Campus - nº 406, ano 43

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Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013 DIREITOS ITINERANTES INVISÍVEIS Sem pleno acesso às políticas públicas para minorias, ciganos relatam casos de discriminação no Distrito Federal

CULTURA A TODO CUSTO Moradores de Planaltina lutam pelo cultivo da arte e história locais, apesar da falta de financiamento

CAMPUS PRECONCEITO DIFERENÇA NA PELE Além de receberem tratamento desigual, jovens negros constituem maioria dos mortos por agressão no DF

BRASÍLIA,12 A 18 DE NOVEMBRO DE 2013

NÚMERO 406 ANO 43

CAMPUS Marina Carlos

COMO ESTOU DIRIGINDO?

Muito mal. É o que afirmam os mais de dois mil passageiros que registraram queixas no DFTrans este ano


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Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013

CAMPUS

Carta do Editor

Recorte

Caroline Bchara

Gabriel Lopes

Em uma cidade onde o número de veículos já ultrapassa a marca de um milhão, luxo é encontrar condutores tranquilos. O estresse no trânsito cresce a galopes e, entre as profissões mais enervantes, a de motorista de ônibus ocupa o primeiro lugar. Há um número cada vez maior de condutores que quebram as normas e, como consequência, um aumento na quantidade de queixas em relação à má conduta – e falta de respeito – com os passageiros. Em sua quadringentésima sexta edição, o Campus traz dados de um levantamento feito pela ouvidoria do Transporte Urbano do Distrito Federal (DFTrans) sobre essas reclamações – foram 2.424 nos últimos nove meses. Para a matéria de capa, os repórteres foram a campo e conversaram com passageiros que são, muitas vezes, maltratados pelos motoristas e mostraram o outro lado da história: por que os condutores andam tão estressados? Lixo de uns, luxo de outros. Enquanto para uns ruim é ser mal atendido, para outros o simples atendimento basta. A edição traz um retrato da

rotina dessas pessoas no Distrito Federal. Mesmo no século XXI, os ciganos sofrem com o preconceito que os cerceia e ainda não conquistaram acesso pleno a políticas públicas para minorias. A repórter mostra, entretanto, que algumas iniciativas estão sendo tomadas para que os direitos básicos da etnia sejam garantidos. Enquanto isso, a discriminação e a vulnerabilidade atingem outro grupo social: o dos jovens negros. O luxo desses? Não receber tratamento diferenciado de acordo com a cor da pele. A edição traz, também, um perfil dos jovens que nasceram e cresceram na invasão chamada de Favela da Garagem do Senado. A repórter apresenta a dura realidade dos que vivem ao lado da sede do poder político brasileiro e contrasta o luxo de um lado com o lixo de outro. Mas não é só à invasão que faltam recursos: moradores de Planaltina (DF) buscam preservar a cultura, a arte e a história da região com pouco ou nenhum tipo de auxílio financeiro. Um luxo.

Memória A edição 164 de julho de 1992 do Campus veio acompanhada do suplemento Vida Cigana. Os repórteres produziram matérias sobre costumes e peculiaridades desse povo, assim como sua organização social. Ao mesmo tempo em que os ciganos enfrentavam discriminação em virtude de sua cultura, a liberdade e os relatos das viagens empreendidas pelo grupo causavam

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fascínio por onde passavam. A reportagem destaca ainda que, naquele ano, a novela Pedra sobre Pedra colocou a cultura cigana em discussão.

Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília

Após o recapeamento de vias no Plano Piloto, semanas se passaram e o Governo do Distrito Federal ainda não repintou parte da sinalização. Sem faixa de travessia, muitos pedestres enfrentam dificuldades ao cruzar a rua

Ombudskvinna

Termo sueco que significa "provedor da justiça", discute a produção dos jornalistas sob a perspectiva do leitor

Nathalia Zôrzo A edição 405 do Campus é estática. Não há reportagem de duas páginas, gráficos ou ilustrações. As fotos são ruins e algumas ficaram distorcidas. Em termos de solução gráfica, o único elemento que difere na publicação inteira é o quadro sobre dicas de consumo em Crianças consumidoras, quase irrelevante. Dados imprescindíveis em Crise no ar e Educadores em extinção poderiam ter sido pensados em forma de gráficos. Tanto para mostrar o número de licenças emitidas pela Anac em 2010, quanto para evidenciar a evasão de professores no levantamento feito pela professora Mônica Padilha.

O jeitinho dos síndicos decepciona do início ao fim. A pauta é fraca e sem sentido. Até o oitavo parágrafo, a ombudskvinna não conseguiu entender qual o problema em buscar a contratação de serviços mais baratos para manutenção de edifícios residenciais. Um esboço da problemática aparece quando o repórter cita a possibilidade de acidentes nas obras. Possibilidade que é quase desmitificada quando a advogada Milene Ozório explica que a atividade não constitui ilicitude. Um passo para a liderança começa com um parágrafo que fala muito, mas não diz nada. Desperta a curiosidade do leitor até o intertítulo Corrida de aventura,

quando é possível ter a primeira noção do que está compreendido na prática do coaching. Além disso, uma dúvida fica no ar: quantas empresas, no DF ou no Brasil, já fazem uso da técnica de treinamento? Guardião da doutrina é linda. Bem escrita, emotiva e forte. Além disso, a escolha do olho contribui muito para a construção do personagem. Por fim, um apelo de quem acompanha o trabalho dos repórteres desde o início do semestre: inovem. Aguardo ansiosamente a edição 407 do Campus. Pode ser a última oportunidade de a equipe mostrar como é possível fazer jornalismo com criatividade.

