EDIÇÃO N.º 27 \ QUADRIMESTRAL \ OUTUBRO 2019 – JANEIRO 2020 \ €2,50
À CONVERSA COM
JOSÉ SORETO DE BARROS
Presidente da Comissão Nacional de Eleições REPORTAGEM
DEPARTAMENTO DE ARMAS E EXPLOSIVOS DA PSP
ENTREVISTA COM
JOÃO PEDRO MATOS FERNANDES Ministro do Ambiente e da Ação Climática
FICHA TÉCNICA
Sollicitare
ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO
Diretor José Carlos Resende Editor Rui Miguel Simão Redatores principais André Silva, Andreia Amaral, Joana Gonçalves Colaboram nesta edição: Alexandra Cidades, Armando Oliveira, Carla Oliveira, Diana Andrade, Francisco Serra Loureiro, José Manuel Pedreirinho, Luís Pica, Miguel Ângelo Costa, Nuno de Oliveira Fernandes, Sérgio Fernandes e Susana Antas Videira Conselho Geral Tel. 213 894 200 · Fax 213 534 870 geral@osae.pt Conselho Regional do Porto Tel. 222 074 700 · Fax 222 054 140 c.r.porto@osae.pt Conselho Regional de Coimbra Tel. 239 070 690/1 c.r.coimbra@osae.pt Conselho Regional de Lisboa Tel. 213 800 030 · Fax 213 534 834 c.r.lisboa@osae.pt Design: Atelier Gráficos à Lapa www.graficosalapa.pt Impressão: Lidergraf, Artes Gráficas, SA Rua do Galhano, n.º 15 4480-089 Vila do Conde Tiragem: 6 500 Exemplares Periodicidade: Quadrimestral ISSN 1646-7914 Depósito legal 262853/07 Registo na ERC com o n.º 126585 Sede da Redação e do Editor Rua Artilharia 1, n.º 63, 1250 - 038 Lisboa N.º de Contribuinte do proprietário 500 963 126 Propriedade: Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução Rua Artilharia 1, n.º 63 1250-038 Lisboa – Portugal Tel. 213 894 200 · Fax 213 534 870 geral@osae.pt www.osae.pt Os artigos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Os conteúdos publicitários são da exclusiva responsabilidade dos respetivos anunciantes.
EDIÇÃO N.º 27 \ OUTUBRO 2019 – JANEIRO 2020
REVISTA DA ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO
BASTONÁRIO José Carlos Resende ASSEMBLEIA GERAL PRESIDENTE: Armando Oliveira (Lisboa) 1º SECRETÁRIO: Paulo Branco (Braga) 2ª SECRETÁRIA: Ana Filipa da Silva (Seixal) CONSELHO GERAL PRESIDENTE: José Carlos Resende (Viana do Castelo) 1º VICE-PRESIDENTE: Paulo Teixeira (Matosinhos) 2º VICE-PRESIDENTE: Armando A. Oliveira (Braga) 3ª VICE-PRESIDENTE: Edite Gaspar (Lisboa) 1º SECRETÁRIO: Rui Miguel Simão (Lisboa) 2ª SECRETÁRIA: Rute Baptista Pato (Benavente) TESOUREIRA: Vanda Santos Nunes (Barreiro) VOGAIS: João Coutinho (Figueira da Foz), Carla Franco Pereira (Évora) Ana Paula Gomes da Costa (Sintra), Maria José Almeida Ricardo (Lisboa) Francisco Serra Loureiro (Figueira da Foz) CONSELHO SUPERIOR PRESIDENTE: Carlos de Matos (Lisboa) VICE-PRESIDENTE: Mário Couto (Vila Nova de Gaia) SECRETÁRIA: Maria dos Anjos Fernandes (Leiria) VOGAIS: Otília Ferreira (Lamego), José Guilherme Pinto (Maia), Neusa Silva (Viseu) Valter Jorge Rodrigues (Moita), Margarida Carvalho (Lisboa), Alberto Braz (Coimbra) Susana Pinto (Felgueiras), Ana de Sousa Matos (Paços de Ferreira) CONSELHO FISCAL PRESIDENTE: Miguel Ângelo Costa (Barcelos) SECRETÁRIO: João Francisco Lameiro Pinto (Sesimbra) VOGAL: Mazars & Associados, Sroc, S.A. CONSELHO PROFISSIONAL DO COLÉGIO DOS SOLICITADORES PRESIDENTE: Júlio Santos (Silves) VICE-PRESIDENTE: Fernando Rodrigues (Matosinhos) VOGAIS: Marco Antunes (Vagos), Lénia Conde S. Alves (Leiria), Christian Pedrosa (Almada) CONSELHO PROFISSIONAL DO COLÉGIO DOS AGENTES DE EXECUÇÃO PRESIDENTE: Jacinto Neto (Loures) VICE-PRESIDENTE: Mara Fernandes (Lisboa) VOGAIS: Marco Santos (Trofa), Susana Rocha (Matosinhos) Nelson Santos (Marinha Grande) CONSELHO REGIONAL DO PORTO PRESIDENTE: Duarte Pinto (Porto) SECRETÁRIA: Alexandra Ferreira (Porto) VOGAIS: Elizabete Pinto (Porto), Nuno Manuel de Almeida Ribeiro (Santa Maria da Feira) Delfim Costa (Barcelos) CONSELHO REGIONAL DE COIMBRA PRESIDENTE: Anabela Veloso (Santa Comba Dão) SECRETÁRIO: Leandro Siopa (Pombal) VOGAIS: Edna Nabais (Castelo Branco), Amílcar dos Santos Cunha (Cantanhede) Graça Isabel Carreira (Alcobaça) CONSELHO REGIONAL DE LISBOA PRESIDENTE: João Aleixo Cândido (Seixal) SECRETÁRIO: António Correia Novo (Portalegre) VOGAIS: Natércia Reigada (Lagos), Maria José Santos (Silves) Carlos Botelho (Almada) Estatuto editorial disponível em: http://osae.pt/pt/pag/osae/estatutos-editoriais/1/1/1/361
Os artigos e entrevistas remetidos para a redação da Sollicitare serão geridos e publicados consoante as temáticas abordadas em cada edição e o espaço disponível.
EDITORIAL
A
nossa revista dá capa ao Senhor Ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes. Independentemente das opções políticas, é indiscutível que as questões ambientais estão na ordem do dia, conforme realça. Destaco os problemas da carbonização e da exploração do lítio, com tantas implicações jurídicas e contratuais, e a necessidade de aprofundar seriamente estas temáticas. Nesta entrevista, o Ministro reconheceu o esforço da Ordem e dos Solicitadores na criação do curso ‘Técnico de Cadastro Predial’, que fez com que estes assumissem uma grande responsabilidade na construção do cadastro que o país tanto precisa. O GeoPredial foi a forma de iniciarmos a construção de um outro pequeno grande instrumento que, estamos convictos, irá contribuir para melhorar a Justiça. Referimo-nos aos Autos de Constatação ou à verificação não judicial qualificada – prevista no art.º 494.º do CPC – que se destina a evitar a inspeção judicial , a perda de tempo do julgador e as despesas acrescidas. Por essa razão, a OSAE e o seu IFBM promoveram uma importante conferência internacional sobre este tema. Sob a égide de Françoise Andrieux, membro do conselho científico do IFBM, reuniram na nossa sede vários especialistas internacionais que nos deram conta da realidade dos seus países, nesse âmbito. Aliás, nos últimos Fóruns, este tem sido um dos temas que mais mobilizou os nossos associados. Quanto às restantes entrevistas que marcam este número, realçamos a de José Soreto de Barros, presidente da Comissão Nacional de Eleições, órgão superior da administração eleitoral, com quem tivemos o prazer de privar quando exerceu funções de Diretor-Geral da Administração da Justiça. No rescaldo das recentes eleições legislativas, o Juiz Conselheiro recorda-nos que o bem-estar pessoal e social não é atingível em egocentrismo e que a abstenção radica em deficiente consciência cívica. Também não poderia deixar de destacar a entrevista concedida pela Professora Maria João Machado, Coordenadora da Licenciatura em Solicitadoria da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico do Porto, que nos falou do trabalho que esta instituição tem desempenhado e que em muito valoriza a nossa área. Num outro âmbito, igualmente importante, tenho ainda a realçar a entrevista ao Solicitador José da Mota Ferreira, que tão bem recebeu a nossa equipa para contar histórias dos seus 45 anos de profissão e que foi justamente homenageado no Encontro Concelhio de Oliveira de Azeméis.
José Carlos Resende Bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
Neste número 27 da Sollicitare damos seguimento ao ‘especial religião’, rubrica criada na passada edição, que pretende ir revelando os credos com maior representatividade no nosso país. Depois da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, agora foi a vez de conhecermos a Comunidade Islâmica de Lisboa. Guiados pelo Sheik David Munir, Imã da Mesquita Central de Lisboa, ficámos com novas perspetivas do Islão em Portugal e profundamente impressionados com o desenvolvimento desta comunidade e a imponência da sua mesquita. O conhecimento das diversas religiões e das suas perspetivas em termos de direito de família revela-se especialmente interessante. Sobre a vida da nossa Ordem, merece especial realce o protocolo assinado entre a OSAE e a Associação Portuguesa dos Profissionais do Sector Funerário (APPSF). Entrevistámos, nesse âmbito, Paulo Teixeira, Vice-Presidente da OSAE, e Paulo Moniz Carreira, Presidente da APPSF, dois dos principais responsáveis pelo sucesso deste acordo que visa prevenir e impedir a procuradoria ilícita. Os Fóruns de Solicitadores e Agentes de Execução, agora num novo formato, passaram por Lisboa e pelos Açores. Continuamos a mover-nos por uma cada vez melhor descentralização, aliada à partilha de conhecimentos e de convívio entre colegas. Porque a nossa revista olha para a Justiça e para o país, neste número embarcamos também no tema da homossexualidade e contamos com o depoimento de Joana Cadete Pires, Vice-Presidente da Associação ILGA Portugal. Partimos, ainda, à descoberta das operações do Departamento de Armas e Explosivos da Polícia de Segurança Pública. O meu agradecimento ao Superintendente Pedro Moura. Estas são duas reportagens a ler com atenção. Que a vigésima sétima revista Sollicitare constitua um instrumento de formação e de cultura. Estes são os nossos votos. : :
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JOÃO PEDRO MATOS FERNANDES
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Ministro do Ambiente e da Ação Climática Entrevista
DIREITO AO AMOR
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JOSÉ SORETO DE SANTOS
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Reportagem
Presidente da Comissão Nacional de Eleições Entrevista
LICENÇA PARA DISPARAR
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Reportagem
Fotografia capa: Cláudia Teixeira
EDITORIAL
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PROFISSÃO IFBM lança plataforma na internet 22 Auto de Constatação em Portugal – Um imperativo de certeza e segurança 22 Propriedade intelectual / Propriedade industrial A intervenção do Solicitador 67 Tecnologia 68 Solicitadores Ilustres Aníbal Carvalho de Araújo 72 ENTREVISTA José da Mota Ferreira
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Improbus Omnia Vincit Labor Improbus Omnia Vincit
PAULO TEIXEIRA, Vice-Presidente da OSAE PAULO MONIZ CARREIRA, Presidente da APPSF
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ISLÃO
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Entrevista
De olhos postos em Alá Reportagem
MARIA JOÃO MACHADO
Coordenadora da Licenciatura em Solicitadoria da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do P. Porto
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Ensino Superior
EDUARDO MADEIRA
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Humorista Entrevista
OSAE Edição de Lisboa do IV Fórum de Solicitadores e Agentes de Execução estreou novo formato Angra do Heroísmo acolheu IV Fórum de Solicitadores e Agentes de Execução | Açores Conferência "A Constatação como meio de prova" reúne mais de cem pessoas na sede da OSAE ORDENS Profissão: Arquitecto
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SOCIEDADE A insolvência e as criptomoedas. Parte II Inteligência Artificial: Parceria na construção da sociedade do futuro?
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O IFBM EXPLICA... A proteção do consumidor nas compras à distância e nas compras efetuadas fora do estabelecimento comercial 66
SUGESTÕES Teses / Resumos 70 Leituras 83 ROTEIRO GASTRONÓMICO Restaurante "Veet - Sushi Bar & Tapas" Restaurante "Casa do Polvo"
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VIAGENS Beja. Nos braços da tradição Dubrovnik. Um tesouro no Adriático
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ENTREVISTA
“Pensam mal aqueles que acham que Portugal deve estar na média”
JOÃO PEDRO MATOS FERNANDES MI N I STRO DO AMBIENT E E DA AÇ ÃO C LIM ÁT IC A
Nasceu em Águeda há 52 anos e cedo percebeu que queria trilhar o território nacional. Por terra, por mar… João Pedro Soeiro de Matos Fernandes conhece bem os contornos de Portugal e tomou como sua a missão de traçar-lhe um futuro mais risonho e muito mais sustentável. São também assim os seus dias. Aos ombros carrega a responsabilidade de emendar os danos do passado e de contribuir ativamente para a preservação e desenvolvimento do país… e do planeta. Nos olhos tem os sorrisos de todos os que com ele conversam. Senhor de um sentido de humor acutilante, bem-disposto por natureza e munido de uma enorme simpatia, o Ministro do Ambiente e, agora também, da Ação Climática, é um comunicador nato e um homem do conhecimento. Fez carreira no mundo dos transportes e esteve ligado aos destinos dos portos nacionais e das Águas do Porto, assessorou e geriu portos em Moçambique e prestou consultoria empresarial. A política surgiu por acaso e é, para si, mais um desafio profissional que pretende superar com distinção. No início do seu segundo mandato como Ministro, fomos conhecer Matos Fernandes. Entrevista Andreia Amaral / Fotografia Cláudia Teixeira
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ENTREVISTA COM JOÃO PEDRO MATOS FERNANDES
Licenciou-se em Engenharia Civil com opção de planeamento territorial e tirou depois um mestrado em Transportes. Foi uma escolha motivada pela lógica ou pela paixão? Eu licenciei-me em Engenharia Civil, mas fiz logo a opção de planeamento territorial. Os transportes eram já um tema na própria faculdade e quando comecei a trabalhar, no meu primeiro emprego, na Comissão de Coordenação da Região Norte, rapidamente me entregaram a responsabilidade de ser o coordenador da área dos transportes. Por isso, foi com toda a naturalidade, obviamente correspondente também a um desejo pessoal e profissional meu, que tirei o mestrado em Transportes e me especializei nessa área.
Leixões, da Administração do Porto de Viana do Castelo e da Associação dos Portos Portugueses. Considera que o mar é um recurso devidamente valorizado no nosso país? Acho que o mar é cada vez mais valorizado, não só na ação política, como nas preocupações do conjunto dos cidadãos, até pela gravidade que tem a acidificação dos oceanos e, em simultâneo, por nós percebermos o papel fundamental que os oceanos têm como estabilizador climático num mundo em mudança. A minha experiência foi uma experiência sobretudo ligada à gestão portuária e foi de facto uma experiência muito rica porque, se calhar ao contrário daquilo que muitos portugueses pensam, Portugal tem excelentes portos.
No seu percurso profissional, que experiência o marcou mais e de que forma o mudou e à sua forma de estar? Tive várias experiências profissionais de que muito gostei. Gostei muito de ser Presidente do Porto de Leixões, gostei imenso de ser Presidente das Águas do Porto e gostei muito de trabalhar em consultoria. Mas a experiência que mais me marcou foi muito motivada pelo seguinte: aquilo que é mais difícil gerir são sempre pessoas e, no gerir das pessoas, o maior desafio é mesmo o gerir da comunicação. Por isso, ter trabalhado em Moçambique foi a experiência que mais me marcou, porque os códigos de comunicação, mesmo falando a mesma língua, são mesmo muito diferentes entre Portugal e Moçambique. Aí aprendi que, de facto, as nossas palavras não valem o que dizem, valem o que as outras pessoas ouvem. E eu aprendi isso sobretudo em Moçambique.
Há um quase alarmismo com as alterações climáticas, que o mundo e o país estão a afundar-se. Concorda com esta ideia? É uma verdade, inequívoca, que o nível médio das águas do mar está a subir. E, ao subir, vai de facto levando algumas terras. Em Portugal, nos últimos anos, perderam-se 13 Km² no nosso litoral. Temos que perceber que os ecossistemas litorais são ecossistemas muito ricos, que devem ser preservados e que só podem ser preservados se mantiverem as condições naturais da própria costa. Foi isso que levou a que nós tenhamos abandonado a construção de estruturas artificiais na costa e a que começássemos a promover, o mais possível, o enchimento de dunas, o enchimento de praias e a colocar no litoral aquilo que é comum aí existir, que são exatamente areia nas praias e dunas robustas.
Não falou da sua experiência enquanto ministro… Também na minha experiência como ministro considero que o mais relevante são as pessoas. No entanto, aqui, mais importante do que gerir uma equipa, é ser capaz de falar para um público muito mais alargado, que é o conjunto dos cidadãos. Neste âmbito, é sempre mais difícil afinar a comunicação, até porque na média nunca está ninguém. A ideia de que nós podemos fazer uma distribuição dos interesses das pessoas e tentar falar para a média, encontrando o maior número de ouvintes, é um erro. Por isso, aí, a experiência da comunicação é mesmo uma experiência que tem um outro nível e que eu, confesso, ainda não sei avaliar. Enquanto ministro, sente-se mais político ou mais técnico? Eu encaro sempre os desafios de trabalho – e este é um trabalho – como desafios profissionais. O advérbio de modo que mais verbero é o advérbio ‘politicamente’… Não gosto mesmo do advérbio ‘politicamente’! Portanto, sim, aquilo que eu faço é política, tanto ao nível das decisões que tomo, como da avaliação popular a que sujeito essas mesmas decisões, mas, para mim, este é um desafio essencialmente profissional. Teve todo um percurso ligado ao mar: entre outros cargos, foi Presidente da Administração dos Portos do Douro e
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Que balanço faz do seu primeiro mandato como Ministro do Ambiente? Eu confesso fazer um balanço positivo, no sentido em que ajudámos a colocar o ambiente no centro da agenda política. Foi durante este período que Portugal, tendo sido pioneiro, assumiu o compromisso para sermos um país neutro em carbono em 2050. E fomos o primeiro país do mundo a fazê-lo. Foi também nestes quatro anos que introduzimos, de facto, um conjunto de temas que são estruturantes para o país, como sejam o da valorização do território e o da economia circular. Ao mesmo tempo, criámos a base fundamental, que nos deu realmente um músculo financeiro muito importante para fazermos muitas das coisas que estão a ser feitas, mormente, para adaptar o país às alterações climáticas. O ambiente e as alterações climáticas são questões muito queridas às gerações mais novas. Se falasse para uma plateia jovem, qual diria ser o grande contributo que deixou aos portugueses neste mandato? O meu contributo foi ter criado condições para que Portugal seja um país cada vez mais descarbonizado, isto é, para que Portugal seja um país onde, por exemplo, muito em breve, vão deixar de se utilizar combustíveis fósseis para produ-
Para que de facto se possa valorizar o capital natural, temos que aumentar o rendimento associado a esses mesmos territórios. zir eletricidade, com os ganhos que daí resultam ao nível da redução das emissões. E, falando para uma plateia mais jovem, aquilo que eu faria era sobretudo um apelo. Cada vez mais, falar de ambiente significa, obviamente falar de novos hábitos de produção, mas, acima de tudo, falar de novos hábitos de consumo e de novos hábitos de mobilidade. Fizemos um grande esforço nesse sentido. A criação da lei da TVDE [ndr.: transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica], a facilitação da entrada em Portugal de um conjunto de modos de transporte alternativos e suaves, bem como aquilo que fizemos ao nível da regulamentação da mobilidade partilhada, são tudo atividades muito a pensar nos mais jovens, porque penso que, para cumprirmos os nossos desígnios de descarbonização, tem que haver uma mudança de comportamento. A este nível, não posso deixar de acrescentar aqui o contributo da Estratégia Nacional para a Educação Ambiental, que tem promovido um número vasto de investimentos em educação ambiental pelo país. E o que é que não conseguiu fazer e pretende concretizar agora? Há imensas coisas que ficaram por fazer. Acho que as questões da valorização do território e do reconhecimento e do aproveitamento verdadeiro do capital natural que nós temos são mesmo as que pretendo valorizar neste meu segundo mandato. O território é marcado por redes e pelo seu próprio capital natural. No que diz respeito às redes – estou a falar das redes de mobilidade e das redes de energia – já cumprimos um
papel, que obviamente tem de ser continuado e reforçado, mas que decididamente começou e não volta para trás. No que diz respeito à valorização do capital natural do território, há aqui um longo trabalho a ser feito e essa será certamente a aposta complementar neste segundo mandato. O RNC 2050 visa uma sociedade portuguesa neutra em carbono no ano 2050. Acredita realmente que Portugal vai concretizar esta ambiciosa meta? Acredito firmemente que Portugal vai cumprir essa meta. E acredito por um conjunto de razões. Primeiro, pela necessidade. Segundo porque, e o nosso roteiro demonstra-o, ser neutro em carbono em 2050, ainda que implique mudar de hábitos, é um projeto que cria emprego e que desenvolve a nossa economia. E também – não é nada irrelevante – porque, à escala do mundo, nós ainda assim partimos numa posição de alguma vantagem, uma vez que começámos mais cedo. Somos líderes nesta transição e é muito importante, seja para o nosso bom nome em face do mundo, seja para o próprio desenvolvimento do país, que mantenhamos essa liderança. Pensam mal aqueles que acham que Portugal deve estar na média. Não. Estar à frente é bom. Quais as três medidas que considera serem mais relevantes para atingir esta meta da neutralidade carbónica? Em primeiro lugar, consolidar aquilo que é um projeto muito importante de transição justa, que é o PART – Programa de Apoio à Redução Tarifária nos Transportes Públicos, que eu sinto ser da maior relevância para a descarbonização no setor dos transportes e para em situação alguma as pes-
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soas optarem por razões de preço pelo seu transporte individual. Acho que esse é de facto um projeto muito importante. Um segundo projeto importante a concretizar, também já iniciado, é o Programa de Remuneração dos Serviços dos Ecossistemas. Para que de facto se possa valorizar o capital natural, temos que aumentar o rendimento associado a esses mesmos territórios. Esses territórios naturais providenciam um conjunto de bens que talvez nós não saibamos tocar-lhes, mas a qualidade do ar, a qualidade do solo, a qualidade da água… eles têm mesmo que ser remunerados como incentivo a que nenhum território, mesmo que seja de baixa densidade, em algum momento seja um território abandonado. Uma terceira dimensão está muito associada ao consumo, à produção e à economia circular. É de facto uma matéria em que já começámos a trabalhar, mas nós temos que perceber que, para termos no futuro o bem-estar que hoje temos, vamos deixar de ser donos de muitos dos bens que nos dão conforto. Isto não quer dizer que não possamos continuar a desfrutar desses mesmos bens, mas sem sermos proprietários deles. A prospeção e exploração do lítio têm provocado um debate profundo. Que importância pode ter este recurso para a economia e para a sociedade portuguesa? Em primeiro lugar, e sem pensar em Portugal, o lítio é absolutamente fundamental para a descarbonização do conjunto das sociedades. O lítio é um metal que está na génese da construção da maior parte das baterias que são utilizadas para a digitalização, nos telemóveis e computadores, e para o armazenamento de eletricidade que tenha como origem fontes renováveis. E sobre isso não há dúvida. As baterias que se fazem mundo fora são a lítio. Paralelamente, os estudos que temos dizem-nos que Portugal pode ser um dos maiores produtores de lítio à escala mundial. É óbvio que, a partir do momento que Portugal tem um recurso crítico, e não é nada normal a Europa ter estes recursos – a Europa só tem nove por cento dos recursos críticos para a sua economia –, ele, respeitando todas as normas ambientais, pode e deve ser explorado, mas não num projeto mineiro. Pode e deve ser explorado num projeto em que, a partir da existência desse metal, nós possamos construir toda uma fileira industrial que vá desde a extração do lítio, que essa sim é atividade mineira, até à produção de baterias, com todas as fases intermédias de refinação que o lítio pode ter. Como se garantem o cumprimento de todas as normas ambientais e a própria reposição dos solos? Temos que distinguir claramente um antes e um depois, que ainda não começou. Até há relativamente pouco tempo, as licenças eram atribuídas a solicitação das empresas, licenças essas que começam por ser uma licença para prospetar. Depois, e uma vez encontrado o lítio em quantidade e concentração que as empresas considerem interessante para uma exploração comercial, é então celebrado um contrato para a exploração propriamente dita, mas esse contrato
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O lítio é absolutamente fundamental para a descarbonização do conjunto das sociedades. nunca será válido sem haver uma avaliação de impacto ambiental. Ou seja, não irá existir nenhuma exploração de lítio em Portugal, mesmo desta primeira geração, sem pré-existir uma avaliação de impacto ambiental. Mas depois temos uma segunda fase. A partir do momento em que existe uma forte expetativa, confirmada por estudos de especialistas, de que existe um conjunto vasto de sítios em Portugal onde há um grande potencial de existência de lítio, o LNEG – Laboratório Nacional de Engenharia e Geologia definiu 12 locais no país. Desses 12 locais, três estavam dentro de áreas protegidas e foram excluídos. Depois, dos nove sobrantes, existe um, Serra d’Arga, em que uma parte expressiva, cerca de 30 a 40 por cento da área, é num sítio da Rede Natura 2000, que é no coração da Serra d’Arga propriamente dita. Não se acabou com esse local, mas toda a parte da Rede Natura 2000 foi excluída. Ficamos então com nove lotes, oito mais ou menos com a sua configuração inicial, um deles bastante reduzido, que é o da Serra d’ Arga. Para esses nove, o Estado vai fazer um concurso para a prospeção, sendo que aqui vai ser ainda mais exigente do que no passado. Há uma regra que se mantém: só há exploração se houver uma avaliação de impacto ambiental. Mas mesmo em sede de prospeção, as regras vão ser regras em que, a par e passo, a cada ano, tudo aquilo que forem as alterações à paisagem necessárias para poder fazer essa prospeção têm mesmo que ser corrigidas e ser repostas. Em paralelo, o que desejamos, e vamos até obriga-lo, é que quem concorrer à prospeção tem que trazer associado um projeto industrial para a transformação do próprio lítio. E que entidades independentes poderão assegurar a correção neste processo? São as entidades ambientais que hoje existem em Portugal, que agem de acordo com a lei, e que terão que ser necessariamente robustecidas para fazerem uma fiscalização mais próxima. Temos de perceber que, muitas vezes, falando-se de proje-
ENTREVISTA COM JOÃO PEDRO MATOS FERNANDES
tos, se diz que há um confronto entre questões ambientais e questões económicas. Neste caso em concreto, nós estamos a ponderar entre duas questões ambientais. Esta ação do lítio tem uma vantagem global. Mas, depois, existe cada local em concreto onde o lítio vai ser prospetado e, mais tarde, poderá vir a ser explorado. E, inevitavelmente, uma mina de lítio provoca impactos. É uma pedreira igual a imensas que existem em Portugal. Não tem mesmo nada diferente de uma pedreira de feldspato e há mais de 50 a funcionar no país e toda a gente as considera normais. Mas, nos sítios em que os interesses ambientais locais, de destruição da paisagem da biodiversidade, etc., forem mais relevantes do que interesse nacional global da exploração do próprio lítio, claramente não haverá exploração de lítio ou ela será muito condicionada. Quais considera serem os grandes obstáculos à construção e implementação de uma política do território assertiva e efetiva? Um deles é o conhecimento do próprio território, nomeadamente da sua estrutura fundiária e do seu cadastro. Para podermos transformar o território, temos que o conhecer. O segundo é aquilo que é o despovoamento de uma área vasta do nosso país, percebendo nós que a tendência demográfica muito dificilmente, para não dizer mesmo de forma impossível, vai regredir e vai fazer com que esses territórios venham a ter mais gente. E essas são, de facto, duas dificuldades nucleares naquele que é o desenvolvimento do território como um todo. Neste mandato, o Ministério do Ambiente vai englobar a pasta das florestas. Qual a importância de ganhar esta área? Quando nós falamos em alterações climáticas, associamo-las essencialmente a três verbos: mitigar, que significa reduzir emissões; adaptar, ou seja, perceber que as alterações climáticas já cá estão, as suas consequências já se fazem sentir, e temos que ser nós a adaptarmo-nos ao território que temos e não o contrário; e, por fim, sequestrar, isto é, sermos capazes de absorver o CO₂ e os gases carbónicos que nós próprios emitimos. E o grande sumidouro de carbono em Portugal é a floresta. Por isso, é absolutamente fundamental a inclusão desta pasta. E é com muito orgulho que me sinto como ministro de um ministério em que este conjunto de três verbos está em primeira linha sob a minha tutela política direta. Em que ponto está o cadastro? Nós sabemos que há problemas sérios no conhecimento do cadastro, sobretudo a norte do Rio Tejo. Temos uma expetativa muito grande com aqueles que já hoje são os resultados do cadastro simplificado, sabendo que o que conseguimos neste último ano e meio foi muito relevante e que, nos próximos quatro, cinco anos, terá que ser muito motivador. Mas o que justifica a falta de registo das propriedades rústicas quando existe regulamentação e tecnologia de ponta ao dispor? É o facto de ser um problema histórico?
