Campus - nº 414, ano 44

Page 1

HABITAÇÃO

PROTESTOS

SAÚDE

Página 3

Página 8

Página 12

LARES AO CHÃO Repórteres acompanham derrubada de casas em terreno irregular e mostram visão de invasores e fiscais

COBERTURA INDEPENDENTE Para além dos jornais, profissionais da comunicação acompanham manifestações para trabalhos autorais

Campus

CONFLITO COM O PESO Entre as pessoas que fazem cirurgia bariátrica, 15% voltam a engordar mais do que o esperado em menos de dois anos

BRASÍLIA, 17 A 30 DE JUNHO DE 2014

PROCURA-SE INTÉRPRETE Instituições públicas do DF carecem de profissionais capacitados para lidar com deficientes auditivos Página 15

Nilda Siqueira e Marcos de Brito pedem “socorro” em Libras

NÚMERO 414 ANO 44

Thais Carneiro


2

Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

Carta do Editor

Carta do Leitor

Raila Spindola Chegamos à última edição do Campus do semestre e como surpresa recebemos um e-mail da Secretaria de Cultura falando sobre a matéria A realidade atrás dos palcos, publicada no número 412 do jornal. Por esse motivo, as seções Recorte e Memória foram deslocadas para a página 8, junto à matéria Outras lentes da história, dando espaço para a Secretaria de Cultura e a resposta da redação. A oportunidade é propícia para ressaltar que o conteúdo do Campus é produzido com ética e comprometimento. Prova disso são os outros jornais que pautamos neste semestre e produziram matérias feitas antes por nós. Não é nosso papel de jornalista produzir conteúdo de assessoramento ou propaganda para quem quer que seja, mas relatar a verdade. Já a função de assessorias de imprensa é a de auxiliar repórteres independentemente da matéria que esteja sendo produzida, sem a necessidade da existência de uma denúncia para responderem a ligações e e-mails. O trabalho feito pelo Campus no primeiro semestre de 2014 foi além da informação, ultrapassou o comodismo e deu voz a quem normalmente não tinha.

Campus Editora-chefe: Raila Spindola Secretária de redação: Mariana Pedroza Editores: Camila Curado, Laís Sinício, Rômulo Andrade, Tainá Farfan, Taise Borges Repórteres: Beatriz Fidelis, Bruna Chaves, Bruna Furlani, Fernando Jordão, Gustavo Garcia, Isabela Resende, Karla Beatriz, Lara Silvério, Luana Melody Brasil, Paula Braga, Pedro Alves, Thomas Gonçalves, Victor Pires Fotorrepórter: Raquel Franco Editora de arte e foto: Jéssica Martins Fotógrafos: Henrique Arcoverde, Iago Garcia, Janaina Bolonezi, Thaís Carneiro Diagramadores: Camila Curado, Jéssica Martins, Laís Sinício, Rômulo Andrade, Tainá Farfan, Taise Borges

Buscamos novas fontes e evitamos as que falam na maioria dos meios de comunicação. Entrevistamos outros médicos, outros policiais, outros agentes do Detran etc. Somos aprendizes, o que nos torna menos experientes, mas também nos faz mais sensíveis para as pequenas coisas do dia a dia e evita que passemos com passos apressados por possíveis grandes pautas. Foi com esse empenho que a equipe do Campus elaborou esta edição. Um exemplo é a matéria de capa Todos estão surdos, que representa uma minoria social. A repórter revela a carência de profissionais que falam Libras no Distrito Federal e as dificuldades de deficientes auditivos para executar atividades básicas, como ir a bancos e hospitais. Ainda dentro da temática, temos Sons do silêncio, retratando a relação e o aprendizado da música por quem não pode ouvir. Ainda assim, o jornal continua uma publicação diversificada e para todos os públicos. Esta edição trás matérias que vão da história de fotógrafos e cineastas independentes que correm riscos de morte para realizar coberturas de manifestações até assuntos de saúde, como a cirurgia bariátrica. Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília Projeto Gráfico: Hermano Araújo, Nadjara Martins, Beatriz Fidelis, Jéssica Martins e Karla Beatriz Colaboradores: Arthur Monteiro e Isabela Lyrio Professor: Sérgio de Sá Monitores: Eduardo Barretto e Washington Luiz Jornalista: José Luiz da Silva Gráfica: Palavra Comunicação Tiragem: 4 mil exemplares Contato: 61 3107-6498 / 6501 Endereço: Universidade de Brasília, campus universitário Darcy Ribeiro, s/n, Asa Norte, Brasília/DF. Faculdade de Comunicação, Instituto Central de Ciências - Ala Norte CEP: 70 910-900

A Secretaria de Cultura, com o intuito de valorizar a transparência em seus processos de contratação, refuta as acusações do jornal-laboratório Campus. As repórteres Jéssica Martins e Mariana Pedroza lançam uma série de acusações sobre a pasta, que não tem base em fatos verídicos, não traz personagens reais (apenas nomes fictícios) e, o pior, não escutaram as fontes oficiais para contrapor as denúncias. Em relação à contratação da citada cantora na Torre de TV, foi explicado à repórter Mariana Pedroza que o cachê pago através do Sistema de Contratação Artística do DF (Siscult) é diferente do valor que a banda cobra para shows que não são produzidos pelo GDF. Indicamos o Subsecretário da Unidade Administrativa, Alexandre Rangel, como fonte para explicar como funciona o Siscult e poder responder as alegações. A entrevista foi feita por telefone e em nenhum momento a repórter questionou a citada denúncia ou

Ombudskivinna

mesmo se dispôs a ir à Secretaria para entender o sistema – o que foi proposto por Rangel na ocasião. Segundo o subsecretário, a repórter foi vaga em suas perguntas o que não deu a oportunidade para a Secretaria de Cultura responder as denúncias publicadas. Acusações dessa natureza precisam ser formalizadas para que possamos investigar e resolvê-las sem prejudicar nenhuma das partes, em especial a que alega ter sido lesada. A matéria tem como acusador Lourin Roosevelt, do Sindicato dos Músicos do Distrito Federal, entidade sem legitimidade e que já foi alvo de uma investigação da Polícia Civil, pela Divisão Especial de Repressão aos Crimes contra a Administração Pública (Decap), em 2010. Assessoria de Comunicação, Secretaria de Cultura NOTA DA REDAÇÃO O Campus ratifica todas as informações publicadas na

reportagem A realidade atrás dos palcos. No início da apuração, as repórteres solicitaram à assessoria uma fonte oficial da Secretaria de Cultura. A demora por uma resposta levou-as a explicar que se tratava de uma denúncia contra a instituição. Dessa forma, a resposta da assessoria, bem como o agendamento de entrevista com o senhor Alexandre Rangel, transcorreram rapidamente. A Secretaria de Cultura teve a devida oportunidade de se pronunciar. As personagens que aparecem na reportagem são, obviamente, reais. Nomes fictícios foram usados para preservar as fontes, que pediram sigilo para não sofrer posteriores represálias. A conversa com Rangel foi gravada na íntegra com o consentimento do entrevistado. As perguntas não deixam quaisquer dúvidas sobre as denúncias recebidas pelo jornal. As respostas estão no texto publicado. O Sindicato dos Músicos do Distrito Federal tem legitimidade reconhecida pela comunidade artística da cidade.

Termo sueco que significa "provedor da justiça", discute a produção dos jornalistas sob a perspectiva do leitor. Jhésycka Vasconcelos é aluna do 7º semestre da FAC.

Jhésycka Vasconcelos Após a perturbação causada pela reportagem A realidade atrás dos palcos, publicada na edição 412 deste jornal, não restam dúvidas: o Campus incomoda. A resposta enviada pela Secretaria de Cultura indica a relevância e o impacto gerados pelas repórteres. Espero que, assim como eu, os leitores avaliem isso de maneira positiva. Lamentável que a edição 413 não tenha deixado a mesma impressão. Se houve incômodo, é certo que foi causado pelas fotos sem criatividade, legendas mal redigidas e títulos de péssimo gosto. Alguns dos apontamentos feitos por leitores avaliam certas reportagens como confusas. É o caso de Contribuição Póstuma,

que contém erros elementares e escolhe por uma opção fácil ao começar com uma pergunta tão vazia. Em Quem merece amparo?, a repórter também deixa o leitor perplexo quando dá destaque à opinião deputado Jair Bolsonaro. O parlamentar é declaradamente contra o auxílio-reclusão, mas não acrescenta nada no texto. O espaço poderia ter sido aproveitado de outra maneira, quem sabe até com declarações do próprio Bolsonaro à reportagem. Apesar de reforçar a morbidez, Sem planos para os mortos traz um texto criativo, completo e, sem dúvida, merecedor da capa. No entanto, a manchete Não vai ter cova repercutiu negativamente. As reportagens Sai da minha vaga,

sai pra lá, Todos os dias é um vaivém e Lotação máxima fazem um bom panorama das questões urbanas no DF relacionadas a transporte, tanto público quanto privado. No geral, o jornal trouxe boas pautas às páginas, o que já é típico da equipe. Em Luzes da ribalta apagadas, a obviedade de falar sobre os problemas técnicos e a falta de prazo para reabertura do Teatro Nacional é superada pelos enfoques econômico e cultural dados pelos repórteres. Não é brincadeira de criança também foge do trivial e fala de um assunto curioso. O texto foi bem redigido, mas não aproxima o leitor o suficiente das competições já que nem mesmo diz em que cidades são realizadas.


Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

3

HABITAÇÃO

AÍ FOI QUE O BARRACO DESABOU

Campus acompanha ação de derrubada no Lago Norte: apenas mais uma entre as treze que acontecem diariamente no DF Fernando Jordão e Gustavo Debastiani

U

m grupo de seis mulheres caminha em passos rápidos nas ruas de chão batido do Núcleo Rural Capoeira do Bálsamo, situado nos confins do Lago Norte. As apressadas seguem uma fila de onze veículos que levantam uma cortina de poeira das vielas do local, ladeadas por pequenas e amontoadas casas, entre construções de madeira e de alvenaria mal-acabada. Uma das mulheres fala ao celular em tom de desespero: “Junin, eles tão descendo aí em comboio e vão derrubar tudo”. Os veículos avistados pelas mulheres integram um destacamento do Comitê de Combate ao Uso Irregular do Solo, coordenado pela Secretaria de Ordem Pública e Social (Seops) e pela Agência de Fiscalização (Agefis). Naquela manhã de segunda-feira, as equipes da operação – divididas em três carros, duas vans, dois caminhões, duas máquinas de remoção, ambulância do Corpo de Bombeiros e viatura da Polícia Militar – tinham a missão de derrubar uma casa de 60 metros quadrados. A construção era recente e estava em uma área pública, com risco de desabamento. Quando a fiscalização chegou ao local, um declive próximo ao Lago Paranoá, o “proprietário” da invasão já não estava por perto. Em menos de dez minutos, a residência estava totalmente demolida. Antes

pintado com o vermelho vivo da terra batida, o cenário rapidamente se descoloriu, dando lugar a uma camada de pó cinza – quase fúnebre – vinda do cimento que fora derrubado. A ação rápida assustou a vizinhança. Com lágrimas nos olhos, o pedreiro João Borges, 59 anos, a mulher e os dois filhos acompanhavam pesarosos a queda de cada tijolo. Ver a casa ao lado ser derrubada fez com que a família entendesse que o seu lar também corre grande risco de ser transformado em pó. “A gente não tem pra onde ir, eles vêm e derrubam sem nem avisar antes. A vida de quem tem pouco dinheiro é muito sofrida”, reclamou Borges, irregular há 12 meses no Capoeira do Bálsamo. O temor do pedreiro em ter a casa derrubada é justificado pela análise da quantidade de demolições feitas pela Seops nos quatro primeiros meses de 2014. Foram 1,59 mil destruições no intervalo, média de 13 por dia. Em 2013, esse índice era de 11 edificações removidas diariamente. Para o coordenador da Fiscalização de Obras Irregulares no Lago Norte, Ismar Cordeiro, a explicação para o aumento de derrubadas está no maior número de invasões. “É ano eleitoral. A quantidade de construções ilegais aumenta porque as pessoas têm esperança de que algum político,

se eleito, regularize a situação de suas ocupações. Tenho 20 anos de experiência em ocupações ilegais. Todo ano de eleição as invasões aumentam”, garante Cordeiro. Sobre a queixa do pedreiro João Borges, a Seops informou que todas as famílias do Núcleo Rural Capoeira do Bálsamo já foram notificadas da irregularidade das habitações e que a pasta aguarda autorização da Justiça do DF para derrubar as casas. Além disso, o órgão garantiu que não demole moradias sem a presença de uma equipe social da Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest), que tem um plano de destinação – albergues, programas de habitação ou um auxílio-vulnerabilidade de R$ 408 – para os que serão desabrigados. PLANTAÇÃO COMO DESCULPA Na operação acompanhada pelo Campus, o Comitê de Combate ao Uso Irregular do Solo também derrubou a cerca de uma ocupação irregular de um grande lote da Agência de Desenvolvimento do DF (Terracap). No local, sob a sombra de uma árvore, estava um cão da raça Boxer, que latia muito, na tentativa de afastar aqueles que, para ele, eram os invasores. Curiosamente, a pequena casinha de madeira do cachorro era a única que ocupava o terreno.

Embaixo da mesma árvore, estavam dois homens. Um deles, muito menos corajoso que o cão, acompanhava assustado a remoção da cerca, deitado sobre um colchão velho jogado na terra. O rapaz foi identificado como um recémcontratado caseiro, que havia começado a trabalhar naquela segunda-feira. O outro homem apresentou-se como Diego dos Santos, 27 anos, agricultor e proprietário do terreno. Diferente de seu funcionário, ele assistia à derrubada revoltado. “É uma injustiça isso. Eu só quero trabalhar, plantar minhas frutas e minhas verduras sem incomodar ninguém. Mas estou sendo perseguido, parece”, resmungou Santos, que já teve a cerca derrubada outras três vezes. Segundo o coordenador Ismar Cordeiro, Santos é um velho conhecido dos agen-

tes. “Ele usa essa desculpa de agricultor pra tentar driblar a fiscalização, mas, na verdade, ele planta uns pés de banana, que crescem rápido, só pra disfarçar. Ele quer é manter a ocupação para depois repartir e vender os lotes”, explicou Cordeiro. O diretor de operações da Seops, Capitão Rômulo Ferreira, que também participou da remoção, afirmou, inclusive, que Diego Santos já foi preso duas vezes: uma por invasão de área pública; a outra, por tráfico de drogas. Mesmo sendo vigiado pelas autoridades públicas, Diego Santos tem esperança de um dia conseguir o direito de explorar a terra. “Muita gente aqui conseguiu, na Justiça, o direito de ocupar um terreno. Eu já entrei com uma advogada e vou conseguir também”, afirmou. “Eu vou cercar aqui até morrer”, prometeu o “agricultor”. Henrique Arcoverde

Retroescavadeira do Comitê de Combate ao Uso Irregular do Solo derruba casa de 60 metros quadrados no Núcleo Rural Capoeira do Bálsamo


4

Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

SOCIEDADE

CASOS DE FAMÍLIA

Projeto de lei que prevê criação do Estatuto da Família desagrada casais homossexuais por excluí-los de benefícios Pedro Alves

D

Henrique Arcoverde

uas pessoas se conhe- aprovado o estatuto, não tecem e criam interesse riam os mesmos direitos que os uma na outra. Depois casais heterossexuais. “O projede trocas de olhares e palavras, to é ultraconservador. Na atudecidem: é paixão. A partir daí alidade, a sociedade brasileira começam passeios, viagens, ca- tem diversos tipos de formação rícias, planos, tudo a que tem di- familiar e o estatuto não correito um casal que se preze. De- responde à nossa realidade, só pois se casam e passam a dividir atende aos desejos do conseruma casa, os bens, momentos vadorismo fundamentalista”, tristes e ruins e fazem planos afirma Evaldo Amorim, secrepara o resto da vida. As perso- tário Regional Centro-Oeste da nagens da história formam uma Associação Brasileira de Gays, família? Não se ambas forem do Lésbicas, Bissexuais, Travestis mesmo sexo. É o que afirma o e Transexuais (ABGLT). Projeto de Lei 6.583/2013, que O casal de servidores púvem sendo discutido na Câma- blicos Rodrigo e Thiago Rora dos Deputados. drigues também são contrários A proposição, de autoria à proposta. Eles eram amigos do deputado Anderson Ferrei- desde a adolescência e, em ra (PR/PE), prevê a criação do 2007, começaram a namorar. Estatuto da Família, dispositivo Ano passado, decidiram que que institui medidas, direitos e tinham uma situação financeideveres para preservação dos ra estável e se casaram. O casal núcleos familiares. O texto cria pensa em ter filhos, mas só em diversos beneum futuro disfícios para as tante. “Lógico famílias, como que nos consiprioridade de Votos favoráveis à aprovação deramos uma atendimento na do Estatuto da Família em família, somos saúde pública, mais de uma na justiça, além enquete realizada no site da pessoa vivenCâmara dos Deputados da criação de do no mesmo disciplinas de educação para a teto com um vínculo jurídico e família e medidas para a valori- que divide interesses e afinidazação das entidades nas escolas. des”, afirma Rodrigo. No entanto, existe polêmica Desde 2011, a união estável quanto à definição de família entre pessoas de mesmo sexo é proposta pelo estatuto. O tex- permitida no Brasil, após decito descreve entidade familiar são do Supremo Tribunal Fecomo o núcleo social formado deral (STF). Segundo o relator a partir da união entre um ho- do processo na época, ministro mem e uma mulher, por meio Ayres Britto, o poder judiciário de casamento ou união está- deveria entrar na questão e gavel, ou ainda por comunidade rantir a união estável aos casais formada por qualquer dos pais homossexuais, já que não havia e seus descendentes. legislação que tratasse do assunO conceito tem sido cri- to. No ano passado, o Conselho ticado por excluir casais ho- Nacional de Justiça (CNJ) obrimossexuais e outros tipos de gou todos os cartórios a realizar formação familiar, que, caso casamentos homoafetivos, no

62%

entanto, ainda não existe uma lei que determine claramente os limites do tema. Para a bancada evangélica da Câmara, a falta de uma legislação específica é o que impede a inclusão dos casais homossexuais no Estatuto da Família. O relator do projeto de lei, deputado Ronaldo Fonseca (PROSDF), afirma que “a proposta está em conformidade com a Constituição. A gente não quer excluir os casais homoafetivos, mas o reconhecimento como família tem consequências. Por exemplo, se formos conceder benefícios de seguro social a casais homoafetivos, por que não também a irmãos ou a um filho que cuida da mãe? Não há afeto ali?”. O deputado também acredita que a interpretação dada pelo STF à lei não é inquestionável. “Eles (os militantes homossexuais) dizem que nós estamos tirando algo que ganharam. Bom, na Constituição não ganharam nada, só em uma decisão judicial que pode muito bem ser revogada. A legislação não é feita pelo STF, mas pelos 513 deputados eleitos pela população”, afirma. Já segundo a deputada federal Manuela d’Ávila (PCdoB/RS), o estatuto atrasa questões de direito da família. “Os diferentes arranjos familiares não causam prejuízo e estão enquadrados na Constituição Federal, nos direitos e garantias fundamentais. O centro do debate é a defesa do Estado laico e de um parlamento que consiga olhar a sociedade como ela realmente é.” Ainda segundo a deputada, o projeto vai de encontro às decisões tomadas pelo

O casal Rodrigo e Thiago Rodrigues defende que constituem uma família por viverem sob o mesmo teto e de acordo com um vínculo jurídico

STF e pelo CNJ sobre os casamentos homossexuais. O juiz João Fischer, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, já participou de audiências públicas na comissão da Câmara que discute o estatuto e afirma que o projeto é neutro. “Ele apenas reproduz o que está na Constituição, os textos são iguais.” Segundo o juiz, “esta discussão sobre o conceito de família apenas atrapalha o andamento de debates mais relevantes como os relacionados às proposições do projeto em si, que podem trazer vários benefícios para a sociedade”. A professora Thaise Prudente (30) e a assistente de administração Michelle Prudente (35) assinaram o contrato de união estável ainda em 2011. Já no ano seguinte, entraram com pedido para conversão do contrato em casamento e se tornaram o primeiro casal lésbico legalmente casado no estado de Goiás. Em abril des-

te ano, Thaise deu à luz Helena, após a inseminação de um óvulo de Michelle. A menina já nasceu pioneira, como a primeira criança brasileira a ter duas mães em registro. “Sim, consideramo-nos uma família porque é o que somos e ponto final. É claro que existem diferenças entre nosso casamento e um heterossexual, somos duas mulheres! Mas ser diferente não significa ter direitos diferentes”, afirma Thaise. Atualmente, o projeto é discutido em uma comissão formada por 23 deputados. Nas últimas semanas, o grupo tem realizado audiências públicas para tratar o tema. Uma enquete promovida pelo site da Câmara dos Deputados atingiu recordes de participação e apontou que 62% das pessoas que votaram são favoráveis à aprovação do Estatuto da Família, que, segundo o deputado Ronaldo Fonseca, deve ser votado em agosto.


Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

5

IDENTIDADE

NÃO ME REPRESENTA

Sem complicações, procedimento de retificação do registro civil possibilita alterar nomes com grafia incorreta ou que causem constrangimento

Paula Braga

“H

oje consigo dar risada, mas na época era bastante constrangedor”, lembra a servidora pública Mônica Damião, 44 anos. Registrada pelos pais como Moab – um nome masculino – ela teve que lidar com apelidos ofensivos durante toda a infância, além de situações como ser incluída sempre na lista dos meninos nas aulas de educação física da escola e até receber a assinatura de uma revista masculina em sua residência, endereçada ao “senhor Moab”. Em 2005, ela optou por iniciar o procedimento para alterar o nome que constava em seus documentos. “Precisava sempre reafirmar que eu era mulher! Na Bíblia, Moab é um nome de homem. Como o meu sobrenome é Damião, as pessoas pensavam que era um nome masculino composto”, explica Mônica. A decisão judicial que possibilitou a alteração dos documentos foi rápida: quatro meses após o início do procedimento, Mônica já tinha a autorização para retirar os documentos com o novo nome. “O processo foi trabalhoso, porque precisei ir em todos os órgãos públicos buscar uma certidão que afirmava que aquele nome que eu usava não tinha nenhum débito. Depois da decisão, tirei outra via de todos os demais documentos”, conta Mônica. “Ter esse nome durante grande parte da minha vida foi traumático, mas hoje nem me lembro mais que um dia fui Moab”, afirma. O jornalista Emerson Fraga, 23 anos, também optou por alterar seu nome de registro: ele solicitou a exclusão de uma letra do nome anterior, que era

Henrique Arcoverde

Mônica Damião mostra o documento antigo e a carteira de motorista com o novo nome: “Hoje nem me lembro mais que um dia fui Moab”

grafado com um W na frente – Wemerson. “Era um erro de ortografia. Atrapalhava a pronúncia e incomodava. Quando comecei a trabalhar em uma rádio, era impossível pronuciar, então troquei”, explica. O processo, iniciado em 2011, durou pouco mais de um ano.

Os casos de Mônica e Emerson são alguns dos exemplos possíveis dentro da Lei dos Registros Públicos (nº 6.015/73). Desde 1998, mudanças no texto da legislação fizeram com que o prenome – nome que antecede o sobrenome de família – deixasse de ser imutável e

PROCESSO Após o registro de nascimento, qualquer alteração de nome no documento só pode ser feita por meio de sentença judicial. O interessado deve dar início ao procedimento na Vara de Registros Públicos. O juiz responsável ouve o Ministério Público e os interessados e analisa as circunstâncias do pedido de alteração. Se decidir que é procedente, a pessoa deve retirar um documento de registro civil com o novo nome no cartório em que foi registrado no nascimento. A partir daí, é possível solicitar os demais documentos nos órgãos responsáveis.

passasse a ser definitivo, o que tornou possível a alteração do nome incluso no registro civil em alguns casos, como quando o nome apresenta erro de grafia ou situações em que é vexatório ao indivíduo. Além disso, a legislação também permite outras alterações, como a inclusão de apelido público pelo qual a pessoa é conhecida. Há também a possibilidade jurídica para os casos de mudança de sexo. Segundo o professor de direito privado da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Viegas, o procedimento de alteração do nome nos documentos – que tem início na Vara de Registros Públicos – tende a ser rápido. “Para fazer a alteração do nome registrado é preciso demonstrar ao juiz a necessidade desta alteração. Não é um procedimento litigioso. Normalmente a decisão é rápida, pois o indivíduo não está brigando com ninguém, mas postulando ao Estado algo que acha correto”, explica. A legislação determina ainda que os pais não podem atribuir aos filhos nomes que sejam vexatórios. Além disso, os oficiais de registro civil têm a possibilidade de não aceitar o registro caso julguem que o prenome é suscetível de expor ao ridículo o seu portador. Segundo o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), somente durante o ano de 2013 foram iniciados 917 processos para retificação do nome no registro civil nesta unidade da federação. “É um procedimento cada vez mais comum. Antigamente, a legislação previa que o nome era imutável porque não tínhamos toda essa capacidade

inventiva que aparece hoje na hora de escolher um nome”, completa Viegas. Outro caso possível de alteração é a inclusão no registro civil de um sobrenome ou nome pelo qual a pessoa passa a ser conhecida. Este foi o caso do diretor e dramaturgo Sérgio Maggio. Registrado incialmente como Sérgio Luis Souza Santos, ele incorporou logo após o prenome o sobrenome que utiliza atualmente no registro civil e pelo qual passou a ser conhecido. “Vi este sobrenome em uma foto de família, que tinha uma dedicatória de Ermenegilda Maggio. Os meus dois sobrenomes eram bastante comuns e quando comecei a trabalhar já existiam pessoas que assinavam com o mesmo nome que eu, então optei por começar a usar o Maggio. Alguns anos depois publiquei um livro com essa assinatura e, até por questão de direitos autorais, resolvi incluir formalmente o sobrenome no meu registro civil”, conta. Sérgio entrou com o processo em 2009, apresentando documentos de identificação – como crachás e cartões bancários, além de materiais já publicados com a assinatura – para provar que o nome adotado tinha se tornado notório. O processo durou pouco mais de um ano e terminou com a decisão favorável, que permitiu a inclusão do sobrenome e a alteração do nome no registro civil para Sérgio Maggio Luis Souza Santos. “Fazer essa alteração foi muito importante para mim. Eu tinha uma raiz nominal que era diferente da documental. Casar essas duas coisas foi fundamental”, completa Sérgio.


6

Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

COPA

FUTEBOL? NÃO, OBRIGADO Estabelecimentos sem exibição de jogos do Mundial são alternativa de lazer para quem não pretende acompanhar as partidas Victor Pires

Iago Garcia

D

urante a Copa do Além de considerar que importante ter algo assim, até Mundo, principal- o ambiente do Senhoritas para não ficar todo mundo mente em dias de não é propício para acompa- assistindo futebol e quem não jogos do Brasil, boa parte nhar os jogos, Fino tem ou- gosta ter que assistir do mesmo dos bares e restaurantes irá tro motivo para não exibir jeito”, opina George Bezerra, disponibilizar TVs (em al- as partidas: apesar de gostar frequentador do Moebius. guns casos, telões) para atrair de futebol, não é a favor da Os proprietários da Galeclientes interessados em tor- Copa do Mundo. O proprie- ria Café Objeto Encontrado cer e consumir. A prática de tário explicou que deixar de foram mais longe e organizaacompanhar campeonatos em transmitir as partidas não visa ram um evento paralelo aos bares não é novidade, pelo atrair clientes, mas acha que jogos do Brasil: a Copa Cocontrário: já virou tradição isso pode acabar acontecendo. guey, uma gincana com ativina capital. No país do futebol, Outro estabelecimento dades como Caça ao Tesouro porém, não são todos os que que não irá transmitir o cam- e karaokê. “Não tem nada para gostam do esporte ou de assis- peonato é o Moebius Café, fazer se você não for assistir tir aos jogos. especializado em jogos de ta- aos jogos. A cidade fica morta. Em Brasília, Então, contra nos dias em que essa tendência, houver jogos da “O ideal é que as pessoas se divirtam e a gente dá uma Seleção Brasioportunidade leira ou parti- vejam que o futebol é o de menos na para as pessoas das no Estádio não gostam vida da gente e de nossos clientes” que Nacional, ha[de acompanhar verá ponto faos jogos] fazeLucas Hamu, um dos donos da cultativo. Desse rem alguma coiGaleria Café Objeto Encontrado modo, muitas sa”, explica Lupessoas estarão livres de tra- buleiro. Havane Melo, uma cas Hamu, um dos donos do balho ou estudo. O Conselho das sócias proprietárias do estabelecimento. Ele complede Ensino, Pesquisa e Exten- estabelecimento, explica que ta: “O ideal é que as pessoas se são da Universidade de Bra- faz parte da proposta do local divirtam e vejam que o futebol sília, por exemplo, decidiu não usar equipamentos ele- é o de menos na vida da gente transformar essas datas em trônicos. Além disso, ela, as- e de nossos clientes”. feriados gerais para a UnB. sim como Fino, não é a favor O cliente do Objeto EnconEstabelecimentos que não mundial: “O Moebius é o que a trado Cézar Almeida pretende irão exibir o campeonato po- gente é. Não faz muito sentido comparecer às atividades da dem ser destinos para quem a gente acompanhar a Copa do Copa Coguey. Ele considera não pretende acompanhar as Mundo. Minha opinião pesso- que o evento é uma boa oportransmissões do Mundial. al é, inclusive, contra [a Copa]. tunidade para quem não quer Renato Fino, proprietá- Eu só posso falar por mim, eu passar o horário das partidas rio do Café Senhoritas, na não queria ganhar dinheiro às em casa sozinho vendo filmes, comercial da 408 Norte não custas de uma coisa com que por exemplo. O estudante de pretende alterar o funciona- eu não concordo”, explicou psicologia Daniel Reis nunca mento de sua loja nos dias de Havane, deixando claro que foi ao estabelecimento e acrejogos. Na quadra do Café, há é sua opinião pessoal, e não dita que “a opção mais recorestabelecimentos que, nor- necessariamente a dos outros rente para quem não quer malmente, não transmitem dois sócios, Diogo Chaves e assistir a Copa é ficar sentado partidas de futebol, mas pro- Rogério Vieira. emburrado no quarto espevidenciaram televisores ou “Aqui em Brasília tem bas- rando o jogo passar”. Ele ficou telões para atrair clientes in- tante gente que não vai querer sabendo das gincanas por meio teressados na Copa, como é o assistir, então acho que, como de um amigo e tem planos de caso do In The Bar. um espaço alternativo, é bem participar da Caça ao Tesouro.

