Campus impresso - ano 42 número 386

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Número 386 Ano 42

Irina Adão

Campus

Brasília, 4 a 10 de dezembro de 2012

Falta escola em Águas Claras Apesar de haver 28 terrenos reservados para construção de colégios e creches públicas, alunos como Erica Khurla precisam ir a outras cidades para estudar Fonte à beira da pista

Jogadores sem jogo

Soropositivos em risco

Nascente abastece população mesmo sem ser reconhecida por órgãos oficiais (pág. 3)

Atletas do futebol de Brasília driblam amadorismo e jornada dupla de trabalho (pág. 6)

Casa de apoio a portadores de HIV no Recanto das Emas pode perder sede (pág. 7)


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Campus | Brasília, 4 a 10 de dezembro de 2012

Carta do Editor Lucas Vidigal O jornal Campus volta a circular de cara nova, como acontece em cada início de semestre letivo do laboratório de jornalismo da Universidade de Brasília (UnB). A publicação ganhou novo projeto gráfico e editorial, tudo isso para permitir a experiência da formação de um impresso em todas as fases. A primeira edição começa com a história de uma nascente às mar-

gens da Estrada Parque Paranoá (EPPR), cuja água é utilizada para consumo de moradores da região e de quem passa pela pista. A matéria mostra que nem mesmo órgãos públicos que deveriam cuidar dos recursos hídricos do Distrito Federal conhecem todas as fontes que abastecem a região. Em seguida, o Campus denuncia a falta de escolas públicas em Águas Claras, região que cresce cada vez mais no DF. O direito constitu-

cional à educação gratuita fica longe dos moradores da cidade. Em compensação, cresce o número de instituições particulares ali, o que não tira do Estado a responsabilidade de garantir ensino público de qualidade a todas as classes sociais. A edição também conta a rotina de jogadores de futebol de times brasilienses que precisam de outras fontes de renda. O DF não tem nenhuma equipe nas duas primeiras divisões do Campeonato Brasilei-

ro da modalidade e o último jogo foi no fim de outubro, enquanto a próxima temporada só vai começar em meados de janeiro. Isso tudo na cidade que vai receber estádio com capacidade para mais de 70 mil pessoas em 2013. No Recanto das Emas, uma casa de apoio que abriga portadores de doenças crônicas e soropositivos teve ordem de despejo emitida pela Agência de Fiscalização do DF (Agefis), que não apresentou

solução para realocar os pacientes. Sem ter para onde ir, moradores do abrigo convivem com a insegurança além de batalhar diariamente contra a doença e o preconceito. Por fim, o Campus estreia a Página Oito, espaço para experimentação livre de gêneros jornalísticos diferentes da reportagem. Para começar, os trabalhos dessa nova experiência, um artigo sobre a questão do preconceito que homossexuais sofrem além da própria homofobia.

Rovérsio confirmou a tendência para o erro e soou como um ombudsman de mau gosto. Querem tirar o meu trabalho? Pesquisas continuam mesmo com a greve é uma reportagem bem escrita, mas pecou na hora de escolher o direcionamento. O que vão fazer os pós-graduandos que precisam continuar suas atividades, mas encontram dificuldades devido à greve dos servidores? O texto entrou apenas superficial-

mente nesse ponto, que talvez pudesse ter sido um foco mais interessante para a reportagem. Das tribos ao pelotão é uma matéria construída com base em impressões dos repórteres. O assunto é muito rico, mas foi mal explorado. É preciso parabenizar a repórter Jéssica Paula por A fronteira sem luz. Com personalidade e estilo, o texto consegue fazer o leitor sentir o drama de pessoas que vivem sem energia elétrica ao lado da capital

do país. Faltou apenas bater na porta das autoridades para cobrar uma explicação. Nadando contra o consumo se esforça para desfazer o estereótipo de “radical” que envolve veganos e straight edgers. Muitos mitos surgem quando esse assunto é colocado em pauta. A reportagem merecia um espaço maior para responder a todas as perguntas. O desafio de dormir menos é sensível ao trazer um problema

cada vez mais presente na vida de todos. A reportagem ganha ineditismo com as informações detalhadas e multiangulares sobre o sono polifásico. O Campus se despede com a vida pós-fama de Carlos Maltz, ex-baterista da banda Engenheiros do Hawaii. Essa foi mais uma reportagem para a qual faltou espaço. Ficou um gostinho de quero mais sobre a atuação do músico como psicólogo.