Essa tecnologia de ponta começa agora a ser aplicada. E, sim, há uma questão histórica. De desnecessidade de conhecimento e de registo das propriedades quando elas eram ocupadas, porque cada um sabia bem o que era seu. De, numa fase seguinte, não ser importante saber de quem eram esses mesmos terrenos, porque passaram a perder o valor económico que tiveram nesse primeiro momento de ausência de registo de que falei. Por isso, há aqui muito de histórico naquilo que tanto foi o não registo, como, depois, a falta de necessidade de registo porque pareciam pouco relevantes e pouco interessantes os rendimentos que se poderiam obter a partir desses mesmos territórios. Que contributo podem os Solicitadores dar a Portugal a este nível? Os Solicitadores têm aqui um papel muito importante, até porque, ainda que muito de mote próprio, e saúdo a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução por isso, eles construíram formações próprias para Técnicos de Cadastro que são obviamente da maior importância. E foi isso que foi reconhecido por este mesmo ministério e pela Direção-Geral do Território ao atribuir-lhes um estatuto particular e, consequentemente, uma responsabilidade na construção do cadastro de que o país precisa. Os Solicitadores são também um parceiro importante no plano ambiental? Todo o cidadão, e todo o profissional, tem um papel importante como parceiro ambiental. Sem conhecer aquilo que é o funcionamento da própria Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e não sabendo se já o fazem ou não, acho que só fica bem à Ordem, pela relevância pública que tem, olhar para os seus edifícios, saber se são energeticamente neutros, procurar fontes de energia alternativas, ser eficiente do ponto de vista hídrico, ter planos para reduzir o papel, ter projetos de compras que sejam ecológicas, etc. Entidades como esta, que têm um vasto número de membros e presentes em todo o país, se definirem para elas próprias estes objetivos, vão criar uma classe mais consciente e, sobretudo, um conjunto de cidadãos mais conscientes e mais ativos em prol da defesa da sustentabilidade. Por outro lado, ao mesmo tempo que os Solicitadores têm um número relevante de profissionais em Portugal, chegam ainda a um número maior de pessoas. Na relação cada vez mais profunda que os Solicitadores vão ter com o território e, consequentemente com as pessoas e com as empresas – mais que não seja em sede da própria estruturação do cadastro –, não tenho dúvidas da relevância que eles podem ter como participantes num processo coletivo, e que tem que passar por todo o país, no que diz respeito a formar para melhores práticas ambientais. Acho que isso pode começar de facto por um compromisso da própria Ordem enquanto instituição, que se pode tentar estender àquilo que é o comum dos diversos escritórios que os Solicitadores têm. : :
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REPORTAGEM
ATÉ 1982, ERA CONSIDERADO UM CRIME SEGUNDO O CÓDIGO PENAL. DEPOIS, ATÉ 1990, UMA DOENÇA. EM 2004, PASSA A CONSTAR NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. “ATRAÇÃO ROMÂNTICA OU INTERESSE SEXUAL POR PESSOAS DO MESMO SEXO.” ASSIM SE DEFINE EM PALAVRAS. MAS SERÁ AINDA PRECISO EXPLICAR O QUE É A HOMOSSEXUALIDADE? DE ACORDO COM JOANA CADETE PIRES, VICE-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO ILGA PORTUGAL (INTERVENÇÃO LÉSBICA, GAY, BISSEXUAL, TRANS E INTERSEXO), NEM POR ISSO. “EU ACHO QUE EXPLICAR TALVEZ JÁ NÃO SEJA NECESSÁRIO. AGORA, DE UMA COISA ESTOU CERTA: AINDA HÁ PELA FRENTE MUITO TRABALHO DE DESCONSTRUÇÃO POR FAZER JUNTO DA SOCIEDADE. ISSO É FUNDAMENTAL.” Texto André Silva / Fotografia Cláudia Teixeira
direito assista ao vídeo em www.osae.pt
ao amor Sollicitare 11
T Tiago, 29 anos, homossexual. “Para ser sincero, não consigo identificar um momento único e que possa apontar como tendo sido aquele em que me apercebi de ser homossexual. Desde pequeno que sempre soube que era diferente. Não era como nos filmes, em que todos pensamos que somos a personagem principal e em que tudo gira à nossa volta. Era, sim, uma imagem social que me era imposta para o meu futuro e que eu não imaginava na minha cabeça.” Rita, 30 anos, homossexual. “Durante a adolescência, apaixonei-me por uma pessoa e fui correspondida, por acaso era uma rapariga. É um processo de aceitação para todos.” Diana, 29 anos, homossexual. “Até para mim não é fácil entender como e por que se é homossexual, trata-se de um processo de compreensão e aceitação. Não é de um dia para o outro que se decide ou se percebe.”
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al como no amor, também aqui esqueçamos as regras e comecemos, então, pelo fim. Comecemos pelo que ainda falta fazer numa sociedade que, por vezes, não se sabe se já terá saído do armário. “Temos de trabalhar numa efetiva mudança da mentalidade da nossa sociedade. Essa é a grande luta que temos para o futuro. Queremos que as pessoas queiram usufruir dos direitos que lhes estão garantidos por lei. Queremos que as pessoas não tenham medo de casar, seja na conservatória de Lisboa ou noutra qualquer. Queremos que as pessoas não sejam discriminadas no acesso à adoção. Queremos, no fundo, que as pessoas construam o seu projeto de vida sem se sentirem discriminadas”, explica a representante da ILGA Portugal. Rita acrescenta: “Neste momento é imperativo que a lei acompanhe as necessidades de todos.” A mudança de mentalidades não é legislável, nem passível de imposição. Acontece, simplesmente, e, embora permeável ao efeito das mudanças legislativas, também acaba por estar nas entrelinhas da lei escrita pela história dos dias. É um caminho. Longo e que se percorre de mãos dadas, lado a lado. “Muitas vezes perguntam-nos o que é que deve vir primeiro: a lei ou a mudança de mentalidade. O que a ILGA Portugal tem defendido é que a mudança legislativa representa um impulso muito importante na mudança de mentalidade. É o próprio Estado a dizer que não se pode discriminar”, reforça Joana Cadete Pires. Tiago olha para Portugal do lado de lá da fronteira, através da janela que se abre para os que, vivendo fora, continuam a sentir este país como o seu. “Em Portugal, primeiro construímos as leis e, depois, promovemos a consciencialização da população. Na Alemanha, primeiro veio a consciencialização da população, sente-se que a homossexualidade é aceite e é vista como algo mais natural e simples. No entanto, só em 2017 é que aprovaram o casamento por pessoas do mesmo sexo! Qual dos caminhos é o correto? Não sei responder. O importante é que se chegue ao mesmo resultado, não interessa o caminho.” Neste caminho, cada passo representa uma conquista. Em 2003, com leis antidiscriminatórias no Código de Trabalho. Em 2007, com a criminalização da homofobia. Em 2010, com a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. E assim se avança, na certeza de não haver uma meta estanque. Por isso importa garantir que não há retrocessos. “As leis estão a ser cumpridas. Salvo raras exceções, não temos conhecimento de que a lei não esteja a ser cumprida. Em relação à lei da identidade de género, sendo esta também a mais recente, houve a necessidade de fazer um trabalho mais próximo das conservatórias, visando garantir que os procedimentos e as mentalidades sofressem alterações. Aí sim, pontualmente, existem certas conservatórias que continuam a dificultar. Em relação ao casamento, tudo está a ser cumprido”, afirma Joana Cadete Pires. “A discriminação no trabalho é uma das grandes matérias que a ILGA Portugal vai abordar ao longo dos próximos anos. Temos estado diretamente envolvidos em vários projetos relacionados com essa temática. Aquilo que dizemos é que o local de trabalho tornou-se o
DIREITO AO AMOR
“A escola deve ser um local de segurança para todas as crianças, independentemente da sua orientação sexual, identidade, expressão de género ou características sexuais. Deve ser um espaço de segurança, mas também um espaço de mudança e aprendizagem.” Joana Cadete Pires
segundo grande armário. As pessoas LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo) saem do armário junto das famílias, junto das pessoas amigas e, depois, ingressam no mercado de trabalho e voltam a ficar trancadas no armário.” A história de Rita é feita destes armários. Depois de sair de um armário e de, após algum tempo, ser aceite pela sua família, fechou-se noutro armário: o do local de trabalho. “Os obstáculos são, sem dúvida, resultantes de um preconceito ainda presente na sociedade. Por exemplo, no meu local de trabalho não falo abertamente nem da minha namorada, nem da minha relação.” Resta saber como se poderá destrancar, de vez, estes armários que ainda prendem a felicidade de tantos. “Há duas maneiras de olhar para esta situação: por um lado, as próprias pessoas têm de ganhar essa coragem. Claro que não é fácil. O nosso emprego é o local onde passamos a maior parte do tempo. Por outro lado, as próprias entidades empregadoras podem desenvolver um trabalho junto da comunidade LGBTI. E isso não passa pela alteração legislativa. O código de trabalho é claríssimo quanto à discriminação em função da orientação sexual e identidade de género. As entidades empregadoras têm um papel muito importante e podem contribuir de forma decisiva para uma alteração de mentalidades. Por exemplo, algumas empresas têm regulamentos internos nos quais está expressamente definida a proibição de todas as formas de discriminação”, reforça a Vice-Presidente da ILGA Portugal. A Constituição da República Portuguesa, no número dois do seu artigo décimo terceiro, é clara: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” Mas será assim em todo o país? Para Diana, há diferenças entre as grandes e as pequenas cidades de um país que, apesar das curtas distâncias, guarda em si muitas diferenças. “Penso que, nas grandes cidades de Portugal, a convivência com a diversidade é mais comum e acaba por haver mais contacto com o que é diferente. Isso vai proporcionar experiências capazes de moldar opiniões e valores.” Tiago concorda e acrescenta que “nunca vamos ter a real noção do que se passa fora do Porto ou de Lisboa. Há muito trabalho para fazer nas grandes cidades, mas há muito mais para todo o resto de Portugal, onde o preconceito ainda é muito visível. Acredito que a educação é fundamental nesta mudança de mentalidades”. Não se aprende nos livros e não se ensina em tom de tabuada. No entanto, acredita-se que “a escola tem uma palavra a dizer na construção de um futuro diferente. A escola deve ser um local de segurança para todas as crianças, independentemente da sua orientação sexual, identidade, expressão de género ou características sexuais. Deve ser um espaço de segurança, mas também um espaço de mudança e aprendizagem. As pessoas docentes e não docentes têm um papel fundamental no cumprimento dessa missão e
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LEGISLAÇÃO A Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, que adota medidas de proteção das uniões de facto, confere proteção legal aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, nos mesmos moldes em que é conferida aos relacionamentos entre pessoas de sexo diferente. As pessoas que, independentemente do seu sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos podem beneficiar, nos termos previstos na lei, de um conjunto de direitos em matéria, nomeadamente, de proteção da casa de morada de família, laboral, fiscal e de proteção social. Existem ainda, dispersas por vários diplomas, disposições legais que consagram direitos às pessoas que vivam em situação de união de facto (ex: artigo 100.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, relativo ao reagrupamento familiar; artigo 113.º, n.º 2, al. a) do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, relativo ao direito de queixa). A Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (até então reservado a pessoas de sexo diferente), alterando o Código Civil em conformidade. A Lei n.º 2/2016, de 29 de fevereiro, eliminou as discriminações no acesso à adoção, apadrinhamento civil e demais relações jurídicas familiares, procedendo à segunda alteração à Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, à primeira alteração à Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, à vigésima terceira alteração ao Código do Registo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 131/95, de 6 de junho e à primeira alteração do Decreto-Lei n.º 121/2010, de 27 de outubro. Com a alteração introduzida pela Lei n.º 17/2016, de 20 de junho, à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, passa a admitirse a possibilidade de recurso às técnicas de procriação medicamente assistida aos casais de mulheres casadas ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges, bem como todas as mulheres independentemente do estado civil e da respetiva orientação sexual. Enquanto reflexo do princípio constitucional da igualdade, na sua vertente da não discriminação em razão da orientação sexual (cf. artigo 13.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), encontram-se previstas ainda, em diferentes domínios e com níveis de tutela jurídica distintos, disposições legais de proteção do direito à igualdade e de não discriminação, em razão, nomeadamente, da orientação sexual. São disso exemplo o artigo 1067.º-A do Código Civil, aditado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, que consagra normas de não discriminação no acesso ao arrendamento; o artigo 24.º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro), que estabelece como contraordenação muito grave, sujeita à aplicação de coima, a violação das normas que consagram o direito à igualdade no acesso ao emprego e no trabalho, que possa resultar de discriminação do candidato ao emprego ou do trabalhador em função da sua orientação sexual; os artigos 121.º (Homicídio qualificado) e 240.º (Discriminação e incitamento ao ódio e à violência) do Código Penal, que tipificam determinados comportamentos praticados por motivos relacionados com a orientação sexual das pessoas como ilícitos criminais, puníveis com pena de prisão. Por Tânia Piazentin Jurista
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devem assumi-lo frontalmente”, explica Joana Cadete Pires. Por isso, a educação pode ser parte da solução para um problema alicerçado no preconceito. Tiago tem uma explicação para isso: “Vivemos numa sociedade heteronormativa. Nos filmes, a princesa casa com o príncipe, a donzela em apuros é resgatada pelo herói e, desde cedo, se és rapaz, vais ouvir a pergunta: ‘então e namoradas?’”. Rita complementa esta ideia, considerando que o preconceito é ainda mais violento quando se trata de um homem: “Sinto que possa ser ainda mais difícil para um homem ser homossexual. Vivemos numa sociedade ainda muito machista, sem dúvida. Um homem que seja homossexual vai contra tudo o que é esperado para um homem.” Tiago contrapõe: “Eu acho exatamente o contrário. Há sempre mais desafios para as mulheres, porque há menos representação, menos voz. E também porque há expetativas muito maiores no que diz respeito ao seu futuro enquanto mãe e em relação ao lugar de uma mulher numa família.” Diana conclui dizendo que “o principal obstáculo é o medo, principalmente o medo do preconceito de que posso vir a ser alvo por alguma atitude minha que não se enquadre”. Tal como o caminho e as suas metas, também a missão da ILGA Portugal se reinventa e renova a cada instante. Contudo, permanece fiel à certeza de que não há espaço para o preconceito numa sociedade igualitária. Torna-se então fundamental não deixar adormecer os objetivos que justificam e motivam cada nova ação. “É importante percebermos que só em 2016 é que assistimos à chegada das nossas grandes conquistas em matéria de parentalidade. Ou seja, em 2010 o casamento entre pessoas do mesmo sexo é aprovado e só seis anos depois é que ocorre a aprovação da adoção por casais do mesmo sexo e a procriação medicamente assistida.” Conscientes de que estas grandes mudanças ajudam a contar a história de uma luta que permanece atual, é certo que o preconceito perde muitas vezes força graças a pequenas vitórias que, propositadamente, passam despercebidas. “Por exemplo, os nomes que nós damos às coisas têm significado. Daí a nossa luta pelo nome casamento. Não deve existir diferença no nome consoante estejamos a falar de um casamento entre pessoas de sexo diferente ou de um casamento entre pessoas do mesmo sexo. Jamais iríamos chamar outra coisa. Nós queremos um casamento.”
“Quando for absolutamente indiferente as pessoas saberem, ou não, quem é que aquela pessoa ali ao lado ama. Eu não sei se tudo ficará bem nesse dia, mas não tenho dúvidas de que, quando a orientação sexual for tratada apenas como amor, teremos uma sociedade melhor.”
Joana Cadete Pires
E agora, em que lugar estamos nesta caminhada? Tiago acredita “que atravessamos uma fase de educação. Uma fase em que todos os portugueses podem ter acesso a informação sobre a comunidade LGBTI, não só por causa das novelas, dos filmes e das personagens famosas, mas também porque há mais pessoas que decidem sair do armário e com quem convivem no seu dia a dia”. Uma convivência que, passando a ser normal, é, segundo a Vice-Presidente da ILGA Portugal, muito importante: “A visibilidade é fundamental para a mudança. Lembro-me bem da altura em que se falou do coming out da Graça Fonseca ou do Adolfo Mesquita Nunes. A mensagem que transmitem é importante. Aquela criança que ainda não se assumiu percebe que o pode fazer e que não terá que ser discriminada por isso. Ou seja, que não é a sua orientação sexual que a diminui ou que a vai limitar.” Sabendo que o presente é volátil e que os passos continuam a ser dados, talvez possamos então acreditar que tudo estará bem quando não mais for preciso alguém assumir qual a sua forma de amar. Quando todos tiverem direito à “indiferença”. Quando todos couberem dentro da palavra amor, sem inquérito, nem julgamento. Quando, nas palavras de Joana Cadete Pires, “for absolutamente indiferente as pessoas saberem, ou não, quem é que aquela pessoa ali ao lado é ou ama. Eu não sei se tudo ficará bem nesse dia, mas não tenho dúvidas de que, quando a orientação sexual for tratada apenas como amor, teremos uma sociedade melhor”. Uma sociedade em que amar será, de facto, um direito ao alcance de todos. : :
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ENTREVISTA
“É necessário dar à família, à escola e à comunidade, a capacidade de educar para a vida em sociedade”
JOSÉ SORETO DE BARROS P RESI DEN TE DA COMISSÃO NAC ION A L D E E LE IÇÕE S
É o órgão superior da administração eleitoral. Independente, funciona junto da Assembleia da República e tem competência para disciplinar e fiscalizar todos os atos de recenseamento e operações eleitorais para órgãos eletivos de soberania, das regiões autónomas, do poder local e para o Parlamento Europeu. Garante da igualdade de tratamento e de oportunidades no mais importante ato da democracia, é, portanto, para todos nós e por todos nós que a Comissão Nacional de Eleições (CNE) trabalha. Fechado mais um capítulo da atual comissão, e com as recentes eleições legislativas a trazerem de novo à discussão a problemática da crescente abstenção, fomos falar com o Presidente da CNE. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, o Juiz Conselheiro José Vítor Soreto de Barros recorda que o bem-estar pessoal e social não é atingível em egocentrismo e que a abstenção radica em deficiente consciência cívica. Por isso, é necessário reforçar a confiança entre eleitores e eleitos e é exigível que os cidadãos vão fazendo o acompanhamento crítico do desempenho dos eleitos. Entrevista Andreia Amaral / Fotografia Cláudia Teixeira
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Quais as competências da Comissão Nacional de Eleições (CNE)? A CNE tem três atribuições, que a Lei chama competências: promover o esclarecimento objetivo dos cidadãos acerca dos atos eleitorais, designadamente através dos meios de comunicação social; assegurar a igualdade de tratamento dos cidadãos em todos os atos do recenseamento e operações eleitorais; e assegurar a igualdade de oportunidades de ação e propaganda das candidaturas durante as campanhas eleitorais. Para concretizar estas atribuições, a Lei dá à CNE os poderes necessários sobre todos os órgãos e agentes da administração. Na prática, estamos em presença de competências de supervisão e que, por isso mesmo, não são típicas da atividade administrativa. Aliás, são competências sobrepostas às competências próprias dos diferentes órgãos e agentes da administração e, por isso mesmo, fora do âmbito da aplicação direta do princípio da especialidade das competências administrativas. Um exemplo que pode ilustrar esta lógica pouco comum é o que se relaciona com o recenseamento eleitoral: a CNE não pratica nenhum ato no processo de recenseamento eleitoral – são o órgão competente da administração pública tutelada pelo governo e as comissões recenseadoras que o fazem –, mas pode e deve ordenar a esses órgãos que cessem certos comportamentos ou atuem de certa forma se estiver em causa a igualdade de tratamento dos cidadãos. Sendo assim, a CNE não tem nenhuma competência concreta, algo que só ela faça e mais ninguém possa fazer? Claro que tem. Algumas previstas na Lei da CNE e outras dispersas nas leis eleitorais e em outros diplomas complementares.
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No primeiro caso está, por exemplo, a competência para decidir de recursos hierárquicos em matéria de distribuição de salas para a campanha eleitoral. Ou, mais geral ainda, a de aprovar o mapa-calendário das operações eleitorais, fixando as datas em que os diversos atos a praticar por juízes e serviços da administração pública devem ocorrer. Num processo eleitoral, os prazos são curtos e os atos encadeados, pelo que não é possível deixar a critérios diferentes a contagem de prazos sem comprometer todo o processo – o legislador optou por confiar à CNE a contagem de todos os prazos com força obrigatória geral. Outras competências são, por exemplo, as que se prendem com a realização de campanhas de esclarecimento dos cidadãos ou a organização dos tempos de antena ou, ainda, a de mandar publicar em Diário da República o mapa da eleição, com resultados da votação e eleitos proclamados, previstas em todas leis eleitorais. Um dos pilares da CNE é o esclarecimento dos cidadãos sobre a natureza do ato eleitoral. Acha que os cidadãos entendem a sua participação como um direito, mas também como um dever? Globalmente não temos razões para pensar que não entendem de uma forma ou de outra ou até, em boa parte dos casos, simultaneamente das duas formas. A participação cívica não é tão baixa como os números, sem outra reflexão, podem fazer crer – a nossa taxa de abstenção é inflacionada por diversos fatores, um deles a distorção significativa do número de eleitores face ao número de residentes com 18 ou mais anos: estes são cerca de 8,5 milhões e os recenseados no país são 9,3 milhões.
ENTREVISTA COM JOSÉ SORETO DE BARROS
Não será propriamente à CNE que cabe apelar à participação dos cidadãos nas eleições – esse é um objetivo instrumental, mas nuclear, dos candidatos e das candidaturas. Neste domínio, à CNE cabe esclarecer os cidadãos sobre o que está em causa em cada ato eleitoral e, adicionalmente, sobre os seus direitos e a forma de os concretizarem. Esta diferença explica sete por cento da abstenção e, portanto, do que, à primeira vista, poderia passar por desinteresse. Considera que o cidadão médio compreende em pleno o funcionamento do sistema eleitoral, designadamente a representação proporcional? Não sei responder. Aliás, há mesmo cidadãos com qualificações acima da média que, a fazer fé em declarações públicas que proferem, também não compreendem muito bem o sistema e compreendem ainda menos o próprio processo eleitoral. Quanto ao conceito de representação proporcional creio que é entendível. Mas há aqui uma subtileza. A conversão de votos em mandatos faz-se de acordo com o sistema de representação proporcional, sim, mas segundo o método da média mais alta de Hondt. E, aqui, a fórmula do cálculo da conversão, apesar de simples, pode não ser acessível a todos. Uma das atividades da CNE diz respeito ao apelo ao voto. Que iniciativas foram levadas a cabo neste ano e de que forma cumpriram o seu propósito na luta contra a abstenção? Não será propriamente à CNE que cabe apelar à participação dos cidadãos nas eleições – esse é um objetivo instrumental, mas nuclear, dos candidatos e das candidaturas. Neste domínio, à CNE cabe esclarecer os cidadãos sobre o que está em causa em cada ato eleitoral e, adicionalmente, sobre os seus direitos e a forma de os concretizarem. Claro que, desta forma, se promove, ainda que indiretamente, a participação dos cidadãos. Através do seu sítio na Internet, com abundante informação sobre os diversos atos eleitorais e as regras e procedimentos a seguir em matéria eleitoral e, até por determinação das próprias leis eleitorais, da realização de campanhas de esclarecimento cívico, que decorrem em vários órgãos de comunicação social, redes sociais, rede multibanco e outros meios, a CNE tenta concretizar esta sua missão. Adicionalmente, apoia estudos científicos e ações específicas em escolas e outras comunidades com vista ao esclarecimento e promoção da participação. Na sua opinião, quais os fatores que mais contribuem para a abstenção e que medidas poderiam ser tomadas no sentido de travá-la? Há de haver fatores de natureza diversa, que requereriam uma abordagem aprofundada, de que não disponho. Posso considerar, em suma, que a abstenção radica em deficiente consciência cívica. O direito de sufrágio constitui um dever
cívico, como se disse. Não está em causa tornar o voto obrigatório ou adotar um qualquer tipo de sancionamento. Mas os números da abstenção, apesar do empolamento, tornaram-se graves de mais para serem abordados apenas no rescaldo da noite eleitoral. Para quem entenda que votar é um bem, tem que concluir que há de haver uma explicação mais profunda e duradoura para esta aparente indiferença pelo funcionamento das instituições democráticas e, de passada, pelo ressentimento contra “os políticos”. Enfim: penso que será necessário dar à família, à escola e à comunidade, a capacidade de educar para a vida em sociedade, de forma responsável, participativa e solidária; será preciso afirmar que o bem-estar pessoal e social não é atingível em egocentrismo; que ninguém é dispensável e que a realização pessoal só é possível em relação. E é claro que isto não dispensa que, entretanto, se pondere a oportunidade de melhorar as condições de participação eleitoral. E é também exigível que os cidadãos vão fazendo o acompanhamento crítico do desempenho dos eleitos, face aos compromissos assumidos. Em suma, reforçar a confiança entre eleitores e eleitos. Quantas queixas recebeu a CNE este ano? A que se reporta a maioria e qual a sua origem? Na sequência das queixas recebidas, no âmbito da eleição para o Parlamento Europeu, foram abertos 463 processos, cuja iniciativa foi maioritariamente dos cidadãos (294) e dos órgãos das autarquias locais (59). Quanto às eleições regionais para a Assembleia Legislativa da Madeira e para a Assembleia da República, contabilizam-se, à presente data, respetivamente, 114 e 343 queixas que deram origem à abertura dos correspondentes processos, sendo a sua maioria da iniciativa dos cidadãos (90 na primeira, 251 na segunda). Acrescem a estes dados os pedidos de esclarecimento que recebe diariamente e que, no total dos três processos eleitorais em causa, ascendem a cerca de dez mil. A CNE pode instaurar e decidir sobre que tipo de processos de contraordenação? A CNE pode aplicar coimas às estações de rádio e televisão por violação das regras relativas ao direito de antena e a sondagens em dia de ato eleitoral ou referendário, bem como aplicar as coimas correspondentes a contraordenações praticadas por partidos políticos, coligações ou grupos de cidadãos, por empresas de comunicação social, de publicidade, de sondagens ou proprietárias de salas de espetáculos, em eleições autárquicas e nos referendos (nacional e local).