Editora-chefe: Caroline Bchara Secretária de redação: Jéssica Moura Editores: Alessandra Azevedo, Gabriel Lopes, Hermano Araújo e Thiago Amâncio Diretor de arte e fotografia: Jéssica Gotlib Repórteres: Eduardo Barretto, Jhésycka Vasconcelos, Johnatan Reis, Laura Tizzo, Nívea Ribeiro, Washington Luiz Fotógrafos: Beatriz Ferraz, Emily Almeida,

Gabriel Lopes, Marina Carlos Colaboração: Yasmin Tavares Projeto Gráfico: Beatriz Ferraz, Hermano Araújo, Marianna Nascimento e Nadjara Martins Professores: Sérgio de Sá e Solano Nascimento Monitoras: Marianna Nascimento e Nadjara Martins Jornalista: José Luiz Silva Gráfica: Palavra Comunicação

Tiragem: 4 mil exemplares Contato: 61 3107-6498 / 6501 E-mail: campus@unb.br Endereço: Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Campus Darcy Ribeiro, Instituto Central de Ciências Ala Norte (Minhocão), Brasília, Distrito Federal CEP: 70.910-900


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OPRESSÃO

CRIME DE COR

Além da taxa discrepante entre homicídios de negros e brancos, racismo também parte de instituições públicas

59,1%

DA POPULAÇÃO JOVEM DO DISTRITO FEDERAL É NEGRA

Nívea Ribeiro

E

ra uma noite como outra qualquer na Asa Norte. O estudante da Universidade de Brasília Alan Mendes e um amigo estavam embaixo do bloco, fumando o último cigarro do dia. O carro da polícia passou por eles e deu meia volta. Os policiais desceram do veículo e mandaram os jovens colocarem as mãos na cabeça. “Eles revistaram meu amigo normalmente, olharam os bolsos e o que ele estava fumando. Quando foram me revistar, olharam meu cigarro, minha cigarreira, tudo o que eu tinha. Depois perguntaram onde morávamos. Respondi que estávamos embaixo da minha casa. ‘Então você mora aqui? E trabalha onde, rapá?!’ Tive que dizer onde trabalho e o que fazia. Mostrei meu crachá. Então nos mandaram ir embora, sem nenhuma pergunta para meu amigo’’, conta Alan. “Fiquei tão chocado que não reagi. Se fosse hoje, certamente iria pedir identificação e reclamar com a ouvidoria. A discrepância no tratamento entre os dois, um pardo e outro branco, é uma mostra do racismo institucional. De acordo com dados apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), na quarta edição do Boletim de Análise Político-Institucional, lançada em outubro, 6,5% dos negros (pardos e pretos) que foram vítimas de agressão no ano anterior à coleta dos dados

pelo IBGE, em 2010, tiveram como agressores policiais ou seguranças privados, contra 3,7% dos brancos. Além disso, um negro tem 8% a mais de chance de ser vítima de homicídio que um branco de mesmo nível socioeconômico. “Isolando outras variáveis e deixando apenas a cor da pele, chegamos a tais números. É uma prova de que esses homicídios são efeito apenas do racismo, sem questões sociais envolvidas. Eles formam a reta final da desigualdade, do acúmulo de injustiças’’, afirma Almir de Oliveira Júnior, pesquisador do Ipea e um dos autores do artigo “Segurança pública e racismo institucional’’, que revelou esses dados. Quanto à discriminação em instituições, o pesquisador diz estar perplexo diante da desigualdade da distribuição de segurança no Brasil: “O preconceito está presente em todas as áreas do serviço público, mas na segurança é ainda mais forte. Os números que mostramos no artigo já estavam disponíveis há alguns anos, mas são pouco conhecidos. É importante divulgá-los para que as pessoas não tenham desculpas, neguem a existência do racismo e o reproduzam automaticamente, como temos visto acontecer.’’ No Distrito Federal, a situação não é diferente. A Companhia de Planejamento do Distrito Federal