De forma diferente, Lucas e Bebel Hamu, proprietários do Objeto Encontrado, organizaram gincana para clientes desinteressados nos jogos de futebol Iago Garcia

Frequentador do Moebius Café há cerca de um ano, George Bezerra acredita que o local seja uma boa opção para fugir da programação esportiva

O bar Barkowski vai fazer diferente dos outros estabelecimentos citados. O proprietário, Jefferson Lima, decidiu transmitir as partidas, mas sem som, para não perder uma das principais marcas do lugar: a reprodução constante de músicas de rock. Ele explicou que um dos motivos para não mudar a sonoplastia do bar tem a ver com o perfil do público frequentador. Além disso, ele não permitiu que colocassem bandeirinhas na frente do estabelecimento, por considerar que não teria a ver com a “cara” do local.

O estudante de filosofia Hugo Martino, frequentador do Barkowski, não se interessa por assistir às partidas e não pretende acompanhar a Copa. Ele, porém, gosta do ambiente e das músicas do bar e considera ir para o local em dias de jogos. O estudante acredita que a solução de Jefferson Lima foi positiva: “É interessante, porque, tirando o som, as pessoas que realmente gostam do esporte provavelmente vão procurar outro lugar. E ele ainda assim dá opção. É uma ideia interessante”.


Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

CULTURA

FORRÓ CAIPIRA

Expoente da nova geração de músicos de Brasília, Cacai Nunes mistura diferentes referências em sua obra, ao mesmo tempo em que resgata tradições Thomas Gonçalves

A

chácara situada no cerrado é cercada por árvores frutíferas e outras retorcidas pelo clima e pelo solo. As paredes de adobe acompanham a palheta amarelada da paisagem. Dentro da casa, o ambiente é ameno, com janelas por todos os lados para permitir a entrada de vento e iluminação. É nesse cenário que vive Cacai Nunes, músico brasiliense que dialoga com o tradicional e o moderno, transitando por diversos estilos sem ter um definido. A decoração do local revela o ecletismo de Nunes. Máscaras africanas dividem espaço com xilogravuras de cordel. Tudo ali tem um dedo do artista, assim como sua obra: a multiplicidade de referências, em uma constante tensão entre novo e antigo. Nascido em Recife, mudou-se para Brasília cedo, com cinco anos de idade. Gabriela Tunes, colaboradora de Nunes, diz que a nova cidade marcou a formação do músico: “Ele é como Brasília, uma mistura de culturas, de dialetos”. O pai, Mário Pinheiro, pianista, deu-lhe um violão ainda na infância. A mãe, Rosalba Batinga, diz que Nunes sempre procurou fazer as coisas de seu jeito. “Ele tentava tirar som de guitarra com o violão.” Ela lembra que o filho sempre foi curioso, chegando a aprender a ler antes de outros colegas de escola. Em 1996, com 15 anos, Nunes começou a trabalhar em um banco, onde ficou por cinco anos. Apesar de ter sido funcionário exemplar, subindo na carreira rapidamente, sabia que

aquilo não era o que queria. Rosalba conta que, ao decidir que se dedicaria à música, Nunes foi contundente: “Quero ser feliz”. Hoje, ele se diz satisfeito com a escolha, mas reconhece que não é fácil. “Preciso estar sempre correndo na frente, aprendi a me virar.” Na época, integrava uma banda de rock como guitarrista, com a qual chegou a viajar pelo país, apesar das dificuldades. A iniciativa, porém, não deu muito certo, e o artista começou a desiludir-se com o violão e a guitarra. Foi ainda na adolescência que ele descobriu a viola caipira. “Eu andava muito de bicicleta. Minha única companheira enquanto pedalava era a música. Escutava muito Uróboro, de Roberto Corrêa.” Em 2001, aos 20 anos, ingressou na Escola de Música de Brasília (EMB). Marcos Mesquita, professor da EMB, lembra-se da dedicação

Nunes de admirar nomes consagrados da viola: “Zé Moreno e Cassiano são hoje a melhor dupla de viola caipira do país, sem dúvida.” Diz nunca ter sofrido preconceito por seu trabalho e que sua relação com os grupos tradicionais é de respeito. Afirma não conhecer todo o repertório caipira, mas seu interesse tem aumentado. Sua obra tem influências de forró, candomblé, choro, samba, baião e tango. Já gravou dois álbuns com composições próprias: Avesso, em 2003, e Casa do chapéu, em 2013. Por ironia do destino, o primeiro foi lançado no Teatro dos Bancários, em Brasília. A música de Nunes já o levou a apresentar-se em outros países, como EUA, Espanha e França. Acredita que o artista brasileiro ainda é mais valorizado no exterior: “Aqui, a maior parte do público não procura conhecer trabalhos diferentes”.

"Ele é como Brasília: uma mistura de culturas" Gabriela Tunes, redatora

de Nunes: “Sempre foi muito interessado. Tinha um jeito próprio de tocar”. Para Mesquita, o estilo do antigo aluno lembrava muito o de Corrêa, revelando a influência. Em 2003, o músico tornou-se aluno de Corrêa, com quem colaborou em alguns trabalhos. O que atraiu a atenção de Nunes para a viola foi a sonoridade do instrumento. Sua obra foge do estilo tradicional. “Não sou caipira. Minha família é nordestina.” Isso não impede

Além de seu trabalho como músico, o violeiro também produz com Gabriela Tunes o programa Acervo Origens, no qual apresenta músicas que encontra garimpando LP antigos que digitaliza. Mais uma vez, Nunes faz a ponte entre o passado e o presente. Sua parceira de rádio o admira por sua dedicação ao projeto: “Ele chega a ter prejuízo financeiro com a pesquisa de acervo”. Tunes ressalta o perfeccionismo do colega, e ri ao se lembrar de um episódio: “Certa

vez, Cacai estava distribuindo seu álbum no fim de um show. Um homem que já tinha ganhado um, voltou à fila para pegar outro, justificando que era seu aniversário. Cacai então disse: ‘Você precisa ganhar é vergonha na cara’”. Como se não bastasse, ele ainda promove regularmente o evento Forró de Vitrola, que, algumas vezes, ocorre nas passarelas subterrâneas do Eixo Rodoviário. Um dos segredos para aguentar tantas atividades é sua esposa, Danielle do Vale. “Ela é meu equilíbrio”, pondera. Foi Danielle quem fez o suco de maracujá colhido no jardim antes de participar da entrevista. “O que mais me encanta no trabalho de Cacai é que ele pesquisa muito tudo o que ele toca”, afirma. Ao final da entrevista, o músico deita em uma rede na varanda e dedilha vagarosamente a viola enquanto contempla o jardim. Ao ser questionado se há vezes em que fica o dia inteiro tocando, responde: “Quem dera”. Aquela figura que lembrava muito os antigos violeiros se despediu, na soleira de sua casa de adobe. O olhar de Nunes, porém, fixo no horizonte, imaginando o futuro.

7


8

Campus

PROTESTOS

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

OUTRAS LENTES DA HIS

Com foco diferente da grande mídia, fotógrafos e cineastas brasilienses cobrem mani Luana Melody Brasil

A

trás da objetiva de uma câmera, Arthur Monteiro cobria a manifestação de 20 de junho do ano passado, no Congresso Nacional. Os manifestantes confrontavam os policiais localizados no lado oposto ao espelho d’água, minutos antes de atearem fogo ao Itamaraty. A passagem para o Senado era a linha divisória do conflito, e foi lá que os fotógrafos tornaram-se alvo de uma saraivada de pedras e garrafas de vidro. Arthur recebeu na cabeça um dos bloquetes arrancados pelos manifestantes. Outro atingido foi o francês Olivier Boëls, que levou uma garrafada no couro cabeludo. Após três pontos no corte, Arthur comprou um capacete de ciclista e foi registrar outras manifestações na companhia da fotógrafa Isabela Lyrio e de Olivier. Casados, Arthur e Isabela têm projetos independentes para as 2,2 mil fotos que fizeram desde as manifestações de 2013. Eles pretendem editar um livro de ensaio fotográfico que conta um pouco da história dos protestos por meio das imagens e também reunir o material para exposições. Já Olivier guarda o que registrou para futuras projeções e mostras fotográficas. “Na hora não penso no que

vou fazer com as fotos, quero apenas documentar, depois mostro o que vi”, diz. Outros que preparam trabalhos autorais são o cineasta André Carvalheira e o jornalista Rodolfo Mohr. André grava um documentário a partir das atuações nos protestos de duas personagens feministas da Estrutural, que já participaram da Marcha das Vadias e são ligadas ao movimento contra a Copa do Mundo. Rodolfo, com ajuda de um amigo publicitário, também pretende lançar documentário em breve. Eles estão editando um vídeo no qual reuniram imagens dos protestos de junho do ano passado, entrevistas com líderes políticos e funcionários públicos que estavam nos prédios tomados pelos manifestantes, além de outros personagens que de algum modo fizeram parte dos movimentos que tomaram as ruas. Segundo Rodolfo, serão incluídas nesse trabalho entrevistas feitas nos protestos desenrolados ao longo deste ano. Tanto André quanto Rodolfo prometem disponibilizar os documentários na internet em canais de acesso livre. “É a primeira vez que fazemos um trabalho assim. Estouraram as manifestações e decidimos fazer um docu-

100 fotógrafos e cinegrafistas foram agredidos entre 2013 e 2014, tanto por policiais quanto por manifestantes