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ENTREVISTA COM JOSÉ SORETO DE BARROS
A CNE pode aplicar coimas a quem promover, bem como a empresa que fizer propaganda através de meios de publicidade comercial. A aplicação de penas em matéria de propaganda compete aos tribunais. Considera que, face à conhecida sobrecarga de trabalho dos mesmos, têm capacidade efetiva para garantir o cumprimento das leis? Claro que há ilícitos no domínio das atividades de propaganda que são criminais e, por isso, apenas os tribunais podem julgar e punir, se for caso disso. Porém, salvo lei especial em contrário, os tribunais só intervêm nas contraordenações quando associadas a um processo-crime ou em sede de recurso de uma decisão administrativa. E uma leitura apressada da lei que temos pode levar a que se pense que esse poder é conferido aos presidentes de câmara, mas a Constituição proíbe-o – só os tribunais e entidades independentes podem aplicar penas no que toca a matéria de direitos, liberdades e garantias. E não há lei que dê poderes neste domínio a nenhuma entidade independente, CNE incluída. Em última instância, quem controla a legalidade dos atos do processo eleitoral? Cabe ao Tribunal Constitucional controlar, em última instância, a legalidade dos atos do processo eleitoral, com a exceção pontual da fixação dos locais de funcionamento das secções de voto e das provas tipográficas do boletim de voto (este apenas nas eleições autárquicas), em que intervêm os tribunais comuns. Que impacto têm fenómenos como a globalização, o mundo digital e as “fake news” na propaganda e na perceção que os cidadãos têm da mesma? Cingindo-me à experiência no seio da CNE, notam-se impactos, mas não dominantes ou decisivos. Sem estudos prévios nem reflexão sistemática, posso referir-lhe um certo incremento da inobservância das regras que proíbem a utilização de meios de publicidade comercial para fazer propaganda ou de desrespeito pela proibição de propaganda na véspera e no dia da eleição. Já quanto às “fake news”, só num caso, que me recorde, houve lugar à intervenção da CNE. Portugal tem sido um país pioneiro na europa na adoção de muitas medidas de modernização administrativa. No entanto, o mesmo ainda não é verdade na adoção do voto eletrónico. Que vantagens e desvantagens lhe estão associadas? Primeiro, permita-me que acentue o facto de o voto eletrónico não ser uma opção tão disseminada quanto as notícias sobre ele fazem crer. Em particular o voto eletrónico em mobilidade. O país campeão desta última modalidade, a Estónia, ao fim de anos de experiência consolidada fica-se
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O desconforto de muitos cidadãos face ao mundo da eletrónica, e são muitos mais do que normalmente se imagina, coloca sempre o risco de transformar o sistema eleitoral (dirigido à participação em igualdade do cidadão mínimo) num sistema a tender para o censitário.
por uns 30 por cento dos cidadãos a votar eletronicamente. O desconforto de muitos cidadãos face ao mundo da eletrónica, e são muitos mais do que normalmente se imagina, coloca sempre o risco de transformar o sistema eleitoral (dirigido à participação em igualdade do cidadão mínimo) num sistema a tender para o censitário – os mais qualificados participam, os outros que se amanhem. Mas a questão central é mesmo a questão da confiança no sistema: temos um sistema em que a população confia, valerá a pena substituí-lo para ganhar algumas facilidades adicionais? Face à crescente complexificação social e legislativa, considera que o modelo de plenário pontual da CNE responde com eficácia às necessidades? O modelo provou ser equilibrado e tem respondido a um quadro crescente de solicitações. Não é o número de pedidos de intervenção ou a sua diversidade que gera qualquer tipo de entropia. Também não é a periodicidade dos plenários – não fora a indisponibilidade de alguns membros e nada obstaria a que a CNE reunisse diariamente se e quando necessário. Além disso, a CNE criou mecanismos de decisão que permitem agilizar as respostas. A atividade da CNE é estipulada pela Lei n.º 71/78. Em 41 anos muito mudou e embora as competências e atuação da CNE constem de diferentes diplomas, a Lei base não mudou. Na sua opinião, e face às diferentes propostas de Lei que já foram submetidas, o que tem dificultado a aprovação de um novo diploma? A lei da CNE é uma lei eleitoral – foi no exercício dos seus poderes exclusivos para legislar neste domínio que a Assembleia da República a aprovou. E, como sabe, as leis eleitorais são leis para-constitucionais, com um núcleo duro em que se reclamam maiorias idênticas às necessárias para alterar a Constituição. Mesmo para quem considera que a lei da CNE não faz parte do núcleo essencial dos limites ao poder legislativo decorrentes do artigo 113.º da Constituição, não se espera que a sua alteração se faça sem consensos alargados. E, diga-se, se a CNE, por vezes, cumpre menos bem a sua função, o obstáculo nunca foi a lei. : :
SOLUTIO
Sollicitare 21
IFBM LANÇA PLATAFORMA NA INTERNET
O
Instituto de Formação Botto Machado (IFBM) da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) acaba de lançar a sua plataforma na internet. Com acesso direto através do portal da OSAE, a plataforma foi desenvolvida no sentido de facilitar a consulta das formações agendadas, por data ou tema, mas também de modo a disponibilizar as informações de maior relevo sobre cada iniciativa no imediato. Uma das características mais inovadoras é o facto de a plataforma adaptar os conteúdos de acordo com o perfil profissional do utilizador, variando as ferramentas disponibilizadas e o calendário de formações consoante se trate de um Solicitador, Agente de Execução ou de um formando não-associado da OSAE. Deste modo, para aceder a todas as funcionalidades e formações, o utilizador deverá fazer sempre o seu login quando entrar na plataforma. De forma a garantir a comodidade e transversalidade de acesso, os associados da OSAE poderão entrar na sua área restrita através das credenciais que já utilizam no ROAS ou no SISAAE. Por outro lado, os formandos não-associados da OSAE terão ao seu dispor estas funcionalidades através da criação de um novo registo IFBM. Na sua área reservada de formação, os utilizadores poderão aceder ao calendário de formações adequadas ao seu perfil profissional, visualizar as ações em que estão inscritos, consultar o histórico das iniciativas frequentadas, tirar os respetivos certificados ou comprovativos, descarregar os materiais pedagógicos de formação ou manifestar o seu interesse em ações futuras. Ainda a pensar na conveniência do utilizador, os pagamentos passam a ser realizados através de referência multibanco, dispensando-se a anexação de comprovativos aquando da inscrição. O utilizador também passa a poder criar colaboradores, para que os possa inscrever em formações e acompanhar o seu registo formativo. : :
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AUTO DE CONSTATAÇÃO EM PORTUGAL UM IMPERATIVO DE CERTEZA E SEGURANÇA
Por Susana Antas Videira, Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Consultora da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
PROFISSÃO
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este nosso tempo, perante o domínio avassalador da técnica e a absolutização do tecnológico, importa recuperar o sentido do Direito, assente na validade normativa e na reafirmação dos princípios. Com efeito, o Direito não pode dispensar as exigências deontológicas ou a afirmação do valor e requer a existência de princípios gerais, entendidos, na esteira de Miguel Reale, como “as enunciações normativas de valor genérico que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas”. Nestes termos, a par da Justiça, o Direito reclama certeza e segurança, indispensáveis à previsibilidade dos efeitos jurídicos e à planificação da vida em sociedade. Ora, é, desde logo, a fidelidade a este desígnio de certeza e de segurança que reclama a clara e inequívoca consagração como meio de prova, em Portugal, do auto de constatação, aproveitando as virtualidades desta figura institucionalizada no direito francês por decreto de 20 de maio de 1955 e integrada no estatuto dos huissiers de justice. Aliás, na experiência jurídica francesa, o auto de constatação começa por ser ditado por uma necessidade da prática judiciária, que acaba por se impor, em termos de consagração normativa, quer no Código Civil, quer no Código de Processo Civil sob o título “administração judiciária da prova”. Em França, a eficácia deste meio de prova, que se tem assumido como fundamental na prevenção e na resolução de litígios, é inequivocamente demonstrada pelo facto de mais de dois milhões de autos de constatação serem realizados anualmente, nas mais diversas situações, desde o imobiliário às relações familiares, passando pelo urbanismo, pela construção, pelo ambiente, pela internet ou pela sociedade de informação. Uma inundação, um acidente, o estado de conservação de um imóvel, a confrontação de prédios confinantes, o inventário de bens móveis em caso de separação, doação ou sucessão, o conteúdo das mensagens na Web são apenas exemplos de situações em que poderá ser aplicado o auto de constatação, garantindo a salvaguarda de direitos, prevenindo litígios, resolvendo contendas e, sobretudo, servindo a certeza e a segurança jurídicas. A existência de um relatório objetivo e factual, realizado pelo Solicitador, num determinado momento histórico, dissipa dúvidas quanto aos factos, evitando conflitos, que, por isso, não avançam para tribunal, ou facilitando a sua
decisão, nos casos em que o sistema de justiça tenha sido chamado para os dirimir. O desígnio de “mais e melhor justiça” passa, portanto, pela consagração de ferramentas como o auto de constatação, que, pela força probatória que naturalmente encerra e pela objetividade e imparcialidade que lhe estão associadas, previne conflitos ou acelera a sua resolução, caso o processo tenha avançado, facilitando o papel do juiz. Também no âmbito dos processos submetidos à jurisdição administrativa e fiscal, o auto de constatação e o reforço da intervenção do Solicitador e do Agente de Execução podem ser sinónimos de fluidez e de celeridade, favorecendo a estabilização das situações jurídicas respetivas. Em particular, uma maior intervenção do Agente de Execução, quer no processo de execução fiscal, quer no apoio às autarquias locais, por exemplo, no exercício das competências que lhes são cometidas para processar e aplicar sanções no âmbito de processos contraordenacionais, permitirá um acréscimo de eficácia, atenta a experiência avolumada destes profissionais na condução da ação executiva, nos procedimentos cautelares e nas citações, com salvaguarda da certeza jurídica, ultrapassando muitas das dificuldade que as autarquias a este propósito revelam e que praticamente quase inviabilizam o exercício dessas mesmas competências. Exemplificando: atento o respetivo conteúdo funcional e a eficiência da sua atuação, bem expressa nos últimos dados estatísticos disponíveis sobre a evolução da ação executiva, o Agente de Execução poderá, com garantia de independência e segurança, certificar uma infração, precisamente através de auto de constatação, com o mesmo valor jurídico que os autos de notícia a emitir por qualquer autoridade ou agente de autoridade que presencie contraordenação no exercício daquelas funções de fiscalização a cargo das autarquias, garantindo a eficácia e a celeridade, que a carência de meios com que esta se debatem, bastas vezes comprometam. Atento o exposto, o auto de constatação não pode deixar de se assumir como um relevantíssimo meio de prova contra a eventual contestação de um facto ou de conjunto de factos, configurando uma forma segura e certa de demonstrar, num certo momento histórico, a realidade. Sendo a segurança do direito e a certeza jurídica condição indefetível da paz social e garante de qualquer ordem jurídica, a positivação do auto de constatação na lei portuguesa é, pois, uma necessidade prática e um imperativo ditado pela [plena] afirmação dos princípios. : :
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REPORTAGEM
SÃO AOS MILHARES, ALI, DIVIDIDAS ENTRE ESTANTES, ARMÁRIOS OU JÁ NOS CONTENTORES AZUIS ONDE CAEM DESMAIADAS PARA O FIM IMINENTE. DE CIMA, AS LUZES IRROMPEM NUNS QUANTOS REFLEXOS DE PRATA POR ENTRE UM NEGRO DOMINANTE. O AMBIENTE É PESADO, TALVEZ TAMBÉM PORQUE O AR É UM POUCO MAIS RAREADO. ESTAMOS NO SUBSOLO, NUMA ÁREA RESTRITA E DE SEGURANÇA MÁXIMA. É A PARTIR DAQUI, DO DEPÓSITO DE ARMAS, QUE PARTIMOS À DESCOBERTA DAS OPERAÇÕES DO DEPARTAMENTO DE ARMAS E EXPLOSIVOS DA POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA.
LICENÇA PARA DISPARAR Texto Andreia Amaral / Fotografia Rui Santos Jorge assista ao vídeo em www.osae.pt
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spingardas, caçadeiras, carabinas, pistolas ou revólveres. Das conhecidas Kalashnikov AK-47, Hecker & Koch G3, Winchester, Colt, Baretta ou Glock passando pelas artesanais, vão desde o calibre 5.5mm de uma Velo-Dog ao calibre 50 do armamento dos carros de combate na Segunda Guerra Mundial. As armas que repousam no Arquivo do Departamento de Armas e Explosivos (DAE) da Polícia de Segurança Pública (PSP) têm as mais diversas origens. Só em 2018, foram apreendidas cerca de nove mil e entregues a favor do Estado mais de 20 mil. Além destas, o depósito guarda as armas que são alvo de peritagem e, até há bem pouco tempo, até penhoradas existia. Em 2017, por exemplo, o DAE leiloou 250. “Todas as armas que sejam apreendidas, declaradas perdidas a favor do Estado ou entregues voluntariamente pelo cidadão têm que passar para as mãos da PSP”, começa por explicar o Superintendente Pedro Moura, Diretor do DAE, indicando que, qualquer que seja a entidade responsável pela apreensão – PJ, GNR, SEF, ASAE ou outra –, no final do processo, todas as armas ficam ao cuidado do DAE e vão para o arquivo, onde lhes será traçado um destino. “As armas apreendidas e entregues a favor do Estado são, depois, analisadas uma a uma”, explica o Superintendente Pedro Moura, enquanto refere que há sempre uma perícia para aferir se foram utilizadas, quais as suas características e o estado de conservação. Não existindo qualquer problema, poderão ser afetas às forças de segurança, militares ou à formação. Mas geralmente esse não é o caso. “A esmagadora maioria corresponde a armas já velhas, em mau estado, sem qualquer interesse económico, científico, histórico ou operacional e, portanto, é destruída.” São essas armas que caem nos contentores azuis, à espera de ficarem cheios para partirem rumo a uma de duas empresas que, sob o olhar atento do DAE, selam a destruição. Desde 2016 que o número de armas de fogo destruídas vem crescendo. E, se em cinco anos, mais de 126 mil conheceram o fim, só em 2018, a PSP destruiu perto de 36.500 armas de fogo, a que acrescem quase mil armas brancas. “Todos os anos, passam por aqui dezenas de milhares de armas e milhões de munições”, afirma o Superintendente Pedro Moura. Saber onde está cada uma é fundamental. Por isso, tudo está numerado e cada movimento é registado in-
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formaticamente. As armas de maior calibre ficam à direita, nas estantes abertas, separadas por tipologias. Já as mais pequenas escondem-se nos armários dos arquivos à esquerda. É preciso encontrar tudo rapidamente, para não comprometer a eficiência. Afinal, há armas que estão de passagem. É esse o caso das que são deixadas pelos proprietários para peritagem e que, depois de realizadas, lhes são devolvidas. Muito embora as atividades do DAE passem eminentemente pelo controlo, licenciamento e fiscalização de todas as atividades relacionadas com armas e explosivos – desde o fabrico dos artigos à sua importação e transferência no espaço europeu, passando pelo armazenamento, comércio, transporte ou pelos proprietários e ambientes onde são utilizadas –, há uma competência paralela que se revela com a entrada de um elemento do DAE vestido com uma bata branca… No rasto da pista Por entre os corredores estreitos do depósito principal – existe um secundário com menos uso –, algumas armas, sobretudo do espólio das apreensões feitas pelas autoridades, teimam em manter escondido o caminho percorrido. São recolhidas por agentes que trocaram os uniformes convencionais pelas batas brancas, o terreno pelo laboratório. Munidos de conhecimento e apoiados por tecnologia de ponta, são eles que lhes vão reconstruir o passado. “Este departamento tem um núcleo muito importante, que é o Centro Nacional de Peritagens”, revela o Superintendente Pedro Moura, explicando que, neste âmbito, a PSP divide competências com a Polícia Judiciária (PJ). “A Lei de Investigação Criminal diz que os crimes cometidos com recurso a arma de fogo são da competência da PJ, o que quer dizer que, num local de um crime onde tenha havido um disparo, a gestão é feita pela PJ. No entanto, há outros crimes em que estão envolvidas armas e em que não houve recurso a essas armas. Nesses casos, a PSP tem não só a competência, como agora também tem os meios humanos e materiais para poder fazer a análise”, diz, com visível orgulho, o Diretor do DAE. “Fizemos um investimento muito grande, que começou em 2014 e para o qual conseguimos cofinanciamento da União Europeia”, prossegue o Superintendente Pedro Moura, desvendando que, há três anos, o DAE criou uma lista nacional de peritos de armas e munições da PSP. O processo foi acompanhado pela Procuradoria-Geral da República e culminou num conjunto de três cursos de formação. Hoje, os elementos da PSP aprovados constituem a lista nacional
“Todas as armas que sejam apreendidas, declaradas perdidas a favor do Estado ou entregues voluntariamente pelo cidadão têm que passar para as mãos da PSP”
Superintendente Pedro Moura
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de peritos e só eles fazem peritagens às armas que passam pelo DAE ou pelos Núcleos de Armas e Explosivos existentes em todos os 20 Comandos territoriais da PSP. O Comissário José Pereira, Coordenador do Centro Nacional de Peritagens, é um destes peritos e é com ele que entramos por mais uma porta trancada a sete chaves… As paredes insonorizadas no corredor antecipam que este é um espaço diferente… Atravessando, chegamos a uma sala onde a parca iluminação nos obriga a pousar imediatamente o olhar num tanque de água. “Este é o nosso banco de testes”, anuncia o Comissário José Pereira. “É aqui que disparamos as armas para depois recuperarmos e analisarmos os invólucros.” No tanque são disparadas balas de revólver e pistola. O mote é dado. “Fogo!” E a bala rasga a água a uma velocidade que nem as câmaras conseguem acompanhar, num estrondo que as proteções dos ouvidos abafam, mas não ocultam. Ao lado, há um bloco gelatinoso que simula os tecidos moles e a resistência do corpo humano. Também ele recebe balas, para se medir a perfuração e recuperar projéteis sem estarem danificados. “Falta aqui um equipamento para dispararmos as caçadeiras. Vem dos Estados Unidos da América e deve chegar até ao final do ano. Aí estaremos totalmente equipados”, revela o Diretor do DAE, encaminhando-nos para a sala adjacente. Na oficina, desativam-se armas, fabrica-se a gelatina que dará o corpo às balas e, por via de um processo químico, tornam-se visíveis números de série, apagados pelo tempo ou pela vontade de não deixar rasto. “Quando o número foi gravado, as moléculas da arma foram agrupadas nesse local. Mesmo quando deixamos de ver à superfície, lá por baixo, as moléculas continuam agrupadas. Através de ácidos conseguimos fazer sobressair o agrupamento”, explica o Comissário José Pereira. “Depois, fotografamos o resultado.” E, havendo necessidade de renumerar, a oficina contempla também uma máquina de gravação a laser. Investigação Criminal Os elementos reunidos no subsolo viajam de seguida, através de elevadores reservados, até à superfície. Aqui, existe um laboratório que nos remete de imediato para um dos cenários da famosa série norte-americana de investigação criminal CSI. O espaço é amplo, de um branco dominante e com diferentes postos, claramente delimitados pelos equipamentos tecnológicos. “O espaço aberto é uma vantagem. Há uma complexidade enorme no processo. Às vezes o material apresenta dúvidas, não tem marca, modelo ou calibre e nós temos que fazer vários testes e discutir. Se estivermos em gabinetes individuais, não trocamos impressões”, assume o Comissário José Pereira. Um dos principais objetivos é perceber se as armas que ali chegam já foram utilizadas em contextos de crime. Nessa missão, o IBIS, equipamento da INTERPOL, dá uma ajuda imprescindível. “Os invólucros das armas disparadas lá em baixo são colocados dentro da máquina, a partir da qual ob-
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temos imagens a três dimensões e em alta definição”, explica o Superintendente Pedro Moura, esclarecendo que há marcas microscópicas únicas que são deixadas por cada arma. As imagens capturadas ficam guardadas numa base de dados e são transferidas para o “Match Point”, que vai fazer uma busca automática de semelhanças com amostras recolhidas em processos anteriores. “Não é como nos filmes, em que o sistema faz tudo sozinho. É preciso dominar a tecnologia, ter conhecimento e uma sensibilidade que vem com a experiência. Entramos num patamar para lá do técnico, que é o da perícia”, desvenda o Comissário José Pereira. “O sistema apenas nos dá os processos com parecenças. Depois temos que analisar cada um em detalhe. Por isso, a experiência do perito é muito importante.”
“Não é como nos filmes, em que o sistema faz tudo sozinho. É preciso dominar a tecnologia, ter conhecimento e uma sensibilidade que vem com a experiência. Entramos num patamar para lá do técnico, que é o da perícia”
Comissário José Pereira
A primeira correspondência ocorreu em 2018 e está eternizada num poster na parede. “Uma arma apreendida pela GNR veio para o DAE para ser examinada e, ao ser colocada no sistema, coincidiu com dois crimes de roubo em investigação na PJ”, recorda com satisfação o Superintendente Pedro Moura. Conforme revela, os sistemas de informação e as novas tecnologias têm sido uma aposta estratégica do DAE, que, por esta via, tem otimizado e aumentado a eficiência nas diferentes das operações que realiza. “Tentamos fazer apelo a todas as novas tecnologias de maneira a sermos mais eficientes, mais eficazes e, sobretudo, a racionalizar e automatizar processos.” Pretende-se tornar o sistema cada vez mais inteligente e autónomo, sobretudo na perspetiva de que há uma tendência para que a PSP vá perdendo efetivos ao longo dos anos. “Estamos a tentar criar um sistema o mais eletrónico possível, mantendo um controlo muito eficaz sobre as armas.” Hoje a eletrónica já domina grande parte dos processos. Aliás, o DAE deverá estrear em breve a segunda versão do RIDAP – Repositório de Informação Digital sobre Armas e Proprietários, um arquivo eletrónico que pressupôs a digitalização de mais de um milhão e meio de fichas em papel referentes ao cadastro de armas e proprietários, datados do início do século XX (1920), numa desmaterialização que veio
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acelerar sobremaneira os frequentes processos de consulta ao histórico, antes bastante demorados e penalizadores das atividades da PSP que deles dependiam para prosseguir. Além disso, a informação do RIDAP é disponibilizada no SIGAE – Sistema Integrado de Gestão de Armas e Explosivos, plataforma que veio agilizar os processos de licenciamento. Para este mesmo fim contribuiu também a entrada em vigor, em 2015, de uma norma que obrigava os cidadãos, no momento da renovação da licença, a mudarem os seus livretes dos modelos antigos para os novos, semelhantes ao cartão de cidadão. A medida teve ainda a vantagem de contribuir para a entrega voluntária, por parte dos cidadãos, de milhares de armas. “À data, o novo livrete tinha um custo de cerca de 24 euros. Imagine um caçador que vinha renovar a licença e tinha dez armas – aliás, grande parte das licenças que emitimos são para a prática venatória e estimamos que, neste momento, existam 160 mil licenças ativas de caça. Para além do custo da própria renovação, ainda tinha que pagar mais 240 euros para a troca dos livretes. As pessoas começaram a fazer uma seleção das armas que tinham e a entregar as que já não utilizavam. Isso trouxe um aumento efetivamente muito grande em termos de entregas de armas.” A nova Lei das Armas Toda esta informatização e partilha de dados vêm também dar cumprimento a um desígnio europeu. “A União Europeia tem feito muitos esforços para que todos os Estados-Membros consigam ter sistemas de informação automáticos. Aliás, a última diretiva comunitária vem obrigar a que todas as administrações estejam ligadas entre si”, esclarece o Superintendente Pedro Moura, apontando para a entrada em vigor, a 22 de setembro, da nova Lei de Armas (Lei n.º 50/2019, de 24 de julho), que integra as premissas da Diretiva (UE) 2017/853. Assim, em setembro, a PSP passou também a estar ligada ao Sistema de Informação do Mercado Interno (IMI), onde coloca agora todas as autorizações de transferência que faz a nível europeu para armas de fogo. “A nova versão da lei deu também um prazo de dois anos para que todos os armeiros se liguem à PSP. A ideia é que toda a informação flua, de forma eletrónica e automática. Assim, uma arma que seja encontrada ou que tenha sido utilizada em crimes, como foram as dos primeiros atentados em Paris, poderá ser rastreada, saber-se-á de onde veio e qual foi o seu percurso.” A nova Lei das Armas, que veio limitar o número de armas que se pode ter em casa e estabelecer um conjunto de condições para a sua guarda, prevê também um período transitório de dez anos para a resolução de situações relacionadas com armas que já não tenham a afetação para a qual foram adquiridas e que, anteriormente, ficavam afetas ao domicílio, naquele que se consubstanciava como o segundo maior número de licenças emitidas pelo DAE. E, à semelhança do que aconteceu em 2006, data do anterior diploma, a nova lei contempla também um período de seis meses para as pessoas
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“A lei traz um conjunto grande de alterações, o que vai obrigar a uma adequação, quer por parte da administração central, através da PSP, quer dos administrados, ou seja, dos cidadãos, no sentido de se cumprirem as normas.”
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Superintendente Pedro Moura
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poderem fazer a entrega voluntária de armas que tenham sem serem manifestadas, sem que haja qualquer penalização criminal. “Deparamo-nos com muitas pessoas, no caso das habilitações de herdeiros, que nos 90 dias subsequentes à morte ou à descoberta da arma não a legalizam ou com cidadãos que deixam caducar as licenças e mantêm as armas”, contextualiza o Superintendente Pedro Moura, esclarecendo que esta é uma oportunidade para a regularização livre de procedimento sancionatório. “A lei traz um conjunto grande de alterações, o que vai obrigar a uma adequação, quer por parte da administração central, através da PSP, quer dos administrados, ou seja, dos cidadãos, no sentido de se cumprirem as normas.”
esclarecer o cidadão a respeito das alternativas, não menos relevante é agir de forma preventiva, pelo que, aquando de uma habilitação de herdeiros, deve-se ter em conta a possibilidade de existirem armas. E, caso existam dúvidas, o DAE poderá ajudar a dissipá-las com uma consulta às suas bases, bastando enviar um e-mail nesse sentido. Os cuidados estendem-se, de acordo com o Superintendente Pedro Moura, ao Agente de Execução: “Já tivemos algumas situações em que o Agente de Execução, durante a penhora e de boa-fé, acaba por levar armas porque precisa de aferir o valor de venda.” A ação pode ser problemática, porque mesmo o porte e o transporte carecem de licenças. A nova legislação veio também determinar mudanças na
A responsabilidade do Solicitador e do AE No que ao cumprimento da Lei diz respeito, também os Solicitadores têm um papel a desempenhar, designadamente no que concerne a uma crescente sensibilização para o tema no decorrer de processos ligados ao Direito Sucessório. “A própria Lei das Armas tem um artigo específico que regula a transmissão das armas no denominado processo mortis causa. A figura principal é o ‘cabeça de casal’, que poderá decidir o que fazer às armas da pessoa falecida: pode fazer a transmissão para ele e ficar com as armas na sua propriedade, pode fazer a sua transmissão para terceiros ou pode simplesmente entregar as armas gratuitamente a favor do Estado. Poderia também, na versão anterior, colocá-las em detenção no domicílio, o que deixa agora de acontecer. Outra hipótese, para casos em que existe um valor sentimental e quando outra alternativa de licenciamento não existir, é a desativação da arma”, esclarece o Diretor do DAE, indicando que esta inutilização irreparável passa a ser feita pelos armeiros e, para ser válida, tem de ser certificada pela PSP. De qualquer forma, quer seja uma arma desativada ou uma réplica, o registo é sempre obrigatório. Sendo importante
promoção da venda. “Anteriormente, estas armas penhoradas eram-nos entregues para serem vendidas no leilão anual que a PSP fazia, sendo que o dinheiro era transferido para a conta do Agente de Execução, deduzidos uns custos mínimos relativos ao processo. Com esta lei, a PSP perdeu essa competência de fazer os leilões e colocou-se a questão de saber o que fazer às armas que estão em processos de insolvência ou de execução. A solução encontrada foi que essas armas seriam vendidas por armeiros do tipo 2”, avança o Superintendente, indicando que estes terão de promover a venda e estabelecer a entrega do dinheiro aos Agentes de Execução, “em moldes que terão de ser acordados entre ambos”. Com um novo quadro legal em vigor, o Diretor do DAE deixa o conselho: “Se tiverem alguma dúvida ou se souberem antecipadamente que existem armas envolvidas em processos, questionem-nos. Se forem ações de execução durante as quais apareçam armas, deixem-nas ficar e contactem a PSP, que fará deslocar uma equipa ao local. Nós podemos ficar com as armas à nossa guarda, no nosso depósito, sendo que, obviamente, elas ficam dentro do processo e à disponibilidade desse processo.” : :
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A INSOLVÊNCIA E AS CRIPTOMOEDAS parte ii
Por Nuno de Oliveira Fernandes, Doutorando em Políticas Públicas
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H
á um ano, escrevi um artigo1 que pretendia sensibilizar / alertar para a fácil sonegação de bens à execução / insolvência, em virtude da sua não regulamentação, exemplificando com uma decisão, então recente, do Tribunal Arbitral de Moscovo2. Na altura, vivia-se uma época de grande especulação da criptomoeda Bitcoin. Hoje, quando a Bitcoin celebra 10 anos de vida, continua-se a observar a manutenção do quadro legal em Portugal, o qual poderá conduzir a decisões similares. Assim, venho agora apresentar a decisão do Tribunal Arbitral de Apelação3 que recaiu sobre o caso do Sr. Ilya Tsarkov. Relembrando a decisão de primeira instância: o Administrador da Insolvência (AI) requereu ao tribunal arbitral que obrigasse o falido a entregar a password da wallet de Bitcoins, tendo o seu pedido sido recusado, sob o escudo de que as criptomoedas não possuíam qualquer estatuto legal na Rússia e, dessa forma, não podiam ser incluídas como ativos na massa falida. No entanto, não conformado com esta decisão, o AI recorreu para o Tribunal Arbitral de Apelação, o qual veio a concluir que as leis russas não preveem uma lista exaustiva de bens, propriedades e direitos de propriedade (“objetos de direitos civis”). Assim, e ponderando sobre o rápido desenvolvimento das tecnologias da informação, o Tribunal aplicou uma interpretação ampla da definição de “objetos de direitos civis” e concluiu que a criptomoeda se enquadrava na definição de bens da massa falida. Para esta decisão, não terá sido totalmente irrelevante o facto de o próprio governo russo encontrar-se a projetar o lançamento de uma criptomoeda direcionada para o mercado do petróleo, sendo que, para tal, primeiramente teria que fazer reconhecer no seu quadro normativo as criptomoedas.