sino. No DF, segundo a Secretaria de Educação, as regiões mais afetadas pela escassez de recursos eram Gama e Brazlândia. Na mesma época, o Congresso Nacional aprovou a desvinculação de 18% dos recursos da União para a educação. O texto observou, ainda, os problemas estruturais dentro das salas de aula do DF. No Paranoá, por exemplo, as escolas estavam sem vidros nas janelas e os bebedouros precisavam de reformas.

Porém, a matéria ressalta que, apesar dos problemas enfrentados no setor, não havia crianças em idade escolar fora das salas de aula – o que não se aplica aos menores de rua. A Secretaria de Educação realizava pelo segundo ano consecutivo o programa A Escola Bate à Sua Porta, pelo qual crianças não matriculadas em período normal eram procuradas por voluntários do órgão para não perderem o ano escolar.

Ombudsman Pedro Augusto Correa Os trabalhos do 1º semestre de 2012 no Campus terminaram com repetição de erros, mas também com acertos louváveis. O espaço de opinião foi feliz ao trazer um assunto urgente e praticamente desconhecido para quem não vive no meio jornalístico: como o governo usa a compra de espaços publicitários para mandar na imprensa. Por outro lado, a coluna Fala,

Memória A partir do título Antigos fantasmas assustam a educação no DF, o Campus revelou na edição nº 184, em 1994, que os problemas no setor educacional já eram recorrentes. Entre as dificuldades, estavam os baixos salários, a escassez de escolas, a carência de professores e o aumento nas contratações temporárias. A repórter Valéria Blasi apontou o investimento insuficiente no setor como principal responsável pela redução da qualidade do en-

Expediente: Campus Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília Editor chefe:

Lucas Vidigal; Secretária de redação: Isabella Corrêa; Editores: Elis Tanajura, Iasminny Thábata e João Paulo Cabral; Repóteres: André Vaz, Ezequiel Trancoso, Fellipe Matheus Bernadino, Kelsiane Nunes e Lorena Soares; Diretor de imagem: Ivan Sasha Stemler; Fotógrafos: Irina Adão e Laila Leite, Diagramadores: Camila Rodrigues, Celina Guerra e Paulo Figueiredo Júnior, Ilustrações: Tais Koshino, Projeto gráfico: Celina Guerra, Ivan Sasha Stemler, Lorena Soares, Rafaela Lima, Ramilla Rodrigues e Vanessa Arcoverde, Professores: Sérgio Sá e Solano Nascimento, Jornalista: José Luiz Silva Gráfica: Palavra Comunicação Tiragem: 4 mil exemplares

Acesse www.fac.unb.br/campusonline e conheça o jornal laboratório virtual da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.

Campus Darcy Ribeiro, Faculdade de Comunicação, ICC Ala Norte. Contato: 61 3107-6498/6501 CEP: 70.910900 E-mail: campus@unb.br Diagramação: Camila Rodrigues


Campus | Brasília, 4 a 10 de dezembro de 2012 Fotos: Laila Leite

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Manancial

Há pelo menos cinco anos, comunidade recolhe água de nascentes para consumo. Em 50 minutos, cinco pessoas coletaram a água como Ednaldo Dias (E) e Daniel Rodrigues (acima)

