parte, para isso, o devedor deve entregar ao administrador da insolvência, uma quantia pecuniária, não inferior, que corresponda ao que resultaria da liquidação da massa insolvente. Contudo, é necessário que seja o administrador da insolvência a solicitar a dispensa e, mediante o acordo prévio do devedor, ficando a decisão sem efeito, se o devedor não entregar a quantia fixada no prazo de 8 dias, artigo 171.º, n.º 235. 4.2. Interrupção da liquidação A interrupção da liquidação ocorre se o administrador verificar que a massa insolvente é insuficiente para a satisfação das custas processuais e para as restantes dívidas da massa. O administrador da insolvência dá conhecimento do facto ao juiz, podendo este conhecer oficiosamente do mesmo, artigo 232.º, n.º 1. Após audição do devedor, da assembleia de credores e os credores da massa insolvente, o juiz declara encerrado o processo, salvo se Vide, SERRA, CATARINA, Regime Português…, op. cit., p. 135 e EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, op. cit., pp. 257 e 258. Importa ainda, a respeito da venda antecipada de bens, que o administrador da insolvência tem o dever de comunicar esse facto ao devedor, à comissão de credores, sempre que esta exista, e ao juiz com a antecedência mínima de, pelo menos, 2 dias úteis antes da realização da venda e publica-o no portal do Citius, artigo 158.º, n.º 3. Portal do Citius, in http://www.citius.mj.pt/portal/. 34 Neste sentido, LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, op. cit., p. 229, e EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, op. cit., pp. 259 e 260. 35 Para um maior desenvolvimento sobre este tema, vide FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO, JOÃO LABAREDA, op. cit., anotação ao artigo 171.º, pp. 639 a 641. 32

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algum interessado depositar à ordem do tribunal a quantia que o juiz fixar razoavelmente para fazer face às despesas com o processo e restantes dívidas da massa, artigo 232.º, n.º 2. Verificada a insuficiência da massa, é lícito ao administrador da insolvência interromper de imediato a respetiva liquidação, artigo 232.º, n.º 4. 4.3. Suspensão da liquidação No caso da suspensão da liquidação a lei prevê algumas situações em que esta pode ocorrer. Assim, aquando da assembleia de credores de apreciação do relatório, esta pode declarar a suspensão da liquidação da massa insolvente e partilha do produto pelos credores, caso confie ao administrador da insolvência o encargo de elaborar o plano de insolvência, artigo 156.º, n.º 3. Todavia, se o plano não for entregue nos 60 dias seguintes ou, se for apresentado, mas não for subsequentemente admitido, aprovado ou amolgado, a suspensão cessa automaticamente, artigo 156.º, n.º 4, als. a) e b). A liquidação da massa insolvente e partilha do produto pelos credores pode ainda ser suspensa, mediante requerimento do proponente de um plano de insolvência ao juiz, se tal for necessário para não colocar em risco a execução de um plano de insolvência proposto, artigo 206.º, n.º 1. O juiz, porém, deve abster-se de ordenar a suspensão, ou proceder ao levantamento da suspensão já decretada, se a medida envolver perigo de prejuízos consideráveis para a massa insolvente ou se o prosseguimento da liquidação e partilha lhe for requerido pelo administrador da insolvência com o acordo da comissão de credores, se existir, ou da assembleia de credores, artigo 206.º, n.º 2. Em ambos os casos, a suspensão cessa se o plano de insolvência não for admitido, aprovado ou homologado, artigo 206.º, n.º 3 e artigo 156.º, n.º 4, al. b). Por fim, no caso ser atribuído ao próprio devedor a administração da massa insolvente, a liquidação é suspensa, uma vez que só haverá lugar à liquidação depois de ter sido retirada ao devedor essa administração, artigo 225.º. No entanto, a suspensão da liquidação não obsta à venda antecipada dos bens da massa insolvente, suscetíveis de perecimento ou deterioração36, artigos 206.º, n.º 3, 225.º in fine, e 158.º, n.º 2.

5. PRODEDIMENTO DA LIQUIDAÇÃO 5.1. Liquidação de bens em situação de contitularidade, indivisão e de titularidade controversa Quanto à liquidação de bens, em que o insolvente seja contitular ou tenha direitos sobre bens indivisos, à que atender ao artigo 159.º. O artigo 159.º contempla duas situações, a verificação do direito de restituição ou separação de bens e a existência de bens em que o insolvente seja contitular, contudo ambas têm a mesma solução, só se líquida no processo de insolvência o direito a que o insolvente tenha sobre esses bens, ou seja, só esse direito é que é alienado. 36

LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, op. cit., p. 230.

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O direito à restituição ou separação de bens indivisos, ou bens sobre os quais o insolvente não tenha a exclusiva titularidade, pode ser exercido nos termos do artigo 141.º37, e também nos termos dos artigos 144.º, e 146.º38. Caso ocorra a liquidação, o direito pode ser exercido nos termos do artigo 172.º, n.º 4, o produto da liquidação do bem é mantido em depósito e excluído dos pagamentos aos credores da massa insolvente ou da insolvência39. No caso de se tratar de bens de titularidade controversa, relativamente aos quais esteja pendente uma ação de reivindicação, pedido de restituição ou de separação, estes, em regra, não podem ser liquidados enquanto não houver uma decisão transitada em julgado, artigo 160.º, n.º 1. Todavia, são admitidas algumas exceções, pode haver lugar à liquidação: se o interessado concordar; no caso de venda antecipada efetuada nos termos do artigo 158.º, n.º 2; se o adquirente, depois de advertido da controvérsia acerca da titularidade, aceitar ser inteiramente da sua conta a sorte e risco respetivo. Neste último caso, artigo 160.º, n.º 1, al. c), é comunicado pelo administrador da insolvência ao tribunal da causa e a substituição da causa considera-se operada sem mais, independentemente de habilitação do adquirente ou do acordo da parte contrária, artigo 160.º, n.º 2, ou seja, «a substituição processual tem assim lugar por força da lei, colocando o adquirente na posição do anterior titular na lide em causa»40-41. 5.2. Atos de especial relevo, o regime específico A lei estabelece que, a prática de atos jurídicos que assumam especial interesse para o processo de insolvência, dependem do consentimento da comissão de credores ou, se esta não existir, da assembleia de credores, artigo 161.º, n.º 1. O conceito de ato de especial relevo está concretizado nos n.os 2 e 3 do mesmo artigo, através dos quais é feita a sua qualificação e uma enumeração, não exaustiva, de alguns atos que correspondem a esse conceito42. Assim, a atribuição de especial relevo a um ato depende dos riscos envolvidos, a ele associados, e às suas repercussões na tramitação ulterior do processo, das perspetivas de

37 Ac. do TRG, de 20-11-2014, proc. 1058/14.0TBVCT.G1 (ESTELITA DE MENDONÇA), «I - A lei permite àqueles que pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente por via do procedimento a que aludem os artigos 141.º e seguintes, do CIRE, defendendo-se e acautelando-se, dessa forma, os direitos do reclamante e o procedimento de apreensão para a massa insolvente e sua (adequada) repercussão na fase da liquidação. II - Tal reclamação para restituição ou separação constitui o único meio de reacção legalmente previsto, logo que decretada a apreensão dos bens e porventura ainda antes da sua materialização (posse material) pelo administrador da insolvência. III – Não a tendo o juiz ordenado, por o administrador não o ter requerido, nem havendo notícia da concordância da comissão de credores, o meio próprio para o cônjuge obter a separação da massa insolvente dos seus bens próprios e da sua meação nos bens comuns é por apenso ao processo de insolvência nos termos do artigo 141 do CIRE.», in www.dgsi.pt. 38 Neste sentido, FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO, JOÃO LABAREDA, op. cit., anotação ao artigo 159.º, (ponto 4), p. 597, e PRATA, ANA, AAVV, op. cit., anotação ao artigo 159.º, (ponto 3), pp. 448 e 449. 39 A este propósito, MARTINS, ALEXANDRE SOVERAL, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra: 2015, p. 301. 40 MARTINS, ALEXANDRE SOVERAL, op. cit., (nota 74) p. 302. 41 Para um maior desenvolvimento sobre este tema, vide FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO, JOÃO LABAREDA, op. cit., anotação aos artigos 159.º, e 160.º, pp. 596 a 601, e PRATA, ANA, AAVV, op. cit., anotação aos artigos 159.º, e 160, pp. 448 a 453. 42 LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, op. cit., p. 233.