SOCIEDADE
De resto, este passo já foi dado, e assim, em outubro, entrou em vigor uma alteração ao artigo 128.º do Código Civil da Federação Russa, a qual introduz o conceito de “direitos digitais”, na categoria de “outras propriedades”4. E em Portugal? Que passos foram dados? Nenhuns. Aparentemente, o legislador nacional continua “resguardado no seu canto”, à espera do momento em que seja forçado a intervir. Na verdade, e face às inúmeras questões económicas, jurídicas e tributárias que se colocam perante esta nova / velha realidade, compreendemos não ser fácil a tomada de uma decisão. Se, por um lado, o Estado não deve limitar a liberdade dos seus cidadãos, por outro, a proliferação das criptomoedas, desviando meios económicos para estes ativos, pode provocar uma redução da procura pela moeda-fiduciária, originando uma desvalorização da própria moeda. Também a utilização das criptomoedas como meios de pagamento, face ao seu anonimato – pessoas e valores envolvidos – pode criar desequilíbrios na balança comercial, conduzindo a uma “anarquia monetária” com hiperinflações. Já ao nível jurídico, colocam-se inúmeras questões. Sendo a primeira, e talvez a mais primordial: Qual a classificação jurídica a atribuir às criptomoedas? Dinheiro ou commodity? Dinheiro não é, pois não são reconhecidas como tal pelo Banco de Portugal, nem existe qualquer obrigação legal de aceitação desta forma de pagamento, e commodity também não, uma vez que não possui existência física. A este propósito já se pronunciou a Ordem dos Contabilistas Certificados5, inclinando-se para a sua classificação como Ativo Intangível, apesar de reconhecer a não aplicabilidade da NCRF 6 às criptomoedas, devido aos modelos de mensuração previstos naquela norma. No entanto, é desta classificação jurídica que vai de-
pender a forma legal de atuar no momento da penhora / apreensão6, pelo que a atribuição de uma classificação se impõe. É também desejável que seja esclarecida a forma de obtenção da password de acesso à respetiva wallet. A questão da dificuldade na identificação da wallet, face ao anonimato que sustenta as criptomoedas, irá manter-se. No entanto, conseguindo o Agente de Execução / Administrador da Insolvência proceder à sua identificação, não lhe serem atribuídos meios legais para promover a sua execução, parece algo difícil de compreender numa sociedade de direito. Em suma, um ano decorrido, observamos não ter surgido qualquer regulamentação para as criptomoedas em Portugal, mantendo-se as mesmas num vazio legal que só beneficia o anonimato pretendido pelos seus criadores e utilizadores. A falta de regulamentação sobre esta matéria, criando situações legais ambíguas, dificulta o trabalho do Agente de Execução / Administrador da Insolvência, potenciando situações de ocultação de bens à execução, lesando os credores e, assim, prejudicando o funcionamento de toda uma economia. No entanto, e em abono do legislador português, esta situação é comum a muitos países desenvolvidos, sendo que as organizações internacionais, como a União Europeia, ainda não definiram a sua posição quanto a esta realidade. : : 1 - Revista Sollicitare – Edição n.º 23 2 - Processo n.º 40-124668/2017 3 - Recurso n.º N 09AP-16416/2018 4 - À data da decisão do Tribunal Arbitral de Apelação já esta legislação se encontrava aprovada pela Duma (Câmara Baixa da Federação Russa). 5 - Parecer de 2017/11/01 – PT19836 – Demonstrações financeiras Bitcoins 6 - Art.os 764.º a 772.º do CPC – Penhora de bens móveis; art.os 773.º a 783.º do CPC – Penhora de direitos
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ENTREVISTA
“Estamos empenhados na prestação de serviços de qualidade ao cidadão”
PAULO TEIXEIRA PAULO MONIZ CARREIRA VICE-PRESIDENTE DA OSAE
PRESIDENTE DA APPSF
Prevenir e impedir a procuradoria ilícita é o objetivo do recente protocolo celebrado entre a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) e a Associação Portuguesa dos Profissionais do Sector Funerário (APPSF). Entrevistámos, nesse âmbito, Paulo Teixeira, Vice-Presidente da OSAE, e Paulo Moniz Carreira, Presidente da APPSF, dois dos principais responsáveis pelo sucesso deste acordo. Entrevista Joana Gonçalves / Fotografia Cláudia Teixeira assista ao vídeo em www.osae.pt
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querido, libertando quem nela trabalha de atividades para as quais não está preparado e habilitado. É sabido que se estabeleceu, historicamente, que a funerária trata de todos os assuntos. Isto faz com que os agentes se vejam, muitas vezes, na contingência de, ao sugerir que o cliente contacte um profissional do setor jurídico – uma vez que não é esta a área de atuação da agência funerária – perder esse cliente, que acredita não ter sido bem atendido. Por isso, este protocolo começa, antes de mais, com o propósito de cumprir um dos desígnios do nosso Estatuto: auxiliar na administração da Justiça. Paulo Moniz Carreira: A APPSF tem, desde a sua criação, o intento de promover o profissionalismo de um setor com um largo histórico de necessidade de maior qualificação. Falamos de uma área muito esquecida e discriminada, alvo de legislação tardia e arredada da organização que merecia. Temos, portanto, de ser nós próprios a criar as condições para oferecer o melhor e mais qualificado serviço às famílias num momento muito delicado das suas vidas. Nessa perspetiva, todas as parcerias que promovam a boa organização, a qualidade e a boa prestação de serviços, em termos técnicos, às famílias são para nós uma grande mais-valia.
Falamos de uma área muito esquecida e discriminada, alvo de legislação tardia e arredada da organização que merecia. Temos, portanto, de ser nós próprios a criar as condições para oferecer o melhor e mais qualificado serviço às famílias num momento muito delicado das suas vidas. Paulo Moniz Carreira Como surgiu a ideia de criar este protocolo de colaboração e quais os seus principais objetivos? Paulo Teixeira: Este protocolo tem vindo a ser pensado há cerca de um ano e meio, na OSAE. Numa primeira fase, começámos por contactar as associações portuguesas representativas do setor funerário e realizámos, com elas, diálogos muito produtivos. No entanto, devido a uma série de fatores, acabou por não se estabelecer o protocolo nesse momento. Confesso que, internamente, também não foi simples, de início, explicar aos colegas o propósito do mesmo. Mas insistimos e obtivemos o apoio incondicional da APPSF, porque desde sempre acreditámos que a OSAE, os seus associados, a APPSF e os cidadãos tinham todo o interesse no estabelecimento deste acordo. O objetivo é apenas um: prestar o melhor serviço jurídico possível ao cidadão que se socorre de uma funerária aquando do falecimento de um seu ente
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A OSAE e a APPSF afirmam ter preocupação com o fenómeno da procuradoria ilícita. Esse é um problema que se continua a verificar com particular incidência no setor funerário? Paulo Moniz Carreira: Continua, sobretudo, a haver muita desinformação, aliada à existência de uma fronteira algo ténue sobre até onde uma funerária deve e pode ir. Mas esta é uma situação que acontece com várias áreas e não só em termos jurídicos. Dou o exemplo dos serviços de psicologia do luto, extremamente necessários, e que as funerárias também não têm competência para praticar. O que posso garantir é que a funerária profissional, membro da APPSF, não tem interesse em criar atos ilícitos nem em prestar informações erradas às famílias. Portanto, o que há a fazer é informar devidamente as funerárias de que, agora, têm ao seu dispor este mecanismo e esta pareceria com a OSAE, que tem tudo para funcionar bem. O protocolo prevê a criação de uma Bolsa de Solicitadores. Na prática, falamos de quê? Paulo Teixeira: Na prática, a empresa funerária, necessitando da intervenção de um Solicitador, contacta a APPSF ou a OSAE com o propósito de lhe ser nomeado, em escala, um profissional. Este profissional estará inscrito numa bolsa e, como tal, será detentor de responsabilidades acrescidas tendo em conta a particularidade deste protocolo. O Solicitador entrará em contacto com a funerária e prestará o serviço. Este procedimento acaba por garantir uma elevada transparência, já que o Solicitador é nomeado em escala, precisamente para não se correr o risco de indicar o A em detrimento do B, sem qualquer critério. E é precisamente este
ENTREVISTA COM PAULO TEIXEIRA
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PAULO MONIZ CARREIRA
o modelo que estamos a comunicar aos nossos associados nas várias sessões informativas que estão já a decorrer para explicar o modo como vai funcionar este protocolo. Nesse âmbito, quais são os atos que estão previstos serem praticados pelos Solicitadores? Paulo Teixeira: São os atos próprios da atividade do Solicitador que estão previstos na lei. Portanto, irão fazer tudo aquilo que a lei e a sua competência profissional já os habilitava a fazer. A questão é que muitas vezes não eram chamados a intervir, uma vez que a própria empresa funerária se via na contingência de o fazer porque se estabeleceu socialmente. Parece que se normalizou a ideia de que a funerária tinha por obrigação praticar todos estes atos só porque estão intimamente ligados ao fenómeno da morte. Com este protocolo, as agências funerárias vão continuar a praticar os atos em que são especialistas e vão passar a ter ao seu serviço um profissional habilitado, disciplinarmente controlado, formado para praticar os atos jurídicos que a lei prevê. Tudo isto a preços módicos, de acordo com as regras de estabelecimento dos honorários. Acredito que esta é uma relação que só pode ser muito positiva, porque os objetivos são comuns e a vontade para que corra bem é de ambos. Estamos empenhados na prestação de serviços de qualidade ao cidadão. Como podem os Solicitadores aderir à Bolsa? Paulo Teixeira: Há alguns requisitos necessários, tendo em vista o aumento da transparência. Assim, para fazer parte desta bolsa, os colegas não podem ter dívidas à OSAE e à CPAS. Devem, também, participar numa das sessões (in) formativas que já estão a decorrer por todo o país. Estas sessões contam com a presença de um membro da APPSF e nelas é explicado o funcionamento do protocolo. De referir que a adesão tem superado as expetativas e estão já a ser marcadas novas datas e locais. Ao mesmo tempo, o Solicitador tem de assumir o regulamento interno, um modus operandi de como tudo funciona, e não poderá ter antecedentes disciplinares com pena superior a multa. Como têm as agências funerárias reagido ao protocolo? Paulo Moniz Carreira: É preciso contextualizar que falamos de um setor muitíssimo atomizado, com mais de 1500 agências funerárias em todo o país, algumas de muito pequena dimensão. E pela desregulamentação que houve no passado, este é um trabalho que, necessariamente, se vai fazendo aos poucos. Por isso, a transmissão da informação é extremamente importante, sempre numa perspetiva positiva. É fundamental perceber que este é um processo que visa facilitar a vida tanto ao agente funerário, como à família. Sabemos que urge combater o “criar de um saber pela prática”, de modo a sermos mais profissionais e a recorrermos aos profissionais. Por isso, este é todo um processo muito dinâmico que chegará, com certeza, a bom porto.
Com este protocolo, as agências funerárias vão continuar a praticar os atos em que são especialistas e vão passar a ter ao seu serviço um profissional habilitado, disciplinarmente controlado, formado para praticar os atos jurídicos que a lei prevê. Paulo Teixeira
O que já está feito e o que falta fazer? Paulo Moniz Carreira: O principal, que é haver entendimento entre ambas as partes, está feito. As ações de sensibilização e de informação estão a decorrer, quer na OSAE, quer na APPSF, e agora temos que deixar o mercado funcionar naturalmente. Paulo Teixeira: O que falta, em bom rigor, é o último passo, ou seja, depois de terminarem as sessões explicativas que estão a decorrer, aparecer o primeiro caso em que a OSAE seja contactada para nomear o primeiro Solicitador. Não tenho dúvidas de que o interesse é de todos e que, a muito breve prazo, este procedimento se converta em método. : :
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REPORTAGEM / ESPECIAL RELIGIÃO A liberdade religiosa é fundamental num estado democrático. Mas o que acontece quando a lei civil e a doutrina apontam caminhos diferentes? Neste espaço, vamos revelar-lhe, ao longo de várias edições, os credos com maior representatividade em Portugal. Saiba o que defendem, no que acreditam, como vivem e qual o seu conceito de Justiça.
SÃO MUITOS OS QUE TODOS OS DIAS PASSAM À SUA PORTA, ALI JUNTO À PRAÇA DE ESPANHA, EM LISBOA, MAS NÃO TANTOS SÃO OS QUE ALGUMA VEZ LÁ ENTRARAM. DE PEDRAS ALARANJADAS E AZULEJOS PREDOMINANTEMENTE AZUIS, A MESQUITA CENTRAL DE LISBOA DESENHA-SE ALTANEIRA ENTRE OS PRÉDIOS COMUNS DA CAPITAL PORTUGUESA. CÁ FORA, UM CARTAZ DÁ ALGUMAS INDICAÇÕES A QUEM CHEGA: É UM GUIA DE VESTUÁRIO E DE COMPORTAMENTO PARA OS VISITANTES – COM MAIS PORMENORES PARA AS MULHERES. MAS NÃO SE ASSUSTEM. “ESTE É UM ESPAÇO ABERTO A TODOS”, SOSSEGA O SHEIK DAVID MUNIR, IMÃ DA MESQUITA E NOSSO GUIA. QUE COMECE A VIAGEM PELO ISLÃO EM PORTUGAL. Texto Joana Gonçalves / Fotografia Rui Santos Jorge / assista ao vídeo em www.osae.pt
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ão 11h00 e o sol aperta em mais um dia de início de outono que mais parece verão. Resguardamo-nos do calor por entre as arcadas do pátio central, de inspiração magrebina, deste que é o maior templo islâmico em Portugal. Com vista privilegiada para o minarete, a torre da mesquita, temos a sensação de que deixamos Lisboa bem longe e voamos para um qualquer cenário das Mil e Uma Noites. Voar era mesmo um dos grandes sonhos do nosso entrevistado, que entretanto chega. Sonhava ser piloto de aviação civil, mas hoje apenas “voa” em simuladores, no pouco tempo livre que lhe resta. Com um peculiar sentido de humor e uma visão do Islão que colide com o estereótipo, David Munir é o Imã da Mesquita Central de Lisboa desde 1986. Nasceu em Moçambique, na cidade da Beira, e veio para a capital portuguesa com os pais, tal como muitos o fizeram, após 1974. Atualmente, são cerca de 60 mil os muçulmanos a residir em Portugal. A maior parte é originária das ex-colónias portuguesas, fator que ajuda a explicar a boa integração desta comunidade em Portugal. Mas não percamos mais tempo. “São cinco os pilares básicos da doutrina islâmica”, começa prontamente por explicar David Munir. O primeiro, e mais importante, tem que ver com a crença: “Toda a crença islâmica assenta neste pilar: acreditar que Deus (Alá) é único e que o profeta Maomé é o seu último mensageiro.” O Imã reitera a palavra último, por oposição a único. De acordo com o Islão, antes de Maomé, nascido no ano de 570, tinham existido outros profetas: Jesus, Moisés e Abraão foram alguns deles. “A única religião não cristã que aceita Jesus como um profeta e mensageiro é o Islão.” Rezar: do Fajr ao Ishá Alvorada (Fajr), meio-dia (Zuhr), meio da tarde (Assr), pôr do sol (Magrib) e noite (Ishá). As orações são o segundo pilar do Islão. Na mesquita, noutros espaços de oração ou individualmente, é obrigação de todos os muçulmanos cumprir estes cinco momentos, todos os dias. “A oração é um diálogo com O Criador”, indica David Munir, acrescentando que existem alguns pormenores a considerar no momento da oração: a pessoa deve ter o corpo limpo, a roupa limpa, estar num lugar limpo e orientado para Meca. A cada oração corresponde ainda um chamamento, o Adhan. Numa voz que parece cantada sem o ser de facto, há um apelo que vai repetindo, em árabe, máximas do Islão. Cinco vezes ao dia, a voz ecoa no ar. Além do chamamento, a preparação das orações implica também um ritual de purificação — a ablução (wudú) — que é feito por homens e mulheres, mas em locais separados. Do pátio central consegue-se espreitar o balneário masculino. À porta, vários pares de sapatos alinham-se numa espécie de sapateira gigante. É tempo de colocarmos também os nossos e de entrar na sala de culto principal – as senhoras têm ainda de colocar um lenço sobre a cabeça. Os pés tocam no tapete em que se desenham várias divisões: um retângulo deverá corresponder a uma pessoa. Por entre mármores e azulejos, um relógio digital com grandes números vermelhos relembra que a oração se inicia numa determinada hora e tem uma duração limite, cerca de dez minutos. Tudo é feito em função do calendário lunar, a base do calendário islâmico.
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É no nono mês deste calendário, mês do Ramadão, que acontece outro dos pilares do Islão: o jejum. “O mês do Ramadão é sagrado e celebra o início da revelação a Maomé do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. Durante esse mês, desde antes da primeira oração do dia e até ao pôr do sol, os muçulmanos estão em jejum. O jejum islâmico é simples, prático e barato: não comer, não beber, não ingerir nada antes da primeira oração do dia e até ao pôr do sol. A partir desse momento é obrigatório quebrar o jejum.” E quais são as condições para jejuar? David Munir responde: “São três: em primeiro lugar, ser muçulmano, ou seja, acreditar no primeiro pilar; em segundo lugar, ser adulto, e, por fim, ser saudável.” Crianças, idosos, doentes ou grávidas não são obrigados a jejuar. Mas as vantagens, mais do que físicas, são espirituais: “O objetivo é valorizar aquilo que temos e sentir um pouco na pele aquilo que os outros não têm”, salienta o Imã.
“Toda a crença islâmica assenta neste pilar: acreditar que Deus (Alá) é único e que o profeta Maomé é o seu último mensageiro.” (...) “A única religião não cristã que aceita Jesus como um profeta e mensageiro é o Islão.”
Sheik David Munir
Isto leva-nos a mais um dos pilares do Islão: caridade ou zakat, ou seja, ajudar as pessoas que mais necessitam. As regras são claras: “Cada ano, ao fazermos o balanço da nossa atividade, o Islão prevê que façamos a separação de 2,5 por cento do total. Esse valor deverá ser doado a quem mais precisa. Se tivermos um familiar que necessita, esse será o primeiro a merecer a nossa caridade”, afirma David Munir. De salientar que o dinheiro relativo ao zakat não pode reverter a favor da construção de mesquitas ou de locais de culto. Para esse fim existe outro tipo de caridade, facultativa. Por último, a peregrinação a Meca, uma vez na vida, no décimo segundo mês do calendário islâmico. Mais uma vez, obrigatório para a pessoa adulta, saudável e com meios e possibilidades financeiras. “Se não tiver possibilidades, o Islão diz que não é obrigatório. Quando tiver posses, vou. Não se pode pedir um empréstimo para ir a Meca, seja a um amigo, seja a um banco, seja a qualquer instituição.”
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O medo do desconhecido “Se virmos bem, estes pilares não variam muito quando comparados com outras doutrinas. Todas as religiões têm as suas crenças e acreditam nelas. Em todas há orações e se apela à caridade. O jejum acontece em muitas crenças – diz na Bíblia que Jesus jejuou 40 dias, por exemplo. E as peregrinações também são comuns: os muçulmanos vão a Meca, os judeus vão a Israel, os hindus à Índia, os cristãos a Fátima ou ao Vaticano. O que acontece é que, globalmente, os muçulmanos são dos que mais se dedicam à prática da sua crença, o que pode levar a ideias deturpadas da realidade.” É com um discurso inclusivo que David Munir vai guiando a visita à Mesquita, aberta todos os dias a muçulmanos, mas não só. “Recebemos, diariamente, crianças em visitas de estudo e organizamos visitas guiadas para adultos uma ou duas vezes por mês. Sabemos que a transparência é muito importante. Estamos de portas abertas, mostramos o que somos e não obrigamos ninguém a ser como nós”, acrescenta, reiterando que “a palavra Islão significa submissão voluntária. O Islão é um código de vida, é uma forma de estar na vida. Não se pode obrigar ninguém a ser muçulmano, a pessoa aceita de sua livre vontade e é na diversidade que podemos construir uma sociedade sã, uma sociedade segura, respeitando o seu próximo”. É exatamente para combater os muitos preconceitos que persistem em relação ao Islão que David Munir apela constantemente à visita à mesquita: “Há pessoas que tinham ideias negativas sobre o Islão e, depois de visitar a mesquita, ficaram com uma perspetiva diferente. Nós, os portugueses, sempre convivemos com os outros povos, faz parte do nosso ADN. Mas é claro que quem não conhece tem medo e, naturalmente, afasta-se. Por isso é que as mesquitas estão sempre abertas. Qualquer pessoa pode chegar e visitar a mesquita, pode conversar connosco, pode tirar dúvidas, não há nenhum impedimento. E depois há muitos portugueses que já visitaram mesquitas no estrangeiro, mas a de Lisboa não. Costumo dizer que o que é nacional é bom!”, diz, sorrindo. É também nessas visitas à mesquita que os participantes tentam perceber a posição do Islão sobre vários assuntos, nomeadamente sobre o divórcio. “Para haver um divórcio tem que haver um casamento. E ao contrário do que se pensa, o casamento não é obrigatório no Islão”, começa por dizer o Sheik. No entanto, quando nem tudo são rosas, a doutrina islâmica aconselha a não se optar pelo divórcio à primeira dificuldade, mas sim à separação física durante algum tempo. ”Durante esse período, o casal tem tempo para refletir e para chegar à conclusão de que a separação não foi uma boa opção, sendo melhor retomar a vida conjugal”, explica. Esta situação pode acontecer até duas tentativas. À terceira, a relação termina, não é
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mais possível conviver e dá-se o divórcio propriamente dito. “Quando há um divórcio, a mulher tem que ser respeitada e a dignidade dela tem que se manter. Não se pode difamar nem caluniar a mulher. Há teólogos que dizem, inclusive, que, se a mulher não tem nenhum sítio para ficar, quem sai de casa é o homem, mesmo que a casa seja dele. Ele pode dormir na rua, ela não. De qualquer forma, o Islão pede bom senso, pede que o divórcio, a acontecer, seja o mais amigável possível. Portanto sim, o divórcio é permitido. E sendo permitido, isso quer dizer que se um divorciado ou uma divorciada quiser voltar a casar, pode fazê-lo. Não há discriminação.” Já no que toca à violência doméstica, David Munir é perentório: “O Islão condena qualquer tipo de violência, seja física ou psicológica, seja à mulher ou ao homem!” E se for dirigida a uma criança, ainda é mais grave. Falamos de casos de mutilação genital feminina, prática que muitas vezes se associa à doutrina islâmica, o que, na visão do Imã, não podia estar mais errado: “Essa é uma prática ancestral que surgiu muito antes do Islão. Acontece em alguns países de religião islâmica, tal como acontece noutros que não a praticam. É importante distinguir práticas culturais de práticas religiosas. Segundo o Islão, mutilar qualquer parte do corpo é proibido. Todas as crianças, até atingirem a puberdade, são inocentes. Portanto, se mutilar é proibido, mutilar uma criança é ainda mais proibido. Já para não falar que mutilar a parte íntima de um ser humano é, só por si, outro crime. São três crimes graves que a pessoa comete à luz do Islão. Mas quando o conhecimento não é suficiente, surge a convicção de que esta é uma prática religiosa. Se uma prática, seja ela qual for, prejudicar a humanidade, o Islão proíbe.” Outra das questões que também suscita muitas dúvidas prende-se com a homossexualidade. E embora declare ter amigos homossexuais, David Munir assegura que, apesar de a sua religião não permitir a realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo – afirmando, inclusive, que nenhuma religião monoteísta aceita essa união –, a sua crença também lhe diz que deve existir respeito na diversidade: “Dou o exemplo de um parlamento. Lá estão representados todos os partidos e há assuntos em que há discórdia. Mas estão todos lá na mesma. A humanidade é assim e devemos promover a tolerância.” E depois da vida? Uma mesquita, centrada na comunidade e em todas as suas necessidades, tem também de pensar na morte. Tal como outras religiões, os muçulmanos acreditam numa vida quando esta, terrena, acabar. Os ritos, esses, são diferentes do habitual. “Da terra viestes, para a terra ireis e da terra ressurgireis”, está escrito no Alcorão. Foi precisamente por isso que surgiu, na Mesquita Central de Lisboa, a primeira morgue islâmica a nível nacional. Além do banho ao corpo do falecido, dado pelos familiares mais diretos, a forma de sepultura é singular. “O corpo é sepultado apenas com uma mortalha (lençol branco), porque acreditamos que, após a morte, tudo deixa
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Manter este retângulo à beira mar plantado pacífico e acolhedor, conservando viva toda uma herança cultural que une todos os que aqui habitam, é o objetivo. Até porque, como dizia Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, por ocasião da comemoração dos 50 anos da Comunidade Islâmica Portuguesa, “o Islão está na alma de Portugal”. de ser nosso, inclusive a roupa. Também não há qualquer tipo de caixão. A única coisa que pode haver é uma pequena madeira que é colocada por cima.” Isto quando o corpo está intacto ou não representa perigo para a saúde pública. Nesses casos, o corpo é mantido dentro de um caixão. Os cidadãos muçulmanos são geralmente sepultados no cemitério do Lumiar, onde a comunidade tem um talhão. Existem mais dois nos cemitérios de Odivelas e Feijó, este último destinado sobretudo aos muçulmanos residentes na margem sul. Uma comunidade bem integrada Olhando para a Europa dos últimos anos, é normal que se fale em extremismo religioso e que surja o medo de ataques terroristas. Contudo, David Munir tem uma visão que vem, certo modo, apaziguar os anseios dos portugueses: “A comunidade islâmica portuguesa está muito bem integrada, ao contrário do que acontece em muitos países. Se perguntarmos aos franceses, aos belgas ou alemães, aí a história é outra. Isto explica-se porque a maioria dos muçulmanos que reside em Portugal veio, essencialmente, de Moçambique e Guiné-Bissau, ex-colónias portuguesas. E a presença de Portugal nesses locais era grande, já havia muita convivência, ao contrário do que se passava nos outros países da Europa: embora os muçulmanos que lá residem atualmente sejam
também oriundos de ex-colónias europeias, nesses países de origem só a autoridade e o poder é que se instalaram, portanto não houve convivência prévia. E quando emigraram, foram excluídos e colocados em guetos, fazendo da integração um processo muito difícil, o que catapultou posições mais extremistas. Claro que também não podemos esquecer os fatores culturais. Por que é que os muçulmanos de Moçambique, por exemplo, quiseram vir para Portugal e não foram para países islâmicos? Porque os poucos que preferiram esta última opção, e embora a religião fosse a mesma, não se integraram. Culturalmente havia uma diferença enorme.” A experiência do Imã da Mesquita Central de Lisboa dita, assim, que, em Portugal, não há razões para ter medo de extremismos. Isso não significa que se não olhe para o fenómeno com atenção, sempre de olhos postos na prevenção face a qualquer tipo de radicalização, não só no seio da comunidade, mas também daqueles que, não sendo membros, a nível nacional se digam muçulmanos. “Somos os mais interessados em que isso não aconteça”, adianta. Manter este retângulo à beira mar plantado pacífico e acolhedor, conservando viva toda uma herança cultural que une todos os que aqui habitam, é o objetivo. Até porque, como dizia Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, por ocasião da comemoração dos 50 anos da Comunidade Islâmica Portuguesa, “o Islão está na alma de Portugal”. : :
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OSAE
Lisboa
EDIÇÃO DE DO IV FÓRUM DE SOLICITADORES E AGENTES DE EXECUÇÃO ESTREOU NOVO FORMATO Texto Andreia Amaral e Joana Gonçalves
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ecorreu, no dia 27 de junho, a edição de Lisboa do IV Fórum de Solicitadores e Agentes de Execução. Na organização desta iniciativa, a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) contou com o apoio do Conselho Regional de Lisboa (CRL) da OSAE e da Delegação Distrital de Lisboa. O evento reuniu mais de 250 participantes no Auditório do Taguspark, em Oeiras, naquele que foi um dia marcado pela formação, pelo desenho de novos caminhos, pela reflexão em torno das duas profissões e pelo salutar convívio entre colegas. A edição de Lisboa estreou um novo formato no IV Fórum, mais dinâmico, interativo e com uma orientação mais pragmática. Olhos postos num futuro mais auspicioso, os painéis enquadraram algumas mudanças legais e deram protagonismo à apresentação de serviços, soluções inovadoras e sinergias que podem representar mais-valias para o portefólio dos profissionais representados pela OSAE. Após a receção aos participantes, o Presidente do CRL, João Aleixo Cândido, a Presidente da Delegação Distrital de Lisboa, Elsa Mota, e os dois Secretários, Eleonora Domingos e Luís Coelho, deram as boas-vindas aos participantes e desejaram um dia profícuo a nível da aquisição de conhecimentos, aumento de competências e convívio. Elsa Mota explicou ainda o decurso dos trabalhos no novo formato – "promovendo a aproximação entre a OSAE e os colegas no sentido de ajudar a resolver as verdadeiras dificuldades das profissões" – e destacou a "qualidade dos painéis". O presidente do CRL, o speaker que foi contextualizando os diferentes momentos ao longo do dia, passou então a palavra a Edite Gaspar, Vice-Presidente da OSAE e moderadora do "Espaço IFBM" – Instituto de Formação Botto Machado. A primeira intervenção coube a João Valadas, Solicitador, e foi dedicada ao tema "Gestão Patrimonial – Venda, arrendamento ou alojamento local? O que fazer?". Recorrendo à sua experiência, João Valadas fez uma abordagem prática às vantagens de cada solução para os clientes. A venda é a forma mais simples e rápida de obter proveitos ou ter acesso a um imóvel. Já o arrendamento é uma possibilidade para gerar proveitos do património existente, embora seja preponderante acompanhar as mudanças legislativas que têm ocorrido em contínuo. E, apesar de existir uma enorme liberdade na elaboração de contratos de arrendamento,
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João Valadas recordou que "as partes não devem ultrapassar aquilo que está na lei". Por fim, o alojamento local, pouco atrativo para grandes investidores, mas com potencial de rendimento rápido para o pequeno investidor, deve ser bem ponderado, uma vez que "tem uma série de inconvenientes" e que "o proprietário terá de estar em cima do acontecimento". Qualquer que seja o caso, elencou João Valadas, "vamos acautelar o negócio à partida para, no final, não termos problemas. Na Europa do Sul, geralmente fazemos o negócio e depois tratamos das questões que vierem, mas devemos fazer o contrário, para podermos dizer que fizemos efetivamente um bom trabalho", afirmou, enquanto destacava que as "questões fiscais são muito importantes". "Devemos mostrar aos nossos clientes os benefícios fiscais que podem existir. Às vezes, são milhões de euros." Depois de uma pausa para café, que serviu para recarregar baterias, o painel dedicado à formação prosseguiu com a intervenção de Luís de Carvalho, Juiz Coordenador do Juízo de Execução de Sintra. Subordinada à temática "Penhora do Quinhão Hereditário – Penhora, Publicidade e Venda", a explanação deu conta do normativo legal que enquadra este procedimento e como deve ser realizado. Luís de Carvalho versou sobre o objeto da penhora do quinhão hereditário, abordando a sua concretização, a notificação, o registo, a decisão de venda, as modalidades, a publicidade e o direito de preferência. O Juiz de Direito elencou que "os bens da herança, antes de realizada a partilha, constituem uma massa indivisa e o direito a ela representa um direito ideal a uma universalidade, pois o titular desse direito não sabe ainda em que bens virá a preencher-se a sua parte na herança; das operações de partilha depende a formação da sua quota, que tanto pode ser constituída neste ou naquele imóvel, como em móveis ou dinheiro". Admitindo-se a penhora do direito a esses bens, ainda que não determinados ou concretizados, a que o executado tiver direito, Luís de Carvalho reiterou que "deve ser muito difícil para os Agentes de Execução publicitarem e calcularem o valor base com a pouca informação de que dispõem", tal como, no momento da penhora em caso de comunhão ou compropriedade, "notificarem todos os co-herdeiros num curto espaço de tempo". Neste caso, chamou a atenção para a omissão de determinados atos e alertou que "a falta de notificação dos co-herdeiros, na penhora de um direito e ação à respetiva herança, equipara-se à falta de citação que tem de ser arguida quando os co-herdeiros intervierem na ação de execução, sob pena de se considerar a nulidade respetiva sanada". A temática suscitou o interesse dos participantes, que, finda a apresentação, puderam trocar impressões com os intervenientes e esclarecer as suas dúvidas. Com a plateia animada, os Delegados Concelhios e os Representantes Locais nas Assembleias subiram ao palco para se darem a conhecer, cederem os seus contactos, mas, acima de tudo, para mostrarem a sua disponibilidade para apoiar os colegas como braços da família OSAE.