Foto de Isabela Lyrio na manifestação Copa pra quem?, de 15 de junho de 2013, dia da abertura da Copa das Confederações. A fotógrafa conta que, a uma chuva diminuiu a tensão. Quando o sol voltou a iluminar o Eixo Monumental, violinista reproduziu para os policiais música tocada no filme Titan

mentário. A ideia é contribuir com audiovisual para compor o que é o Brasil depois de junho de 2013”, ressalta Rodolfo. “É um documentário autoral livre, aberto, não vai me dar dinheiro. Quero ajudar a explicar o que está acontecendo. Tem um monte de gente falando sobre as manifestações, mas ninguém conseguiu explicar”, completa André. ENQUADRAMENTO PERIGOSO Segundo dados da Asso-

ciação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), mais de 100 fotógrafos e cinegrafistas foram agredidos entre 2013 e 2014, tanto por policiais quanto por manifestantes. Em fevereiro deste ano, o cinegrafista da Rede Bandeirantes Santiago Andrade morreu após ser atingido por um rojão. Desde o episódio, as empresas de comunicação investiram em equipamentos de segurança para poder cobrir os protes-

tos. No caso dos fotógrafos e cineastas independentes, sem os equipamentos a atividade torna-se ainda mais arriscada. Contudo, isso não os inibe. “A gente precisa trabalhar, precisa da foto. Os policiais usam bombas e gás para dispersar, mas, se o fotógrafo dispersar também, perde o momento importante”, observa Isabela Lyrio, que no dia da chuva de pedras que atingiu Arthur Monteiro registrava

m


Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

HISTÓRIA

9

Recorte Henrique Alcoverde

manifestações para projetos autorais

a conta que, após conflito entre manifestantes e policiais, a no filme Titanic no momento do naufrágio

“Tem imagens que não vão para os jornais. O documental mostra o que está acontecendo” Isabela Lyrio fotógrafa há 13 anos

no lado da Câmara dos Deputados. “Tenho que admitir que se tem um pouquinho de perigo, é bom. Porque vou atrás da imagem que pouca gente vai ter coragem de fazer”, destaca Olivier. André Carvalheira lembra episódio violento quando filmava a manifestação Fora Arruda, de 2010, que exigia o impeachment do ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda. O cineasta viu policiais espancar um jovem com cassetetes. “Corri com a câmera para perto deles, porque a lente intimida, então fui proteger o garoto e mostrar como os policiais agem”, recorda. “Um deles saiu e começou a atirar balas de borracha no chão próximo a mim e outro jogou gás lacrimogênio. Mas, não parei de filmar, era tanta raiva que continuei.” Segundo André, depois de outras manifestações, os participantes começaram a defendê-lo, pois viram que não trabalhava para empresas de comunicação. “‘Não, ele não é da mídia, ele é independente’, o pessoal dizia. Aí às vezes faziam grupos e não deixavam jornalistas passarem, mas eu podia. É questão ideológica.” Apesar dos riscos, o que motiva esses profissionais a fazer trabalhos sem financiamento é a vontade de participar da história. “Tem imagens que não vão para os jornais. O documental mostra o que está acontecendo, os detalhes, as pessoas que participam”, observa Isabela. “Esse é um momento importante para o país e precisa ser bem registrado. Estudamos quem registrou protestos contra a ditadura, contra o Collor e agora é a nossa vez.”

Além de cursos de capacitação para cobertura de protestos, oferecidos pelo governo e pelas próprias empresas, a imprensa de Brasília deparou-se com manifestação pacífica no dia 30 de maio, no Eixo Monumental. Segundo levantamento da Polícia Militar, havia cerca de 300 manifestantes

Memória Um dos cineastas que fez registros dos quais Isabela fala é o ex-professor de cinema da Universidade de Brasília (UnB) Vladimir Carvalho, autor do documentário O Evangelho Segundo Teotônio, de 1984. Para ele, capturar esses momentos é importante para compor um quadro de quem eram aqueles atores, como eles agiam e o que queriam. “O flagrante da imagem e do som é implacável. Um dia vão dizer: ‘atearam fogo no Itamaraty, quebraram vidraças, porque a massa brasileira estava insatisfeita’”, diz Vladimir. “Se tivéssemos um vídeo de Jesus Cristo ou de Sócrates, por exemplo, não teríamos dúvida se eles eram cabeludos, barbudos, se tinham olhos claros ou castanhos. Isso é a história.” Outros documentos do período de protestos conhecido por Diretas Já, de 1984, que exigia a volta das eleições presidenciais e a redemocratização do Brasil, compuseram

a exposição Povo, Praça, Participação: 30 Anos das Diretas Já, organizada em março deste ano pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo. Na exposição, acervo de fotos do antigo Departamento de Comunicação Social e das fundações Memorial da América Latina e Padre Anchieta mostravam 300 mil manifestantes, entre políticos, artistas e imprensa, reunidos na Praça da Sé em janeiro de 1984. Nesse mesmo ano, o Campus acompanhou o trabalho do professor de física da UnB e cineasta José Acioli, que na época produzia documentário em fita Super-8, o Assembleia Ge-

ral. O filme, como é mostrado na matéria do jornalista e poeta Névio Alarcão, traz episódios do período de opressão na universidade, como a prisão de alunos e professores, saída de estrangeiros e a greve geral de 1982, que motivou o cineasta a produzir o filme.


10

Campus

SEGURANÇA

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

MANOBRAS DE CORAGEM E RISCO

Curso de pilotagem e direção defensiva avançada é alternativa para quem quer prevenir sequestros, mas especialistas divergem quanto à eficácia Lara Silvério

“Q

uando eu vi aquela mesma cena se repetindo, mandei meu amigo engatar a ré, acelerar e, mesmo estando no banco do passageiro, peguei o volante e disse: 'Deixa comigo.'" Há quatro anos, o empresário Ramon Roriz, 29 anos, foi vítima de um sequestro relâmpago no Pier 21 e parou no Itapoã, a 30 km de Brasília. No mesmo ano, entrou em um curso de pilotagem e direção defensiva avançada e aprendeu manobras de evasão que o livraram de uma segunda abordagem, em 2012, no estacionamento do Estádio Mané Garrincha. As manobras foram ensinadas pelo dublê profissional e instrutor de pilotagem e técnicas avançadas sobre rodas José Ricardo Matos, de 41 anos. Apaixonado por carros e motos, ele passou a dar aulas para instituições policiais, como o Bope e as polícias Civil e Militar, quando tinha 28 anos. Desde 2010, quando decidiu ensinar as manobras para filhos de amigos preocupados com os índices de violência da cidade, Matos oferece o único curso desse tipo no Distrito Federal voltado para particulares. “Perigo é falta de conhecimento. Se você perceber uma situação de risco e tiver conhecimento da manobra para escapar daquela situação, por que não utilizá-la?", questiona. Roubos como o sofrido por Roriz, conhecidos como sequestros relâmpagos, são crimes nos quais a vítima,

Janaina Bolonezi

José Ricardo Matos é o único que ensina manobras de evasão, que podem ser usadas em casos de sequestro relâmpago, para particulares no Distrito Federal

geralmente abordada dentro do veículo, é mantida por algum tempo sob controle dos bandidos. Os números da modalidade continuam alarmantes na capital federal. Dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública do DF mostram que, de janeiro a abril deste ano, houve 270 casos, apenas 22 a menos que no mesmo período de 2012, ano em que Ramon sofreu a segunda abordagem. Na ocasião, ele estava dentro do carro, percebeu a situação de risco e, em um espaço físico limitado, conseguiu aplicar técnicas obtidas no curso e fugir antes de ser abordado. “A autoescola não ensina isso e só a direção defensiva não basta. Se tiver o domínio do veículo, você está respaldado. Poderia ter evitado também o primeiro sequestro, caso conhecesse as manobras”, acredita. O foco dos cursos de dire-

ção defensiva que existem no DF é prevenir ou minimizar as consequências dos acidentes de trânsito. Não são ensinadas técnicas de pilotagem e o curso específico para isso é direcionado à segurança de autoridades. No caso de particulares, a intenção dos cursos é formar pilotos de competições esportivas. Nenhum deles é vinculado aos departamentos de trânsito. Em nota, o Conselho Nacional de Trânsito, responsável por estabelecer as normas regulamentares do Código de Trânsito Brasileiro, limita-se a afirmar que, atualmente, o processo de obtenção de Carteira Nacional de Habilitação (CNH) é “completo e que trabalha sempre para aprimorar a formação dos condutores”. Já Matos acredita que o curso para obtenção de CNH é um sistema arcaico, que precisa ser reciclado. Para ele, todas as autoescolas deveriam

ensinar as técnicas de evasão. “Hoje, os instrutores não conseguem ensinar nem o básico. O aluno tira a habilitação de qualquer jeito e sai mal preparado para as situações do dia a dia”, defende o instrutor. Na opinião do delegado civil Marcos Naves, a técnica não deveria ser ensinada durante o processo de obtenção de CNH porque condutores novatos não estão preparados para executar manobras de evasão com a rapidez exigida em situações de risco. “Qualquer movimento errado ou demorado pode ser fatal. Ele tem que ser rápido e certeiro. Para isso, o condutor precisa ser competente de maneira inconsciente ao efetuar as manobras. E essa habilidade ele só adquire com a prática e o tempo”, explica. “Esse tipo de curso avançado poderia ser opcional a habilitados com pelo menos um ano de expe-

riência no volante. Enquanto isso, ele ainda está aprendendo o básico da direção.” Daniel Lorenz, delegado federal aposentado e especialista em segurança pública, vê com bons olhos o ensino de manobras de evasão pelas autoescolas, mas faz ressalvas. “A técnica é válida, mas não podemos esquecer que tratam-se de pessoas e quadrilhas armadas. Você está disposto a levar um tiro? A bala é muito mais rápida do que a sua manobra”, argumenta. Lorenz acredita que é preciso analisar a situação e, então, decidir se vale a pena tomar alguma atitude. “O melhor é prevenir a abordagem”, conclui. Uma vez que a pessoa já tenha sido abordada, o conselho dos especialistas é unânime: não reagir. De acordo com as estatísticas, na maioria dos casos, os criminosos estão interessados no veículo e não na vítima.

O IDEAL É PREVENIR Como evitar o sequestro relâmpago: • Varie rotas, horários e quebre rotinas; • Nos semáforos, reforce a atenção, observando o movimento através dos retrovisores; • Na falta de passageiros, as portas direita e traseiras devem permanecer trancadas e com os vidros fechados; • Ao chegar a estacionamentos e entrar em garagens, observe a presença de suspeitos nas proximidades; • Quando sair do banco, verifique se está sendo seguido; • Permaneça o menor tempo possível no interior do veículo. Entre e saia rapidamente; Não fale ao celular dentro do automóvel.


Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

11

UNIVERSITÁRIOS

SOU EXPLORADO PELO MEU ESTÁGIO

Jornadas excessivas, atrasos no pagamento, contratos não assinados. São vários os problemas enfrentados por estagiários no DF Isabela Resende

A

estudante de jornalismo Priscila Rocha, de 23 anos, estava empolgada para começar o estágio na revista Plano Brasília, que poderia representar ingresso no mercado de trabalho. A proposta era irrecusável. Durante a entrevista, o dono do veículo de comunicação, Edson Crisóstomo, sinalizou uma possível contratação, já que Priscila estava no final do curso. O que a estudante não imaginava era que, em três meses, ela e seus colegas sairiam da empresa: as revistas não eram publicadas, as bolsas estavam atrasadas e os contratos de estágio ainda não haviam sido assinados. Decepcionada, a estudante recorreu ao Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal para buscar apoio e resolveu entrar com uma ação trabalhista contra a revista. “É muito triste o estagiário ser recebido dessa forma pelo mercado de trabalho. Tem muita gente talentosa que acaba se frustrando com a profissão antes mesmo de iniciar a carreira”, lamenta. Edison Crisóstomo, dono da empresa, alega que, por ser um meio de comunicação independente, é normal que a revista sofra problemas econômicos. “Os funcionários deveriam ser mais compreensíveis com a situação e ajudaraempresaacrescerenãosimplesmente pular do barco”, afirma. Assim como Priscila, muitos estagiários passam por algum tipo de exploração, mas poucas

denúncias são feitas. Em todo ano de 2013, o Ministério Público do Trabalho do Distrito Federal (MPT-DF) recebeu três relatos. Este ano, apenas mais três. Assim como o MPT-DF, alguns sindicatos trabalhistas e as cinco instituições intermediárias de estágio do Distrito Federal – CIEE, IEL, Brasília Estágios, Stag e Instituto Fecomércio – também oferecem auxílio gratuito aos estudantes. Eles podem fiscalizar e mandar um ofício de ação política alertando a empresa sobre a situação irregular dos estagiários, mantendo o anonimato de quem denunciou o caso. Mesmo com a grande frequência dos abusos, a baixa procura pelos órgãos responsáveis

se deve, em grande parte, pelo eu também dava assistência desconhecimento da Lei do para a área de sistemas, que Estágio e de seus recursos de não era meu campo”, relata. ajuda simples e eficazes. As Gabriela Penha, 23 anos, exdenúncias poderiam ajudar estudante de direito, também a evitar situações como a da passou por uma situação comestudante de administração plicada enquanto trabalhava em Paula Fonseum órgão púca, 19 anos, blico. Ela não que não teve sabia recusar seu plano de as tarefas disatividades farçadas de fare s p e i t a d o denúncias de exploração vores. “Muidurante os tas vezes, eu quatro meses de estagiários no MPT-DF chegava mais em que estagiou cedo no estáem 2013 no Minisgio por causa tério da Assistência Social. do meio de transporte e al“À s v e z e s , a secretária guns dos ch e f e s que não eram saía e eu tinha que atender meus supervisores me pediam os telefonemas. Fora isso, para fazer algum trabalho, apesar de não estar no meu horário. Eu não sabia como recusar. Não me Thaís Carneiro sentia obrigada, mas eu me via tendo que fazer aquilo e me acostumei com aquela situação”, relembra. “Apesar disso, aprendi muito sobre como realmente funciona o mercado de trabalho”, completa. De acordo com a psicóloga do trabalho Fernanda Dantas, a gratidão pela oportunidade de emprego e aprendizagem e o fato de serem novos no mercado de trabalho tornam os estagiários mais suscetíveis à exploração, pois eles não sabem como lidar, negociar e o quanto podem ceder sem ser explorados. “Por isso é tão importante que conheçam seus direitos e deveres na empresa e se mantenham em contato com seus supervisores de estágio para saberem impor seus limites”, explica. Um estudante de ComuniPriscila Rocha estagiou na revista Plano Brasília. Problemas como o atraso no cação Social que preferiu não se pagamento motivaram a estudante a procurar o Sindicato dos Jornalistas do DF identificar conta que não tinha

Apenas 3

supervisor, nem uma empresa que intermediasse seu estágio – o que é obrigatório – enquanto trabalhou em agência de publicidade de Brasília. Além disso, ele e outros estagiários trabalhavam pelo sistema de metas diárias. “Muitas vezes, não dava tempo de concluir as tarefas nas seis horas diárias de estágio. Por isso, ficávamos além do horário. Eu não era obrigado, mas sentia que, se não ficasse até terminar, seria demitido. Depois de duas semanas e meia, saí da empresa porque estava muito cansado e estressado”, explica o estudante. Danos físicos e psicológicos como os sofridos pelo estudante podem afetar a vida social e acadêmica dos universitários. De acordo com a advogada Fernanda Teixeira, o principal foco do aluno deve ser os estudos e os locais de estágio devem respeitar isso. “Muitas empresas contratam estagiários para fugir de leis trabalhistas. O estagiário é um funcionário menos capacitado, porém muito mais barato.” Os estagiários devem ficar alertas. Eles não podem ser responsáveis diretos por nenhuma função da empresa, devendo apenas auxiliar na produção. As instituições também não podem obrigar o estagiário a trabalhar mais de 30 horas semanais. A quantidade de tempo de trabalho por dia pode ser acordada e, inclusive, ser transferida para os sábados, mas nunca ultrapassar o limite de horas. “Se você trabalha mais de 30 horas semanais, não é estagiário, é empregado”, afirma a advogada.


12

Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

SAÚDE

FUGINDO DA BALANÇA

Mais da metade das pessoas que fazem cirurgia bariátrica volta a engordar. No DF, quase um terço da população sofre de algum tipo de obesidade Beatriz Fidelis e Karla Beatriz

O

besa desde criança, Patrícia Facioli Lunardi começou a consultar especialistas aos 9 anos de idade. No início levada pelos pais, chegou, na adolescência, a necessitar de uma atitude extrema: a intervenção cirúrgica. “Fiz muitas dietas diferentes e também tomei muito medicamento. A perda de peso acontecia, mas não tanto quanto precisava e, logo, eu não só voltava ao peso inicial mas engordava ainda mais”, relata a pedagoga. Com 25 anos e 140 quilos, Patrícia estava deprimida: “Minha qualidade de vida estava muito prejudicada, me tornei uma pessoa infeliz. Não conseguia emprego, estudava, mas o peso me atrapalhava até a ficar sentada em sala de aula. Tinha dores nos joelhos,

Iago Garcia

tornozelos, a depressão só aumentava, assim como o risco de morte súbita”, desabafa. Após recorrer, há 14 anos, à cirurgia bariátrica, intervenção invasiva que demanda uma série de modificações na vida do paciente, Patrícia hoje sofre novamente com o ganho de peso. Em oito anos voltou a engordar 30 quilos. Obesidade é uma doença crônica não transmissível caracterizada principalmente por excesso de peso. A cirurgia bariátrica, que consiste em reduzir a capacidade de absorção de nutrientes pelo estômago e intestino, é uma das principais etapas do tratamento para a doença. No entanto, a intervenção cirúrgica não é solução única, deve haver reeducação alimentar e atividade física para o resto

QUEM PODE FAZER Devem ser analisados três critérios: IMC Acima de 40, independentemente da presença de comorbidades; entre 35 e 40, na presença de comorbidades; entre 30 e 35, na presença de comorbidades “graves” e “intratabilidade clínica da obesidade”. IDADE Abaixo de 16: exceto em caso de síndrome genética, deve ser avaliado pela equipe e consentido pela família; entre 16 e 18: sempre que houver indicação e consenso da família e equipe; entre 18 e 65: sem restrições; acima de 65: avaliação individual pela equipe. TEMPO DA DOENÇA Apresentar IMC e comorbidades há pelo menos dois anos, já ter realizado tratamentos convencionais com insucesso ou recidiva do peso.

da vida. “Ainda não existe esse método milagroso”, explica a médica de família e pósgraduanda em endocrinologia Thays Araújo. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) e do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), centro de referência em cirurgias bariátricas no DF, em média 15% das pessoas que se submetem ao procedimento cirúrgico voltam a engordar nos dois primeiros anos mais do que os 10 a 20% do peso esperado. Esses números chegam a 60% nos dez anos após a cirurgia, segundo o cirurgião do aparelho digestivo e professor da Universidade de Brasília (UnB) Ronaldo Cuenca. “Quem volta a ganhar peso tem o sentimento de fracasso porque engordou, ou acha que não precisa mais do acompanhamento da equipe médica porque já emagreceu o que queria”, esclarece. “A cirurgia bariátrica é sem dúvida o método em que mais se perde peso em curto prazo. Porém, assim como o tratamento medicamentoso, existe um período de estagnação, em que há uma dificuldade de perder ou ganhar peso”, explica Thays. De acordo com a médica, após essa fase de inércia, o paciente inicia a recuperação do peso perdido, como um mecanismo de defesa do próprio organismo. Por isso, há necessidade do tratamento das causas que levaram o paciente à obesidade. É necessário o acompanhamento com uma equipe de endocrinologista, nutricionista, psicólogo e o cirurgião.