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satisfação dos credores da insolvência e da suscetibilidade de recuperação da empresa, artigo 161.º, n.º 2. Nestes termos, presumem-se atos de especial relevo, os atos que preencham os índices do n.º 2, ou que se apresentem enunciados no n.º 3 do artigo 162.º, ou que sejam análogos a estes43. Contudo, o artigo 161.º, n.º 4, estabelece outra restrição ao administrador da insolvência, assim, no caso de este pretender efetuar alienações que constituam atos de especial relevo por negociação particular deverá comunicar, não só, à comissão de credores, se existir, como ao próprio devedor, a identidade do adquirente e as demais condições do negócio, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transação. Perante a comunicação, havendo requerimento do devedor, credor ou grupo de credores cujos créditos representem, na estimativa do juiz, mais de 1/5 do total dos créditos não subordinados, e desde que A violação do disposto no artigo o requerente demostre a plausibilidade de que a alienação a 161.º, não prejudica a eficácia outro interessado seria mais vantajosa para a massa insol- dos atos praticados pelo vente, pode, e deve, o juiz mandar sobrestar na alienação e administrador da insolvência, convocar a assembleia de credores para prestar o seu con- exceto se as obrigações por ele sentimento quanto à operação, artigo 161.º, n.º 544. assumidas excederem A violação do disposto no artigo 161.º, não prejudica a manifestamente as da eficácia dos atos praticados pelo administrador da insolvên- contraparte, artigo 163.º. Assim, cia, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem o administrador da insolvência, manifestamente as da contraparte, artigo 163.º. Assim, o responderá pelos danos administrador da insolvência, responderá pelos danos cau- causados ao devedor e aos sados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa credores da insolvência e da insolvente, artigo 59.º, n.º 1, podendo ser destituído por justa massa insolvente, artigo 59.º, causa, artigo 56.º. n.º 1, podendo ser destituído por justa causa, artigo 56.º. 5.3. Liquidação da empresa A noção de empresa é a que resulta do artigo 5.º45. Com o artigo 162.º, o legislador pretendeu acautelar a alienação da empresa compreendida na massa insolvente, para tal, Neste sentido, SILVA, PAULA COSTA E, op. cit., p. 738. Para um maior desenvolvimento sobre este tema, vide FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO, JOÃO LABAREDA, op. cit., anotação ao artigo 161.º, pp. 602 a 608, e PRATA, ANA, AAVV, op. cit., anotação ao artigo 161.º, pp. 453 a 460.

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Ac. do TRL, de 22-01-2015, proc. 853/14.5TJLSB.L1-8 (CARLOS MARINHO) «- O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) assumiu, no seu artigo 5.º, uma noção abrangente de empresa, associando-a a um conceito prático e despido de tecnicidade que se apoia na noção estrutural de «organização de capital e de trabalho» e na orientação para o «exercício uma qualquer qualquer actividade económica»; - Concorrendo estes dois factores, tudo o mais é irrelevante com vista ao afastamento do regime normativo do apontado Código. São-no, designadamente, os ritmos e tempos de exercício da actividade, a permanência ou a ocasionalidade, as finalidades, particularmente a motivação do lucro ou o alijamento deste objectivo, as formas jurídicas e os estatutos e as áreas de actividade e intervenção; - Se a disponibilização dos clássicos factores de produção, «capital» e «trabalho» – ou seja, de meios financeiros e humanos – concede à entidade existência económica e a faculdade de intervenção em determinado domínio da economia, então estamos na área de estatuição do CIRE; - Face ao disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 89.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, demonstrando-se que nos encontramos perante um devedor classificável como empresa, compete aos tribunais de comércio preparar e julgar o respectivo processo de insolvência.», in www.dgsi.pt.

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estabeleceu um regime especial46. Determinando, desde logo, que a mesma deve ser alienada como um todo, a não ser que não haja proposta satisfatória ou se reconheça vantagem na liquidação ou na alienação separada de certas partes, artigo 162.º, n.º 1. O administrador da insolvência, desde que inicia as suas funções, deve efetuar imediatamente diligências para a alienação da empresa do devedor ou dos seus estabelecimentos, artigo 162.º, n.º 2. Quanto à violação deste preceito, esta, não prejudica a eficácia dos atos praticados pelo administrador da insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte, artigo 163.º. Assim, o administrador da insolvência, responderá pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente, artigo 59.º, n.º 1, podendo ser destituído por justa causa, artigo 56.º. 5.4. Proibição da aquisição de bens da massa insolvente pelo administrador da insolvência A aquisição, pelo administrador da insolvência, diretamente ou por interposta pessoa, de direitos ou bens que integrem a massa insolvente, é proibida por lei, seja qual for a modalidade da venda, artigo 168.º, n.º 1. A violação desta disposição importa a destituição do administrador da insolvência, por justa causa, artigo 59.º, n.º 2, e a restituição à massa o bem ou direito ilicitamente adquirido, sem direito de reaver a prestação efetuada, artigo 168.º, n.º 2. Este último número comporta três sanções cominadas: a destituição do administrador por justa causa; a restituição à massa do bem ou direito ilicitamente adquirido; e, a perda a favor da massa, com carácter definitivo, da prestação efetuada pelo administrador como contrapartida da aquisição. Esta última sanção representa um manifesto afastamento ao regime dos negócios consigo mesmo, artigo 261.º, n.º 1, do CCiv., como também não se coaduna com regime típico da nulidade, nem com a proteção de terceiro de boa fé o que, pelo exposto, consideramos estar perante uma nulidade atípica, diferente do regime da nulidade consagrado no artigo 289.º do CCiv., para Ana Prata (AAVV), esta nulidade, parece-lhe uma «hipótese paradigmática de ato praticado “contra a lei”, em que outra solução dela não resulta»47, artigo 294.º do CCiv.48. Contudo, importa ainda, pelo facto da prestação prestada ser perdida a favor da massa, se não estamos perante um caso de enriquecimento sem causa, previsto no artigo 473.º, n.º 2 do CCiv.. Outra situação, que nos se afigura, é que o legislador foi “beber” ao artigo 111.º do Código Penal, transpondo, com as necessárias adaptações, a essência da sanção aí prevista. Todavia, há autores, da opinião que, se a venda for autorizada pela comissão de credores, se existir, ou pela assembleia de credores e com a anuência do insolvente, sendo verificados todos os interesses tutelados, não se vislumbra o motivo pelo qual o negócio não possa ser efetuado. Não partilhando dessa opinião, e com o nosso voto, Ana Prata (AAVV), para esta 46 Neste sentido, LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, op. cit., p. 234, e em sentido próximo, EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, op. cit., pp. 265 e 266. 47 PRATA, ANA, AAVV, op. cit., anotação ao artigo 168.º, p. 475. 48 Sobre o possível regime legal a aplicar, vide com mais desenvolvimento e diferentes opiniões, FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO, JOÃO LABAREDA, op. cit., anotação ao artigo 168.º, pp. 632 a 634, em sentido oposto PRATA, ANA, AAVV, op. cit., anotação ao artigo 168.º, p. 475.

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autora, a norma aponta para a salvaguarda da honestidade e independência dos administradores de insolvências49, ou seja, visa a total transparência na condução do processo pelo administrador. 5.5. Depósito do produto das vendas Nos termos do artigo 167.º, n.º 1, à medida que a liquidação se for efetuando o produto deve ser depositado à ordem da administração da massa, em conformidade com o disposto no artigo 150.º, n.º 6. Existindo comissão de credores, a movimentação do depósito efetuado só pode ser feita mediante Se existirem credores que gozem assinatura conjunta do administrador da insolvência e de, de garantia real sobre algum pelo menos, um dos membros da comissão. Sempre que bem a alienar, estes devem ser sejam previstos períodos relativamente longos de imobiliza- sempre ouvidos sobre a ção dos fundos depositados, devem ser feitas aplicações em modalidade de alienação, e produtos financeiros de risco reduzido e que recolham o informados do valor base fixado parecer prévio favorável da comissão de credores, se existir, ou do preço da alienação artigo 167.º, n.º 2. projetada na entidade determinada, artigo 164.º, n.º 2. 5.6. Modalidades de venda Podem estes credores, no entanto, no prazo de uma As modalidades de alienação da massa insolvente estão semana, ou posteriormente, mas na livre disposição do administrador da insolvência, este em tempo útil, propor a pode optar por qualquer modalidade admitida no processo aquisição do bem, por si ou por executivo ou por outra que tenha por mais conveniente, terceiro, mediante uma proposta artigo 164.º, n.º 1. com preço superior à alienação Contudo, se se tratar de um elenco muito exaustivo de projetada ou ao valor base bens, à que ter em conta que para os atos de especial relevo fixado. Todavia, esta proposta só será necessário o consentimento da comissão de credores, é eficaz se for acompanhada, se existir, ou da assembleia de credores50, artigo 161.º, n.º 1. como caução, de um cheque Se existirem credores que gozem de garantia real sobre visado à ordem da massa falida, algum bem a alienar, estes devem ser sempre ouvidos sobre no valor de 20% do montante da a modalidade de alienação e informados do valor base fixa- proposta, aplicando-se, com as do ou do preço da alienação projetada na entidade determi- devidas adaptações, o disposto nada, artigo 164.º, n.º 2. Podem estes credores, no entanto, nos artigos 824.º e 825.º, no prazo de uma semana, ou posteriormente, mas em tem- do CPC, artigo 164.º, n.º 4. po útil, propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, mediante uma proposta com preço superior à alienação projetada ou ao valor base fixado. Todavia, esta proposta só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa falida, no valor de 20% do montante

PRATA, ANA, AAVV, op. cit., anotação ao artigo 168.º, p. 475, em sentido oposto FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO, JOÃO LABAREDA, op. cit., anotação ao artigo 168.º, pp. 632 a 634. 50 Vide, LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, op. cit., p. 234, e MARTINS, ALEXANDRE SOVERAL, op. cit., p. 298. 49

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da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º, e 825.º, do CPC, artigo 164.º, n.º 4. Esta proposta pode, no entanto, ser recusada pelo administrador da insolvência, mas se o for, este é obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação do bem a esse preço, caso venha a ocorrer por valor inferior, artigo 164.º, n.º 4, in fine. No caso de um credor garantido adquirir bens integrados na massa insolvente, será aplicável o disposto para o exercício dos respetivos direitos na venda em processo executivo, artigo 165.º. 5.7. Encerramento da liquidação Implícito no artigo 169.º, encontra-se o prazo razoável para o encerramento da liquidação. Assim, a liquidação deve estar concluída no prazo de um ano, contado à data da assembleia de apreciação do relatório. Contudo, este prazo pode ser prorrogado por períodos subsequentes de 6 messes, sempre que existam razões que o justifiquem. O incumprimento do prazo estabelecido constitui justa causa para a destituição do administrador da insolvência51, artigo 169.º.