Yasmin Tavares

76%

DOS JOVENS VÍTIMAS DE HOMICÍDIO NO BRASIL EM 2010 ERAM NEGROS

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401

JOVENS NEGROS DO SEXO MASCULINO FORAM MORTOS EM 2011, DO TOTAL DE 492 CASOS EM TODO O DF

(Codeplan) liberou, também no mês passado, um estudo que mostra a vulnerabilidade da juventude negra no DF. A análise aponta que, das mortes por agressões contra jovens (492 casos), em 2011, 92,5% (455) das vítimas eram do sexo masculino, entre as quais 88,1% eram negros (401), segundo o Datasus. O estudo da Codeplan foi feito para auxiliar a instalação do plano Juventude Viva no DF, que almeja melhorar esses índices e aumentar a expectativa e qualidade de vida em regiões onde jovens negros são mais vulneráveis, de acordo com a análise de dados. O DF foi a terceira unidade federativa a aderir ao plano e já tem alguns projetos em andamento, mas só deve estar em completo funcionamento no início de 2014. Andressa Marques, articuladora do Juventude Viva no DF, acredita que “o racismo institucional é feito de violências transmitidas por quem está na ponta, pessoas que lidam com a população e acredi-

tam ter respaldo suficiente para identificar suspeitos, no caso da polícia, ou destratar e negligenciar o jovem negro, nos ambientes de saúde e educação’’. O plano prevê oficinas e cursos de capacitação com esses gestores, além de projetos voltados para a população jovem. “Depois de um incidente com a polícia, comecei a reparar nas ações das pessoas para comigo quando estava com amigas e amigos que não compartilham dos traços negros que herdei da minha família baiana’’, conta Bethania Maia, estudante da UnB e outra vítima do racismo institucional. Ao passar por uma barreira policial com um amigo branco, só ela teve a bolsa revistada, enquanto ele passou sem ser notado. “Ele transpôs a barreira com uma mochila nas costas sem que nem reparassem nele, enquanto eu tive que mostrar o que tinha dentro de minha bolsa minúscula, que tem lugar apenas para celular e identidade.’’

Bethania crê que esta situação só pode ser superada com educação e o reconhecimento de que o racismo existe, sim, no Brasil. “Esses casos só deixarão de ser corriqueiros quando as pessoas se conscientizarem do próprio racismo em ações pequenas, em vez de negarem sua existência. É preciso que se altere a imagem do negro e da negra na mídia – que não sejamos só os marginais do filme, as escravas da novela, o núcleo pobre. É necessário criminalizar a prática policial quando esta é claramente racista.’’ Segundo a Polícia Militar do Distrito Federal, há, “em todos os cursos de formação policial, disciplina de atuação frente a grupos vulneráveis e cursos voltados para áreas humanitárias, proteção das minorias e promoção do bem-estar social’’. A recomendação em casos de racismo institucional vindo de policiais militares é que se denuncie na Corregedoria da PMDF.


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TRÂNSITO

FÚRIA SOBRE RODAS

Má conduta de motoristas de ônibus gera mais de duas mil reclamações na ouvidoria do DFTrans

Washington Luiz

D

entro dos ônibus, no mais reclamam. O descumsobe e desce de gente, primento de horário nas paem meio ao barulho radas ocupa o primeiro lugar, do motor, uma série de cenas com 2.709 queixas no mesmo se repete: o passageiro pede período de 2013. uma informação ao motorista Rosangela Marinho, enfere é respondido meira, contribuiu com rispidez. para aumentar Ao se aproxia quantidade de mar da parada, reclamações condá o sinal, mas tra a má conduta não é atendido. desses profissioFreadas brusnais. No último cas e velocidade dia 28, ela reacima da permigistrou denúntida fazem tudo cia contra um Transporte Público no balançar. Atos condutor que Distrito Federal como esses contentou desviar tribuem para a rota do ôniMil linhas os motoristas bus em que ela serem consideestava. Era fim 5 mil motoristas rados uns dos de tarde quando principais vilões Rosangela en5 mil cobradores do transportrou no ônibus te público de da linha 103, no 1 milhão de passageiros por dia Brasília. ProSetor de Clubes va disso são as Sul, com destiSalário base dos motoristas: 2.464 reclama- R$ 1,6 mil por jornada de seis horas no ao trabalho, ções registradas na W3 Sul. No na ouvidoria meio do camido Transporte nho, quando Urbano do Distrito Federal (DF- deveria acessar a avenida, o Trans), entre 1º de janeiro e 15 motorista fez um desvio em de outubro deste ano, contra direção ao Eixo W. Indignada, os 5 mil motoristas do trans- ela pediu ao condutor que ele porte público da capital. É o se- cumprisse a rota. Como resgundo item de que os usuários posta, ganhou uma pergunta:

PASSAGEIROS FALAM Opinião de quem usa os ônibus

“Por aqui não serve?”. “Não, não serve. Eu não paguei para vir por aqui. Eu quero ir para a W3 Sul”, respondeu a enfermeira. O motorista refez o trajeto, mas a forma com que foi tratada incentivou Rosangela a anotar o número e a placa do veículo para protocolar a reclamação na ouvidoria. Revoltado com a situação pela qual passou, o vigia Estevo Moraes não conseguiu guardar esses detalhes e fazer o mesmo que Rosangela. Do dia em que discutiu com um motorista, ele lembra que voltava do trabalho, em São Sebastião, sentado nas cadeiras preferenciais que ficam antes da roleta do ônibus. Quando foi mostrar a carteira de identidade para descer na Rodoviária do Plano Piloto, o motorista fechou a porta e disse que Estevo só poderia sair se retirasse o documento de dentro do plástico em que fica guardado na carteira. “Nunca ninguém tinha me pedido isso, qualquer um consegue ver as informações com ela (a identidade) assim. É uma questão de cuidado, para não perder ou amassar, como as outras que já tive”, conta e mostra o lugar onde deixa o documento. As justificativas não foram sufi-