Uma fonte frequentada e incerta Motoristas param no acostamento de estrada no Setor de Mansões do Lago Norte para coletar e beber água que jorra de dois canos e não é conhecida pelas autoridades Kelsiane Nunes Diariamente, o motorista Ednaldo Dias passa pela estrada que liga o Paranoá ao Varjão. Há três anos, ele adicionou um hábito a sua rotina: beber água que brota da terra no percurso utilizado várias vezes ao longo do dia. Quando percebe que a garrafa que carrega está vazia, ele para no acostamento da Estrada Parque Paranoá (EPPR) e abastece o recipiente com água de nascentes. Dias garante que durante esses anos de consumo nunca passou mal por conta do líquido. “Pelo gosto da água dá para saber que a qualidade é boa”, afirma. A água que jorra cristalina e aparentemente sem cheiro ou gosto às margens da EPPR faz motoristas estacionarem ao longo do acostamento, próximo à entrada C do Núcleo Rural Palha.

Em 50 minutos de observação, o Campus flagrou cinco pessoas fazendo isso na semana passada. Ali, nove litros de água por minuto caem de dois canos para quem quiser usufruir. A água, que está acessível de forma gratuita e é utilizada para diversos fins como ingestão, armazenamento e lavagem de carros há pelo menos cinco anos, não possui certificação de qualidade do órgão responsável. Segundo moradores da região, a captação e uso da água começaram em 2007, quando ocorreu a duplicação da estrada. Com a ampliação da via, foi construída uma pista de mão única, no sentido Paranoá-Varjão, a poucos metros das nascentes localizadas no núcleo rural. Antes do surgimento dessa estrada, apenas a comunidade local tinha conhecimento das fontes. Depois de observar a água das nascentes escorrer pela encosta e desaguar à beira da estrada, um morador antigo da região decidiu instalar os canos para que o

mineral pudesse ser aproveitado por toda a comunidade. Além de consumir, o marceneiro Silvio Landim coleta a água para colocá-la no carburador do Marea preto. Ele confia que o líquido seja bom para o consumo. “Já vi outras pessoas bebendo”, explica. Apesar de recolher duas garrafas de dois litros e três de 600 ml para ingestão, o entregador de produtos alimentícios Davi Félix não acredita plenamente na pureza da água. “Muita gente frequenta aqui e às vezes deixa lixo perto”, afirma, justificando a desconfiança. Félix armazena a água para consumir ao longo do dia e garante que a água que sai das nascentes é mais saborosa do que as oferecidas no mercado. A proximidade de chácaras das nascentes é o que faz o pedreiro Vanderley Pereira não consumir a água. “Como aqui não tem rede de esgoto, imagino que as casas utilizem fossas, o que pode poluir o solo”, destaca. Pereira afirma que

utiliza a água esporadicamente apenas para lavar as mãos e misturá-la com veneno para insetos.

Insalubridade Localizadas em um raio de 300m de uma região com 12 chácaras, uma dessas com rebanho de caprinos, as nascentes que abastecem os visitantes estão muito próximas da estrada e é possível que animais silvestres tenham contato com elas. Por essas razões, a coordenadora e professora da área de recursos hídricos e saneamento do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), Cristina Silveira Brandão, faz um alerta ao consumo do mineral. “A configuração local é um fator de risco para a poluição da água”, afirma. No entanto, ela explica que para descobrir se o recurso hídrico é próprio para consumo humano seriam necessários monitoramentos periódicos das nascentes.

A Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa) não faz monitoramento sistemático daquelas nascentes porque elas não abastecem de forma substancial o lago Paranoá. Como não há certeza a respeito da salubridade das nascentes, a Adasa não recomenda a utilização da água. Para o órgão, a captação de água no lago Paranoá e consequentemente das nascentes que o abastecem só pode ser feita de forma subterrânea, após a autorização da agência. Assim, a Adasa considera a captação superficial da água para consumo uma prática irregular. Mesmo assim, o entregador Davi Félix acredita que a não captação dessa água é um desperdício. “Essa água deve ser utilizada pela população”, defende. “O governo poderia cuidar mais dessa região para não ter sujeira e providenciar um registro que controlasse a saída da água.”