CONCLUSÃO A liquidação tem como objetivo a satisfação, pelo menos parcial, dos credores do insolvente, para isso, é necessário, mediante a alienação dos bens e a cobrança dos créditos compreendidos na massa insolvente, converter o património numa quantia pecuniária, que possa ser repartida por esses credores. A liquidação corre por apenso ao processo de insolvência, artigo 170.º, e encontra-se regulada nos artigos 156.º, e ss.. Posto isto, somos da opinião que a liquidação da massa insolvente é uma das fases mais importantes do processo de insolvência, um processo complexo de extrema relevância, no qual se liquida todo o património penhorável do devedor em benefício dos credores. Dado o pouco tempo, e a delimitação do tema, não foi possível abordar com mais empenho e consistência o problema dos bens futuros, caso em que revertem automaticamente a favor da massa insolvente, com especial importância para a quota hereditária. Assim, damos por terminado o presente trabalho, esperando ter abordado o tema de forma abrangente e clara.

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LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, op. cit., p. 236.

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Siglas e abreviaturas Ac. – Acórdão Ac. STJ – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Ac. TRC – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra Ac. TRE – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora Ac. TRG – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães Ac. TRL – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa CCiv – Código Civil CIRE – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas

CPC – Código Processo Civil CRP – Constituição da República Portuguesa CSC – Código das Sociedades Comerciais DL – Decreto-Lei p. – Página PER – Plano Especial de Revitalização pp. – Páginas ss. – Seguintes www – Citação de sítio de internet www.dgsi.pt – Bases Jurídico-Documentais do ITIJ

Bibliografia ABREU, JORGE MANUEL COUTINHO DE, Curso de Direito Comercial, vol. I, 9.ª ed., Almedina, Coimbra: 2013 CANOTILHO, J.J. GOMES/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra: 2007 COELHO, F. M. PEREIRA, Direito das Sucessões, J. Abrantes, Coimbra: 1992 EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, Manual de Direito da Insolvência, 5.ª ed., Almedina, Coimbra: 2013 EPIFÂNIO, MARIA DO ROSÁRIO, O Processo Especial de Revitalização, Almedina, Coimbra: 2015 FERNANDES, LUÍS A. CARVALHO, JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª ed., Quid Juris Editora, Lisboa: 2015 LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 7.ª ed., Almedina, Coimbra: 2013 LEITÃO, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES, Direito da Insolvência, 5.ª ed., Almedina, Coimbra: 2013 LIMA, PIRES DE, ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra: 2011 LIMA, PIRES DE, ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. VI, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra: 2011

MARTINS, ALEXANDRE SOVERAL, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra: 2015 MARTINS, LUÍS M., Processo de Insolvência Anotado e Comentado, 3.ª ed., Almedina, Coimbra: 2014 PLMJ, Sociedade De Advogados, AAVV, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 1.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra: 2012 PRATA, ANA, JORGE MORAIS, RUI SIMÕES, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra: 2013 SERRA, CATARINA, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito. O Problema da Natureza do Processo de Liquidação Aplicável à Insolvência no Direito Português, Coimbra Editora, Coimbra: 2009 SERRA, CATARINA, O Regime Português da Insolvência, 5.ª ed., Almedina, Coimbra: 2012 SILVA, PAULA COSTA E, “A liquidação da massa insolvente”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, vol. III, Lisboa: Dez. 2005, [713 – 744] SOUSA, RABINDRANATH, CAPELO DE, Lições de Direito das Sucessões, Volume I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra: 2000

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Jurisprudência Acórdão Supremo Tribunal De Justiça Ac. do STJ, de 24-03-2015, proc. 3057/11.5TBPVZ-D. P2.S1 (FERNANDES DO VALE) Ac. do STJ, de 25-11-2014, proc. 414/13.6TYLSB.L1.S1 (ANA PAULA BOULAROT) Ac. do STJ, de 07-10-2014, proc. 1393/11.0TBPMS-C. C1.S1 (PINTO DE ALMEIDA) Ac. do STJ, de 10-04-2014, proc. 83/13.3TBMCD-B. P1.S1 (SALRETA PEREIRA) Ac. do STJ, de 20-03-2014, proc. 251/09.2TYVNG-I.P1 (AZEVEDO RAMOS) Ac. do STJ, de 30-06-2011, proc. 191/08.2TBSJM – H.P1.S1 (BETTENCOURT DE FARIA) Acórdão Tribunal Da Relação de Coimbra Ac. do TRC, de 17-12-2014, proc. 39/10.8IDCBR-A.C1 (LUÍS COIMBRA) Ac. do TRC, de 24-09-2013, proc. 1260/12.0TBGRD-A. C1 (MARIA INÊS MOURA) Ac. do TRC, de 24-09-2013, proc. 995/12.1TBVNO-C. C1 (JOSÉ AVELINO GONÇALVES) Ac. do TRC, de 04-06-2013, proc. 1475/09.8TBTMR-I. C1 (FERNANDO MONTEIRO)

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Acórdão Tribunal Da Relação de Évora Ac. do TRE, de 13-02-2014, proc. 26-O/2000.E1 (MARIA ALEXANDRA MOURA SANTOS) Acórdão Tribunal Da Relação de Guimarães Ac. do TRG, de 20-11-2014, proc. 1058/14.0TBVCT.G1 (ESTELITA DE MENDONÇA) Ac. do TRG, de 05-06-2014, proc. 253/13.4TBEPS-C. G1 (MANUEL BARGADO) Acórdão Tribunal Da Relação Lisboa Ac. do TRL, de 22-01-2015, proc. 853/14.5TJLSB.L1-8 (CARLOS MARINHO) Ac. do TRL, de 17-12-2014, proc. 939/10.5TYLSB-H. L1-2 (SOUSA PINTO) Ac. do TRL, de 27-11-2014, proc. 19790/13.4T2SNT.L1 -8 (CATARINA MANSO) Ac. do TRL, de 15-11-2011, proc. 17860/11.2T2SNT-A. L1-7 (PIMENTEL MARCOS)


A PRIVACIDADE DO TRABALHADOR E A UTILIZAÇÃO DAS TIC SUSANA FERREIRA DOS SANTOS Professora adjunta na Escola Superior de Comunicação, Administração e Turismo do Instituto Politécnico de Bragança. Licenciada e Mestre em Direito pela Universidade Católica Portuguesa. Doutorada em Direito Privado pela Universidade da Corunha.

RESUMO A utilização de ferramentas tecnológicas revolucionou as práticas sociais e influenciou a conceção das relações jurídicas e, em particular, das relações de trabalho. Os meios tecnológicos alteraram a forma de trabalhar, originando novos dilemas na relação laboral. De facto, o controlo da atividade dos trabalhadores através das tecnologias de informação e comunicação (TIC) poderá ofender os direitos de personalidade do trabalhador, em especial o direito à privacidade. As regras sobre a utilização das TIC no local de trabalho, a realização de chamadas telefónicas, a utilização do correio eletrónico profissional e pessoal, as condições em que o trabalhador poderá aceder à Internet poderão ser estabelecidas pelo empregador e o trabalhador deverá ter sempre conhecimento dos meios de controlo da sua prestação de trabalho.

Mesmo que não sejam estipuladas normas sobre a utilização das TIC, sempre que o trabalhador utilize a Internet desmedidamente, faça telefonemas pessoais dos telefones profissionais ou atenda telefonemas do seu próprio telemóvel de forma reiterada e prolongada no local e tempo de trabalho violará a boafé contratual. Todavia, o empregador não poderá inspecionar as páginas visitadas pelo trabalhador e ler o conteúdo da mensagem enviada ou recebida pelo trabalhador; e, finalmente, no que diz respeito ao controlo das chamadas, a fiscalização nunca poderá incluir escutas, a não ser que os trabalhadores tenham dado o seu consentimento expresso e apenas em determinadas situações tipificadas na lei.

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A PRIVACIDADE DO TRABALHADOR E A UTILIZAÇÃO DAS TIC

INTRODUÇÃO

A

s relações sociais têm sido afetadas pela globalização e pelo desenvolvimento das sociedades modernas. A utilização de ferramentas tecnológicas revolucionou as práticas sociais e influenciou a conceção das relações jurídicas e, em particular, das relações de trabalho. Assim, os meios tecnológicos alteraram a forma de trabalhar, originando novos dilemas na relação laboral. Existem várias tecnologias postas à disposição do trabalhador pelo empregador - computador, Internet, correio eletrónico e telefone/telemóvel, impondo-se uma análise das suas condições de utilização no local de trabalho.