"O problema dos motoristas é a falta de atenção. Conversam muito durante a viagem e se esquecem dos passageiros." Sara Ingidi, bancária

Estevo Moraes foi impedido pelo motorista de descer do ônibus porque não tirou a identidade do compatimento plástico da carteira

cientes para convencer o condutor e a discussão só terminou com a intervenção de um fiscal. Para não render brigas, a policial militar Vanicélia Rodrigues e o também vigia Alberto Pereira preferem apenas comentar as atitudes inesperadas dos motoristas com outros passageiros. Usuários do mesmo ônibus, que deixa o Plano Piloto com destino ao Gama,

eles contam que por causa da pressa já viram várias pessoas ficarem presas na porta ao tentarem descer do coletivo. Vanicélia e a mãe dela já passaram por isso. “Eles não esperam a gente terminar de descer e já fecham a porta. Ainda bem que o ônibus estava cheio e os passageiros gritaram para o motorista”, lembra. Alberto relata que já chegou atrasado ao trabalho

"Tem motorista que corre demais. Não precisa disso tudo."

"Não tenho n Passei a ser e eles e sempre bido dentro d

Eunice Queiroz, cabeleireira

Gabriel Lace técnico em in


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várias vezes pelo fato de os motoristas não pararem onde devem: “Ao invés de passarem pela faixa perto da parada, eles vão na faixa da esquerda. Aí, quando dou o sinal, parecem que fingem que não estão vendo e eu perco mais meia hora esperando o próximo ônibus.” Descrente de que algo será resolvido com reclamações na ouvidoria, a dupla afirma que está ficando esperta para evitar que os casos se repitam.

nada a reclamar. educado com e sou bem recedos ônibus."

erda, nternet

acredita que a culpa nem sempre é dos motoristas. “Depende de cada um. Tem dia que o passageiro é que tá estressado, tem dia que nós estamos estressados. Por mais que a gente tente não causar problemas, algo acaba acontecendo. Mas o pessoal fala que eu sou tranquilo”, relata e relembra que era nervoso quando trabalhava por seis horas corridas dentro de um ônibus. As empresas exigem que os motoristas cumpram um trajeto em determinado período de tempo. O presidente do Sindicato dos Rodoviários do Distrito Federal, João Osório, acredita que nem sempre essa obrigação é adequada, o que contribui para o mau comportamento dos profissionais. “Às vezes é inviável cumprir certas rotas no prazo estabelecido. Isso faz com que o motorista seja imprudente no trânsito para não comprometer a produtividade. Acredito que com a nova frota e com os GPS ficará mais fácil fiscalizar esses abusos e punir as empresas”, explica. Osório espera que com os corredores exclusivos para ônibus, que permitirão melhor fluidez no trânsito, o nervosismo diminua. Segundo o DFTrans, as reclamações foram encaminhadas para as empresas nas quais os motoristas trabalham para serem apuradas. A autarquia ainda não contabilizou quantas foram resolvidas. Para diminuir o número de queixas, o departamento começou a oferecer, em setembro, cursos de capacitação para os motoristas. Eles também devem ser treinados para conduzir a nova frota que, de acordo com o DFTrans, irá melhorar as condições de trabalho da categoria.

Fotos: Marina Carlos

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CASOS RECORRENTES Registros de reclamações contra motoristas de ônibus também são comuns em outras capitais. Em Belo Horizonte, onde 1,5 milhão de passageiros utilizam transporte público por dia, a Empresa de Transporte e Trânsito (BHTrans) informou que foram recebidas 3,6 mil queixas entre janeiro e junho deste ano. No Rio de Janeiro, são 11 milhões de passageiros. A Secretaria de Transportes contabilizou 21,8 mil reclamações, do início do ano até setembro.

PODE SER A GOTA D’ÁGUA Eduardo Barretto

Brasília, 11 de setembro de ali trabalhando para o outro. 2013. Apesar da data fatídica, Nesse ambiente tenso, o cono episódio foi quase corriquei- dutor não pode extravasar ro – e a tensão não foi nas al- com seu chefe, ou com um turas. No Eixinho Sul, na linha policial. Quem está ali o temRodoviária-Aeroporto, um po todo? O passageiro. É uma passageiro gritou ao motorista válvula de escape”. que parasse fora do ponto de De acordo com a Internaônibus. O pedido não foi aten- tional Stress Management Asdido. Alguns segundos depois, sociation no Brasil (Isma-BR), o homem indignado com a re- 62% da população brasileira cusa sacava um canivete e es- economicamente ativa sofre faqueava o motorista, que saiu de estresse. Desse montante, vivo da peleja. Duas semanas antes, em 30 de agosto, no Eixo Monumental, após briga com o condutor do ônibus, um passageiro morreu. 1º Motoristas de ônibus Entre mais de duas mil profissões 2º Entregadores analisadas no Brasil pelo site de busca de empregos Adzuna, a 3º Assistentes de cozinha de motorista de ônibus foi eleita a mais 4º Jornalistas estressante. O estudo avaliou quatro 5º Policiais aspectos principais: potencial financeiro, ambiente de trabalho, compe- aproximadamente 30% apretitividade e demanda de mer- sentam a Síndrome de Burcado. nout, um estado de exaustão Hartmut Gunther, espe- que pode levar à depressão e cialista em psicologia social e até ao suicídio. do trabalho, explica: “O trânBasicamente, o stress é sito tem cada vez mais carros, um estado de vigilância pelo mais barulho, menos espaço e qual o corpo se prepara para menos tempo hábil. Imagine atitudes rápidas e intensas. todos com horário para cum- Sem esse mecanismo, nossa prir. O ambiente fica tenso”. sobrevivência seria difícil. O Gunther também considera problema é quando esse estavital pensar esses sujeitos – do é constante. O corpo não passageiro e motorista – sob descansa e pode responder uma ótica social: “O motoris- com doenças crônicas, como ta é socialmente mais fraco gastrite, alergias e enxaqueca, do que o passageiro. Ele está sem citar o mau humor.