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Depois do almoço, onde reinou a boa disposição, o programa do IV Fórum | Lisboa continuou com a leitura da cerimónia de encerramento do leilão eletrónico, realizada por Mara Fernandes, Vice-Presidente do Conselho Profissional do Colégio dos Agentes de Execução da OSAE. O "Espaço Colégios" teve então início com o painel "Dois Colégios, uma Ordem". Foram oradores João Pedro Amorim, Solicitador, e Rui Simão, Agente de Execução e 1.º Secretário do Conselho Geral da OSAE, com moderação de Vanda Nunes, Agente de Execução e Tesoureira da OSAE. A moderadora salientou a união entre colegas que se verificou neste fórum e introduziu o tema que os dois oradores abordariam: a complementaridade de serviços e o networking. João Pedro Amorim, Solicitador desde 2017, começou por agradecer o convite e a oportunidade dada aos jovens para participar neste fórum. De seguida, lançou uma reflexão aos presentes: "Como é que os vossos clientes vos conheceram e ao vosso trabalho? Através de amigos, familiares, do portal da Ordem? Ou de clientes satisfeitos que vos recomendam? Será que estão satisfeitos com o número de clientes que têm? Porque não têm mais clientes e interessados na vossa prestação de serviços?" O Solicitador elencou dois fatores que explicam este potencial por concretizar: em primeiro lugar, a falta de recursos, já que "podemos não ter a possibilidade de fazer investimentos". Por outro lado, a ideia que existe atualmente dentro da classe profissional de que "os clientes não existem e, portanto, não nos vão procurar. E isso não é verdade e é perigoso pensar assim. Os clientes existem e precisam de nós", sublinhou.
"Muitas das plataformas desenvolvidas pela OSAE visam potenciar a complementaridade de serviços e uma satisfação integrada de várias necessidades do cliente." João Pedro Amorim João Pedro Amorim acredita que existem três formas de combater estes fatores. Por um lado, urge aumentar a complementaridade de serviços. Isto irá divulgar as competências de Solicitadores e Agentes de Execução, fazendo com que os cidadãos recorram aos seus serviços e se crie valor acrescentado: "Valor gera valor e valor gera riqueza", acrescentou. Por outro lado, importa utilizar as plataformas eletrónicas que a Ordem disponibiliza: "Somos alvo de inveja pela riqueza de plataformas que possuímos. Muitas das plataformas desenvolvidas pela OSAE visam potenciar a complementaridade de serviços e uma satisfação integrada de várias necessidades do cliente", frisou. E por último, é necessário potenciar parcerias, não só entre colegas de profissão, como de outras áreas. Rui Simão corroborou esta ideia e deu o exemplo: "Eu próprio, enquanto Agente de Execução, sempre que um cliente meu precisa de um DPA, é logo encaminhado para um colega Solicitador. Como tal, devemos saber quem são os nossos co-
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legas para conseguirmos encaminhar o cliente. As parcerias são boas para todos e acrescentam valor." Reiterando que "o objetivo de todos nós tem que ser sempre o de colocar o cliente no centro da nossa ação", Rui Simão frisou também como essencial a questão da complementaridade: "Há quem diga que o valor dos serviços complementares é muito reduzido ou inexistente, mas tal não está certo. Têm o valor do reconhecimento e é esse que irá fidelizar o cliente." No entanto, de acordo com os dois profissionais, estas soluções só são possíveis de acontecer quando, em primeira instância, os profissionais tomam as seguintes medidas preparatórias: identificam os serviços que não são prestados nos seus escritórios, identificam e conhecem os colegas que prestam esses serviços, conhecem a praxis dos parceiros profissionais e estão atentos a oportunidades de fazer crescer a rede de prestação de serviços. "Não podemos ficar parados", concluiu Rui Simão. O "Espaço Colégios" terminou com o momento "Perguntas respondidas". Neste espaço, Presidente e Vice-Presidente do Conselho Profissional do Colégio dos Agentes de Execução da OSAE, Jacinto Neto e Mara Fernandes, e Presidente e Vice-Presidente do Conselho Profissional do Colégio dos Solicitadores da OSAE, Júlio Santos e Fernando Rodrigues, com moderação de Carlos de Matos, Presidente do Conselho Superior da OSAE, responderam a um conjunto de questões colocadas pelos participantes. Foi depois de um pequena pausa para café que teve início o "Espaço OSAE", com mais uma novidade deste fórum: as OSAE Short Talks, um momento em que quatro solicitadores tiveram 15 minutos cada para explanar temas de extrema relevância para os profissionais e divulgar as competências dos mesmos. Francisco Serra Loureiro, Vogal do Conselho Geral da OSAE, começou por abordar o tema "Direito de Consumo" e, como exemplo, referiu duas situações que podem aparecer em todos os escritórios de Solicitadores: uma compra online e uma viagem aérea com atrasos e perda de bagagem. No caso das compras online, Francisco Serra Loureiro explicou que os clientes têm 14 dias para devolver o produto adquirido, sem ter que dar qualquer explicação. Isto porque o cliente não teve contacto com o produto antes. "A maior parte das pessoas não tem este conhecimento e o Solicitador pode ajudar nestas situações", frisou. No caso da viagem, "podemos ajudar os clientes a ser reembolsados até 600 euros pelos atrasos e, se a bagagem for perdida, danificada ou chegar com atraso, o passageiro tem direito a uma indemnização até perto de 1300 euros". Já Ana Sousa Matos desenvolveu a temática do investimento internacional em Portugal, quer por parte de estrangeiros que procuram o nosso país para investir, quer de
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portugueses que residem fora e investem em Portugal. Referiu ainda os benefícios fiscais existentes, como o caso dos Golden Visa e os Startup Visa. Pedro Afonso falou sobre a representação fiscal. "Importa esclarecer alguns medos, alguns receios", começou. "Existe um clima de medo entre o contribuinte e a Autoridade Tributária, que é efetivo, e cabe ao Solicitador resolvê-lo. O Solicitador pode servir como elo no âmbito da representação tributária." Contextualizando que é obrigado a ter representação fiscal quem resida no estrangeiro (fora da União Europeia), quem resida no território português que se ausente por períodos superiores a seis meses e pessoas coletivas estrangeiras que tenham rendimentos no país, Pedro Afonso alertou que "a representação é diferente da responsabilidade". "O representante fiscal tem que receber as notificações da Autoridade Tributária, mas, acima de tudo, é obrigado a cumprir os deveres acessórios", designadamente, as obrigações declarativas. Assim, e exceção feita ao IVA, não lhe cabe
essa a tónica da conversa descontraída entre os quatro Solicitadores, que, através deste modelo inovador, mostraram áreas de intervenção menos usais. Era então chegada a hora da cerimónia de encerramento do IV Fórum de Solicitadores e Agentes de Execução | Lisboa. Na mesa presidida por José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, estiveram também presentes a Juíza Desembargadora Rosa Vasconcelos, Presidente do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, a Juíza Desembargadora Amélia de Almeida, Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, a Procuradora da República Luísa Verdasca Sobral, Coordenadora da Comarca de Lisboa Oeste, e João Aleixo Cândido, Presidente do CRL da OSAE. Rosa Vasconcelos felicitou o Bastonário por esta iniciativa que se realizou na sua comarca e salientou a aprendizagem conferida ao longo de todo o dia. A Juíza Desembargadora aproveitou ainda para felicitar todos os novos Solicitadores que iriam receber os seus diplomas.
José Carlos Resende salientou as mudanças ocorridas no modelo deste fórum, que foram aplaudidas por todos: "Queremos que estes momentos sejam cada vez mais próximos dos colegas."
Para terminar, José Carlos Resende salientou as mudanças ocorridas no modelo deste fórum, que foram aplaudidas por todos: "Queremos que estes momentos sejam cada vez mais próximos dos colegas", afirmou, acrescentando que os temas debatidos neste dia foram de extrema importância para as profissões de Solicitador e de Agente de Execução. O Bastonário concluiu com uma mensagem dirigida aos novos colegas: "Quero dizer aos colegas que vão hoje receber os seus diplomas que são muito bem-vindos a esta Casa. Desejo muito sucesso profissional e estamos cá para os ajudar a trabalhar e a ter o maior êxito possível." Depois de entregues os diplomas pelos respetivos delegados concelhios àqueles que nesse dia abraçaram a profissão de Solicitador, os participantes foram surpreendidos com a encenação "Encontro imaginário com Fernão Botto Machado", uma das muitas homenagens que ocorreram neste dia ao Solicitador que dá nome ao Instituto de Formação da OSAE. E foi com um jantar animado que terminou este IV Fórum de Solicitadores e Agentes de Execução de Lisboa, com a certeza de que a aprendizagem, a troca de experiências e de conhecimentos e o convívio foram os ingredientes que fizeram deste um grande dia. : :
fazer o pagamento de impostos, o que faz diferir o seu papel do de gestor de bens ou direitos. E porque as obrigações declarativas ocorrem não só no âmbito fiscal, mas também no comercial, Débora Riobom dos Santos tomou o palco. O Registo Central de Beneficiário Efetivo (RCBE), que neste dia, soube-se, viu o seu prazo alargado mais uma vez, foi o ponto de partida para a sua apresentação. "O RCBE vem alterar uma série de diplomas", disse a Solicitadora, esclarecendo que há vários atos societários decorrentes desse registo que as sociedades anónimas vão necessitar de fazer. "É preciso desmistificar estas alterações", reiterou, dando conta do processo de conversão de ações ao portador em ações nominativas. "São atos que se vão continuar a praticar" e, como tal, algo que os profissionais devem aproveitar e ver como uma oportunidade. Foi precisamente
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OSAE
ANGRA DO HEROÍSMO ACOLHEU IV FÓRUM DE SOLICITADORES E AGENTES DE EXECUÇÃO
Açores
Texto Andreia Amaral
O
Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, acolheu, no dia 26 de setembro, a edição dos Açores do IV Fórum de Solicitadores e Agentes de Execução. O evento foi organizado pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) com o apoio do Conselho Regional de Lisboa (CRL) e da Delegação Distrital dos Açores. Esta edição do IV Fórum deu continuidade ao novo formato estreado em Lisboa, na procura de uma maior, e ainda mais enriquecedora, interação. A preponderância dos temas e o foco nas questões pragmáticas foram fios que conduziram todos os painéis. No desenho de novos caminhos, apostou-se na formação, na apresentação de serviços, nas soluções inovadoras e nas sinergias que podem representar mais-valias para o portefólio dos profissionais representados pela OSAE. Dadas as boas-vindas aos participantes, na sessão de abertura, Beatriz T. Canto, Presidente da Delegação Distrital dos Açores, e Natércia Reigada, Vogal do CRL, desejaram um dia produtivo e profícuo. Natércia Reigada contextualizou a escolha do local do IV Fórum, reiterando a “aposta na descentralização” e o desejo de envolver e aproximar os associados de todas as regiões. Explicado o programa por Rui Simão, 1.º Secretário do Conselho Geral da OSAE, que foi o apresentador ao longo do dia, os trabalhos iniciaram-se com o “Espaço IFBM”. Sob o mote “Titulação e Sucessões”, Francisco Serra Loureiro, Vogal do Conselho Geral da OSAE, versou sobre a partilha mortis causa, abordando os procedimentos a ter e explicando os conceitos inerentes à titulação e ao quinhão hereditário. Esclareceu ainda ques-
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tões relativas à condição de herdeiro legítimo e às quotas disponíveis e indisponíveis, de acordo com o estipulado na lei. Neste âmbito, ressalvou a recente introdução na legislação, através da Lei n.º 48/2018, de 14 de agosto, da renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário na convenção antenupcial: “Temos de ter cuidado com o que tem sido veiculado na comunicação social, porque tem induzido em erro.” Francisco Serra Loureiro defendeu que “houve um cuidado em dizer que é renúncia à condição de herdeiro legitimário, não de herdeiro. Portanto, existe, à mesma, um conjunto de condições garantidas”. Não obstante, elencou que, na sucessão, “a Justiça, no tempo, é complicada de aferir e garantir”. Valendo-se de exemplos práticos, Francisco Serra Loureiro interagiu com os participantes em permanência, numa apresentação dinâmica que permitiu esclarecer as mais diferentes dúvidas relativas à lei e aos obstáculos práticos. Esta foi, de resto, uma tónica em todo o evento, marcado pelo carácter intimista e pela animada participação. Após uma pausa para café, Mara Fernandes, Vice-Presidente do Conselho Profissional do Colégio dos Agentes de Execução da OSAE, tomou a palavra para abordar “A Penhora e o Registo”, esclarecendo, desde logo, que “parte, quota ou quinhão são situações diferentes na penhora”. “A penhora realiza-se através do registo nos termos do artigo 755.º do CPC, por comunicação à conservatória”, disse, explicando que após o registo da penhora lavra-se o auto, cita-se o executado e notifica-se todos os contitulares. “A notificação dos contitulares tem como objetivo permitir que os mesmos se pronunciem não sobre o direito que detêm, mas para constituição de fiel depositário, no caso de administradores de bens, e para se pronunciarem sobre a venda da totalidade do imóvel.” Em relação à venda e publicidade, Mara Fernandes reiterou: “Não podemos vender bens que desconhecemos, independentemente da pressão que possamos sofrer do exequente.” Indicando que é necessário conhecer os limites precisos, a localização exata, entre outros elementos, defendeu que, “como Agentes de Execução, não nos podemos esquecer das nossas responsabilidades. O poder de decisão não é do exequente, mas do Agente de Execução e temos de estar devidamente protegidos”. E porque as sinergias, a troca de experiências e o convívio são também essenciais ao desenvolvimento das classes profissionais, o momento seguinte deu oportunidade para todos os associados dos Açores da OSAE se apresentarem. Quebrado o gelo, o evento seguiu com um descontraído almoço no restaurante Taberna do Teatro, onde os participantes puderam trocar impressões e estreitar laços. No espaço dedicado aos Colégios, Rui Simão, 1.º Secretário do Conselho Geral da OSAE, expôs todo o potencial e a aplicabilidade do Auto de Constatação. Realçando que “a OSAE está na frente da luta pela implementação desta ferramenta em Portugal” e que “esta já é amplamente utilizada pelos nossos congéneres franceses”, o Solicitador e Agente de Execução abordou as situações em que a ferramenta pode ser
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usada, quais os potenciais interessados e quais as vantagens da sua utilização, nomeadamente a mitigação de discussões e ações em casos que seriam facilmente resolvidos se houvesse conservação documental da realidade material. “Temos que, de facto, evidenciar a realidade material de forma isenta”, reiterou o responsável, explicando que, “muitas vezes, os Autos de Constatação podem ser utilizados para outros fins que não aquele que levou ao seu pedido”. Ao esclarecer que existem diversas tecnologias acessíveis que permitem aferir com enorme precisão um sem-número de elementos para constarem no Auto de Constatação, sublinhou a importância da plataforma OSAE 360, que permite, através de imagens recolhidas por uma câmara 360º, criar uma visita virtual e conservar no tempo estas circunstâncias.
Esta edição do IV Fórum deu continuidade ao novo formato estreado em Lisboa, na procura de uma maior, e ainda mais enriquecedora, interação. A preponderância dos temas e o foco nas questões pragmáticas foram fios que conduziram todos os painéis.
Mara Fernandes, Vice-Presidente do Conselho Profissional do Colégio dos Agentes de Execução da OSAE, juntou-se a Júlio Santos, Presidente do Conselho Profissional do Colégio dos Solicitadores da OSAE, defendendo o potencial do Auto de Constatação e assumindo que o Solicitador e o Agente de Execução têm todas as condições para “trazer para si” este serviço, quer porque a legislação já prevê a figura da verificação não judicial qualificada como meio de prova, quer porque o Estatuto da OSAE já prevê a não confidencialidade nestas situações. Num segundo momento, os dois responsáveis, cada um em nome do seu Colégio de Especialidade, deram resposta às questões que os participantes tinham colocado aquando da inscrição. Foi depois de uma pequena pausa para café que teve início o “Espaço OSAE”, com as OSAE Short Talks, um momento em que quatro oradores, Rui Simão, Mara Fernandes, Francisco Serra Loureiro e José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, explanaram de forma direta, descontraída e assertiva temáticas preponderantes para o quotidiano dos profissionais e para o aumento de competências dos mesmos. Francisco Serra Loureiro abordou o tema “Direito de
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Consumo”. Tomando como exemplos duas situações comuns, mostrou como os Solicitadores podem ajudar e fidelizar clientes. No caso das compras online, Francisco Serra Loureiro explicou que os clientes têm 14 dias para devolver o produto adquirido, sem ter que dar qualquer explicação. Isto porque o cliente não teve contacto com o produto antes. “A maior parte das pessoas não tem este conhecimento e o Solicitador pode ajudar nestas situações, muitas vezes com uma simples carta suportada na legislação”, frisou. “Pode ser algo pequeno, mas aproxima as pessoas dos Solicitadores e abre as portas para futuros serviços.” Já no caso de uma viagem com atrasos ou bagagem perdida, “podemos ajudar os clientes a serem reembolsados até 600 euros pelos atrasos e, se a bagagem for perdida, danificada ou chegar com atraso, o passageiro tem direito a uma indemnização até perto de 1300 euros”. José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, que aproveitou a sua primeira intervenção no fórum para saudar os participantes e convidados, falou sobre “Inventário”, destacando que “estamos num momento de alteração, porque foi publicada uma nova lei”. Com entrada em vigor a 1 de janeiro de 2020, esta vem introduzir, entre outras, a possibilidade de requerer o processo de inventário no notário ou no tribunal. “O inventário tem um conjunto de momentos decisivos. Identificar o ‘cabeça de casal’ e quem são os herdeiros, identificar quais os bens, decidir qual a forma de dividir os bens, fazer o cálculo e fazer o pagamento. Pode parecer simples, mas é algo que pode demorar muito tempo e tornar-se muito complexo, pela morte de um herdeiro, por exemplo, mas também por mudanças na relação de bens ao longo do tempo que vai decorrendo”, referiu José Carlos Resende, deixando alguns conselhos: “O processo de inventário deve começar antes, quando se prepara um testamento. É aí que se começa a preparar as coisas. É essencial também que, na fase posterior, o Solicitador oiça muito bem todos os herdeiros e que vá visitar e ver os bens por si. Há diferenças enormes entre o que se diz e a realidade. É assim que se estabelece a relação de confiança essencial entre o Solicitador e o seu cliente.” E porque já há vendas relativas a inventários colocadas por notários no e-Leilões, foi a esta plataforma da OSAE que Mara Fernandes dedicou a sua apresentação, explicando o funcionamento da plataforma, acima de tudo, “na perspetiva de como o Solicitador pode apoiar os seus clientes nas licitações de bens e representando-os nas mesmas”. No final, ficou o alerta: “A plataforma está preparada para ter sempre confirmação da certeza da pessoa na sua vontade de licitar, não é algo que se possa fazer por acaso. Chamo a atenção para a responsabilidade das licitações, nomeadamente criminal. A proposta, a partir do momento que é dada, não pode ser retirada. É preciso ter consciência do que isso implica.” Estar informado é, neste âmbito, fundamental. Por isso mesmo, Rui Simão falou sobre os canais que a OSAE disponibiliza para manter os seus associados informados. O site, as publicações, as redes sociais, a coletânea “Solicitadoria e
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“Em 2018, na Comarca dos Açores, tivemos um total de 969 leilões que foram organizados pela plataforma de leilões da Ordem. Nestes, vendemos 296 bens, pelo valor de 17.605.179 euros. Do total de bens vendidos, 245 foram imóveis, 20 veículos, cinco equipamentos, 14 bens móveis e 12 direitos.” José Carlos Resende
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Ação Executiva: Estudos” e a plataforma manuais OSAE “são algumas das muitas ferramentas a que todos podemos recorrer, mas nem sempre há noção de tudo o que se pode fazer com elas”, disse Rui Simão, explicando, por exemplo, funcionalidades do portal da internet da OSAE. Foram depois entregues os diplomas aos novos Solicitadores, momento que contou também com a participação da Juíza de Direito Susana Rolo, coordenadora dos Juízos do Tribunal sediados na Ilha Terceira, em representação do Presidente do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores. Já na sessão de encerramento, Susana Rolo voltou a colocar em discussão o tema do Inventário, chamando a atenção para “a questão da conveniência” e para como a mesma poderá levar ao entupimento de alguns tribunais com este tipo de processos. A Juíza de Direito sublinhou ainda as melhorias registadas nos tribunais da comarca nos últimos cinco anos: “Desde a reforma de 2014, o Tribunal dos Açores reduziu as pendências em mais de metade, o que é notável. Conseguimos resolver muito mais, mas isso também implica que resolvemos muito mais rápido.” Agradecendo a presença de representantes de diversas entidades que participaram “no muito importante Pacto para a Justiça” e do Vereador Guido Teles, em representação do Presidente da Câmara Municipal de Angra do Heroísmo – com o qual o Bastonário havia reunido de manhã – José Carlos Resende destacou precisamente que estas iniciativas “são momentos de formação e contacto entre os profissionais representados pela OSAE, mas também com toda a comunidade jurídica, com as autoridades e diferentes entidades”. Em jeito de resumo, e porque o fórum é também um momento para fazer um panorama do que se passa na Justiça, deixou alguns números relativos à Ação Executiva: “Em 2018, na Comarca dos Açores, tivemos um total de 969 leilões que foram organizados pela plataforma de leilões da Ordem. Nestes, vendemos 296 bens, pelo valor de 17.605.179 euros. Do total de bens vendidos, 245 foram imóveis, 20 veículos, cinco equipamentos, 14 bens móveis e 12 direitos”. Destacando ainda que quando os bens não são vendidos na plataforma e-Leilões passam para negociação particular, o Bastonário disse que “os processos executivos distribuídos a Agentes de Execução oscilaram entre os 1536 em 2004, os 4757 em 2011 e os 1756 em 2018. Já os Solicitadores, no âmbito das suas funções de autenticação de documentos, reconhecimento de assinaturas e certificação de fotocópias, em 2018, efetuaram 6132 atos na Comarca dos Açores”. Numa celebração da profissão, seguiu-se uma homenagem ao Solicitador que dá nome ao Instituto de Formação da OSAE, através do “Encontro imaginário com Fernão Botto Machado”, em que alguns associados deram vida a uma pequena encenação. De forma animada, o IV Fórum de Solicitadores e Agentes de Execução dos Açores terminou num salutar convívio, com um jantar no restaurante Dacemar que pontificou um dia de aprendizagem, partilha e proximidade. : :
ORDENS
PROFISSÃO: ARQUITECTO Por José Manuel Pedreirinho, Presidente da Ordem dos Arquitectos
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pesar das profundas mudanças, são muitos os testemunhos que temos da actividade de arquitectos desde os tempos mais remotos. Inicialmente uma profissão muito ligada à construção das próprias obras que idealizava, foi progressivamente libertando-se dessas tarefas para se centrar na concepção das mesmas, numa sucessão de diversificadas actividades, que hoje em dia vão desde o planeamento do território até ao mobiliário. O arquitecto tem um campo de intervenção que se pode estender por áreas tão diversas como as de várias formas de expressão artística, até à elaboração de estudos e planos ou intervenções que se estendem da apreciação, direcção ou coordenação de projectos ou acompanhamento e controle de obras, até ao vasto campo de trabalhos de análise e elaboração de estudos envolvendo todas estas áreas. Em períodos em que pensar e fazer estavam intimamente ligados, chegou mesmo a confundir-se a referência a engenheiros e arquitectos, por vezes aplicada quase como sinónimos ainda que uma sempre mais ligada à execução das obras e a outra mais ligada à concepção das mesmas, uma diferenciação clara e definitivamente assumida desde o período do Renascimento. Apesar desta distinção, e ao contrário da maior parte das outras profissões, esta continua a ser claramente uma profissão de não especialistas. Ou melhor, de especialistas em não ser especialistas. Não será a única, mas é, seguramente, uma das últimas que assim podemos caracterizar. Ainda no século passado, Adolf Loos acentuava a diferença entre o artesão (que sabe fazer) e a cultura do arquitecto, insistindo para este no papel de síntese e de construtor de pontes entre as várias actividades envolvidas.