1. NOVOS DESAFIOS A sociedade global assenta nas tecnologias de informação e comunicação (TIC)1, que são comummente definidas como o conjunto de recursos tecnológicos que a informática, as telecomunicações e as tecnologias audiovisuais nos oferecem. Estamos perante um “admirável mundo novo do trabalho”2, no qual despontam novos impulsos, novas problemáticas e novas controvérsias para os sujeitos do contrato de trabalho. A atividade de milhões de trabalhadores centra-se na troca de comunicações e não na transformação de matérias-primas, sendo o computador um dos principais instrumentos de trabalho. O controlo e exame do conteúdo do correio eletrónico enviado e recebido ou o controlo do tempo de utilização da Internet desencadeia questões jurídicas às quais o velho Direito do Trabalho não estava preparado para responder. E, de facto, nos últimos anos, a produção doutrinal e jurisprudencial sobre o tema tem sido bastante portentosa. Na esteira de Teresa Coelho Moreira, reconhece-se que “um dos maiores desafios colocado ao jurista do moderno Direito do Trabalho é o da regulação do emprego dos meios de comunicação eletrónicos na empresa”.3 Se é verdade, por um lado, que as tecnologias contribuem em grande escala para a modernização e para o aumento da eficiência empresarial, por outro, poderão ser instrumentos de controlo dos trabalhadores, no que concerne à sua produtividade e aptidões profissionais.4 Assim, o recurso a estas tecnologias poderá originar dilemas jurídicos, entre os quais se destacam as eventuais agressões aos direitos de personalidade do trabalhador, em Jean-Emmanuel Ray considera que, tendo em conta o seu impressionante desenvolvimento, as TIC poderão ter o mesmo efeito do que a invenção da imprensa, por Gutenberg, no século XV. Cfr. Jean-Emmanuel Ray, Le droit du travail à l`épreuve des NTIC, 2.ª ed., Editions Liaisons, Paris, 2001, p. 9. 2 Teresa Coelho Moreira, “As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação: um Admirável Mundo Novo do Trabalho?”, Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume VI, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 953-973. 3 Teresa Coelho Moreira, “O Controlo das Comunicações Electrónicas dos Trabalhadores”, Direito do Trabalho + Crise = Crise do Direito do Trabalho? Actas do Congresso de Direito do Trabalho, Coordenação de Catarina de Oliveira Carvalho e Júlio Vieira Gomes, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 170. A autora acrescenta que “em muitos setores, estes sistemas de comunicação deixaram de ser meras ferramentas de trabalho para se converterem no meio através do qual se oferecem os serviços e os produtos da empresa ao mercado”. 4 Como manifesta Adalberto Perulli, com as novas tecnologias é essencial a proteção da dignidade do trabalhador. Cf. Adalberto Perulli, Il potere diretivo dell’imprenditore, Giuffré Editore, Milão, 1992, p. 281. 1

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especial ao direito à privacidade e intimidade. Como refere Falguera Baró, “é óbvio que falar de comunicação significa em muitos casos falar de privacidade”.5 Com efeito, a ciência e tecnologia são hoje aproveitadas pelo empregador a fim de controlar e gerir a produção, assistindo-se atualmente ao alargamento dos meios suscetíveis de afetar a privacidade e a dignidade dos trabalhadores.6 Nesta conjuntura, emerge um novo direito fundamental do trabalhador apelidado de “direito à intimidade informática”.7 A consideração pela esfera privada dos trabalhadores é “a reafirmação do trabalhador como pessoa e do Direito do Trabalho como Direito, desenvolvido e aplicado de acordo com os ditames da Ciência jurídica”.8 Neste sentido, não nos parece que se possa falar em privacidade pessoal e privacidade laboral: são duas dimensões da mesma realidade que é o direito à privacidade de um cidadão, que, em virtude da celebração de um contrato de trabalho, é, de igual modo, trabalhador. Pelo facto de o cidadão celebrar um contrato de trabalho, Menezes Cordeiro evidencia a anuência em “limitar a sua esfera”, na medida em que “a submissão de um ser humano à direção e à disciplina de outro implica uma intromissão na esfera do primeiro”.9 Por outras palavras, o cidadão “está, explícita ou implicitamente, a limitar os seus direitos de personalidade”, no sentido em que “não dispõe mais da sua força de trabalho”.10 Não obstante, em nosso entender, a principal ideia a ter em conta é a de que a força de trabalho é colocada ao dispor da entidade empregadora por força da celebração de um contrato de trabalho, mas não a própria pessoa.11 O poder de controlo é intrínseco ao poder de direção do empregador, que emite ordens e tem o poder de fiscalizar o seu cumprimento e o desempenho dos trabalhadores.12 Só que este poder não é absoluto, uma vez que o controlo tem limites e terá de ter o menor impacto possível sobre os direitos e garantias do trabalhador.13 Neste contexto, vários autores referem-se ao “trabalhador transparente” ou “trabalhador de vidro”, tendo em conta a sua enorme vulnerabilidade em ser observado a todo o instante e sempre que o empregador o queira, tal e qual um Big Brother. O que significa, então, que esta supervisão poderá atingir aspetos da vida privada do trabalhador que, merecendo proteção jurídica, deveriam ser intocáveis. O argumento mais utilizado para a aplicação destes meios é o do controlo da 5 Cf. Miquel Ángel Falguera Baró, “Criterios doctrinales en relación con el uso por el trabajador de los medios informáticos empresariales para fines extraproductivos”, Derecho social y nuevas tecnologías. Cuadernos de Derecho Judicial, XV. Madrid: Consejo General del Poder Judicial. 2004, p. 286. 6 Cf. Guilherme Dray, Código do Trabalho Anotado, 9.ª ed., Coordenação de Pedro Romano Martinez, Almedina, Coimbra, 2013, p. 144. 7 Cf. Amadeu Guerra, “A privacidade no local de trabalho”, Direito da sociedade da informação, Separata do volume VI, Associação Portuguesa do Direito Intelectual, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p.145. 8 Cf. António Menezes Cordeiro, “O respeito pela esfera privada do trabalhador”, I Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 1998, p. 37. 9 IDEM, Ibidem, p. 19. 10 Cf. Teresa Coelho Moreira, “Direitos de Personalidade”, Estudos de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 66 e 67. 11 No mesmo sentido, vide Amadeu Guerra, “A privacidade no local de trabalho”, Direito da sociedade da informação, Separata do volume VI, Associação Portuguesa do Direito Intelectual, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 133. 12 O legislador espanhol, no artigo 20.º, n.º 3, do Estatuto dos Trabalhadores (ET), instituiu a separação entre “direção” e “controlo” da atividade laboral, sendo esta uma questão profundamente debatida na doutrina espanhola. 13 Como bem expressa José João Abrantes, “no contrato de trabalho, os poderes do empregador e a liberdade negocial têm por limite intransponível a intangibilidade do conteúdo essencial de qualquer dos direitos fundamentais dos cidadãos”. Cf. José João Abrantes, “O direito laboral face aos novos modelos de prestação de trabalho”, IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2002, p. 92.

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eficiência e do desempenho laborais, mas há que ter em conta que controlar e vigiar de forma oculta não são sinónimos: controlar pressupõe o conhecimento do trabalhador; já a vigilância oculta remete-nos para formas de controlo totalmente ignoradas pelo trabalhador e, por conseguinte, ilícitas e inadmissíveis. O dever de obediência foi consagrado pelo legislador laboral português14 e a Constituição da República Portuguesa consagra os princípios da liberdade de iniciativa e de organização empresarial.15 O ideal reside em encontrar uma solução de equilíbrio entre o poder de direção do empregador e os direitos fundamentais do trabalhador, “ponderando prudencialmente os interesses em jogo e evitando ilógicos e irracionais ataques frontais e insidiosos” em relação a este.16

2. CONDIÇÕES DE UTILIZAÇÃO DAS TIC Existem inúmeras tecnologias postas à disposição do trabalhador pelo empregador: computador, telefone, telemóvel, Internet, entre outras. Esteja em causa o direito à palavra escrita, o acesso à Internet ou as comunicações telefónicas, existe o direito de reserva e confidencialidade quer dos e-mails recebidos e/ou enviados, das páginas visitadas ou dos telefonemas efetuados pelo trabalhador, respetivamente.17 Já no que diz respeito às normas de uso dessas mesmas tecnologias, é ponto assente que, ao abrigo do poder de direção, poderá o empregador estipular as regras de utilização da Internet, bem como dos telefonemas a efetuar pelo trabalhador. Contudo, há quem considere “ilógico, irrealista e contraproducente” a proibição em absoluto da utilização do e-mail e da Internet “para fins que não sejam estritamente profissionais”18; em contrapartida, há quem defenda a inexistência de “um direito ao uso social do e-mail laboral”, pelas possíveis consequências negativas no desempenho laboral do trabalhador.19 Caso o empregador considere que a Internet e seus derivados são um obstáculo à eficiência e concentração do trabalhador, poderá simplesmente proibir a sua utilização. As regras sobre a utilização das TIC no local de trabalho, da realização de chamadas telefónicas, da utilização do correio eletrónico profissional e pessoal, das condições em que o trabalhador poderá aceder à Internet poderão ser estabelecidas por contrato individual de trabalho, pelos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, por um regulamento interno