Obviamente, o condutor não é o vilão – e nem o passageiro é o mocinho. Em uma discussão, nem sempre eleger um lado correto é tarefa simples e factível. David Duarte, presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito, afirma: “O passageiro também está exposto à mesma situação de perigo, está no mesmo ambiente. Algumas vezes, o causador de má-conduta por parte do motorista pode ser quem paga o bilhete”. Como não há ouvidoria para motoristas reclamarem de passageiros, podemos ter percepções estereotipadas dessa relação cotidiana, que tem motivos despretensiosos, como uma parada não acatada. Como soluções paliativas, sugeremse momentos de relaxamento, boa alimentação e exercícios físicos. Além do ter ou não razão, está em jogo uma questão de saúde – e de política, já que o maior passo seria um transporte público que não oferecesse tantos riscos e desafios, segundo os especialistas. Gunther define: “O problema maior está claro: é o transporte público“. Para David Duarte, é lícito supor que o aumento das reclamações se deva a uma deterioração do sistema de transportes. “O governo do Distrito Federal não tem um plano consistente para o setor”, diz. Fonte: Adzuna

O OUTRO LADO Estressante e meio. É assim que o motorista de ônibus Enivon Guedes define a profissão. Enquanto fuma e espera pela hora da próxima partida na Rodoviária do Plano Piloto, Enivon pergunta se alguém acharia bom ficar o dia inteiro pisando no freio e no acelerador. De segunda a sexta, ele faz três viagens para Taguatinga e duas para Brasília. Cada uma dura, em média, duas horas. “Eu faço o meu papel. Se alguém reclama ou fala alguma coisa, tem que resolver é com o cobrador. Minha função é acelerar e prestar atenção no trânsito porque tenho hora marcada para chegar”, diz com a firmeza de quem sabe o que faz. Sobre as queixas dos passageiros, Enivon conta que elas são raras e que as ouve calado. Responsável por fazer duas viagens ao dia, o motorista José Amaro considera o trabalho normal, como qualquer outro. Há cinco anos na profissão, ele leva os passageiros do Plano Piloto para o Jardim ABC, uma vez pela manhã e outra pela tarde. De vez em quando, costuma fazer hora extra em outras linhas para aumentar o salário. Ele reconhece que a categoria é motivo de críticas por parte dos passageiros, mas

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CULTURA

A ARTE DO ESFORÇO Sem apoio público, cena de Planaltina conta com atuações independentes a favor da cultura na cidade

Johnatan Reis

DANÇA DE CATIRA Nascida e criada na satélite, Ester Rodrigues, 47 anos, aprendeu com o tempo e com os foliões mais velhos a dança que hoje ensina às crianças e jovens da cidade. A catira é uma dança tradicional do Centro-Oeste e faz parte da identidade sertaneja. Com 19 anos, Rodrigues começou a dançar. Hoje ela coordena dois grupos de catireiros com a ajuda de sua filha de 15 anos, Eliomara. O primeiro é o Brutos Da Catira, que é composto por 10 rapazes e o segundo se chama Sistema Brutas Da Catira e é reservado para as garotas. A paixão pela dança é tamanha que, além de manter os dois grupos, Ester criou, ainda, o projeto Resgatando a Cultura. Com isso, estimula que crianças das escolas de Planaltina conheçam a cultura e dança sertaneja. “Temos que divulgar a tradição para os mais jovens para que a dança não desapareça”, afirma a professora.

Marina Carlos Camila Menezes

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lanaltina é uma das 30 regiões administrativas do Distrito federal. No entanto, ela tem história e identidade distintas construídas ao longo dos seus 154 anos. Ou 202, considerando-se a versão popular. A cidade é também local onde arte e história são cultivadas por seus moradores mesmo que haja pouco ou nenhum dinheiro para desenvolver as atividades. Esta é a história comum entre Simone Macedo, Preto Rezende e Ester Rodrigues, moradores que dedicam a vida à cultura, à arte e à história.