Edição: Iasminny Thábata

Diagramação: Ivan Sasha


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Ensino público

Prédios demais, escolas

Estudantes precisam deixar a cidade de Águas Claras para estudar. Mesmo com mais de 80 m Reprodução/Internet

André Vaz Natural de Luziânia (GO), Erica Khurla se mudou aos quatro anos para Águas Claras. Apesar de morar próximo a um dos 28 terrenos reservados pela Administração da cidade para construção de escolas e creches públicas, Erica precisou nesta década freqüentar escolas do Núcleo Bandeirante e de Taguatinga, onde atualmente estuda no Centro de Ensino Médio Ave Branca (Cemab). De segunda a sexta, a rotina da estudante consiste em utilizar ônibus ou táxi de casa até a estação do metrô. Pega um trem e vai até o centro de Taguatinga. Depois disso, caminha por cerca de 15 minutos até a escola. Ela chega a desembolsar R$ 120 mensais com táxis. No regresso a casa, Erica volta a pé do metrô para evitar maiores despesas. O percurso total chega a durar uma hora nos horários de pico. “Já chego cansada”, afirma a estudante. “Se tivéssemos uma escola aqui (em Águas Claras) ganharia tempo e gastaria menos.” Erica mora na área conhecida por Águas Claras vertical, que, apesar de contar com cerca de 600 edifícios e abrigar aproximadamente 80 mil moradores, não possui escola nem creche pública.

Alternativa cara A cidade conta com diversos estabelecimentos de ensino privado e é composta, em sua maioria, por moradores com alta renda familiar mensal (R$ 9.175 segundo Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios de outubro de 2010) se comparada a Arniqueira e Are-

A Região Administrativa de Águas Claras possui 135 mil habitantes e compreende as áreas de Arniqueira, Areal e Águas Claras vertical, cujo nome é explicado devido à verticalidade das construções. Essa é a maior parte da Região Administrativa e foi considerada o maior canteiro de obras da América Latina, em 2007. Concentra hoje mais de 90% dos prédios da RA. A área verticalizada foi planejada pelo arquiteto e urbanista Paulo Zimbres e no início da década de 90 já começava a ser construída. Em 2003, a área deixou pertencer à Região Administrativa de Taguatinga e passou a compor a Região Administrativa de Águas Claras.

Prédios de luxo abrigam famílias de alta renda, mas administração reconhece demanda de escola pública

al, que também compõem a mesma Região Administrativa. Para Patrícia Fleury, assessora de Planejamento da Administração de Águas Claras, há demanda suficiente para a instalação da rede pública de ensino. “Águas Claras abrigou, desde o começo, pessoas que vieram de outras cidades, outros estados. Muitas delas carregam a tradição de educar os filhos em escolas públicas. Além disso, pessoas que exercem serviços em residências na cidade não possuem condições financeiras de matricular os filhos em escolas particulares”, diz.

Grandes instituições privadas de ensino abriram unidades na cidade no decorrer dos últimos sete anos. Para o administrador de Águas Claras, Carlos Sidney de Oliveira, a forte presença de escolas particulares mascara a necessidade do ensino público na cidade. “O fato de possuirmos muitas escolas particulares não necessariamente representa um abastecimento adequado de ensino. Não podemos ignorar que em toda a Região Administrativa temos moradores da classe A à classe E. E Águas Claras l não é diferente disso, guardadas, claro, as devidas proporções”, afirma.

O ensino privado oferecido na cidade, por exemplo, possui mensalidades relativamente altas, mesmo a elevados padrões de renda familiar mensal de parte dos moradores. O valor médio que um pai desembolsa para manter o filho no ensino fundamental II em uma escola particular, por mês, é de R$ 938.