Cf. artigo 128.º n.º 1 e) do Código do Trabalho (CT). Cf. artigo 80.º c) CRP. 16 Cf. Susana Rodríguez Escanciano, “El control empresarial del correo electrónico de los trabajadores: posibilidades y límites (a propósito de la STC de 7 de octubre de 2013, rec. 2907/2011)”, Relaciones laborales: Revista crítica de teoría y práctica, n.º 10, 2014, p. 127. No mesmo sentido, vide José João Abrantes, “O direito laboral face aos novos modelos de prestação de trabalho”, IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2002, p. 83. 17 Cf. artigo 22.º do Código do Trabalho CT. 18 Conforme disposto no documento elaborado pela Comissão Nacional de Proteção de Dados sobre os “Princípios sobre a privacidade no local de trabalho”, aprovado na sessão plenária de 29 de outubro de 2002. De igual modo vide Amadeu Guerra, “A privacidade no local de trabalho”, Direito da sociedade da informação, Separata do volume VI, Associação Portuguesa do Direito Intelectual, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, 160. 19 Cf. Javier Thibault Aranda, El uso del e-mail por los trabajadores y las facultades de control del empleador, 2001, In http://www.uoc.edu/web/esp/art/uoc/0109040/thibault.html (consultado em 19 de outubro de 2016). 14 15

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ou por um simples documento. A elaboração de um regulamento interno20 sobre as condições de utilização do e-mail, da Internet e do telefone será uma excelente opção.21 Concordamos com a ideia de que “se o documento fixa novas regras de subordinação, estabelece limites em relação à utilização de certos meios, procedimentos a adotar pelo trabalhador, sanções e limitações à autonomia e criatividade dos trabalhadores” deverá tomar a forma de um regulamento interno22; contudo, há quem admita que, seja qual for a situação, o regulamento será sempre “o meio por excelência a adotar para o efeito”.23 De facto, o empregador poderá tomar as medidas que considere oportunas em relação à utilização indevida das ferramentas de trabalho, não obstante, deverá informar os trabalhadores sobre as restrições dessa utilização.24 Para a proteção do direito à privacidade do trabalhador, a intensidade de controlo na sua atividade nunca deverá ser intrusiva. Se o for, o empregador incorrerá, desde logo, em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, bem como em responsabilidade penal. Desta forma, a licitude do controlo deverá ter como premissas as seguintes circunstâncias: o trabalhador deverá ter sempre conhecimento dos meios de contro- Se é verdade, por um lado, que lo da sua prestação de trabalho; o controlo pelo empregador as tecnologias contribuem em apenas deverá dizer respeito a questões laborais; na utilização grande escala para a dos meios de vigilância à distância, estes deverão ser propor- modernização e para o aumento cionais, necessários e adequados. Assim, as normas de conduta da eficiência empresarial, por internauta e de comunicação poderão estar devidamente esta- outro, poderão ser instrumentos tuídas por qualquer dos meios enunciados, só que não é sufi- de controlo dos trabalhadores, ciente a sua simples estipulação; condição sine qua non da sua no que concerne à sua efetividade é a tomada de conhecimento pelos próprios traba- produtividade e aptidões lhadores. Podemos inclusive sugerir o aproveitamento dos profissionais. recursos tecnológicos e o envio das regras por e-mail.25 De uma maneira simples, o trabalhador tem de ser informado, de forma expressa e inequívoca, das regras que envolvem a utilização das tecnologias e da consequente supervisão e controlo. Por outras palavras, a entidade empregadora “terá, previamente à 20 De acordo com a lei portuguesa, na feitura do referido regulamento interno, há que ouvir a comissão de trabalhadores e publicar o documento num local visível na empresa para que todos os trabalhadores tomem conhecimento da sua existência. A elaboração de um regulamento interno é mais rebuscada do que a elaboração de um mero documento, até porque, se não for ouvida a comissão de trabalhadores e não for publicado, estaremos perante uma contraordenação grave. Cf. artigo 99.º, n.º 5, CT. 21 O legislador português admite a possibilidade de o empregador estabelecer as normas de utilização dos meios de comunicação na empresa, referindo-se expressamente ao correio eletrónico (meramente exemplificativo), conforme refere o artigo 22.º, n.º 2, CT. 22 Cf. Amadeu Guerra, “A privacidade no local de trabalho”, Direito da sociedade da informação, Separata do volume VI, Associação Portuguesa do Direito Intelectual, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 161. 23 Cf. Guilherme Dray, Código do Trabalho Anotado, 9.ª ed., Coordenação de Pedro Romano Martinez, Almedina, Coimbra, 2013, p. 166. 24 Cf. artigo 20.º n.º 3 ET. 25 A estipulação destas regras é de tal modo importante que a STSJ de Madrid, de 28 de abril de 2011, declarou a ilicitude de um despedimento em que o trabalhador, durante o horário de trabalho, visitava sites alheios à sua atividade laboral. A entidade empregadora não informou os seus trabalhadores sobre as restrições da utilização das ferramentas informáticas, nem sobre o controlo que fazia dessas mesmas ferramentas. Desta forma, o motivo invocado para o despedimento com justa causa foi declarado improcedente.

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adoção de qualquer medida de controlo, que respeitar o princípio da transparência que consiste no conhecimento da vigilância e do controlo exercido pelo empregador”.26 Sejam existentes ou inexistentes as políticas empresariais sobre a utilização das tecnologias, acompanhadas do conhecimento dos respetivos meios de controlo, a regra é a de que o empregador não pode inspecionar o conteúdo do e-mail ou de uma conversa telefónica a não ser que exista uma autorização judicial. Note-se, porém, que uma coisa é o conteúdo da mensagem, outra coisa será “controlar alguns dados externos para tentar visualizar se os trabalhadores estão a utilizar corretamente ou não os seus meios de comunicação”, como, por exemplo, o tempo gasto pelo trabalhador na utilização da ferramenta de trabalho e no acesso à rede informática.27 Neste sentido, a Comissão Nacional de Proteção de Dados, num documento relativo aos “Princípios sobre a privacidade no local de trabalho”, recomenda a todos os empregadores a observância de vários princípios na utilização das novas tecnologias. Destacamos o princípio geral que aconselha à escolha pelo empregador de “metodologias genéricas de controlo”, dando como exemplos o “número de e-mails enviados” ou o “tempo gasto em consultas na Internet”.28 Teresa Coelho Moreira ressalta o caso de ter sido o próprio empregador a estimular uma utilização não profissional destes meios “como forma externa e de implementação destas NTIC nas empresas”. Nestas situações, a existir posteriormente uma proibição generalizada na utilização destes meios para efeitos profissionais, poderá o empregador “incorrer numa espécie de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium”29, contrariando a boa-fé, tendo em conta o comportamento anteriormente adotado. Em jeito de conclusão, o conhecimento por parte do trabalhador é condição sine qua non para a licitude do controlo pelo empregador, aplicando-se, por força do princípio da transparência, a mesma regra no caso do tratamento de dados pessoais do trabalhador. Se bem que o conhecimento e o consentimento do trabalhador possam ser irrelevantes em determinadas situações, mantendo-se a ilicitude no controlo da prestação da atividade, no caso, por exemplo, da utilização pelo empregador de inúmeros programas disponíveis na world wide web para monitorizar a utilização do computador e saber tudo, sublinhe-se tudo, o que o trabalhador faz.30

Cf. Teresa Coelho Moreira, “Controlo do Messenger dos Trabalhadores: Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de março de 2012”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 91-92, CEJ, Lisboa, 2012, p. 139. 27 IDEM, Ibidem, pp. 140 e 141. Como refere André Pestana Nascimento “mais do que a legitimidade do controlo, que tem de ser admitida, uma vez que os meios de trabalho pertencem ao empregador, são os limites desse controlo, sopesando os direitos fundamentais dos trabalhadores e dos empregadores que têm que ser definidos”. Cf. “O impacto das novas tecnologias no Direito do Trabalho e a tutela dos direitos de personalidade do trabalhador”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 79-80-81, CEJ, Lisboa, 2008, pp. 243 e 244. 28 Veja-se, no mesmo sentido, Amadeu Guerra, “A privacidade no local de trabalho”, Direito da sociedade da informação, Separata do volume VI, Associação Portuguesa do Direito Intelectual, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 156. 29 Teresa Coelho Moreira, “A privacidade dos trabalhadores e o Controlo Electrónico”, Estudos de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 107 e 108. 30 A título meramente exemplificativo, temos o Keylogger, que é um dos softwares mais conhecidos que regista tudo, inclusivamente o que se escreve; o programa Black Box Security Monitor que é um software que regista diversos computadores em simultâneo e envia todos os registos por e-mail ou por telemóvel; o Screen Monitor Plus, que permite fazer a monitorização da área de trabalho de vários computadores em simultâneo (daí que a publicidade a este software se centre no facto de ser ideal para empresas, uma vez que consegue reunir “36 telas no mesmo PC”); o Win Spybox, que é um programa que permite gravar tudo o que se faz no computador, inclusive o que é escrito nas redes sociais. Existem muitos outros, com maiores ou menores potencialidades, mas o principal objetivo é o mesmo: a monitorização do computador – Programa Espião, TI Monitor, LanSchool, Net Monitoring, Net Spybox, por exemplo. 26