Símbolo do patrimônio histórico de Planaltina, a Igrejinha — recentemente reformada —, é um dos marcos da cidade defendidos por Simone Macedo O projeto foi criado este cidiu que parte da casa seria construído para atender a deano e fez tanto sucesso que um teatro. A garagem de casa manda dos moradores e artisvárias escolas da região con- virou teatro de bolso com tas. “A promessa é de que o vidaram o grupo para dar au- lugar para 42 pessoas e 60 complexo seja entregue no ano las para os alunos. “A agen- m². O teatro Lieta de Ló leva que vem, mas tudo pode aconda já está cheia até o ano que o nome dos pais de Preto, tecer”, afirma Marley, artista vem”, comemora Ester. As como homenagem. da trupe Por um Fio. atividades são desenvolvidas A cidade, que tem populasem nenhum patrocínio. Não ção de aproximadamente 230 PATRIMÔNIO HISTÓRICO há investimento governamen- mil pessoas, é também endereOutra característica que tal ou privado e os custos são ço da maior encenação aberta torna Planaltina peculiar são divididos entre os mem- do Centro-Oeste, a Via Sacra, os bairros, algo não tão comum bros, às vezes, alguma doação da qual Rezende já fez par- em Brasília. E um deles guarda cobre os gastos com materiais, te. Contudo, a região possui uma riqueza de importância como as blusas para o unifor- apenas o teatro de bolso, que histórica que atraiu Simone me dos grupos. não consegue suprir a deman- Macedo. O local conhecido da da cidade e, tampouco, dos como Setor Tradicional é onde TEATRO DE BOLSO mais de 15 grupos teatrais que fica o Museu Histórico e ArtísPreto Resende é ator e tra- existem ali. tico de Planaltina, casarões no balha com teatro há 30 anos O outro lugar destinado estilo colonial que lembram o em Planaltina. Sua contribui- aos ensaios da Via Sacra e de início da cidade e a Igreja de ção para a cidade foi transfor- outras trupes de teatro era o São Sebastião, conhecida pelos mar em realidade uma ideia ginásio cedido pela adminis- moradores como Igrejinha. de seu pai. Cansado de ver o tração regional, mas o local Simone nasceu em Forfilho sem local para ensaiar está fechado para reforma. A mosa, no estado de Goiás, e as peças e utilizar a rua como administração informou que mudou-se para Brasília para palco improvisado, seu Ló de- um complexo cultural será estudar e trabalhar. “Nunca

pensei em morar em Planaltina, mas a história e a cultura daqui são muito importantes para mim”, diz Simone — que dedica tempo integral de sua vida para proteger e divulgar o patrimônio arquitetônico da cidade. Para tanto ela criou a Associação dos Amigos do Centro Histórico de Planaltina (Amighos). A associação promove ações de conscientização e funciona também como vigia cobrando das autoridades reformas, ações de divulgação cultural, segundo Simone. Uma das conquistas recentes da Associação foi a reforma da Igrejinha. Simone conta que esta ação foi cobrada durante muito tempo e hoje é uma realidade. A obra foi oficialmente concluída em outubro. Contudo, Simone aponta erros na restauração que precisam ser revistos, como problemas na parte elétrica da construção e deformidade no piso, na parede e no teto. “Nós acompanhamos o processo, demos dicas e orientamos sobre o local das coisas e o significado dos detalhes, mas ainda assim houve problema”, afirma. Está marcada para a segunda quinzena deste mês reunião com órgãos responsáveis e a população para encontrar a melhor solução para o caso. É no cotidiano da cidade que se nota a diferença que estas ações causam. “Para mim Planaltina é um mundo à parte do resto do DF”, conta Milena Andrade, estudante de Artes Plásticas na UnB. “Tem tanta coisa acontecendo apenas por que as pessoas querem e acreditam”, pontua.


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SOCIEDADE

DÉCADAS DE DISCRIMINAÇÃO Há pouco tempo incluídos nas políticas públicas, ciganos relatam casos de preconceito no Distrito Federal

Beatriz Ferraz

Laura Tizzo

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hão de terra. Barracas de lona erguidas com pedaços de madeira e amarradas com cordas. Por conta das chuvas, os mosquitos reinam. Panelas empilhadas sobre a mesa, todas limpas. Móveis cobertos com apreço por colchas estampadas. Cinquenta pessoas moram ali: bebês, crianças, adolescentes, adultos e idosos. Esse é o cenário onde vive um povo muitas vezes visto com maus olhos pela sociedade. Os ciganos. A pobreza é latente. Mesmo com os objetos limpos e acomodados, os donos da casa (se assim podem ser chamados) pedem desculpas pela desordem. De acordo com eles, a bagunça é fruto da recente mudança, pois chegaram há duas semanas em Planaltina, no Distrito Federal. Ainda assim, Wanderley da Rocha sorri, deixando aparecer os dentes de ouro.