Sem respostas Segundo a Administração de Águas Claras, os pedidos à Secretaria de Educação do Distrito Federal para construção de escolas e creches são recorrentes. “A cada mudança de administrador, desde

2003, é realizado o pedido junto à secretaria. Foram 15 trocas de cargo. No entanto, a nenhum destes pedidos houve resposta do órgão a favor da construção de escolas”, afirma Patrícia. A Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal foi procurada diversas vezes pelo Campus para esclarecer o não atendimento aos pedidos para construção de escolas e creches públicas em Águas Claras. No entanto, até o fechamento desta edição, não houve resposta do órgão. A falta de creches afeta Maria Eduarda Braga Santos. Há três meses, a funcionária pública começou a levar a filha,


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e creches de menos

mil habitantes, região conhecida por seus edifícios ainda não possui rede pública de ensino Laila Leite

600 prédios

é o que possui a região de Águas Claras vertical

80

mil habitantes é a estimativa de moradores que possuía a cidade de Águas Claras em 2010 Caminhada, táxi e metrô: o percurso de Erica para se deslocar de casa em Águas Claras e chegar à escola em Taguatinga dura até uma hora

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escola

é o número de instituições de ensino públicas existentes em Águas Claras

Ana Júlia, de 1 ano e 5 meses, diariamente a uma creche pública localizada próxima ao trabalho, no Setor Comercial Sul. Mesmo tendo que submeter a criança a engarrafamentos de trânsito, recorrentes no percurso de volta a casa, Maria Eduarda diz não ter escolha. “Se tivéssemos uma creche pública em Águas Claras, pouparia minha filha de todos esses transtornos. Quando voltamos do Plano Piloto, há momentos em que ela chora de fome e não posso fazer nada, pois estou na direção. Estando em Águas

Claras, teria mais tranquilidade e ela, maior conforto”, afirma. Para Carlos Sidney de Oliveira, problemas como o de Maria Eduarda e Erica já poderiam ter sido solucionados caso representantes da comunidade tivessem dado preferência à educação no orçamento participativo. “Esse orçamento é montado anualmente e deve refletir a vontade da população. Infelizmente, os líderes comunitários preferem priorizar recursos para o transporte a demandá-los à educação, por exemplo”, critica. “Com isso,

Edição: Iasminny Thábata

nossos pedidos junto à Secretaria de Educação não ganham a importância que a atual situação exige.” Além da ausência de centros educacionais públicos, a cidade possui outras deficiências estruturais, tais como a falta de delegacia policial e postos de saúde, o que dificulta o estabelecimento de prioridades nas obras para a educação.

Futuro No início deste mês, o administrador de Águas Claras se reunirá com representantes da

Secretaria de Educação a fim de discutir a implementação de dois Centros de Educação da Primeira Infância (CEPI’s) na região do Areal, e da primeira creche pública em Águas Claras. Segundo Patrícia Fleury, creches e escolas de ensino infantil e fundamental I, que compreende alunos até o quinto ano, são prioridade nos pedidos à Secretaria de Educação. “Águas Claras é formada, majoritariamente, por famílias jovens, e muitas delas possuem filhos pequenos. Precisamos atender, primeiramente, a essa principal demanda”, conta.

Diagramação: Celina Guerra, Ivan Sasha, Paulo Figueiredo Junior e Camila Rodrigues


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Boleiros

Outro campo de jogo

Atletas de clubes de futebol no DF procuram empregos para garantir remuneração que não conseguem nos gramados Ezequiel Trancoso Clubes na briga contra o rebaixamento, título decidido nas rodadas finais, sofrimento e euforia das torcidas. Essa realidade, vivida nas últimas semanas pelas equipes presentes nas quatro competições nacionais em disputa no Brasil (séries A, B, C e D), passou longe dos clubes do Distrito Federal. Desde 27 de outubro, data da última partida do Brasiliense na Série C, não existe atividade profissional de futebol no DF. Até o início do estadual de 2013, previsto para 19 de janeiro, serão quase três meses de total inatividade. Somado ao baixo investimento das equipes locais, esse cenário obriga a maioria dos jogadores a buscar outras atividades profissionais durante o período sem competições. É o caso de Francisco Wesley da Silva, 29 anos, conhecido no meio futebolístico como Japão. Jogador profissional desde os 16 anos e com passagens pelo futebol alemão e espanhol, Japão jogou o último campeonato brasiliense da 2ª divisão pela equipe do Paranoá. Foram apenas três meses de atividade, sendo dois deles sem receber salário. Esse tipo de insegurança fez com que Japão procurasse outras formas de sustento. Desde 2011, o volante mantém o quiosque Açaí do Japa. “No primeiro ano foi difícil, tive que correr atrás de muita coisa. Foi um ano de sacrifício, precisei pegar dinheiro emprestado para poder investir.” Os lucros obtidos fizeram Japão conciliar as atividades de jogador profissional e comerciante, o que exigiu uma rotina desgastante: manhãs e noites eram dedicadas ao comércio, enquanto as tardes eram