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2.1 Computador O computador é uma ferramenta de trabalho31 e, em regra, será propriedade do empregador. Assim sendo, o trabalhador “carece de título jurídico originário que lhe permita um uso particular do computador”, uma vez que não é proprietário “que o permita gozar e dispor” do bem, nem tem outro título como locatário ou comodatário, nem sequer possuidor.32 O trabalhador será, então, um simples detentor ou possuidor precário, estando assim adstrito, de igual modo, ao dever de utilizar de forma prudente o instrumento de trabalho e apenas para fins profissionais. Uma autorização expressa do empregador ou uma proibição generalizada do uso do computador para fins particulares, em que ambas as opções poderão assumir as mais variadas formas (contrato individual de trabalho, regulamento interno, convenção coletiva de trabalho, entre outras), contribuiriam para uma desejável segurança jurídica sobre a utilização do computador pelos trabalhadores.33 A questão torna-se delicada, até porque, por exemplo, a jurisprudência espanhola não é unânime na interpretação da falta de uma autorização expressa: “a proposta judicial rigorosa” considera que estamos perante uma proibição e “a proposta judicial permissiva” julga que estará em causa uma autorização tácita da utilização do computador.34 Se existe uma proibição geral da utilização do computador para fins privados, levada ao conhecimento de todos os trabalhadores, que estão assim devidamente esclarecidos, o empregador poderá aceder de forma livre e descomprometida aos computadores dos seus trabalhadores, seja para aceder a determinadas informações, seja para verificar o cumprimento das suas regras. Parece-nos sim, a fim de evitar quaisquer atitudes lesivas dos direitos fundamentais dos trabalhadores, que estes terão e deverão estar presentes no momento daquela fiscalização.35 Já se existe uma autorização expressa do uso daquela ferramenta de trabalho para fins particulares, as expetativas de confidencialidade criadas pelo trabalhador e o intrínseco princípio da boa-fé impõem que qualquer “revista” ao computador terá de ser consentida pelo trabalhador. No caso de não existir nem uma proibição generalizada nem uma autorização expressa, os conceitos da boa-fé e de sensatez assumem contornos O Quarto Inquérito Europeu sobre as Condições de Trabalho, promovido em 2005 pelo Eurofound, revelou que, no que respeita à utilização do computador, 27% dos trabalhadores trabalhavam com recurso a esta ferramenta “durante todo ou quase todo o tempo”. No que se refere ao Quinto Inquérito, realizado em 2010, à questão se “o seu trabalho implica trabalhar com computadores” 24,5% dos trabalhadores portugueses com um contrato sem termo disseram que sim; todavia esta percentagem aumenta para 37,2% quando a mesma é feita aos trabalhadores espanhóis na mesma situação. Em 2015 foi levado a cabo o Sexto Inquérito e 26% dos trabalhadores portugueses afirmaram que o seu trabalho implica trabalhar com computadores e telemóveis; Luxemburgo, Dinamarca e Noruega têm as percentagens mais elevadas: 53%, 47% e 45%, respetivamente, se bem que a média da UE é de 31%. 32 Cf. Alfredo Montoya Melgar, “Nuevas tecnologías y buena fe contractual (Buenos y malos usos del ordenador en la empresa)”, Relaciones laborales, Revista crítica de teoría y práctica, n.º 1, 2009, p. 187. 33 IDEM, Ibidem, p. 188. 34 IDEM, Ibidem, 35 Um empregador solicitou os serviços de um técnico de informática devido a avarias de um computador utilizado por determinado trabalhador. Na reparação do computador estava presente um administrador da empresa. Foram localizados vírus, em consequência da navegação em sites pouco seguros e encontrados arquivos com acessos a páginas com conteúdo sexual. Não obstante, a decisão do STSJ de Madrid, de 26 de dezembro de 2007, declarou lícito o despedimento daquele trabalhador; todavia, em nosso entender e salvo melhor opinião, não se respeita o artigo 18.º ET, uma vez que se atuou sem o conhecimento do trabalhador. 31

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cruciais. Como expressa Montoya Melgar, “usos imoderados e abertamente abusivos” não podem gerar uma expetativa de confidencialidade.36 A solução, nestes casos, pode passar pelo recurso às já mencionadas metodologias genéricas de controlo por parte do empregador, de forma a respeitar a privacidade e intimidade dos trabalhadores. 2.2 Internet A Internet é um “instrumento estratégico” para a generalidade das empresas e está a alterar a “própria prática do Direito”.37 De forma singela, pode ser definida como uma rede mundial capaz de fazer a ligação entre biliões de computadores e servidores, tornando possível a comunicação entre os intervenientes e a transmissão de informação, entre outras valências.38 O uso da Internet no local de trabalho deverá ser apropriado e o trabalhador deverá utilizá-la com bom senso. Situação diferente será aquela em que a Internet é uma ferramenta de trabalho e as pesquisas são necessárias para a prossecução da atividade. De facto, a Internet poderá ser considerada uma “tentação” para muitos trabalhadores e um obstáculo à produtividade. Para além do mais, poderão existir repercussões ao nível da segurança pela entrada em páginas pouco seguras e de vírus no computador, com a consequente perda de dados e até a sua inutilização.39 Um possível abuso por parte do trabalhador na utilização das TIC para outros fins que não o exercício da sua atividade, em princípio, será facilmente resolvido pelo empregador, como mencionado, através do estabelecimento de regras de utilização dos meios de comunicação no local de trabalho. Muito embora não exista uma relação causal entre o acesso à Internet e a diminuição da produtividade40, o empregador poderá, dentro dos poderes que a lei lhe atribui, não ter sequer os computadores ligados em rede, vedar o acesso à Internet ou então bloquear ou apenas permitir o acesso a determinadas páginas, seja para uma utilização profissional e/ou estritamente pessoal. Se bem que a decisão de bloquear determinados sites poderá ser uma “solução pouco eficaz, pois, cada vez mais através de smartphones e de outros dispositivos de uso pessoal (…) é possível aceder à internet, mesmo sem utilizar os instrumentos postos à disposição pelo empregador”.41

Cf. Alfredo Montoya Melgar, “Nuevas tecnologías y buena fe contractual (Buenos y malos usos del ordenador en la empresa)”, Relaciones laborales, Revista crítica de teoría y práctica, n.º 1, 2009, p. 195. 37 Cf. Teresa Coelho Moreira, “As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação: um Admirável Mundo Novo do Trabalho?”, Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume VI, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 957 e 959. 38 Na esteira de Antonio Barrero Fernández, “a internet é uma janela de oportunidades”. Cf. El Teletrabajo, Agata, Madrid, 1999, p. 103. 39 Cf. Daniel Toscani Giménez e David Calvo Morales,“El uso de internet y el correo electrónico en la empresa: límites y garantias”, Nueva revista española de derecho del trabajo, n.º 165, 2014, p. 198. 40 Existem variados estudos sobre a utilização da Internet no local de trabalho e a sua relação com a produtividade do trabalhador. Um deles, já de 2009, oriundo da Universidade de Melbourne, na Austrália, e dirigido pelo pesquisador Brent Coker, analisou a conduta de 300 trabalhadores: uma das conclusões do estudo foi a de que a produtividade do trabalhador que pesquisa na Internet por lazer poderá aumentar até 9% comparativamente ao trabalhador que não o faz. Vide http://archive.uninews.unimelb.edu.au/view-58003.html (consultado em 28 de outubro de 2016). 41 Cf. Maria Regina Redinha, “Redes Sociais: incidência laboral (Primeira Aproximação)”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 87, CEJ, Lisboa, 2010, p. 39. 36

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Em resumo, o empregador poderá bloquear total ou parcialmente o acesso a todos ou determinados sites, “podendo inclusive estabelecer limites de utilização de transferência de tráfego”42, pelo que o trabalhador terá de se conformar com as restrições impostas pelo empregador. Na hipótese de o trabalhador não acatar as ordens do empregador, como em qualquer outra violação do dever de obediência, a sua conduta poderá ser considerada uma infração disciplinar. Não consideramos que o controlo deva “ser feito de forma não individualizada e global em relação a todos os acessos na empresa, com referência ao tempo de conexão na empresa”43; até seria possível que esse controlo fosse feito de forma individual e que permitisse apurar o tempo gasto pelo trabalhador em sites que não interessam ao desempenho da sua atividade, todavia sem os identificar. Só que a pesquisa efetuada aos softwares disponíveis no mercado cibernauta para fazer este tipo de controlo mostra que o mercado oferece serviços bem mais rebuscados, com a entrega de um relatório diário dos acessos de Uma autorização expressa do cada trabalhador. Esse controlo é feito das mais diversas for- empregador ou uma proibição mas: identificação dos sites acedidos; apresentação de um generalizada do uso do gráfico de acesso, a referir quantos bytes foram gastos por computador para fins cada um dos trabalhadores; exibição de um gráfico que particulares, em que ambas as demonstra os respetivos horários de acesso de entrada e de opções poderão assumir as mais saída de cada um dos sites visitados.44 É difícil imaginar forma variadas formas (contrato mais perversa de vigiar o trabalhador; neste caso, o conheci- individual de trabalho, mento e consentimento serão irrelevantes, pois está em regulamento interno, convenção causa o direito à privacidade e intimidade do trabalhador e coletiva de trabalho, entre sua ampla proteção legal, que compreende o direito à auto- outras), contribuiriam para uma determinação informacional. Em suma, o trabalhador goza desejável segurança jurídica do direito de reserva e confidencialidade relativamente aos sobre a utilização do sites que consulta na Internet.45 computador pelos trabalhadores. 2.3 Correio Eletrónico O correio eletrónico, mais conhecido por e-mail, abreviatura do termo inglês electronic mail, representa a prescindibilidade do suporte em papel e possibilita enviar e receber mensagens por meio de sistemas de comunicação eletrónicos. Na verdade, estamos perante um forte instrumento de comunicação “que está no coração da popularidade da Internet”46 e é, Cf. Joel Timóteo Ramos Pereira, Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação, Quid Juris, Lisboa, 2004, p. 941. Cf. Amadeu Guerra, “A privacidade no local de trabalho”, Direito da sociedade da informação, Separata do volume VI, Associação Portuguesa do Direito Intelectual, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 166. 44 Desta forma, o empregador poderá, facilmente, constituir perfis de cada um dos trabalhadores, assim como “conhecimento de gostos, hobbies, hábitos de consulta de documentação relativa a determinada doença, à compra de determinados produtos, à preparação de uma viagem ou ao gozo de férias”. Cf. Amadeu Guerra, “A privacidade no local de trabalho”, Direito da sociedade da informação, Separata do volume VI, Associação Portuguesa do Direito Intelectual, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 166 e 167. 45 O artigo 22.º CT poderá parecer, numa leitura fugaz, aplicável somente à questão do correio eletrónico; contudo, aplica-se, igualmente, à questão da Internet, pois está em causa o “acesso a informação”. 46 Cf. Mercader Uguina, Derecho del Trabajo, Nuevas Tecnologías y Sociedad de la Información, Editorial LEX NOVA, Valladolid, 2002, p. 111. 42 43