No Brasil, há, pelo menos, três etnias de ciganos (calon, rom e sinti), que se dividem em 291 acampamentos – uma população de meio milhão de pessoas, conforme dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Afora o alto índice, quando se trata de oportunidades, os ciganos são minoria. “Estamos no Brasil há quase 500 anos, mas continuamos invisíveis. Ainda que votemos e paguemos impostos, quase não há políticas públicas voltadas para nosso povo”, lamenta o presidente da Associação Cigana de Etnia Calon (Acec) do Distrito Federal e Entorno, Elias Alves. É por esse motivo que os ciganos têm reivindicado (e conseguido) direitos. Em 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva decreta

o Dia Nacional do Cigano, em 25 de maio, que durante seis anos teve caráter predominantemente festivo. Somente no ano passado, foi feito, pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República, o primeiro evento com fins de discutir o acesso das comunidades tradicionais (nas quais os ciganos estão incluídos) aos direitos que lhes cabem. Em 2013, o 25 de maio “alcançou proporções inimagináveis”, nas palavras da gerente de projetos especiais da Seppir, Luana Arantes. Isso porque, na data, foi organizada a I Semana Nacional dos Povos Ciganos, que reuniu cerca de 300 pessoas de comunidades ciganas discutindo pleitos junto ao Estado. Dentre as demandas, está a educação. Muitos ciganos abandonam os estudos antes mesmo Beatriz Ferraz

Wanderley da Rocha, da etnia calon, mora em acampamento de ciganos em Planaltina. A realidade é precária: em barracas de lona montadas sobre chão de terra, dividem espaço crianças, adultos e idosos

de aprender a ler por se sentirem discriminados dentro das instituições. “Nós somos calons, ciganos cavaleiros. Nossos trajes fazem referência a isso, ou seja, usamos bota, chapéu e camisa estampada. As meninas usam saias ou vestidos longos, nunca com o ventre à mostra. Quando alguém de outra cultura nos olha, faz chacota, piada, bullying. É difícil manter um filho na escola se ele sofre esse tipo de agressão constantemente”, explica Elias. Com objetivo de solucionar esse problema, a Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial (Sepir) do DF lançou, em parceria com a Secretaria de Educação e de Cultura e à Administração de Sobradinho, o projeto Tenda Escola. Por meio dele, duas professoras ministravam aulas dentro do acampamento instalado no Córrego do Arrozal, em Sobradinho, com durações de três horas, de segunda a quarta-feira. No dia 31 de outubro, Elias, ao lado de outros 49 ciganos, pegou seu diploma. “Era vergonhoso ter que pedir para alguém ler algum ofício para mim, ou pedir ajuda para escrever alguma reivindicação. Com estudos, fica mais fácil até lutar pelos nossos direitos. Sem contar que antes eu não sabia nem pegar ônibus.” De acordo com o secretário da Sepir/DF, Viridiano Custódio, uma nova turma começou a estudar no dia 5 de novembro e, para o próximo ano, a secretaria pretende adotar o sistema de Educação de Jovens e Adultos (EJA), também no acampamento em Sobradinho. “O povo cigano é muito unido e alguns de seus costumes, como o de que a mulher não pode ir desacompanhada a algum lugar, os impediam de ir à escola pública convencional.

Devido à burocracia nas escolas e às recorrentes mudanças de endereço, muitas crianças ciganas acabam largando os estudos Por isso, pensamos em ministrar aulas no acampamento e tivemos um resultado muito bom.” Apesar das recentes melhorias, os ciganos ainda se veem obrigados a lidar com situações desagradáveis, que ainda não estão amparadas pelo Estado. Parte desses problemas está relacionada às autoridades, que reproduzem anos de discriminação e desconsideram direitos. “Poucos dias depois que montamos nossas barracas aqui, chegaram seis viaturas da polícia querendo entrar no nosso acampamento. Os policiais estavam de arma na mão, com a cara amarrada”, conta Wanderley. Os relatos sobre a forma como são desrespeitados por autoridades não se resumem ao exemplo acima. “O meu sobrinho tem dupla sertaneja, com CD gravado, e eles não deixam o menino cantar uma música. Chega no bar, a polícia manda parar”, lamenta Jesus Manoel Soares, conhecido como Jesus Cigano. “A partir do momento em que as autoridades nos enxergarem como cidadãos, como seres humanos, as coisas começam a funcionar melhor a nosso favor. Enquanto houver preconceito, a gente nunca vai chegar aos nossos objetivos”, comenta Wanderley.


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Brasília, 12 a 18 de novembro de 2013

CAMPUS

ABANDONO

OS FILHOS DA FAVELA Jovens nascidos em invasão próxima ao Congresso Nacional são retrato do descaso do poder público Jhésycka Vasconcelos

P

erto do poder político e de autoridades policiais vivem 56 moradores da invasão conhecida por Favela da Garagem do Senado. Há 25 anos, 13 famílias de um mesmo núcleo habitam um terreno que fica a 500 metros do Palácio do Planalto, na via N2 Norte, próximo ao Batalhão de Polícia Militar da Esplanada. Tão curioso quanto os luxuosos carros e ternos contrastando com o lixo acumulado e os barracos, é o fato de que lá pessoas nasceram, cresceram e atingiram a maioridade. Segundo Maria Madalena, 28 anos, que mora em um dos abrigos improvisados, dos 56 moradores, 32 nasceram no local e 12 têm entre 17 e 25 anos. Trata-se de uma geração nascida em condições singulares. Dos filhos da favela, outros já nasceram. Carolina Celestino, 19, tem uma filha de dois anos e cuida sozinha da menina. O pai da garota, segundo ela, “começou a mexer com coisa errada” e logo foi deixado. A exemplo da irmã, Kaline Celestino, 21, engravidou jovem e em 2011 deu à luz Lucas. Após abandonar os estudos, passou a recolher latinhas com o marido, Adenor Santos, 20. Emily Almeida