Mais recentemente ainda, Umberto Eco referia-se ao arquitecto mesmo como uma das últimas figuras do Humanismo pela sua vocação interdisciplinar. De facto, a prática profissional do arquitecto não se resume àquilo que podemos designar de actividade projectista, com uma formação em áreas de conhecimento profundamente diversificadas, das mais técnicas, sejam as económicas ou as tecnológicas, até às humanistas. Desde o saber como se podem materializar as obras até ao entendimento das necessidades sociológicas, psicológicas ou físicas das pessoas para quem a arquitectura se destina, cabe-lhe a capacidade de tudo sintetizar, para com isso produzir aqueles que são dos testemunhos mais completos da expressão da cultura de cada época. É uma formação multifacetada, que temos mantido entre nós, em que as várias tendências reflectem as diferentes realidades de cada sociedade. Uma formação que permitiu não só a alguns colegas, sobretudo recém-formados, encontrarem fora do país o trabalho que, durante os difíceis anos da crise, aqui rareava, como assegurar uma prática profissional bastante abrangente. É uma profissão que tem mantido uma estrutura de ensino muito abrangente, quer na relação teórico-prática, quer na pluralidade de matérias abordadas, e com um exercício profissional sistematicamente reconhecido como sendo de grande qualidade. Todos estes aspectos têm permitido o significativo reconhecimento e mérito internacional dos arquitectos portugueses. : :
Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico
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OSAE
Conferência “A CONSTATAÇÃO COMO MEIO DE PROVA” REÚNE MAIS DE CEM PESSOAS NA SEDE DA OSAE Texto Andreia Amaral e Joana Gonçalves
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ealizou-se na tarde do dia 10 de julho, no auditório da sede da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), em Lisboa, a conferência internacional “A constatação como meio de prova”, sob a égide de Françoise Andrieux, antiga presidente da Union Internationale des Huissiers de Justice (UIHJ). Mais de uma centena de pessoas marcaram presença neste que foi o primeiro evento da iniciativa “Conversas de Justiça”, promovida pelo recém-criado Conselho Científico do Instituto de Formação Botto Machado (IFBM) da OSAE. Na sessão de abertura, Paulo Teixeira, Vice-Presidente do Conselho Geral da OSAE e Diretor do IFBM, congratulou a Ordem pela criação deste Conselho Científico e pela aposta num “ciclo de conferências sobre temas da Justiça patrocinados por tão renomadas personalidades”. Nesta primeira edição, acrescentou, o tema escolhido reveste-se de extrema importância, já que “o Auto de Constatação é um instrumento personalizado, inviolável e inalterável de recolha de factos e uma realidade muito importante em países como a França e a Holanda. Urge, portanto, uma reflexão aprofundada sobre o tema”. De seguida, Françoise Andrieux, enquanto patrocinadora da conferência e membro do Conselho Científico do IFBM, iniciou o seu discurso de abertura dando os parabéns à OSAE pela criação deste órgão: “A OSAE é internacionalmente apontada como exemplo e é uma grande honra fazer também parte deste Conselho, sinal da profundeza e da abertura de espírito
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da vossa profissão.” No que concerne ao tema em análise, a oradora afirmou ter como objetivo, nos painéis seguintes, explicar a realidade do seu país, França, local onde “são lavrados cerca de dois milhões de Autos de Constatação por ano”. No primeiro painel da tarde, subordinado ao tema “A constatação de facto enquanto meio probatório”, foram oradores Jos Uitdehaag, Huissier de Justice na Holanda e membro da Direção da UIHJ, Luis Ortega Alcubierre, Procurador em Espanha, membro do Comité Executivo do Conselho Geral de Procuradores de Espanha e da Direção da UIHJ, e Edgar Valles, Advogado. A moderação esteve a cargo de Rui Miguel Simão, 1.º Secretário do Conselho Geral da OSAE, que revelou que a OSAE já formou mais de 600 profissionais em Autos de Constatação, criando “uma rede bastante alargada de profissionais que já estão habilitados a realizar estes atos. Isto coloca-nos na frente da luta pela implementação desta ferramenta em Portugal”. Rui Miguel Simão lançou ainda uma questão ao painel de oradores: “Como podem os cidadãos e as empresas beneficiar com instrumentos desta natureza?” Centrando a sua apresentação nos países europeus em que o Auto de Constatação já está consagrado na lei, como é o caso da Holanda, Jos Uitdehaag afirmou que o valor desta ferramenta “é completamente diferente se o procedimento for feito por um Solicitador ou por outros agentes ou entidades”. Isto porque os atos praticados pelo Solicitador têm validade legal e são autenticados, resultando num efeito probatório. Desse modo, o juiz “tem que aceitar o Auto de
Constatação pelo seu valor probatório, ou seja, faz prova dos conteúdos”. O orador abordou ainda os princípios da imparcialidade, objetividade e equidade exigidos ao profissional que lavra a constatação, sendo portanto fundamental existir “um enquadramento legal muito completo” que garanta esses princípios. Já Luis Ortega Alcubierre mostrou que Espanha está numa situação contrária à holandesa. “Estamos, há bastante tempo, a navegar num mar revolto em que cada setor permanece na defensiva. Há desconfiança quando pedimos a possibilidade de intervir num procedimento desta natureza”, salientou. E se no país vizinho há profissionais que no exercício do seu trabalho fazem constatações, outros há que, tendo essa capacidade, não acham que o devam fazer. “Tivemos uma reforma na legislação para esclarecer os atos da nossa profissão, mas essa reforma não incluiu os Autos de Constatação. Sempre dissemos que não queremos substituir ninguém, só queremos ser eficazes em determinadas situações em que é essencial agir”, reiterou. Por último, Edgar Valles deu três exemplos, baseados na sua experiência profissional, que demonstraram que se houvesse Auto de Constatação o desfecho desses casos seria diferente “e, muito provavelmente, nem teria que se recorrer ao tribunal”. Além do mais, abordou a questão da verificação não judicial qualificada como meio de prova, mecanismo introduzido em Portugal com a revisão de 2013 do Código de Processo Civil (CPC). Nesta situação, o juiz atribui a função de verificação a “alguém que faz por si o Auto de Constatação
A OSAE já formou mais de 600 profissionais em Autos de Constatação, criando “uma rede bastante alargada de profissionais que já estão habilitados a realizar estes atos (...)”.
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"Rigor, disponibilidade e qualidade são os três vetores na elaboração de Autos de Constatação." Françoise Andrieux
ou relatório”. No entanto, acrescentou, “não há certezas sobre quem deve ser o perito ou a pessoa qualificada. A lei não atribui essa função diretamente ao Solicitador ou ao Agente de Execução. Seria preferível que se clarificasse a portaria, pois trata-se de um meio de prova muito promissor”. Depois de uma pausa para café, que deu oportunidade aos participantes para trocarem impressões sobre as experiências internacionais com o Auto de Constatação, seguiu-se uma reflexão sobre “As possibilidades práticas para a constatação em Portugal”. O painel foi moderado por Susana Antas Videira, Professora Associada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Consultora da OSAE, que destacou a pertinência do ciclo de conferências “Conversas de Justiça”. Citando Aristóteles, Susana Antas Videiras reiterou que “a Justiça é a estrela polar do Direito. Não estamos a discutir somente leis, estamos a discutir também a prática e é exatamente a prática que dá o mote a este segundo painel”. Foi nesse âmbito que João Paulo Raposo, Juiz de Direito e Chefe do Gabinete do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, partilhou a sua experiência enquanto juiz. Numa abordagem prática, elencou que “o grande campo de aplicação desta figura é preventivo, assumindo um papel de pacificação social” em fases pré-judiciais. Já no que diz respeito às fases judiciais, o Juiz de Direito confirmou que, quando utilizou esta figura, ela funcionou. Passando para a possibilidade de “alguém qualificado se deslocar ao local e ser os olhos do tribunal”, defendeu que esta pessoa qualificada “deve ser alguém que está investido de autoridade pública, algo muito importante para assegurar a credibilidade do que é dito”. João Paulo Raposo admitiu ainda que a constatação pode ajudar a ultrapassar as dificuldades que a prova pericial comum atual-
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mente coloca, posicionando-se como uma prova pericial não qualificada, ou simplificada, que permita aos “tribunais terem um mecanismo rápido e ágil de verificação de bens materiais”. Armando A. Oliveira, Vice-Presidente do Conselho Geral da OSAE, trouxe a perspetiva e experiência de alguém habituado a realizar Autos de Constatação. “Tenho realizado muitos Autos de Constatação e nenhum deles resultou em ação em tribunal”, disse, enquanto explicava que muitas vezes perpetuam-se discussões e ações em casos que seriam facilmente resolvidos se houvesse conservação documental da realidade material. “Quando vamos ao terreno, temos que ir de forma desapaixonada e temos que, de facto, evidenciar a realidade material”, reiterou, ao esclarecer que existem diversas tecnologias acessíveis que permitem aferir com enorme precisão um sem-número de elementos. “Não podemos estar à espera que outros façam o caminho (...), temos que ser nós a fazer o caminho”, defendeu ainda Armando A. Oliveira a propósito da falta de regulamentação. Na verdade, foi isso que aconteceu em França, conforme apontou Françoise Andrieux: “Começámos, pouco a pouco, a fazer alguns relatórios, a trazê-los ao tribunal e os tribunais começaram a utilizá-los, até que foram integrados nos nossos estatutos e no CPC.” Hoje uma ferramenta amplamente utilizada, a constatação responde, segundo a responsável, a uma necessidade do sistema judicial, mas também dos cidadãos e empresas, que passam a beneficiar de uma segurança acrescida. “A prova não é necessariamente judicial”, destacou, dizendo que a mesma “é intrínseca às nossas atividades, porque tudo o que fazemos é prova” e que “a constatação é o ato por excelência para trazer prova”, conservando a memória dos factos. E fá-lo para as mais diversas situações, até no mundo da Internet, para o qual a Lei e a jurisprudência implementaram, inclusive, um procedimento em França. “A globalização deverá ser acompanhada por garantias, senão irá gerar conflitos, e a constatação é uma das garantias”, elencou, dizendo que esta é uma aplicação com grande potencial. Já na cerimónia de encerramento, em que congratulou a OSAE por esta iniciativa, reflexo da pro-atividade e do enorme dinamismo da Ordem, a antiga presidente UIHJ recordou que “rigor, disponibilidade e qualidade são os três vetores na elaboração de Autos de Constatação”. Esperando que “todos
CONFERÊNCIA “A CONSTATAÇÃO COMO MEIO DE PROVA”
os profissionais tenham ficado rendidos aos benefícios dos Autos de Constatação para o sistema de Justiça”, até porque este é “um ato flexível, adaptável e transponível”, Françoise Andrieux afirmou que, resumidamente, se podia dizer que “a constatação acaba com a luta”. José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, acrescentou outra valência: “Através da constatação também se pode ganhar o combate”, disse, sublinhando que é importante sensibilizar juízes, advogados e cidadãos para a sua utilização. Fazendo o enquadramento legal e estatutário para a consta-
tação, o Bastonário recordou a importância da deontologia para a credibilização da solução. No final, acompanhado na mesa por Paulo Teixeira, Diretor do IFBM, José Carlos Resende reafirmou “a aposta da OSAE, através do IFBM, na formação”, destacando a sua importância para que os profissionais representados pela Ordem permaneçam na linha da frente. “Estamos, como sempre, disponíveis para encontrar soluções que resolvam pequenos problemas na Justiça”, concluiu, agradecendo a disponibilidade e qualidade das intervenções de todos os oradores e convidados. Coube a Anabela Pedroso, Secretária de Estado da Justiça, encerrar a primeira conferência do ciclo “Conversas de Justiça”. De regresso à casa onde fez a sua primeira intervenção pública, Anabela Pedroso felicitou a OSAE pela conferência, mas também por todo o dinamismo que sempre a caracterizou, empenhando-se na procura de um sistema mais justo e eficiente. Elencando algumas das novidades apresentados ao longo deste Governo, como o BUPi, e evidenciando a importância da cooperação com as mais diversas entidades para concretizá-las, a Secretária de Estado afirmou que “a OSAE continua na vanguarda da modernização da Justiça”. “Sei que continuaremos a ter na OSAE um local onde a tecnologia, a técnica e o rigor se vão manter.” : : Autor: Samuel Sousa
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ESCOLA SUPERIOR DE TECNOLOGIA E GESTÃO DO INSTITUTO POLITÉCNICO DO PORTO
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ENSINO SUPERIOR
“Apostamos na qualidade da formação teórica e numa forte componente prática”
MARIA JOÃO MACHADO
Coordenadora da Licenciatura em Solicitadoria da Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG) do Instituto Politécnico do Porto (P. Porto) Entrevista Joana Gonçalves / Fotografia Cláudia Teixeira assista ao vídeo em www.osae.pt
Há quantos anos foi instituída a licenciatura em Solicitadoria na ESTG e como tem evoluído ao longo do tempo? A ESTG faz parte do Campus 3 do P. Porto, localiza-se em Felgueiras e foi criada em 1999. Na altura, contava com apenas uma licenciatura, Ciências Empresariais, e cerca de 20 estudantes. Neste momento, a Escola possui sete licenciaturas, sete mestrados, sete cursos técnicos superiores profissionais, várias pós-graduações e mais de 1500 estudantes. A Escola é jovem e, por isso, repleta de qualidades, temos o corpo docente mais jovem do P. Porto, o que se traduz em empreendedorismo e inovação, que se refletem, por exemplo, num ambicioso plano de investigação e num programa de incentivo ao emprego “fora da caixa”. A ESTG assume-se, ainda, como eixo catalisador do desenvolvimento da região do Tâmega e Sousa, onde se insere. A licenciatura em Solicitadoria aparece em 2004, tornando-se, desde esse momento, a única licenciatura em Solicitadoria do sistema de ensino público do distrito do Porto. Ao longo destes 15 anos já sofreu várias adaptações. Inicialmente, esta era uma licenciatura bietápica e tinha a duração de quatro anos. Aquando da implementação do Processo de Bolonha, foi transformada numa licenciatura de três anos. Depois disso, passámos por mais duas reformas, a última das quais em 2015. Dessas reformas resultou, por um lado, uma tipologia de aulas teórico-práticas mais adequada ao nosso funcionamento e, por outro, a criação de algumas unidades curriculares de especialização. Falamos, por exemplo, de Direito do Consumo, de Direito da Insolvência, de Direito do Urbanismo, ou seja, unidades curriculares que asseguram ao discente um conjunto de competências mais alargadas, que lhe irão abrir o leque de saídas profissionais. Por este conjunto de motivos creio não ser de estranhar que, neste último concurso nacional de acesso ao ensino superior, a nossa Escola tenha preenchido todas as vagas, logo na primeira fase, e Solicitadoria da ESTG tenha sido a licenciatura mais procurada no país, tendo o último colocado com a nota mais alta quer no regime laboral, quer no regime pós-laboral.
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INSTITUTO POLITÉCNICO DO PORTO
Quais são as vossas principais apostas? Apostamos, sobretudo, na qualidade da formação teórica e numa forte componente prática que habilite os estudantes ao exercício profissional. Ao mesmo tempo, estamos abertos à utilização de práticas pedagógicas inovadoras que atraiam os nossos estudantes para o trabalho e para a prática. Posso até dar conta de algumas dessas práticas inovadoras: nas unidades curriculares de Direito Processual Civil e de Registos e Notariado, os responsáveis organizam, todos os anos, idas ao tribunal e às conservatórias, de forma a permitir que os estudantes contactem com as instituições e entidades com as quais irão trabalhar diariamente no futuro. Organizamos, também, aulas abertas, quer a nível da licenciatura, quer do mestrado, para as quais convidamos especialistas e académicos nacionais e toda a comunidade jurídica da região. É muito comum termos solicitadores, advogados, magistrados, funcionários judiciais, notários e conservadores a assistirem às nossas formações. Saliento ainda um conjunto de conferências de âmbito nacional e internacional de enorme relevo que aqui têm lugar regularmente. Falamos da Conferência Ibérica de Registos e Notariado, que vai já na sua quarta edição, das Jornadas Científicas de Processo Civil, que tiveram este ano a segunda edição, da Conferência Internacional de Direito no Trabalho, entre muitas outras. O nosso objetivo é complementar a formação ao nível da licenciatura e do mestrado com essas atividades extracurriculares. Realço que todas as nossas reformas, alterações do plano curricular e eventos são realizados em convergência com a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), com quem mantemos uma relação muito estreita. Outro aspeto que nos diferencia, desde a primeira hora, é a aposta na unidade curricular de Simulação Jurídica, que acontece no segundo semestre do terceiro ano, e tem uma forte componente prática interdisciplinar dos vários ramos do direito. Foi, desde sempre, uma proposta muito inovadora. Entretanto, e com muito orgulho nosso, está a ser adotada por outras instituições, fazendo, hoje em dia, parte dos planos de estudos de praticamente todas as licenciaturas. A ESTG, e todo o P. Porto, tem também a preocupação de desenvolver competências de âmbito social nos seus estudantes, através de um interessantíssimo programa de voluntariado. Queremos, acima de tudo, que os jovens saiam daqui seres humanos mais “ricos”. Esta é uma aposta que muito valorizamos. Podemos, então, afirmar que este curso vem romper com a ideia de que o Direito é uma área essencialmente teórica? Temos procurado combater ao máximo essa ideia. O nosso corpo docente é todo constituído – como aliás é necessário que seja –, por académicos e especialistas. Uma parte significativa do corpo docente é doutorada e os demais colegas possuem título de especialista obtido em provas públicas. E existe a preocupação de, nas unidades curriculares
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introdutórias de caráter geral, serem académicos a lecionar, enquanto as áreas de especialização estão entregues aos especialistas, ou seja, colegas com exercício profissional. É claro que não nos podemos desligar da formação teórica, que é muito importante, mas apelamos aos estudantes que se preocupem com a dimensão empírica. Realço que, desde há vários anos, incluímos na avaliação das unidades curriculares uma componente oral significativa, já que essa é uma competência muito importante para o Solicitador. Acreditamos que os estudantes, se não a desenvolverem durante a sua formação, terão grandes dificuldades no futuro.
Apostamos, sobretudo, na qualidade da formação teórica e numa forte componente prática que habilite os estudantes ao exercício profissional. Ao mesmo tempo, estamos abertos à utilização de práticas pedagógicas inovadoras que atraiam os nossos estudantes para o trabalho e para a prática.
O que pode distinguir os vossos alunos neste mercado de trabalho cada vez mais competitivo? Estou convencida de que conseguimos transmitir aos nossos estudantes os ideais desta Escola: juventude, inovação e empreendedorismo. Os nossos alunos, quando saem da Escola, têm a clara perceção de que o mercado de trabalho vai exigir deles muito empenho e muita iniciativa. A Escola continua presente na vida dos estudantes quando estes terminam a licenciatura? Sem dúvida. Quando terminam a licenciatura, grande parte dos nossos estudantes continua connosco em mestrado. Este segundo ciclo de formação tem como grande objetivo desenvolver as competências profissionais mais importantes do Solicitador, especialmente ao nível do Direito dos Contratos, dos Registos e Notariado e do Processo Civil. Mas o nosso objetivo é que, ao terminarem a licenciatura ou o mestrado, e querendo, os diplomados possam continuar connosco quer através da formação complementar que promovemos (cursos de especialização, conferências, eventos…), quer na frequência do curso de preparação para a realização do exame de acesso à Ordem. Além disso, facultamos a possibilidade de realizarem um conjunto de estágios com duração entre três e seis meses, através dos protocolos que celebrámos com o Instituto dos Registos e do Notariado e com o Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.
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A Escola possui um Gabinete de Apoio ao Empreendedor que estabelece a ponte com o tecido empresarial. O Gabinete oferece programas de formação específicos, quer para empresários, quer para alunos, e envolvemos os nossos estudantes na criação de soluções para as empresas. Entre os programas de incentivo ao emprego dirigidos aos estudantes destaco o “Impressiona-me no primeiro encontro”, que é um programa de promoção de competências transversais; o “Sai do Armário”, um programa de desenvolvimento de espírito empreendedor; e “As Ferramentas do MacGyver”, cujo objetivo é ajudar os estudantes a desenvolver ideias práticas para serem aplicadas junto do mercado e do tecido empresarial. De salientar que, pelo facto de sermos uma Escola relativamente pequena, existe uma relação muito próxima entre estudantes e docentes que é construída ao longo de três ou de cinco anos. Esta proximidade é muito importante no sucesso da formação e permite-nos permanecer em contacto, mesmo quando o período formativo termina. A Escola mantém relações com instituições estrangeiras e favorece a mobilidade dos estudantes? A ESTG tem diversos protocolos com universidades europeias e brasileiras e encetou, recentemente, contactos com vista a celebração de um novo protocolo com a Universidade de Macau. Costumamos receber vários estudantes, quer ao nível da licenciatura, quer do mestrado, naturais dos países africanos de língua oficial portuguesa. Mas a internacionalização é, sem dúvida, a nossa maior dificuldade. Não ao nível dos docentes, que a fazem regularmente através do programa Erasmus+, mas sim dos nossos estudantes. São dois os principais fatores que explicam esta dificuldade. Por um lado, creio que as bolsas Erasmus não são tão generosas quanto deveriam ser para assegurar a permanência dos estudantes no estrangeiro. Sabemos que a ajuda familiar é sempre
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INSTITUTO POLITÉCNICO DO PORTO
A OSAE é uma ordem profissional muito ativa, que faz um grande trabalho na definição e no enquadramento das competências do Solicitador. Falamos de um profissional que tem cada vez mais claro o seu papel na sociedade.