Cristina Gracia Langsch fez a cirurgia da obesidade e voltou a engordar quando ficou grávida. Para ela, “o principal problema do gordo é a cabeça”

“Quem é obeso, sabe por que é obeso, mas precisa de ajuda. A cirurgia não é a solução final, é só uma etapa de um tratamento contra uma doença” adverte Cuenca. A indicação é apenas para pessoas que sofram de obesidade severa, que significa mais de 35 quilogramas por metro quadrado de gordura no corpo. O presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), Almino Ramos, enfatiza que é importante seguir as recomendações médicas e o acom-

60%

voltam a engordar em 10 anos após a cirurgia

panhamento multidisciplinar. “Os pacientes que não seguem as determinações, como consumir alimentos pouco calóricos, com pouco teor de açúcar ou gordura, evitando refrigerantes e bebidas alcoólicas ou que não fazem atividades físicas regulares, podem reduzir a perda e começar a ganhar algum peso entre um ano e meio ou dois anos depois da cirurgia”, confirma. Um dos caminhos mais difíceis para o portador da obesidade emagrecer é por meio de reeducação alimentar, pois há uma grande diminuição na ingestão de comida e uma mudança completa no estilo de vida. Ainda assim, muitos encaram os desafios, mesmo sofrendo pela abstinência dos alimentos. “Estima-se


Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

Iago Garcia

O cirurgião do aparelho digestivo Ronaldo Cuenca relata que grande parte dos pacientes que voltam a ganhar peso se sente fracassada. Já os que emagreceram acham que não precisam mais do acompanhamento médico, prejudicando o tratamento

que 30% dos obesos sofram de decepção com a “nova vida”. A professora de nutrição transtorno de compulsão ali- “Estou de volta à vida seden- da UnB Kênia de Carvalho mentar periódica, ou seja, por tária e com ela, à obesidade enfatiza que a obesidade pode mais que esse paciente faça mórbida”, confessa. Fernando causar uma série de doenças tratamento medicamentoso pesava 145 quilos, chegou aos conhecidas como comorbiou até cirúrgico, independen- 104 e hoje pesa 120. Essa alte- dades, ou seja, a ocorrência temente da técnica aplicada, ração de peso aconteceu em de vários problemas de saúde ele irá ter reganho de peso se quatro anos após a cirurgia. ao mesmo tempo. Na forma não tratar o distúrbio alimenfísica, aparecem na lista diatar primeiro”, explica a médi- PESO TAMBÉM NO BOLSO betes, hipertensão, doenças ca Thays Araújo. “Há variáveis Entre janeiro de 2013 e cardiovasculares e até câncer. psicológicas que medem o au- maio de 2014 foram realiza- As comorbidades aumentam mento de peso após o ato ci- das 213 cirurgias bariátricas muito a taxa de mortalidade rúrgico em diferentes grupos, nos hospitais públicos do e diminuem a expectativa de por exemplo transtornos de DF, sendo 63 apenas neste vida dos pacientes obesos. humor, de ansiedade, psico- primeiro semestre. Esse tipo Além dos problemas físes ou dependência química de intervenção cirúrgica cus- sicos, o sobrepeso traz uma em grau severo o suficiente ta em média R$ 10 mil para carga psicológica grande. De para inviabilizar a adesão ao o Governo do Distrito Fede- acordo com a psicóloga Suecomportamento alimentar ral (GDF). Hoje as doenças ly, há uma demanda grande demandado pelas novas con- causadas pela obesidade cus- de psicoterapia por pacientes, dições do organismo após a tam para o governo federal principalmente mulheres, vícirurgia”, complementa a pro- aproximadamente R$ 500 timas da obesidade. “Causa fessora da UnB psicóloga Sue- milhões por ano. Pesquisas baixa autoestima, isolamento ly Guimarães, especialista em mostram que o emagreci- social, depressão, desesperansaúde humana. mento pode gerar uma eco- ça, mau humor. O primeiro Seguir todas as recomen- nomia financeira para o Bra- passo antes da cirurgia é a psidações médicas pós-cirurgia sil de R$ 32 milhões por ano coeducação”, explica a espenão é tão simples. O empresá- somente com as cirurgias ba- cialista em saúde humana. rio do ramo publicitário Fer- riátricas. Se considerarmos nando Toresan Nascimento, as 150 cirurgias realizadas DF NA BALANÇA diz que “no começo era mais em 2013 no DF, foi investiSegundo pesquisa realizafácil porque juntava minha do, em média, R$ 1,5 milhão da em 2013 pelo Ministério vontade de emagrecer ao no último ano. da Saúde em parceria com a tempo livre que eu tinha. UnB, aproximadamente Porém, hoje, depois que 50 a cada 100 habitantes minha empresa cresceu, do Distrito Federal estão trabalho muito. Também acima do peso. De cada ministro aulas à noite e o 100 habitantes, 15 sofrem único momento que sobra por ano é o gasto médio do governo de obesidade. Não menos é para dormir e descansar”. preocupantes, novos dafederal com cirurgias bariátricas Ele completa ressaltando a dos levantados pela Secre-

R$ 500 milhões

taria de Saúde informam que 28 em cada 100 habitantes estão acima do peso, sendo que seis em cada 100 sofrem de obesidade mórbida. Em confronto com esta realidade de sobrepeso, dados da agência FSB Comunicações, também divulgados em 2013, destacam que em momentos de lazer 24% dos brasilienses praticam exercícios físicos e esportes. Mas o consumo desenfreado de comidas calóricas e feitas rapidamente se tornou essencial para a vida corrida dos moradores do DF. O movimento frenético da capital do país também leva os ponteiros da balança a marcarem números cada vez maiores. Cristina Gracia Langsch viu na cirurgia bariátrica e no emagrecimento a solução para acabar com o preconceito e a falta de credibilidade em sua profissão. Formada em Educação Física pela UnB, ela enfrentou a discriminação no ambiente profissional e foi dispensada de um dos seus empregos pelo excesso de peso. Por ter chegado aos 200 quilos com uma vida bastante limitada, Cristina alerta que o excesso de atividades no dia a dia e a falta de tempo tão recorrente podem nos tornar as

13

próximas vítimas da obesidade. “Brasília está em um ritmo tão acelerado hoje em dia que é complicado a pessoa achar um tempo para si.” Após 11 meses da realização da cirurgia, Cristina engravidou e voltou a ganhar peso. Danielly Padua, que fez a cirurgia em 2005, é exceção aos 60% que voltaram a engordar após uma década. Ela confirma que continua com o acompanhamento mesmo após nove anos da realização da cirurgia e da perda de um terço do seu peso inicial. “Eu reduzi principalmente as quantidades de tudo o que eu comia, mas continuo indo ao médico sempre para acompanhar”, admite. Esses casos apenas confirmam que a cirurgia bariátrica não deve ser o único meio para controle da obesidade, nem deve ser feita de forma indiscriminada. A mudança de hábitos é necessária. “Atualmente tem-se recorrido de forma mais frequente a cirurgias bariátricas como se fossem a ‘tabua de salvação’. O que é importante lembrar é que existem critérios para sua indicação que devem ser respeitados: riscos, benefícios e taxa de sucesso”, explica Thays Araújo.

COMO É FEITA A cirurgia, uma das principais etapas do tratamento da obesidade, principalmente a mórbida (IMC acima de 40), pode ser feita de quatro modos e age de três formas: AÇÃO Diminui a quantidade de alimentos que o estômago é capaz de comportar; reduz a capacidade de absorção do intestino ou combina as duas ações. EXECUÇÃO Pode ser feita com a abertura da cavidade estomacal ou por videolaparoscopia. No Brasil são aprovadas quatro modalidades da cirurgia: o bypass gástrico, a banda gástrica ajustável, a gastrectomia vertical e a duodenal switch. As quatro formas ajudam a controlar e reverter o processo da obesidade.


14

Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

MÚSICA

SONS DO SILÊNCIO

Glossário feito por professora da Universidade de Brasília ajuda deficientes auditivos a aprender música Bruna Furlani

P

esquisadora da Universidade de Brasília (UnB), Daniela Ribeiro criou um glossário bilíngue da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Concluído no final de 2013, o dicionário diminui as dificuldades da falta de sinais da música em Libras. O estudo foi feito com alunos do Conservatório Estadual de Música Cora Pavan Caparelli de Uberlândia, Minas Gerais. Ao final, foram criados 52 sinais particulares dos termos musicais. Surda desde os dois anos de idade devido à meningite, Daniela Ribeiro, hoje doutoranda em linguística pela UnB, diz que a ideia do glossário surgiu com a própria história de dificuldades. “Quando tinha 12 anos, comecei na escola de música. Lá, aprendi a tocar teclado com uma professora chamada Sarita, que era surda e formada em piano. Durante as aulas, como faltavam sinais próprios de música, ela me ensinava os recursos musicais através da leitura labial”, explica. Daniela relembra que, “em classe, tinha muita dificuldade. Por conta da inexistência de sinais próprios das notações musicais, os intérpretes faziam a datilologia, método em que soletram os termos com o alfabeto manual de libras para interpretação das músicas”. Daniela ainda destaca: “Se existe um dicionário para português, outro para matemática, por que não existir um de música? Além disso, o documento facilitaria a comunicação entre os docentes e alunos e diminuiria a dependência dos intérpretes”. Para criação dos 52 sinais-

Iago Garcia

termos que abrangem desde o pulso (menor unidade de medida do tempo musical) até a escala (sequência de notas colocadas em ordem consecutiva ascendente ou descendente), a mineira analisou vários aspectos: configuração e orientação de mãos, movimentos, pontos de articulação e expressões não-manuais. A grande motivação da pesquisa é a de mostrar aos surdos que é possível tocar um instrumento. Apesar de não ouvir, Daniela diz que consegue sentir a vibração do teclado e que isso a encanta. “Eu sempre gostei da sensação que sinto ao tocar”, acrescenta. Para explicar como os surdos sentem a vibração de um som, Daniela compara o caso ao de um avião que começa a decolar. Ao dar a partida, ocorre uma vibração muito forte, sendo possível perceber a presença do aeromotor mesmo que não se escute. Ou seja, o objeto é sentido porque produz vibrações no meio em que transita, seja no solo ou no ar. A música segue o mesmo princípio. Além disso, segundo estudo feito em 2001 pelo professor de radiologia da Universidade de Washington Dean Chibata, os surdos percebem a vibração em uma parte do cérebro que os demais indivíduos usam para ouvir. O que poderia explicar por que a experiência que os surdos têm de “sentir” as vibrações da música é igual à vivida por outras pessoas ao ouvir, de fato, música? A resposta, de acordo com Chibata, é que, na evolução genética, as pes-

soas construíram estratégias de maximização da atividade cerebral, e, com isso, o cérebro dos surdos acabou diferente. Ou seja, a área que seria responsável por processar os sons foi utilizada com outra função: analisar as vibrações. Sarita Pereira, docente de música do Conservatório Estadual de Uberlândia, acrescenta que os surdos são sensíveis à música porque a percebem com todo o corpo. “Através da vibração do chão, das paredes, das janelas de vidro e do próprio instrumento, os surdos são capazes de sentir os sons. Por esse motivo, muitos costumam dar preferência à percussão e à bateria”, diz. Segundo a professora, o dicionário é um avanço para os oito alunos. “O glossário facilitou a aprendizagem musical dos surdos através dos exercícios de fixação que começaram a ser feitos com sinais, como também ajudou na análise de partituras”, ressalta. A pesquisadora Daniela Ribeiro diz que, no futuro, pretende publicar um livro para, só então, divulgar o trabalho. “Agora, vou aumentar o vocabulário e sinais do glossário. Quando acabar, vou compilar tudo para, depois, difundir para dentro e fora do Brasil”, destaca. VIBRAÇÃO INTENSA Andréia Brito, vocalista da banda Surdodum – único grupo de Brasília formado por maioria de músicos com deficiência auditiva – é surda profunda. Para ela, que começou aos 21 anos no surdão, tambor grande de som grave, o interesse pelo ob-