A família vai até a Asa Norte com um carrinho no qual carregam o filho e o material. Em um dos dias de coleta, Kaline foi atropelada. “O motorista deu socorro, mas eu não quis.” A catadora sente dores nas pernas, mas não sabe se dizem respeito ao acidente ou aos trajetos percorridos diariamente. A maioria dos jovens da favela trabalha por perto. Leandro Albino, 18, lava carros e recolhe papel. Quando o calor é forte, ele vai à Esplanada logo pela manhã. Faz intervalo de duas horas para o almoço e, após o “expediente”, retorna ao seu barraco. Às vezes, Leandro vai buscar papel. “Não tem ponto certo, mas posso ir ao Ministério de Minas e Energia. Tem gente que vem buscar entulho aqui e leva pra Estrutural.” Carina Hellen, 18, não tem trabalho fixo, mas recolhe lixo nos ministérios ao menos uma vez por mês com a irmã mais velha, Kaline. “Ganhamos mais ou menos R$ 150 ou R$ 200.” A jovem, de apelido Docinho, trabalhou em uma loja de consertos no Paranoá. Entre as irmãs Celestino, Docinho é a única que não tem filhos. Ela se destaca pelos cabelos intensamente loiros. “Eu

já era clarinha mesmo, mas trouxe a tinta e minha irmã pintou”, esclarece. Carolina foi quem fez o serviço e diz ter talento. “Queria abrir um salão com minha irmã, mas a situação financeira tá difícil.” Mesmo tão jovem, ela já não crê mais em sonhos: “Minha filha foi o que aconteceu de melhor na minha vida. Mudar de casa é só uma vontade, sonho eu não tenho mais”. Docinho pensa em uma vida diferente. “Queria voltar a estudar, mas tenho vergonha. Parei na 3ª série e, se eu voltar, só vai ter moleque na minha sala”, prevê. Leandro deseja levar a mãe e os irmãos para viver em outro lugar. Pretende também voltar aos estudos, e tem planos para fazer curso técnico. Já pensou até em jogar futebol, mas os sonhos foram minados pela realidade. “Sempre fui gordinho e muito ruim. Depois, pensei em ser cobrador ou motorista, mas a gente precisa de estudos pra tudo.” Nenhum dos jovens da invasão concluiu os estudos. Quase todos começaram no Centro de Ensino Fundamental 1 da Vila Planalto e os que puderam seguiram para o CEM Paulo Freire. Leandro estudou até a 5ª série. Apesar de ter nascido na invasão, foi

morar em Planaltina de Goiás por um tempo. “Parei de estudar porque tive que vir morar aqui de novo, e minha escola ficava lá.” Por causa da gravidez, Karina interrompeu os estudos no 1º ano do ensino médio. “Estudava no Paulo Freire. Era longe e eu ia sozinha”, relata. Apesar de ter deixado a escola cedo, Docinho acha que aprendeu muito. “Eu ainda consigo ler, escrever e fazer contas”, diz, enquanto está sob efeito da maconha que compra em um lugar próximo. No local, as drogas são comuns. Apesar de muitos usarem as substâncias, eles afirmam que o consumo não representa perigo. “Aqui é bem tranquilo, ninguém mexe com a gente”, garante Carolina. Docinho fuma maconha “só pra ficar de boa”, como forma de encarar o cotidiano. No entanto, já houve quem usasse drogas mais pesadas. Há quatro meses, o vício em crack levou para a cadeia dois jovens da invasão. “São novos, meus primos. Roubaram umas coisas pra comprar pedra”, conta Kaline. A diversão entre os jovens da favela ocorre esporadicamente. Quando possível, comparecem em eventos sobre coleta seletiva e reciclagem. “Eu

já fui em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, e em dezembro vou com minha mãe pra Curitiba, num encontro de catadoras”, diz Kaline. Nos fins de semana, os meninos se arriscam jogando futebol na pista. Raquel da Silva, 15 anos, prefere pegar a bicicleta e ir até o lago. “A gente vai depois do almoço e só volta no fim da tarde.” Os jovens também se animam com visitas. Cláudio Landers, 34, é advogado e coordena o Sopão da Alegria, grupo que leva alimentos a pessoas carentes. “Comer faz bem, mas eu indicaria também que fossem estimulados em atividades como visitas à biblioteca”, sugere. “O governo deveria incentivá-los a terminar o 2º grau e a começar um curso profissionalizante.” Para quem vê de dentro, as chances de reanimar a juventude da Favela da Garagem do Senado seguem a mesma ideia. “Esses meninos estão perdidos. Quando minha filha fizer 15 anos, vou atrás do primeiro emprego dela. Nenhum jovem aqui tem trabalho fixo e não quero que isso aconteça com ela”, assegura Madalena, hoje com 28 anos, dos quais passou grande parte vivendo como os jovens que moram por lá.


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