necessária e temos consciência de que grande parte das famílias dos nossos estudantes não têm esses meios económicos. Por outro lado, preocupa-nos a dificuldade dos nossos estudantes com idiomas estrangeiros. Notamos que chegam ao ensino superior com uma formação muito deficitária em línguas estrangeiras, nomeadamente em inglês. Para tentar combater esta lacuna, oferecemos vários cursos de inglês mas a procura não é significativa, por muito incentivados que os estudantes sejam. O aumento da procura do curso de Solicitadoria poderá também dever-se a uma maior sensibilidade da sociedade para compreender o papel do Solicitador? Creio que sim e nesse sentido devo sublinhar o grande trabalho que a Ordem tem efetuado. A OSAE é uma ordem profissional muito ativa, que faz um grande trabalho na definição e no enquadramento das competências do Solicitador. Falamos de um profissional que tem cada vez mais claro o seu papel na sociedade. Hoje em dia, já é muito comum ouvirmos as pessoas a dizer “o meu Solicitador”, isto porque o acompanhamento por parte deste profissional está já muito
presente no dia a dia de empresas e de particulares. Admito que para essa melhor compreensão do papel do Solicitador também haja alguma contribuição nossa [das instituições de ensino], mas o papel da OSAE tem sido fundamental. De que forma é que participar, atualmente, na direção de uma instituição como esta é, por si só, um desafio? É um grande desafio, sem dúvida. Sou coordenadora da licenciatura em Solicitadoria há muito pouco tempo. Iniciei estas funções apenas em 2018. Anteriormente tinha exercido funções como coordenadora do mestrado em Solicitadoria e já fui responsável, também, pela direção científica do departamento de Ciências Jurídicas e Sociais. Tenho, portanto, desenvolvido atividades na área da gestão, para além da área académica, e, evidentemente, é sempre um grande desafio. O meu principal objetivo é que os estudantes tenham bem presente que o coordenador da licenciatura está aqui para os ajudar. Por onde passa o futuro? O futuro passa por querermos sempre mais e melhor, por pormos um grande empenho na qualidade do nosso ensino, pela transmissão deste espírito aos nossos estudantes e, embora se trate de uma batalha difícil, pela internacionalização. Visto estarmos a iniciar um novo ano letivo, gostaria de deixar uma mensagem aos novos alunos que chegam e aos que terminaram recentemente? Os novos estudantes são muito bem-vindos e desejo, naturalmente, que se sintam bem na nossa Escola. Aos diplomados, saibam que podem sempre contar connosco, regressem à Escola sempre que queiram e, sobretudo, tenham muito boa sorte. : :
Sollicitare 65
O IFBM EXPLICA…
A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NAS COMPRAS À DISTÂNCIA E NAS COMPRAS EFETUADAS FORA DO ESTABELECIMENTO COMERCIAL
Por Francisco Serra Loureiro, Solicitador e Vogal do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
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om o aproximar do Natal e com o decorrente aumento do volume de compras de produtos e bens, nada como relembrar que existem direitos que todos nós, como consumidores, observamos e que, muitas vezes, não exercemos por puro desconhecimento. De facto, longe vão os tempos em que toda e qualquer compra era efetuada dentro de um estabelecimento comercial, dando, desse modo, uma maior segurança ao consumidor, perfeitamente esclarecido sobre as condições do bem ou serviço a adquirir. Hoje, perante novas modalidades de consumo como são, por exemplo, as vendas à distância ou fora do estabelecimento comercial, o consumidor vê a sua posição mais desprotegida, o que levou o legislador a reforçar os direitos daquele. Entendemos destacar o direito de arrependimento, aplicável aos dois tipos de contratos referidos e onde está bem patente esse pendor protecionista. Como o nome bem refere, este direito possibilita ao consumidor “arrepender-se” da compra efetuada. Ao contrário do que encontramos em quase todos os estabelecimentos comerciais, que, numa ótica de marketing, nos oferecem a possibilidade de efetuar trocas num determinado período de tempo – embora esta seja uma faculdade que os comerciantes observam e que podem entender não disponibilizar (como sucede muitas vezes nas épocas de saldos) –, nas vendas à distância e fora do estabelecimento comercial beneficiamos, por força da Lei, da possibilidade de nos arrependermos e devolver o produto adquirido. Este direito surge
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pela necessidade de proteger o elo mais fraco da relação, o consumidor, ao mesmo tempo que lhe permite refletir sobre a compra de um produto com o qual não teve um contacto prévio, equilibrando a balança da relação contratual de consumo. Este direito, além de não comportar custos para o consumidor (exceto o eventual valor do transporte), não precisa de ser fundamentado, ou seja, o consumidor não precisa de justificar por que razão pretende devolver o produto adquirido, devendo, no entanto, após receber fisicamente os bens, atender ao prazo de 14 dias para comunicar essa intenção ao vendedor, de preferência por carta registada. Após receber a comunicação por parte do consumidor, o vendedor tem um prazo de 14 dias para devolver a quantia que recebeu pelo pagamento do produto. Caso não cumpra, o vendedor observa um prazo suplementar de 15 dias, no qual terá de devolver esse mesmo valor em dobro. Importa também dizer que o direito de arrependimento não é renunciável. Com isto queremos dizer que mesmo que o consumidor assine um documento no qual refere que prescinde desse mesmo direito, essa declaração não produz efeitos, continuando a poder usufruir desta faculdade. Assim, caso não fique satisfeito com alguma compra efetuada à distância ou fora do estabelecimento comercial, pode, salvo algumas exceções, “arrepender-se”. E se isso acontecer, o Solicitador poderá ajudá-lo a garantir os seus direitos como consumidor, porque, já sabe: um Solicitador, todos os serviços! : :
PROFISSÃO
PROPRIEDADE INTELECTUAL / PROPRIEDADE INDUSTRIAL
A INTERVENÇÃO DO SOLICITADOR
Por Alexandra Cidades, Solicitadora e Agente de Execução
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or propriedade intelectual entende-se um conjunto de direitos que abrangem as criações do conhecimento humano – criações intelectuais. Esta divide-se em duas grandes áreas: por um lado, direitos de autor e direitos conexos; por outro, propriedade industrial. O Solicitador está habilitado para apoiar os cidadãos e as empresas em ambas. Neste artigo vamos, no entanto, cingir a nossa abordagem à propriedade industrial, expressão que define todas as patentes, marcas e designs abrangidos por direitos de utilização, produção e comercialização. A propriedade industrial tem como objetivo garantir que a utilização de uma criação é um direito exclusivo dos seus criadores, a nível nacional, europeu e até mundial. Esta exclusividade pode ser alargada a terceiros, através da transmissão de direitos de utilização ou de licenças de exploração, situações que são averbadas aos respetivos registos. Embora o registo da propriedade industrial não seja obrigatório, a sua realização é, de todo, aconselhável, já que permite a proteção legal dos criadores contra a utilização não autorizada das suas marcas, patentes e designs. Ao mesmo tempo, assegura que não existem registadas criações iguais ou semelhantes que invalidem as suas. No nosso país, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) é a única entidade que tem legitimidade para atribuir direitos de exclusividade sobre propriedade industrial. Estes direitos só são válidos para utilização em Portugal. Se o criador quiser vender os seus produtos noutros países, deverá proceder ao seu registo na União Europeia ou, caso o mercado de destino seja fora da Europa, via acordo/protocolo de Madrid. Poderá também registar a marca, patente ou design diretamente nos países onde quer proteger a criação, embora este seja um modo mais dispendioso. A propriedade industrial é um tema algo complexo, apesar de não parecer. Como referido, o Solicitador é um profissional habilitado para o apoiar no registo dos seus direitos. Poderá aconselhar, apoiar e acompanhar os cidadãos, empresas e restantes organizações nos processos de pedido de registo, registo e manutenção das suas marcas, patentes e designs, quer a nível nacional, quer internacional. Os direitos de propriedade industrial existem para reconhecer e estimular a criatividade e a inovação, em benefício do desenvolvimento económico e social. Tal só será possível se as invenções e criações intelectuais protegidas forem valorizadas através da sua exploração no mercado em condições que respondam às suas necessidades. Para garantir a proteção dos seus direitos em propriedade industrial, nomeadamente marcas, logótipos, modelos e desenhos, já sabe: conte com o seu Solicitador. : :
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TECNOLOGIA www.ifbm.osae.pt Por Rui Miguel Simão, Solicitador, Agente de Execução e 1.º Secretário do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
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Instituto de Formação Botto Machado (IFBM) tem um novo portal na internet disponível em www. ifbm.osae.pt. Por isso, neste espaço dedicado à tecnologia, queremos mostrar-lhe algumas das razões que nos levaram a construir esta plataforma feita a pensar, sobretudo, nos profissionais da Justiça. Mantenha-se atualizado A plataforma do IFBM ajuda-nos a conhecer uma vasta oferta formativa, focada essencialmente nas áreas do Direito e da Justiça, e disponibilizada num calendário permanentemente atualizado onde é fácil encontrar todas as sessões agendadas. Além disso, pode gerir online tudo o que está relacionado com a formação, desde a inscrição, passando pela consulta de conteúdos pedagógicos ou mesmo pela obtenção dos seus certificados. Partilhe experiências Visto que o interesse em muitas das formações do IFBM é transversal a vários profissionais da Justiça, a OSAE tem celebrado protocolos de colaboração formativa com diversas entidades do mundo judiciário e com instituições de ensino superior. As expetativas são, por isso, de que o IFBM consiga agregar as necessidades formativas de vários profissionais e satisfazê-las conjuntamente, promovendo a cooperação e a realização de mais formações, de forma descentralizada, e sempre que possível em parceria com outras entidades. Não perca oportunidades O objetivo é, assim, garantir formação jurídica de qualidade e ao alcance de todos. Imagine que tem interesse numa determinada formação, mas não tem disponibilidade nas datas ou locais agendados. Não se preocupe. Foi criada uma funcionalidade que permite aos utilizadores manifestarem o seu interesse num determinado conteúdo formativo, sugerindo um horário e local para a realização de uma nova formação. Assim, logo que
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PROFISSÃO
FAÇA POOF! AO SPOOFING
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haja um número mínimo de interessados, os serviços serão informados disso para que possam promover o agendamento da sessão pretendida. Se não puder de todo deslocar-se, saiba que a plataforma está preparada para que sejam ministradas formações à distância. Formação contínua A plataforma foi também pensada para ajudar os profissionais da Justiça a cumprir as horas de formação contínua legalmente exigíveis para si e para os seus colaboradores. Há uma grande vantagem para as entidades patronais que usem a plataforma, visto que estas podem inscrever diretamente os seus colaboradores, conseguindo acompanhar o seu registo formativo e monitorizar o cumprimento das normas legais relativas à formação contínua dos seus trabalhadores. Faça parte do IFBM da OSAE Para aceder a todas estas funcionalidades só tem de ir a www.ifbm.osae.pt e criar um registo pessoal que lhe dará acesso à sua área reservada. Uma das características mais inovadoras desta plataforma é o facto de adaptar os conteúdos disponíveis de acordo com o perfil profissional do utilizador. Assim, todos os utilizadores têm ao seu dispor um espaço personalizado, no qual podem consultar o seu histórico formativo. Para os associados da OSAE o acesso está facilitado, uma vez que pode ser feito através das credenciais que já usam para interagir com outras plataformas da OSAE. Por isso já sabe: da próxima vez que sentir necessidade de atualizar conhecimentos e de partilhar experiências profissionais na área do Direito, vá a www.ifbm.osae.pt e encontre a sua formação à distância de um clique. : :
ecentemente têm sido enviadas muitas mensagens maliciosas de SMS e de e-mail que falsificam o remetente com vista a fazer com que o destinatário julgue estar a receber a mensagem de uma origem legítima, quando, na verdade, quem envia a mensagem é um desconhecido mal intencionado. Este método de fraude eletrónica chama-se spoofing e é muito fácil de explicar: imagine que a Alice espera receber uma carta do Bob1 com a indicação do IBAN que será usado numa determinada transferência. Sabendo disso, Chuck, que tem intenções fraudulentas, envia uma carta à Alice, mas indica um outro IBAN. Tudo o que o Chuck tem que fazer para enganar a Alice é escrever no campo do remetente do envelope que é o Bob. Hoje em dia existem fraudes similares, sendo certo que se enviam muito menos cartas e, por isso, em vez de se mudar o nome do remetente num envelope, muda-se num e-mail ou num SMS. Agora já sabe que se receber um e-mail que parece ter vindo da sua própria caixa, em que alguém o tenta extorquir dizendo que conseguiu roubar os seus acessos, provavelmente está a receber spoofing. Se receber um SMS em que o remetente parece ser uma instituição financeira, uma empresa de telecomunicações ou de transporte, no qual lhe são pedidos dados (phishing) ou lhe é dado um link para descarregar um ficheiro, provavelmente será também spoofing. Desconfie sempre da origem de mensagens desta natureza e, na dúvida, entre diretamente em contacto com o remetente através dos canais que conhece para confirmar a autenticidade da mensagem. Esteja atento aos novos esquemas fraudulentos e mantenha-se a par das boas práticas de ciberhigiene. Para saber mais sobre como se proteger no ciberespaço, recomendamos que faça o curso ‘Cidadão Ciberseguro – OSAE’, disponibilizado pelo Centro Nacional de Cibersegurança e que poderá frequentar gratuitamente em formato e-learnig consultando o QR Code impresso nesta página. : :
Curso Cidadão Ciberseguro - OSAE Centro Nacional de Cibersegurança 1 Alice e Bob são personagens fictícias muito usadas nas ciências criptográficas e que tentam comunicar de forma segura, apesar das tentativas de terceiros para corromper a mensagem.
Sollicitare 69
Teses SUGESTÕES
Resumos
O contrato de swap no contexto nacional: uma análise à luz do regime das cláusulas contratuais gerais
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um mundo pautado pela inovação, que se reinventa a cada dia, o meio jurídico não é exceção, quanto mais se atendermos ao facto de este sempre se desenvolver em função do espectro real. Este é um estudo que se debruça sobre um dos muitos fenómenos de inovação financeira, o contrato de swap, bem como a consequente resposta do mecanismo jurídico. Representando um mecanismo contratual tipicamente bilateral é, regra geral, celebrado com entidades bancárias que, regra geral, se apresentam como parte forte da relação negocial, em contraste com contrapartes que, maioritariamente, se revelam menos informadas e munidas dos atributos negociais necessários à contratação de mecanismos complexos. Enquanto produto financeiro que recorre a modelos contratuais padronizados, o contrato de swap demanda uma reflexão ao regime das cláusulas contratuais gerais, introduzido pelo DL nº 445/86, de 25 de outubro, pelo que nos debatemos na análise à aplicabilidade e alcance das disposições deste regime no âmbito da contratação do produto financeiro em causa. Boa parte da relação entre ambas as figuras que dão título a esta dissertação foca-se no binómio dever/ direito de informação, pelo que surgem naturais referências a disposições legais de diversos outros diplomas, numa perspetiva de completude de análise. Resta-nos realçar que este trabalho assenta numa base tendencialmente jurídica, em detrimento da visão económica, muito devido à área de estudo subjacente, mas também ao distanciamento pessoal da praxis financeira. : : Rafael Alexandre Pedro Parreira Mestre em Solicitadoria de Empresa https://iconline.ipleiria.pt/handle/10400.8/4134
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O justificado interesse próprio da sociedade comercial na prestação de garantias a outras entidades 1
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problemática da prestação de garantias por sociedades comerciais a d ívidas de outras entidades insere-se na questão da capacidade das pessoas coletivas, esta última norteada pelo princípio da especialidade do fim. No domínio civilístico este princípio está previsto no artigo 160º, nº 1, do Código Civil segundo o qual “A capacidade das pessoas coletivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins.” O princípio foi plasmado, para as sociedades comerciais, no artigo 6º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais mas, apesar de quase impercetível, com uma redação diferente. A norma do direito societário estabelece que “A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim (...).” Daqui resulta que, neste último caso, o legislador mede a capacidade por referência ao fim ao invés da primeira norma, aqui citada, onde faz menção a fins. A mudança de redação é propositada, o princípio circunscreve-se à medida necessária para que a sociedade não possa validamente praticar actos incompatíveis com o seu fim lucrativo. O legislador quis retirar do alcance do princípio da especialidade os atos que excedem o objecto social, isto é, que excedem a atividade que a sociedade deva prosseguir. A delimitação do objeto social não influi na capacidade de gozo das sociedades comerciais. : : Melanie Oliveira Neiva Santos Docente e Coordenadora da licenciatura em Solicitadoria no Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo (ISCET), Advogada.
1 NEIVA SANTOS, M. Oliveira: “O justificado interesse próprio da sociedade comercial na prestação de garantias a outras entidades”, Percursos & Ideias: Cadernos de Solicitadoria, n.º 7, 2016/2017, pp. 44-51. https://www.iscet.pt/sites/default/files/repository/content/ magazine/1223/file/5d24232f.pdf
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PROFISSÃO
SOLICITADORES ILUSTRES ANÍBAL CARVALHO DE ARAÚJO “Quando um homem assume uma função pública, deve considerar-se propriedade do povo” Thomas Jefferson*
Por Miguel Ângelo Costa, Solicitador, Agente de Execução e Presidente do Conselho Fiscal da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
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níbal Carvalho de Araújo inscreveu-se na antiga Câmara dos Solicitadores, aos 26 anos de idade, no dia 18 de janeiro de 1956 (Cédula 547), inicialmente na comarca de Esposende, mas logo “assentou praça” na sua terra natal, Barcelos. Não exerceu continuamente atividade e chegou mesmo a suspender a sua inscrição, dado ter exercido outras profissões incompatíveis com a de Solicitador. Mas era como Solicitador que se identificava. Sentia-se vocacionado para tão nobre função, colocando acima de tudo o interesse público. Assim ditava o seu carácter, a sua educação, cultura e a enorme vontade de servir. É, pois, através de todas estas dimensões que devemos olhar para o seu percurso enquanto esteve entre nós: a do Solicitador, a do político e a do homem da cultura, numa trindade indissociável para o bem servir da comunidade. Vejamos: O Político A militância política de Aníbal Carvalho de Araújo começou na sua juventude, com a oposição ao regime, como militante do MDP/CDE. Dizia ele ao Barcelos Popular sobre o antigo regime: “Lembro-me bem que, na escola primária, a meu lado, uma grande parte dos meus colegas andava descalça, mal vestida, até andrajosa; alguns passavam mesmo fome; usavam ao tiracolo uma sacola de linhagem e dentro uma lousa, como principal elemento de trabalho. Muitos deles não tinham qualquer apoio familiar, nem podiam ter, porque os pais mortificavam-se em trabalho para ganhar o sustento… Os mendigos eram aos montes, e quem ousava falar de política arriscava-se
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legal, dando um grande contributo para o aumento do emprego. Deixou saudades a muitos edis barcelenses, que ainda hoje falam da sua gestão. O Homem da Cultura Após ter deixado a Câmara Municipal, Aníbal Carvalho de Araújo não se contentou com a obra feita. Fundou com outros colegas a Cooperativa “Milho Rei” e, dentro dos objetivos desta cooperativa, o semanário, ainda hoje referência desta região, “Barcelos Popular” e o grupo de Teatro “A Capoeira”. Foi ainda fundador e administrador, até à sua morte, do Cinema Voga.
a ser preso. Os jornais só diziam aquilo que a censura deixava e alguns escritores viam os seus livros apreendidos. Viver nesta situação era uma vida de enguia, isto é, teria de se saber vergar o corpo de modo a não colidir com algum destes obstáculos, que podia ser fatal para a vida e para o futuro.”1 Foi este íntimo de homem livre que o levou para a oposição democrata e que fez com que, no 25 de Abril de 1974, fosse escolhido como vogal da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Barcelos, edilidade para a qual foi nomeado Presidente, no ano de 1975 até 1976. Conhecido como pessoa de fácil relacionamento e de bom trato, enquanto esteve à frente dos destinos da autarquia Barcelense teve que enfrentar situações muito delicadas. Não fugiu delas. Resolveu-as a preceito e com coragem. Perante cenários de manifestações hostis, dizia muitas vezes: “Eu não tenho medo!”2 E com assertividade, bravura e responsabilidade, lá ia levando a “água ao seu moinho”. Quando deixou a Câmara Municipal, o saneamento financeiro tinha sido alcançado com êxito. Deixou também muitos empreendimentos, autorizou e licenciou diversas indústrias, sempre dentro do mais estrito cumprimento
O Solicitador Carvalho de Araújo, apesar de outras profissões que teve na vida, sempre se intitulou como Solicitador. Dizia-me ele, quando comecei a dar os meus primeiros passos nesta profissão (aliás por sua influência e apoio): “Sempre quis ser Solicitador.” O pai dele opunha-se, porque “era escrivão judicial e não queria zangas com advogados”. Mas, graças a atributos como o bom trato, a inteligência, o estudo dos assuntos ou o bom relacionamento com clientes, funcionários judiciais, advogados e juízes, sempre foi visto como exemplo e reconhecido por todos. Era um verdadeiro Solicitador Judicial à moda antiga, como sói dizer-se, mas acima de tudo era um homem bom e que deixou muitas saudades. Tinha a obrigação de eternizar esta pequena lembrança, em modo de homenagem, na certeza de que toda a OSAE a comunga, porquanto também sei que ele estaria orgulhoso da transformação da antiga Câmara de Solicitadores numa pujante Ordem, com novos objetivos e com um futuro risonho, por si continuado através da sua filha, a nossa Colega, Ana Patrícia Araújo. : :
* 3.º Presidente dos EUA 1 - Barcelos Popular 17/11/94, pág. 6 2 - Idem
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CULTURA
“Ainda tenho muito para fazer no humor” E N T R E V I S TA A
EDUARDO MADEIRA FOI COM A PERGUNTA “ONDE É QUE TU ESTAVAS NO 25 DE ABRIL” QUE DEU INÍCIO À ‘MACACADA’: ENTENDA-SE, AO INÍCIO DA SUA CARREIRA. QUERIA SER UMA ESTRELA DE ROCK, MAS FOI A ESCRITA QUE O TROUXE À RIBALTA. ESTREOU-SE COMO ARGUMENTISTA, INICIOU-SE DEPOIS NOS ESPETÁCULOS DE STAND UP E HOJE INTITULA-SE ATOR DE COMÉDIA, A MESMA QUE TOMOU CONTA DESTA CONVERSA EM QUE VOLTÁMOS À GÉNESE DE UM TALENTO QUE O TORNOU UM DOS MAIS POPULARES ATORES DA SUA GERAÇÃO. APRESENTAMOS, SENHORAS E SENHORES, EDUARDO MADEIRA.
Entrevista Joana Gonçalves / Fotografia Rui Santos Jorge assista ao vídeo em www.osae.pt
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Como não poderia deixar de ser, começo por perguntar “onde é que tu estavas no 25 de Abril”? Esta é a frase que marca o início da ‘macacada’, como costuma dizer? No 25 de Abril, creio que já estaria em Coimbra, a terra natal do meu pai. É curioso que essa frase marcou realmente o pontapé de saída para a minha carreira. Na altura, tinha sido desafiado pelo João Quadros e pelo Nuno Artur Silva (da Produções Fictícias) para escrever uns textos de teste para o Herman José e para seu ‘Herman Enciclopédia’. Juntei-me com um amigo, o Henrique Dias, e fomos logo chamados para começar a escrever para o programa. Fiquei, nesse momento, com a noção de que não queria fazer outra coisa na vida! Se já havia essa suspeita, aí tudo se confirmou. O facto de ter nascido na Guiné tem influência na sua vida? Sim, tem sempre influência. O meu pai viveu muitos anos em África e, culturalmente, acaba-se por absorver alguns elementos de lá. Seja na música, seja nas vivências… E isso influenciou-me muito ao longo da vida. Estou até, neste momento, a pensar obter a dupla nacionalidade e vocês é que me poderiam ajudar nisso! Facilitar-me-ia imenso se quiser lá ir ou se quiser jogar na seleção da Guiné… [risos] Começou a destacar-se ainda em criança, na escola, a fazer piadas com os filmes de Charlie Chaplin. Acredita que se nasce humorista? Acho que sim, que se nasce com esse apelo. Quando era pequeno, como era filho único e não gostava de o ser, usava a comédia como forma de estar sempre rodeado de amigos. Lembro-me perfeitamente – e esta é uma experiência que define, em parte, o meu percurso – de passarem, no colégio, filmes do Charlie Chaplin, do Buster Keaton e do Louis de Funès. E quando o filme acabava, eu ia para o recreio e imitava para os meus colegas as histórias que tinha visto nos filmes, à minha maneira e com assinalável sucesso. Começou a escrever, passou depois a fazer stand up e, já mais tarde, mostrou a sua veia de ator. Um humorista é necessariamente ator? Não, um humorista não é um ator. Posso dar o exemplo de um grande humorista português, que por vezes não é
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suficientemente reconhecido, que é o José Vilhena. Ele escrevia, fazia caricaturas e marcou um Portugal e uma época com um humor cheio de mordacidade, um humor muito forte, que lhe custou até alguns dissabores no período da censura. Portanto, um humorista não tem necessariamente que dar a cara, pode exprimir-se de vários modos. Na verdade, eu não sabia até que ponto é que podia ir a minha multidisciplinaridade dentro do humor. Quando comecei, pensava que iria escrever humor para comediantes. Mas, aos poucos, os apelos foram crescendo e o palco tornou-se mais importante do que a escrita. Já fiz teatro, já fiz stand up comedy, já tive todas as experiências de humor em palco. Já tive até uma banda de comédia, os Cebola Mol! Mas creio que isto terá o seu prazo. Não sei se vou conseguir estar em palco aos 80 anos, se bem que olho para o Keith Richards e penso: “bem, nada é impossível!” [risos]. De qualquer forma, ainda me considero um principiante. Acho que ainda tenho muito para fazer no humor. Estou só a começar. A inteligência é essencial para se fazer humor de qualidade? Creio que sim, se bem que há diversos tipos de inteligência. Há uma mais emocional, mais espontânea, e há outra mais analítica. Quando olho para os meus colegas, estou sempre a tentar perceber qual é a deles. É muito interessante ver a maneira como o cérebro dos comediantes processa a vida e o mundo. Sei que a minha maneira de ver as coisas é muito emocional e intuitiva. Estou muitas vezes a olhar para as pessoas que me rodeiam e a tentar sentir o que se está a passar e a imaginar o que estão as pessoas a pensar. E depois há aquela parte do humorista da qual não se consegue fugir que é escolher as partes risíveis e com piada de tudo o que está acontecer. No entanto, há colegas que têm uma visão mais racional. É um processo muito curioso. A famosa banda Cebola Mol foi uma tentativa de realizar o sonho de ser estrela de rock? Sem dúvida. Acho que o meu sonho secreto era ser uma grande estrela de rock e, à minha maneira, consegui! [risos] Estou a brincar, na verdade o meu talento para a música nunca foi muito. Mas consegui, através do humor, cumprir esse
ENTREVISTA COM EDUARDO MADEIRA
ESCOLHAS… Um livro: O Estrangeiro (Albert Camus) Um filme: Apocalypse Now Um programa de TV: Monty Python Uma música: Eleanor Rigby (The Beatles) Um sítio: onde vivo, em São Pedro do Estoril.