Maurício da Silva é integrante da banda brasiliense Surdodum, única da cidade formada por maioria de músicos surdos

jeto surgiu porque emitia vibração similar ao batuque das discotecas. “Eu achava uma delícia aquele som das boates”, relata. Mas Andréia enfatiza que cantar é mais difícil que tocar, e que, por isso, levou mais de um mês para treinar a voz. “A professora da banda, Ana Lúcia, me ensinou aos poucos. Fiz exercícios em que ela me pedia para pegar na garganta dela e sentir onde estava vibrando e em qual nota. A primeira música que cantei foi ‘Azul da Cor

do Mar’, do Tim Maia”, diz com orgulho. Maurício da Silva, tocador de surdão na Surdodum, reforça que sente as vibrações da música por conta do retorno – som direcionado aos músicos para que sejam orientados pela sonoridade da própria interpretação ou de outros integrantes. “Nas apresentações, com o retorno de cada lado, sinto a vibração dos instrumentos. Tenho ��������������� essa sensibilidade”, acrescenta.


Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

15

COMUNICAÇÃO

TODOS ESTÃO SURDOS

Instituições públicas no Distrito Federal carecem de profissionais capacitados em Língua Brasileira de Sinais

Bruna Chaves Thaís Carneiro

A

lexandre Ferreira, 26 anos, nasceu com surdez profunda e, desde criança, depende dos pais para acompanhá-lo em locais onde a comunicação é um entrave. Uma simples consulta médica, por exemplo, não é possível caso Alexandre esteja sozinho. “O médico não entende o que eu tenho, e eu não entendo o que ele pergunta”, lamenta. Escrever para dialogar com o ouvinte também não é a melhor opção para o surdo, que, por não ter acesso à língua falada, desconhece vocábulos da língua portuguesa, sendo necessária nesse caso uma contextualização com sinônimos. As limitações encontradas pelos surdos não são exclusivas em atendimentos médicos, existem também em bancos, fóruns e delegacias. Alexandre diz sentir-se constrangido ao pedir a ajuda dos pais, “que estão em idade avançada”. Já tentou diversas vezes obter o auxílio de intérpretes, mas confessa: “Sempre estão muito ocupados, dificilmente podem nos acompanhar nesses locais”. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem mais de 100 mil deficientes auditivos no DF. Muitos deles fazem uso dos sinais e, ao lidar com ouvintes e perceber dificuldades na comunicação, recorrem à ajuda de pais ou amigos, que nem sempre sabem a Língua Brasileira de Sinais (Libras), mas conseguem auxiliá-los devido ao convívio. De acordo com Michel Platini, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Intérpretes, Guia-intérpretes e Tradutores

Nilda Aparecida Siqueira, 65 anos, nasceu surda e aprendeu Libras já com 56 anos, na Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos. Começou as aulas sem saber ler nem escrever e, hoje, é uma das melhores alunas de matemática

da Língua Brasileira de Sinais (Sinprols-DF), cerca de 120 profissionais atuam em Brasília, número insuficiente para atender a demanda da população surda. Entre os motivos para a pouca quantidade de intérpretes está a falta de conhecimento dos ouvintes acerca da comunidade surda. Os cursos que ensinam Libras, por exemplo, são compostos em sua maioria por professores ou pessoas que já tiveram algum contato com surdos. Para Marcos de Brito, presidente da Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos (Apada), o desconhecimento de Libras faz com que alunos desistam das aulas no nível dois, quando há aprofunda-

mento gramatical, pois “o processo de aprendizagem é continuado, não é só decorar os sinais”, afirma. “Iniciei o curso pensando que as noções básicas fossem suficientes para eu me tornar intérprete”, admite Juscilene Santos, 29 anos, que desistiu ainda no primeiro nível. Prima de surdo, Juscilene sempre se interessou pela língua de sinais, mas decidiu interromper o curso por exigir muita dedicação: “Pretendo voltar quando tiver mais tempo”. Apesar das desistências, a necessidade de intérpretes é tamanha que alunos ainda no nível intermediário são chamados para interpretar em palestras e congressos. Por esse problema, a legislação que rege a acessibilidade

de pessoas surdas é descum- No entanto, a CIL funciona prida. Em 2011 foi publicada com apenas seis intérpretes a Lei distrital nº 4.715, a qual e uma estagiária, número inobriga todos os órgãos e en- suficiente para atender a detidades da admi- nistração manda de 700 a mil pessoas pública do DF a ter pessoas por mês. De acordo com Alecapacitadas em Libras. Além xandre de Castro, intérprete disso, segundo o Decreto nº e responsável pela Central, as 5.626/2005, todos os órgãos dúvidas dos surdos incidem públicos em âmbito federal, principalmente em fóruns e estadual e municipal devem delegacias. “Os órgãos mais ter pelo menos 5% de seu pes- procurados no DF não têm soal capacitado na língua de intérpretes”, afirma. “Muisinais. No entanto, tais nor- tas vezes eles chegam aqui mas são impraticáveis, pois na Central e não há quem os há diversos órgãos públicos acompanhe, porque estamos e poucas pessoas ins- truídas atendendo outras demandas.” Apesar dos obstáculos na em Libras. Surdo de nascença, Wal- formação dos profissionais, dimar Carvalho, 38 anos, re- as instituições que trabalham conhece a importância do com surdos estão se organiintérprete para o crescimen- zando para mudar essa reato do surdo. “Sem ele o surdo lidade. No segundo semestre fica fora do mundo”, observa. de 2014, a Universidade de Professor em cursos de Libras, Brasília (UnB) vai inaugurar já ministrou aulas de noções o curso presencial de licenciatura em Letras básicas para a Secretaria de Libras a fim de Há aproximadamente formar novos Saúde e para a Polícia Militar. professores em Libras. Já para Waldimar venceu as barreiras sensibilizar os da comunicação intérpretes de Libras no ouvintes a lidar graças à ajuda de DF, quantidade insuficiente com os surdos, sua irmã, ouvina universidade te e intérprete de para atender a demanda oferta a disLibras. “Ela me de surdos da capital ciplina Libras dava forças para Básico, atualeu aprender o português com a ri- mente com onze turmas. Ouqueza de vocabulário que ele pos- tra instituição que pretende sui”, lembra. capacitar intérpretes de Libras Para reduzir as dificul- é o Instituto Federal de Brasídades dos surdos, foi criada lia, IFB, cujas ementas para o em 2010 a Central de Intér- curso técnico, com dois anos pretes de Libras (CIL), loca- de duração, já estão sendo dislizada na estação de metrô da cutidas. Contudo, há dificul114 Sul. A instituição serve dades em encontrar intérprecomo polo centralizador de tes para atender a instituição, pessoas capacitadas em aten- pois seriam necessários em der e acompanhar os surdos. torno de 43 profissionais.

120


16

Campus

Brasília, 17 a 30 de junho de 2014

O DOM DE CORRER E AJUDAR Raquel Franco Há dez anos, o ex-atleta da seleção brasileira de atletismo José Carlos de Oliveira promove corridas de rua em Planaltina, cidade goiana localizada no Entorno do Distrito Federal. O alto desempenho dele como atleta nos anos 90 motivou convites para treinar fora da cidade e até do país. Ao voltar de uma temporada nos Estados Unidos, o corredor se envolveu com projetos sociais e levou o atletismo à população da cidade. Além das corridas de rua, José tem dois projetos que incentivam crianças da região a praticarem a corrida. Desde o ano passado, ele treina mais de 50 crianças entre 6 e 16 anos em duas instituições diferentes. “O atletismo não recebe a mesma atenção que o futebol, por exemplo. Temos muitas crianças com potencial. Mas se não há incentivo, essa modalidade olímpica será deixada de lado”, explica José. José Carlos se destacou pelas conquistas nacionais e internacionais. O ex-atleta conquistou medalha de ouro no campeonato Ibero-americano e Meeting Internacional de Atletismo em 1994. Integrou a seleção brasileira e, devido a uma lesão na perna, deixou de competir nas Olimpíadas de Atlanta em 1996. A prefeitura de São Caetano o convidou para integrar a equipe de atletismo da cidade. O mesmo convite foi feito por outros dez municípios do estado de São Paulo. Os projetos que levam o esporte a crianças e adolescentes de Planaltina não recebem patrocínio. Apesar da parceria com fisioterapeutas e psicólogos, poucas pessoas contribuem com materiais necessários ao treino. Além disso, as condições do local de treinamento são precárias: a estrutura física onde as crianças correm é propícia a quedas e lesões. “Infelizmente, quando as instituições recebem apoio financeiro, ele é destinados apenas à construção de quadras poliesportivas”, explica José. O desempenho das crianças dentro de sala de aula melhorou após o envolvimento com o atletismo. A diretora do Centro de Ensino Fundamental 3, Elisabete da Silva, conta que a escola tinha problemas com violência e uso de drogas e, depois que os alunos começaram a praticar esporte, o rendimento deles mudou. “É clara a mudança que o José trouxe para o colégio. Hoje em dia, os alunos que praticam a corrida recebem até pontuação nas disciplinas da escola. O envolvimento com esportes muda a vida das pessoas”, ressalta Elisabete.

Para saber mais sobre o projeto e contribuir, entre em contato pelo telefone (61) 9154-6149.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.