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nos dias de hoje, o sistema comunicacional mais usado, quer pessoal, quer profissionalmente. Mais ainda, a melhor orientação doutrinal sustenta que “as declarações expressas por via informática gozam da mesma eficácia jurídica das que se tivessem um suporte tradicional”.47 A questão do correio eletrónico torna-se delicada quando se está perante uma utilização indevida e inapropriada pelo trabalhador, uma vez que a sua utilização para fins pessoais durante o tempo de trabalho, de forma reiterada, poderá causar falta de produtividade e falta de concentração nas tarefas a realizar. Daí que, se estivermos perante uma utilização abusiva, o comportamento do trabalhador poderá constituir um ilícito disciplinar.48 Para além do mais, está ainda em causa um “veículo de transmissão de informação” que poderá conduzir informação confidencial, atentando assim contra os interesses do próprio empregador e causando dano à sua reputação e imagem.49 Em contrapartida, ler e responder a e-mails poderá ser também uma atividade que se enquadra no objeto do contrato de trabalho. Nestes casos, estamos perante um instrumento de trabalho e uma forma de comunicação com clientes, fornecedores, superiores hierárquicos e entre os próprios trabalhadores. Contudo, é um instrumento de trabalho dotado de características peculiares; isto porque “o empregador não tem um acesso irrestrito a este instrumento, como terá a outros utensílios ou equipamentos (…) uma vez que há que considerar o quadro constitucional (…)”.50 Normas constitucionais, bem como regras penais, civis e laborais. O legislador português trata de forma autónoma o direito à confidencialidade da correspondência, pelo que merece destaque, já que confunde e se encontra intimamente ligado com o direito à reserva da intimidade da vida privada. O princípio da inviolabilidade do domicílio e da correspondência, bem como de outros meios de comunicação privada está consagrado no artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa; a violação de correspondência ou de telecomunicações está tipificada no artigo 194.º do Código Penal Português; o Código Civil Português, nos artigos 75.º a 78.º, estabelece o direito à confidencialidade da correspondência; e, por último, o artigo 22.º do Código do Trabalho estabelece o direito à confidencialidade de mensagens e de acesso à informação.51 No sentido de Montoya Melgar, “existe de facto uma situação generalizada de permissividade empresarial perante a utilização extralaboral do correio eletrónico da empresa que não gera um verdadeiro direito”.52 O empregador deve estipular as regras sobre a utilização do Cf. Alfredo Montoya Melgar,“Derechos del Trabajador e Informática”, Estudios jurídicos en homenaje al doctor Néstor de Buen Lozano, 2003, p. 536. In http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/3/1090/30.pdf (consultado em 29 de outubro de 2016). 48 No mesmo sentido Javier Thibault Aranda, El uso del e-mail por los trabajadores y las facultades de control del empleador, 2001, In http://www.uoc.edu/web/esp/art/uoc/0109040/thibault.html (consultado em 19 de outubro de 2016). 49 Cf. Daniel Toscani Giménez e David Calvo Morales, “El uso de internet y el correo electrónico en la empresa: límites y garantias”, Nueva revista española de derecho del trabajo, n.º 165, 2014, p. 199. 50 Cf. Maria Regina Redinha, “Utilização de novas tecnologias no local de trabalho - algumas questões”, IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2002, p. 116. 51 O artigo 22.º, n.º 1, CT expressa que “o trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio eletrónico”. Nesta matéria, há ainda que atentar na lei que protege a privacidade nas comunicações eletrónicas, aprovada pela Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, com a última alteração introduzida pela Lei n.º 46/2012, de 29 de agosto. 52 Cf. Alfredo Montoya Melgar,“Derechos del Trabajador e Informática”, Estudios jurídicos en homenaje al doctor Néstor de Buen Lozano, 2003, p. 536. In http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/3/1090/30.pdf (consultado em 29 de outubro de 2016). 47

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correio eletrónico, por qualquer uma das formas já referenciadas, e, se for esse o caso, controlar o cumprimento das regras estabelecidas sobre a proibição da utilização do correio eletrónico para fins pessoais. Questão central é o conhecimento por parte do trabalhador dessas formas de controlo: a clareza da informação de que o trabalhador apenas poderá fazer uma utilização profissional do e-mail e o conhecimento de que o empregador poderá aceder aos sistemas de comunicações são imprescindíveis condições para a legalidade do controlo.53 Seja um e-mail pessoal ou profissional, muito embora neste último caso o sistema de gestão pertença ao empregador e funcione como “domicílio profissional eletrónico do trabalhador”54, a regra é a de que este não pode avaliar o conteúdo das mensagens. A ser de outra forma, violaria o direito à privacidade e intimidade: quando o trabalhador escreve o que pensa, tal comportamento é de índole privada e a lei protege esta conduta a fim de evitar quaisquer intrusões na privacidade desta comunicação. Assim sendo, “o conteúdo das mensagens, de natureza pessoal, enviadas ou recebidas pelo trabalhador, ainda que em computador da empresa, está abrangido pelo direito de reserva e confidencialidade (…) não podendo, em consequência e sem o consentimento do trabalhador, ser utilizado para fins disciplinares, nem produzida prova, designadamente testemunhal, sobre tal conteúdo”.55 Se bem que existe uma possível via para o acesso ao conteúdo da mensagem: o consentimento do trabalhador.56 Concluindo, face ao quadro legal, não nos parece que seja permitida a leitura do conteúdo de mensagem enviada ou recebida pelo trabalhador.57 Está em causa o direito à palavra escrita, direito absoluto, que é tão só uma manifestação do direito à privacidade. Há quem defenda outras soluções como, por exemplo, a utilização de software que permita fazer pesquisas com base em determinadas palavras-chave, se bem que a presença do trabalhador e de um representante dos trabalhadores ou na sua ausência, de pelo menos, duas testemunhas, seja imprescindível.58 Vamos supor que existem fortes suspeitas da violação do dever de lealdade em que o acesso ao conteúdo de determinado e-mail é a derradeira prova, por não ser possível tirar ilações através da visualização do nome destinatário e do respetivo assunto. De facto, não é de forma leviana que se tolera esta possibilidade, mas em 53 Cf. Javier Thibault Aranda. Cf., El uso del e-mail por los trabajadores y las facultades de control del empleador, 2001, In http://www.uoc.edu/web/esp/art/uoc/0109040/thibault.html (consultado em 19 de outubro de 2016). O autor acrescenta que os critérios de seleção dos trabalhadores a controlar não deverão ser discriminatórios, mas critérios aleatórios ou assentes em razões objetivas. 54 Cf. Joel Timóteo Ramos Pereira, Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação, Quid Juris, Lisboa, 2004, p. 946. 55 Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de fevereiro de 2010 (Paula Leal de Carvalho), disponível em www.dgsi.pt; bem como vide Teresa Coelho Moreira, “Controlo do correio eletrónico dos trabalhadores: comentário ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de fevereiro de 2010”, Questões Laborais, n.º 34, Ano XVI, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 219 e ss. 56 Cf. Amadeu Guerra, “A privacidade no local de trabalho”, Direito da sociedade da informação, Separata do volume VI, Associação Portuguesa do Direito Intelectual, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 164. 57 A este propósito, Maria Regina Redinha acrescenta que “(…) as decisões jurisprudenciais proferidas em tribunais europeus e norte-americanos têm seguido orientações tendencialmente bem diversas, sendo que nos EUA e no Reino Unido é reconhecida uma maior latitude de atuação ao empregador do que na Europa continental, como sucedeu recentemente num acórdão francês que decidiu beneficiar o e-mail de proteção idêntica à da correspondência postal privada”. Cf. Maria Regina Redinha, “Utilização de novas tecnologias no local de trabalho – algumas questões”, IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2002, p. 116. 58 Cf. André Pestana Nascimento, “O impacto das novas tecnologias no direito do trabalho e a tutela dos direitos de personalidade do trabalhador”, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 79-80-81, CEJ, Lisboa, 2008, pp. 250 e 251.