Eu não sabia até que ponto é que podia ir a minha multidisciplinaridade dentro do humor. Quando comecei, pensava que iria escrever humor para comediantes. Mas, aos poucos, os apelos foram crescendo e o palco tornou-se mais importante do que a escrita.
sonho. E aquilo foi um epifenómeno, houve uma altura em que nós tínhamos mesmo muita gente à nossa frente e, ainda que fosse a brincar, sentimo-nos como verdadeiros roqueiros. Estão previstos novos concertos? De momento não. Estivemos, no ano passado, no NOS Alive e foi inacreditável, estava um mar de gente. Vi pessoas a chorar a ouvir Cebola Mol! São pessoas com problemas a ouvir uma banda feita de pessoas com problemas! [risos] Mas a minha vida e a do Filipe Homem Fonseca [o outro membro da banda] é outra. Ele é escritor, realizador, argumentista. E, no meu caso, o humor toma-me a maior parte do tempo. Mas é certo que cada vez que voltamos aos Cebola Mol é um divertimento tal, é tão catártico e libertador, que, no fim, em vez de irmos receber o cachet, quase que nos apetece é pagar a quem esteve a assistir! É mesmo muito divertido. As imitações são uma das vertentes que mais notoriedade lhe dá entre o público. Quais são as suas imitações preferidas? Acho que a imitação em que mais consigo passar pela pessoa é a do Nuno Markl, curiosamente, e se calhar nem é a que tem mais impacto. A do Trump tem muito impacto visual. Ao vivo então, as pessoas ficam sem respiração, ao princípio, e depois percebem que é só o Madeira a fazer de Trump. A do Jorge Jesus e a do António Lobo Antunes também são das minhas favoritas. O curioso é que eu não sabia que conseguia fazer imitações. Foi no programa da RTP ’Os Contemporâneos’, cuja direção de atores era feita pelo Nuno Lopes e que contava com a participação de nomes como Bruno Nogueira e Maria Rueff, que começaram a dizer: “Isto é uma coisa que tem que ser feita pelo Madeira!” E foi nesse programa, há mais de dez anos, que fiz o Jorge Jesus e o Lobo Antunes pela primeira vez. Foram as minhas primeiras imitações. A partir daí, fui-me sempre esticando. Sei que algumas não são bem imitações. Por exemplo, no ‘Donos Disto Tudo’ fazia de Professor Marcelo Rebelo de Sousa. Fisicamente, sou dois Professores Marcelo! [risos] E mesmo a imitação da voz, tenho a consciência de que não é a melhor. Sei que o António Machado e o Franco Bastos fazem a voz muito melhor do que eu. Mas, apesar de fisicamente não estar lá e de a voz não ser
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a melhor, consegui uma imitaçãozinha razoável. Outra imitação que adorei fazer e se tonou viral foi a do Chefe Ljubomir Stanisic, no ‘5 para a Meia Noite’. Ele estava lá e foi incrível! É possível fazer humor com todos os temas, até com os mais sensíveis? Acho que é perfeitamente possível fazer humor com todos os temas. Quando estamos a fazer humor, estamos mesmo só a fazer humor. Pode não agradar, pode chatear, pode ser incómodo. Mas dou o seguinte exemplo: as pessoas que não gostam de rap, não são obrigadas a ouvir rap. Se não gosto, não oiço. Com o humor é a mesma coisa. Se não gostas de um artista, se não te identificas com o humor dele, escolhes outro artista. Tudo faz parte do humor, podemos brincar com tudo. Ultimamente ouve-se muito: “Ah e tal, brincar com as minorias, com o humor negro, essa piada é sexista, essa piada é machista…” É uma piada! O problema, a meu ver, são as
sucesso é ser Cristiano Ronaldo. E ele é, de facto, uma das facetas do sucesso. O Cristiano Ronaldo é o maior. Mas ele é um atleta, não é um intelectual. O país, às vezes, não é suficientemente esclarecido para dar também valor a pessoas que se destacam noutras áreas. Por isso, e se durante muito tempo o Zé Povinho condensou a imagem do português, acho que hoje o Zé Povinho se transformaria num Cristiano Ronaldinho [risos]. Falando então de outras áreas profissionais, e sendo a ‘Sollicitare’ a revista da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, pergunto se já fez alguma piada com Agentes de Execução. Creio que nunca fiz nenhuma piada com Agentes de Execução. Mas há um momento no meu novo stand up que tem a ver com Ordens, precisamente. Digo, nessa piada, que há atividades que mereceriam ter também a sua Ordem e o seu
Existe uma grande confusão entre o que os humoristas dizem – porque estão a brincar e fazer o seu trabalho – e o que os humoristas pensam, que não tem que coincidir exatamente com o que dizem. Portanto sim, tudo é passível de piadas.
pessoas que falam a sério. Um machista, a sério, não se pode desculpar. Um racista, a sério, a mesma coisa. E isso é que é grave. Agora uma pessoa que faz uma piada, faz uma piada. Existe uma grande confusão entre o que os humoristas dizem – porque estão a brincar e fazer o seu trabalho – e o que os humoristas pensam, que não tem que coincidir exatamente com o que dizem. Portanto sim, tudo é passível de piadas. Não sabemos rir da nossa própria desgraça? Não sabemos muito. O português adora piadas sobre portugueses, até ao momento em que se lembra que é português e diz: “isto não tem piada nenhuma!” [risos] Não somos muito de nos rir de nós mesmos. Se os portugueses fossem uma personagem, como a idealizaria? No Portugal atual, acho que 70 por cento da população gostava de ser o Cristiano Ronaldo. As pessoas pensam que
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Bastonário. Por exemplo, a Ordem dos Humoristas: o Bastonário seria o Ricardo Araújo Pereira; a Ordem dos Geeks: o Bastonário só poderia ser o Nuno Markl; a Ordem dos Choninhas... esses ainda estão em eleições! [risos] Rir ainda é o melhor remédio? Sem dúvida. Devo dizer que há dois tipos de comediantes: há os que não são normalmente bem-dispostos no seu dia a dia e são sérios e depressivos (os comediantes são pessoas com problemas de cabeça, claramente); e há outros que são bem-dispostos e divertidos. E creio que esse último grupo – no qual me incluo – é menor. É o partido minoritário. Mas eu sou assim, porque creio claramente que não vale a pena andar mal disposto, já que tal não resolve nada. E mesmo que recebamos a visita de um Agente de Execução, se ficarmos mal dispostos vamos continuar a ter que pagar a dívida à mesma. [risos] Portanto sim, rir é sempre o melhor remédio. : :
SOCIEDADE
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: PARCEIRA NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE DO FUTURO? “Acredito que o desenvolvimento pleno da inteligência artificial poderia significar o fim da raça humana.” Stephen Hawking
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célebre físico Stephen Hawking acreditava que o desenvolvimento tecnológico podia ter tanto de positivo como de arriscado. E afirmava isto por entender que os seres humanos não conseguem desenvolver-se tão depressa como as máquinas. Aqui reside a questão basilar que se levantou com o aparecimento dos computadores: poderá um computador comportar-se de forma inteligente, adotando uma conduta parecida à que um ser humano exibiria em situação semelhante? Na tentativa de lhe dar uma resposta, desenvolveu-se uma área que veio a designar-se por Inteligência Artificial (IA). Diversos filmes visitaram esta sedutora temática. Quem não se lembra de Artificial Intelligence, The Matrix ou Her? Todos eles nos catapultaram para o campo da especulação, levando-nos a imaginar o futuro. Um sistema IA, para além de armazenar e utilizar dados, consegue ainda adquirir e manipular conhecimento. Já está presente no nosso quotidiano, mesmo que disso não nos apercebamos: quando nos socorremos das aplicações que nos sugerem os melhores caminhos para fugir ao trânsito ou sempre que os motores de busca nos fazem sugestões de pesquisa, precisando nós tão só de escrever algumas letras. E, à medida que nos vamos habituando à sua existência, a verdade é que nos tornamos dependentes da Inteligência Artificial. Mas, com ela, vêm atreladas as mais variadas perguntas. Como lidar com a eventual perda de autoridade humana, se robôs inteligentes conseguirem ser mais evoluídos numa diversidade de áreas? Um sistema inteligente é capaz de criar um sistema ainda mais inteligente do que ele (superinteligência), tornando-o um perigo para a humanidade? De quem é a responsabilidade em caso de acidentes com veículos autónomos? Ora, com o objetivo de criar uma cultura de “IA de confiança para a Europa”, sem esbarrar nos seus valores fundamentais, a Comissão Europeia criou, em 2018, o Grupo Independente de Peritos de Alto Nível sobre a Inteligência Artificial. Os mesmos defendem que uma IA de confiança deve ser legal, ética e sólida, tanto do ponto de vista técnico, como do ponto de vista social, dado que, mesmo com as melhores intenções, os sistemas de IA podem causar danos não intencionais. De modo a concretizar uma IA de confiança, esses peritos acrescentam ainda a importância de uma ação e supervisão humana, robustez e segurança, privacidade e governação dos dados, transparência, diversidade, não discriminação e ainda responsabilização. Certo é que há um longo caminho a percorrer. No que concerne ao mercado laboral, tudo indica que, tal como aconteceu com a internet, a IA vai facilitar os empregos existentes e criar novos. Vai libertar-nos de tarefas repetitivas para nos podermos focar nas mais complexas e criativas. Há também poucas dúvidas que a mesma levará ao crescimento da economia mundial e à criação de riqueza. Resta saber como será redistribuída. Talvez seja assustador, mas parece altamente improvável que, no futuro, o suporte biológico apresentado pela nossa espécie há milhares de anos se mantenha como a única forma de suportar a inteligência humana. Habituemo-nos a esta ideia. : :
Diana Andrade Jurista
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ENTREVISTA
“Mantive sempre em mim o sentido de Justiça”
JOSÉ DA MOTA FERREIRA Nasceu em Arouca há 87 anos, mas foi em Oliveira de Azeméis que traçou o seu percurso de vida. Passou por Moçambique, foi oficial de justiça, escrivão, inspetor, tesoureiro, assistente social, tudo isto antes de se tornar Solicitador. E foi no seu escritório de sempre, naquele cujas paredes viram entrar avós, pais, netos, amigos e clientes ao longo de 45 anos de profissão, que José da Mota Ferreira nos recebeu para falar de histórias de outros tempos. E do sentimento de missão cumprida.
Entrevista Joana Gonçalves assista ao vídeo em www.osae.pt
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O seu percurso profissional é vasto. Como é que, depois de ter desempenhado tantas funções, a Solicitadoria chegou à sua vida? A Solicitadoria chegou à minha vida pelo sentido de Justiça que sempre me orientou. Cresci a saber que os meus antepassados haviam passado por situações injustas e erradas e isso sempre me marcou. Tinha também familiares ligados ao Direito, nomeadamente nos tribunais, o que me pode ter influenciado de alguma maneira. Mas o meu percurso começou pela Escola Militar. Ingressei, de seguida, no Ministério da Justiça, passei pelo notariado, pelos tribunais e acabei por ser nomeado oficial de justiça na comarca de Quelimane, em Moçambique. Aí estive alguns anos. Entretanto, desempenhei também funções como Secretário das Inspeções aos Tribunais, Cartórios Notariais e Conservatórias do Registo Civil, Predial e Comercial. Naquela época era o mais novo na Justiça e por mim passaram vários casos marcantes, como os relacionados com a emancipação feminina. Recordo que houve uma altura em que o país se debatia com a falta de colaboradores no serviço público, já que apenas os homens trabalhavam e a média de idades dos trabalhadores era elevada. Um dia, numa das inspeções, o meu superior perguntou-me como é que eu resolveria esse problema se tivesse poder para tal. A minha sugestão foi no sentido de se recrutar raparigas junto das escolas ou lançar um convite a nível nacional para que as mulheres ingressassem na função pública. Ele ficou muito aborrecido comigo. [risos] “As mulheres nem votar
podem, fará trabalhar!”, ripostou. Acrescentei que a mulher é tão capaz de trabalhar como o homem e que assim o problema ficaria resolvido. E não é que, passado pouco mais de um mês, recebo um ofício do Ministério da Justiça a decretar a realização de um recrutamento nos mesmos termos que eu tinha proposto? Lançou-se um convite nas escolas e nas faculdades para que as senhoras pudessem ingressar na função pública e eu acabei por ser o responsável por realizar o primeiro exame às candidatas! Todas as que passaram por mim acabaram por entrar com muito bons resultados e eu fiquei extremamente orgulhoso. Uns tempos depois – quando já desempenhava funções como escrivão – comecei a ter alguns problemas de saúde na mão direita. Foi nesse momento que decidi apostar na Solicitadoria. Em novembro de 1974, fiz o exame para ser Solicitador, no Palácio da Justiça do Porto, passei à primeira e, em janeiro do ano seguinte, já estava a exercer, exatamente neste mesmo escritório em que estou hoje, em Oliveira de Azeméis. Cerca de dois anos depois de começar esta nova atividade, ainda fui convidado pelo Ministro da Justiça para
voltar a exercer funções públicas, nomeadamente para percorrer várias comarcas a fim de identificar problemas. Não aceitei porque tinha duas filhas pequenas e queria que elas fizessem um curso superior. Não seria com um pai ausente que elas o iriam fazer. E assim foi, continuei o meu trabalho como Solicitador e hoje tenho duas filhas e uma neta licenciadas em Direito, o que muito me alegra. Como foram os primeiros anos como Solicitador? Os primeiros anos não foram difíceis, porque mantive sempre em mim o sentido de Justiça. O meu nome já era conhecido na região por causa da minha carreira nos tribunais e isso fez com que tivesse sempre clientes, mesmo no início da profissão. E, aquando a inscrição na então Câmara dos Solicitadores, mantive o nome profissional Mota Ferreira, pelo qual era conhecido. Creio que terei sido o primeiro Solicitador nesta comarca da região norte, daí o sucesso. Além disso, procurei ser sempre humilde, respeitador e educado, fosse com amigos, fosse com clientes. Ainda hoje há imensas pessoas que me procuram, aqui neste meu escritório de sempre.
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ENTREVISTA COM JOSÉ DA MOTA FERREIRA
Cheguei até a trabalhar com vários advogados do Porto e de Oliveira de Azeméis. Todos eles tinham já bastante idade e eu era o mais novo na área do Direito. Como sabiam que eu já tinha bastante experiência, pediam-me para os ajudar em vários processos. Todos eles se tornaram grandes amigos.
Em novembro de 1974, fiz o exame para ser Solicitador, no Palácio da Justiça do Porto, passei à primeira e, em janeiro do ano seguinte, já estava a exercer, exatamente neste mesmo escritório em que estou hoje, em Oliveira de Azeméis. Mas voltando à época em que me iniciei, recordo que nesses anos havia grandes problemas de direitos reais, sucessões e heranças. Tratei também de muitas licenças de rádio e de imensos processos para atribuição da pensão de sobrevivência, instituída pelo governante da altura, Marcello Caetano. Era preciso preencher um montão de papéis e as pessoas mais idosas – a maioria nem ler sabia – iam às repartições de finanças e às conservatórias pedir ajuda no preenchimento, mas ninguém ajudava. Então alguém lhes falou no meu nome e começaram a vir ao meu escritório. Começaram até a formar fila. E eu em poucos minutos resolvia-lhes o problema. Foi assim que me tornei ainda mais conhecido enquanto Solicitador: essas pessoas começaram a falar de mim aos amigos e aos vizinhos e a palavra foi-se espalhando. Isto também porque nunca cobrei um cêntimo a nenhuma delas. Essas pessoas eram tão pobres que precisavam do meu auxílio! Foi esse o segredo para, mais do que clientes, fazer amigos? Foi, sem dúvida, o melhor passo que dei: atender condignamente, com respeito e com muito carinho todas as pessoas que me procuravam. Era assim que eu também era tratado, portanto só era minha obrigação retribuir. Nestas já mais de quatro décadas, acabei por fazer muitos amigos, de várias gerações. Fui o Solicitador de famílias inteiras, desde o avô, ao pai e agora ao neto. Consegui juntar uma clientela incalculável.
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Há algum episódio marcante no seu percurso profissional enquanto Solicitador que ainda hoje recorde? Tenho várias histórias, mas há uma que me marcou e que ainda hoje recordo com especial carinho: um dia, no final dos anos 70, já passava da meia-noite e o telefone começa a tocar. Do outro lado da linha falava-me uma advogada brasileira do Rio de Janeiro. Contou-me que tinha em mãos o processo de uma partilha de bens de uma abastada família portuguesa de Oliveira de Azeméis, emigrada no Brasil. Em causa estava um importante e valioso património, que deveria ser dividido por uma dezena de filhos. A doutora pedia-me ajuda para resolver essa questão e o meu nome, explicou, tivera-lhe sido indicado por ser da zona e por ter experiência nessa área. Aceitei e, depois de me inteirar devidamente da situação, fiz um mapa de partilha. Dois dias depois, enviei-lhe o esboço via fax e, passados uns dias, a doutora telefonou-me e disse: “Sou advogada há 50 anos e nunca pensei que houvesse alguém que conseguisse resolver esta partilha. Já tínhamos tentado aqui no Brasil, já tínhamos tentado em Portugal junto de um advogado do Porto conhecido da família, sempre sem sucesso. E agora, depois de verem o seu trabalho, todos os irmãos aceitaram.” Foi, sem dúvida, das maiores e mais complicadas partilhas que fiz. Fiquei muito satisfeito por a conseguir resolver. Quais são, na sua opinião, as características que um Solicitador deve ter? O Solicitador deve ser honesto, diligente, responsável e deve estar permanentemente atualizado. Deve tentar resolver o conflito da melhor forma, de preferência evitando que este chegue aos tribunais. Há tantos mal entendidos que se resolveriam com diálogo e com pedidos de desculpa. Foi assim que sempre orientei o meu percurso. E são estes os conselhos que costumo deixar aos jovens que abraçam agora a profissão: devem ter sempre em mente os conceitos de honestidade, sinceridade e responsabilidade. São estes os pilares essenciais para quem quer ser um bom Solicitador. Como é que é atualmente o seu dia a dia? Tenho sempre assuntos pessoais para tratar [risos]. Continuo a vir até ao escritório, há antigos clientes, hoje grandes amigos, que ainda me pedem conselhos, porque sabem que estou inscrito na Ordem e continuo a interessar-me muito por tudo o que se relaciona com a Justiça. Leio muitos jornais, gosto de estar sempre a par da atualidade. E assisto com orgulho ao percurso de sucesso que as minhas duas filhas e a minha neta vão percorrendo. Sinto-me muito feliz por ver que seguiram os meus passos. : :
SUGESTÕES
LEITURAS Pensando como poderia sugerir duas obras literárias diferentes, assentes em formas diversas de abordar temas sempre atuais, recordei dois livros que li há muitos anos e que, quiçá pelo forte envolvimento que produzem no leitor, nunca aqueles a quem os emprestei mos devolveram. Coisas que acontecem!... Escolhi propositadamente autores estrangeiros, em parceria, e um português. Aliados aos temas e à grandeza dos autores, dois aspetos em comum: o lerem-se de um folgo e o reduzido preço de cada um dos livros. Podem, pois, também por estas razões, recomendar-se a quem tem faltas, sejam elas de tempo ou de dinheiro.
Por Armando Oliveira, Solicitador, Agente de Execução e Presidente da Assembleia Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
CONTAI AOS VOSSOS FILHOS, de Stéphane Bruchfeld e Paul A. Levine Um livro sobre o holocausto na Europa (1933-1945) que, com ilustrações, descreve o extermínio em Auschwitz-Birkenau e o que seres humanos são capazes de fazer aos seus semelhantes em nome de ideais assentes no ódio, na intolerância e na violência, em contraponto com os valores humanistas e democráticos, da compreensão, da tolerância e do respeito. Um livro de fácil mas dura leitura, feito de ilustrações que nos permitem cumprir a mensagem do seu título. Eis o que aconselho vivamente, não só aos filhos como aos netos, aos amigos e aos filhos e netos dos amigos, com expresso aconselhamento do compromisso de que deverão de igual modo proceder, por forma a perpetuar a memória daqueles que sofreram e/ou perderam a vida por tão fúteis motivos.
DE PROFUNDIS, VALSA LENTA, de José Cardoso Pires Um livro que emerge do acidente vascular cerebral sofrido pelo autor em 1995, que o fez viver na terceira pessoa, sem memória do passado. Recuperado, deixou-nos o impressionante testemunho do que é estar ausente estando presente. Testemunho de vida, retrato autobiográfico de uma experiência traumática e da capacidade de se manter escritor, apesar de “ter estado do lado de lá”. Livro forte, que nos faz pensar e valorizar os nossos dias. Em suma, o grande José Cardoso Pires em final de vida, mas no seu melhor. : :
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ROTEIRO GASTRONÓMICO
Su ges tõ es
Por Sérgio Fernandes, Instituto de Formação Botto Machado da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
RESTAURANTE VEET - Sushi Bar & Tapas
Um novo rei no Vale do Sousa
RESTAURANTE VEET - SUSHI BAR & TAPAS Rua Padre Pombo, 77 4590-605 Paços de Ferreira Telefone 255 137 179 Aberto de terça-feira a domingo, a partir das 16h00 Encerra à segunda-feira.
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É amante de sushi? Se vive no Vale do Sousa, há um novo must go restaurant: VEET – Sushi Bar & Tapas. Localizado em Paços de Ferreira, o VEET é, para mim, a grande surpresa deste ano a nível gastronómico. É raro encontrar um restaurante temático, ainda para mais dedicado à comida japonesa – mas não só, como o nome deixa antever – com tão elevada qualidade e variedade. Sobretudo por se situar fora do Porto ou, naturalmente, de Lisboa, mas concorrendo, na minha opinião, diretamente com os melhores dos grandes centros urbanos. Tudo parece estar certo num local que conta com uma carta de bebidas totalmente adequada às várias possibilidades de escolha. É daqueles espaços em que nos apercebemos imediatamente de que vamos regressar: multifuncional (possui bar, restaurante, lounge e esplanada), moderno, decorado com requinte e glamour e com um staff bem formado, simpático e atento. Ideal tanto para uma saída a dois como em família, para um jantar rápido e despreocupado ou para um encontro com amigos, mais longo e planeado. Adorei o menu de fusão que me foi aconselhado e que me pareceu a principal especialidade e maior destaque desde a primeira visita. As entradas (tapas) estavam ótimas e combinavam de forma surpreendente. Apresentaram-nos o prato e sugeriram finalizar com um sushi doce divinal, devidamente reservado sob uma redoma de cristal. Há também sushi, niguiri, maki e sashimi tout court, caso sejam mais puristas ou não pretendam arriscar. Mas duvido que consigam resistir ao desfile de pratos irresistíveis que vamos bisbilhotando nas múltiplas rondas pelas mesas. Resumindo: a melhor qualidade, com um toque de originalidade, evitando quaisquer tontices de peças mal cortadas ou recheadas com queijo do tipo Filadélfia que habitualmente denunciam ou a má qualidade do peixe ou dos restantes produtos ou, pior ainda, a não menos frequentemente falta imaginação dos cozinheiros. Sim, o Vale do Sousa tem um novo rei, portanto “long live the king!”. : :
Por Carla Oliveira, Divisão de Gestão e Apoio aos Associados da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
RESTAURANTE CASA DO POLVO
O Algarve à mesa
Nos últimos anos, as minhas férias de verão têm sido no Algarve, na zona da Ria Formosa. As praias são mais calmas, a água do mar é mais quente e as paisagens são de tirar o fôlego. Este ano, em conversa com uma amiga, fiz saber que íamos à praia do Barril, uma das muitas praias da Ria Formosa. A resposta dela foi perentória: “Se vais à praia do Barril, tens que ir jantar à Casa do Polvo, em Santa Luzia!” A resposta soou-me a plano e, claro está, tive de executá-lo. Com medo das filas às portas dos restaurantes, tão típicas de um Algarve em agosto, saímos cedo da praia e rumámos ao tão célebre restaurante, do qual nunca tínhamos ouvido falar. Quando chegámos, a fila já se começava a formar à entrada da esplanada, mas não tivemos dificuldades em arranjar lugar para nos sentar. Depressa me apercebi de que os lugares ficaram todos ocupados e que a fila para jantar não mais desapareceu. Movidos pelas sugestões da nossa amiga, pedimos, para entrada, panados de polvo e pataniscas do mesmo. Agora que penso nisso até me cresce água na boca. Os panados são qualquer coisa do outro mundo. O polvo estava macio – como não comia há muito – e, ao mesmo tempo, crocante, como um panado deve ser. As pataniscas eram igualmente deliciosas. O menu apresentava ainda várias sugestões de entradas para quem gosta de petiscar: RESTAURANTE CASA DO POLVO empadas de polvo, croquetes de polvo, carpaccio de polvo, polvo à galega, amêijoas, lingueirão, camarão, muxama… Para prato principal, como não podia deixar de ser, pedimos arroz de polvo com amêi- Av. Eng. Duarte Pacheco, 8 8800-545 Santa Luzia joas da Ria Formosa. Estava tão bom que, quando vi o fundo ao tacho, quase pedi mais uma Telefone 281 328 527 dose. Mas não faltavam outras opções: arroz de polvo com lingueirão, polvo à tasquinha, Encerrado à terça-feira. fricassé, polvo grelhado, à moda da terra, à lagareiro, moqueca de polvo, feijoada de polvo, Aberto segunda-feira apenas ao almoço e de quarta-feira a caril de polvo… domingo ao almoço e jantar. Havia ainda pratos de peixe, como lombo de atum, bacalhau, linguado, dourada e robalo, e pratos de carne, como o bife da vazia e lombinhos de porco ibérico. Nas sobremesas não podiam deixar de faltar os doces típicos do Algarve: Dom Rodrigo, Três delícias do Algarve, tarte de figo e torta de amêndoa são alguns exemplos. Optámos por dividir uma torta de alfarroba com frutos silvestres para terminar o nosso jantar. É, com toda a certeza, um restaurante onde quero voltar. O polvo é o herói daquela cozinha e tudo tem um aspeto e um cheiro maravilhoso. Tudo isto com um bom vinho a acompanhar e a vista para a Ria Formosa, num final de uma tarde de verão. : :
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VIAGENS
Por Luís Manuel Pica, Solicitador
N
o centro do baixo Alentejo, bem próximo da fronteira com o Algarve e equidistante de Lisboa, de Espanha e da costa Alentejana, encontra-se Beja, rodeada pelas suas douradas planícies. Falar em Beja é falar na cidade de Pax Julia, antiga cidade e capital de Conventus Pacensis, uma das três cidades da província da Lusitânia com estatuto de colónia Romana. Tanta é a importância da civilização Romana na cidade que anualmente realiza-se a feira medieval que celebra e recria os costumes medievais da civilização Romana, feira essa que atrai milhares de pessoas à cidade. Mas falar em Beja é também recordar a figura de Soror Mariana Alcoforado, freira enclausurada no Convento de Beja, escritora e autora das famosas “Cartas Portuguesas”, dirigidas ao Marquês Noel Bouton de Chamilly, Conde de Saint-Léger e oficial francês, conhecidas atualmente como um clássico da literatura internacional. Conhecer Beja é degustar a sua gastronomia, desde as migas alentejanas, com entrecosto ou carne à alentejana, à sopa de beldroegas ou às favas guisadas e, no final, aproveitar para degustar a doçaria conventual da região, como as afamadas trouxas de ovos, as queijadas ou o famoso porquinho doce confecionado pela centenária confeitaria Luíz da Rocha, fundada em 1893. Para acompanhar tantas iguarias, não poderia deixar de estar na mesa o famoso vinho alentejano, produzido na região e vendido para todo o mundo. Indissociável da cidade de Beja é a sua tradicional feira de primavera, que se realiza há mais de 30 anos. Conhecida por “Ovibeja”, é uma mostra dos serviços prestados pelos agricultores e do melhor que a cidade de Beja e a região têm para oferecer. Beja é também sinónimo do que o Alentejo tem de melhor: a sua tradição e o seu património. E, quando falamos em património, não podemos esquecer o imaterial, desde o típico acento alentejano ao tão conhecido e premiado cante alentejano, declarado Património Imaterial da Humanidade pela Unesco em 2014. Conhecer Beja é conhecer, também, o Castelo de Beja, com uma visão panorâmica da cidade, das planícies alentejanas, de localidades como Serpa, Vidigueira, Ferreira do Alentejo, Cuba ou Aljustrel. Para continuar, nada como uma visita ao Convento de Nossa Senhora da Conceição, à Ermida de Santo André, ao Arco Romano ou à Igreja Catedral, conhecida como Sé Catedral de Beja. Muito mais existe para visitar, na certeza de que será recebido com a típica amabilidade dos bejenses. E se procura um lugar de tranquilidade e de sossego para repor as energias, Beja e a região são uma das melhores zonas de Portugal que poderá visitar. : :
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BEJA
Nos braços da tradição
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VIAGENS
Por Andreia Amaral, Gabinete de Comunicação e Relações Externas da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução
DUBROVNIK
UM TESOURO NO ADRIÁTICO “A liberdade não se vende por todo o ouro do mundo.”
A
s palavras ecoam por toda a cidade. São memórias dos tempos medievais eternizadas na inscrição cravada no antigo portão do Forte de Lovrijenac. São palavras recordadas por um povo que, na manhã de 5 de dezembro de 1991, acordava com um brutal ataque dos seus irmãos. Pelo meio, houve venezianos, um terramoto avassalador, a conquista de Napoleão, a soberania austríaca e a integração na Jugoslávia. Perante todas, por carácter e princípio, o povo nunca se rendeu. E, por isso, fiel a si mesma, a cidade sobreviveu, marcada pelas cicatrizes da luta, mas intocada na sua glória de potência marítima. Afinal, não foi por acaso que foi escolhida como local para as filmagens da “Guerra dos Tronos”… É este espírito de eterna guerreira, sempre alerta a espreitar quem chega por mar, que nos seduz em Dubrovnik. Era dele que ia à procura quando parti rumo à Croácia, numa viagem há muito ansiada. E nem o bulício do infindável curso de turistas que enchem a cidade velha, fechada sobre si pelas muralhas, fez com que a antiga República de Ragusa desiludisse. Dubrovnik é, de facto, fantástica. É-lo de todos os ângulos. Das alturas das muralhas, do forte ou do teleférico… Das reminiscências de outrora que latejam nos majestosos palácios Rector e Sponza, nos mosteiros Franciscano e Dominicano, nos envolventes museu etnográfico e Red History Museum, na Catedral e nas dezenas de igrejas que aloja, cada uma mais bela que a outra… Da expiação, por uma qualquer janela, dos pedaços de terra espalhados pelo mar que lhe pertencem. Do labirinto em escarpa que são as suas mágicas ruas, preenchidas por esplanadas onde podemos experimentar as imperdíveis iguarias da terra: a peka, o Crni Rižot (risoto negro) e os gulosos fritule. A cidade é estonteante vista do mar, quando se entra pelo porto antigo depois de uma viagem de barco à descoberta da reserva natural da ilha de Lokrum ou depois de um café na pitoresca vila de Cavtat, mas também o é, do lado oposto, quando chegamos ao novo porto vindos no catamarã de Split, Korkula ou no cruzeiro para um dia de mergulhos pelas ilhas Elafiti, locais igualmente merecedores de visita. A cidade é inesquecível à beira-mar, degustando um gelado artesanal na calma de uma espreguiçadeira junto a uma das praias de seixos que ali abundam. Dubrovnik é linda em espírito, tão só, mas tão perto de todos, a devolver, aos poucos, a confiança aos irmãos, apesar das mágoas do passado. Isolada do resto da Croácia por fronteiras com a Bósnia Herzegovina, é o local perfeito para, de carro, partir à descoberta das quedas de água de Kravice e das influências islâmicas de Mostar, na região da Bósnia, ou, do lado oposto, para atravessar a montanhosa costa de Montenegro e descobrir a calma da Baía de Kotor, a eclética Budva e a principesca Antiga Capital Real de Cetinje. Mas, independentemente das voltas que se dê, é impossível não sorrir quando se vê Dubrovnik outra vez. E quando um local detém tanta riqueza, como pode o ouro seduzi-la a perder-se?... : :
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