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casos verdadeiramente excecionais, com a indispensável presença do trabalhador neste processo, admitimos a utilização deste tipo de programas. Mais ainda, se o trabalhador acede ao correio eletrónico profissional tendo que utilizar o endereço profissional e colocando uma password, este e-mail assemelha-se a um e-mail pessoal. Se o trabalhador acede ao e-mail através de uma password, mas sempre que falta ou está a gozar férias revela aos colegas que o vão substituir a sua password, será importante o trabalhador ter a consciência de que nesta situação o seu e-mail não é apenas seu e deverá proteger a sua privacidade e intimidade, não o utilizando para fins pessoais. Vislumbra-se ainda uma outra hipótese, bastante frequente, que se resume à possibilidade de o empregador ter apenas um endereço geral para onde todos os e-mails são enviados, não obstante dirigidos a diferentes destinatários. Nesta situação, não se coloca a questão da privacidade, já que se trata de uma estratégia empresarial perfeitamente válida. Nos casos de comunicações abertas não existe, como referido pelo Tribunal Constitucional Espanhol, uma “expetativa razoável de confidencialidade (…)”.59 Em jeito de conclusão, existem algumas situações particulares em que o correio eletrónico não é de utilização exclusiva de um único trabalhador, mas uma “plataforma” de trabalho como outra qualquer, em que a leitura indiscriminada de e-mails por superiores hierárquicos e/ou colegas, será perfeitamente lícita. Em qualquer outra situação, mesmo sabendo que nem sempre tem sido esta a orientação de alguma jurisprudência, o e-mail deverá ser protegido da mesma forma que a correspondência postal privada. 2.4 Telefone e Telemóvel Em primeiro lugar, é necessário distinguir entre o telefone/telemóvel pertencente ao empregador e o telefone/telemóvel propriedade do trabalhador. O empregador poderá, como em relação a qualquer outra TIC, estipular as regras de utilização destes equipamentos e fazer uma proibição generalizada: não aproveitar o telefone e telemóvel profissional para fazer chamadas pessoais; bem como proibir que se atendam chamadas telefónicas recebidas no telefone e no telemóvel pessoais, durante o horário de trabalho. Não obstante, aquelas proibições não serão uma estratégia astuciosa por parte do empregador, sendo, quiçá, um fator de desmotivação e um obstáculo à própria produtividade. Consideramos até utópico acreditar que o trabalhador não atenderá chamadas pessoais durante todo o tempo de trabalho. Mesmo que exista a referida proibição generalizada, há que fazer uma apreciação de cada situação, recorrendo sempre a juízos de equidade. Sempre que o trabalhador faça telefonemas pessoais dos telefones profissionais ou atenda telefonemas do seu próprio telemóvel de forma reiterada e prolongada, não temos dúvidas de que violará a boa-fé contratual, na esteira de um bonus pater familias. No que diz respeito ao controlo das chamadas, essa fiscalização nunca poderá incluir escutas, a colocação de dispositivos que as permitam, a não ser que os trabalhadores tenham dado o seu consentimento expresso, tendo em conta o disposto no diploma português que regula a proteção de dados

59 Cf. Susana Rodríguez Escanciano, “El control empresarial del correo electrónico de los trabajadores: posibilidades y límites (a propósito de la STC de 7 de octubre de 2013, rec. 2907/2011)”, Relaciones laborales, Revista crítica de teoría y práctica, n.º 10, 2014, pp. 131 e 132.

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pessoais e privacidade nas telecomunicações.60 Assim, a gravação das comunicações só será possível “no âmbito de práticas comerciais lícitas” ou então como “prova de uma transação comercial” e “desde que o titular dos dados tenha sido disso informado e dado o seu consentimento”.61 Estes requisitos são cumulativos, sem os quais a respetiva gravação será ilegítima. No que concerne ao telefone e telemóvel profissionais, questiona-se se o empregador poderá solicitar às respetivas operadoras o registo mensal de todas as chamadas telefónicas recebidas e efetuadas pelo trabalhador, com os dados da duração de cada chamada ou se poderá aceder a estes dados com a simples instalação de um chip naqueles dispositivos. Parece-nos que em ambos os casos, desde que seja uma conduta conhecida pelo traba- O e-mail deverá ser protegido lhador, não estaremos perante um comportamento intrusi- da mesma forma que vo por parte do empregador. Concluindo, sempre que o a correspondência postal trabalhador efetue um telefonema, apenas deverão ser tra- privada. tados os seguintes dados: “identificação do utilizador (sua categoria/função); número de telefone chamado; tipo de No que diz respeito ao controlo chamada – local, regional e internacional; duração da cha- das chamadas, essa fiscalização mada; custo da comunicação”62, se bem que exista jurispru- nunca poderá incluir escutas, a dência que defenda que a quantidade, a duração, bem colocação de dispositivos que as como a hora a que foram efetuados os telefonemas inte- permitam, a não ser que os gram a reserva da esfera privada do trabalhador.63 trabalhadores tenham dado o seu consentimento expresso, tendo em conta o disposto no CONCLUSÕES diploma português que regula a proteção de dados pessoais e O controlo da atividade dos trabalhadores em geral atra- privacidade nas vés das TIC poderá ofender os direitos de personalidade do telecomunicações. trabalhador, em especial o direito à privacidade e intimidade. Daí que seja imperioso encontrar uma solução de equilíbrio entre os princípios da liberdade de iniciativa e de organização empresarial e os direitos fundamentais do trabalhador. As regras sobre a utilização das TIC no local de trabalho, a realização de chamadas telefónicas, a utilização do correio eletrónico profissional e pessoal, as condições em que o trabalhador poderá aceder à Internet poderão ser estabelecidas por contrato individual de trabalho, pelos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, por um regulamento interno ou 60 Artigo 4.º n.º 2 da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, que transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas. Entretanto, já foi alterada e republicada pela Lei n.º 46/2012, de 29 de agosto. 61 Cf. artigo 4.º n.º 3 da citada Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto. 62 Cf. Amadeu Guerra, “A privacidade no local de trabalho”, Direito da sociedade da informação, Separata do volume VI, Associação Portuguesa do Direito Intelectual, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 156. 63 O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20 de dezembro de 2011 (Ferreira da Costa), refere que “a reserva da esfera privada do trabalhador abrange as conversações e mensagens emitidas e recebidas por telemóvel fornecido pelo empregador, bem como o respetivo tráfego, isto é, a sua quantidade, duração, hora a que foram efetuadas e espécie, sendo constitucionalmente proibida a obtenção de prova, nomeadamente para efeitos disciplinares, através da intromissão do empregador nas telecomunicações” (disponível em http://www.dgsi.pt/).

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por um simples documento. Todavia, o trabalhador deverá ter sempre conhecimento dos meios de controlo da sua prestação de trabalho; o controlo pelo empregador apenas deverá dizer respeito a questões laborais; e, na utilização dos meios de vigilância à distância, estes deverão ser proporcionais, necessários e adequados. Caso exista uma proibição geral da utilização do computador para fins privados, levada ao conhecimento de todos os trabalhadores, o empregador poderá aceder livremente aos computadores, se bem que a presença dos trabalhadores seja condição fundamental para a licitude do controlo. No caso de existir uma autorização expressa, as expetativas de confidencialidade impõem, ainda assim, que qualquer inspeção ao computador seja feita com o consentimento do trabalhador. No caso de não existir nem uma proibição generalizada, nem uma autorização expressa, o conceito da boa-fé leva-nos a concluir que uma utilização descomedida não poderá gerar uma expetativa de confidencialidade. O correio eletrónico é uma ferramenta de trabalho dotada de características peculiares em relação às outras, uma vez que a entidade empregadora não dispõe de um acesso ilimitado. Face ao quadro legal vigente, não nos parece que seja permitida a leitura do conteúdo da mensagem enviada ou recebida pelo trabalhador: está em causa o direito à palavra escrita, direito absoluto, que é tão-só uma manifestação do direito à privacidade. Em conclusão, o e-mail deverá ser protegido da mesma forma que a correspondência postal privada. Mesmo que não sejam estipuladas normas sobre a utilização das TIC, sempre que o trabalhador utilize a Internet, faça telefonemas pessoais dos telefones profissionais ou atenda telefonemas do seu próprio telemóvel de forma reiterada e prolongada no local e tempo de trabalho violará a boa-fé contratual, na esteira de um bonus pater familias. Todavia, o empregador não poderá inspecionar as páginas visitadas pelo trabalhador; de igual modo, no que diz respeito ao controlo das chamadas, a fiscalização nunca poderá incluir escutas, a colocação de dispositivos que as permitam, a não ser que os trabalhadores tenham dado o seu consentimento expresso e apenas em determinadas situações tipificadas na lei. Artigo escrito segundo o novo acordo ortográfico

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Ao longo do tempo, muitos trabalhos têm vindo a ser desenvolvidos no âmbito das mais diversas áreas de estudo associadas à solicitadoria e à ação executiva. Assim sendo, pretendendo-se conservar esses contributos intelectuais e ambicionando-se que também as gerações vindouras venham a conhecê-los, considerou-se que a melhor alternativa para alcançar tais objetivos seria compilar os mesmos numa edição anual.

ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO Rua Artilharia 1, n.º 63 1250-038 Lisboa Telefone 213 894 200 Fax 213 534 870 E-mail: geral@osae.pt www.osae.pt


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