Foi-se o tempo em que eu corria atrás do futebol” Benevaldo Soares, vigilante do Jardim Botânico

Fotos: Irina Adão

reservadas aos treinamentos da equipe do Paranoá. A dificuldade financeira fez com que Japão ajudasse os companheiros de equipe mais novos. “Às vezes, os garotos não tinham dinheiro para passagem, e eu ajudava. Ou faltava água e gelo para o time e eu e o Alex (Oliveira, ex-treinador do Paranoá), comprávamos”, conta o volante. Apesar dos problemas, Japão desfruta de um luxo que facilita o cotidiano: a flexibilidade nos horários. Átila Lima, 19 anos, jogador que estreou profissionalmente em 2012 pelo Legião, vive situação distinta. O emprego no call center da universidade Unicesp, primeira profissão dele fora do futebol, alterou a rotina do jogador. Tendo que escolher entre treinar no time sub-19 do Gama para a disputa da Copa São Paulo de Futebol Júnior e o emprego no call center, Átila ficou com a segunda opção. “Aqui eu ganho em dia, já é um começo”. Além disso, os benefícios e a bolsa para cursos da instituição dada aos funcionários são pontos que mexem com os planos do jogador. “Vou tentar jogar o próximo candango pelo Legião. Se não der, começo a faculdade”, relata o atleta, que está em dúvida entre os cursos de Odontologia, Gestão Ambiental e Direito. A fragilidade dos clubes do DF também causa preocupação a Átila: “O que mais quero é ser jogador, mas se for pra ficar jogando sempre em Brasília, não dá”. Mais experiente, Benevaldo Soares, lateral esquerdo de 30 anos com passagens por clubes como Guará, Brasília e Duque de

Os atletas Benevaldo Soares e Francisco Wesley: com outras prioridades, o futebol passou de sonho a hobby

866 jogadores

profissionais inscritos na Federação Brasiliense de Futebol

Caxias, está próximo de realizar algo raro entre jogadores de futebol ainda em atividade: concluir o curso superior. No último semestre de Radiologia, Bené, apelido dele nos campos de futebol, ainda tem que dividir seu tempo entre o trabalho de vigilante no jardim botânico, professor de futebol no projeto social União Júnior, que atende crianças e adolescentes no Paranoá, e ainda manter a forma de jogador profissional. “Já me considero um ex-atleta. O que aparecer a gente faz, mas foi-se o tempo em que eu corria atrás do futebol. Se não tiver mais tempo para jogar, não jogo.”. Bené jogou o último campeonato candango da 2ª divisão pelo Para-

noá, mas não sabe se continuará em atividade em 2013. Apesar da proximidade do diploma, nem sempre Bené pôde se dedicar aos estudos. “Terminei o ensino médio com 24 anos. Deixei de estudar por causa do futebol, mas sempre tive o pensamento de fazer uma faculdade”, conta o vigilante, revelando preocupação com os estudos, algo que passa ao filho de nove anos, que sonha ser jogador de futebol, assim como o pai. Mesmo com os problemas e o fim da carreira mais próximo, Bené olha para o passado e, sempre alegre, revela: “Infelizmente não foi do jeito que eu planejei, mas não me arrependo de nada”.

Diagramação: Celina Guerra


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Despejo

Um risco além do vírus

Moradores de instituição para portadores do HIV ficarão sem abrigo se governo cumprir ordem de despejo e não encontrar alternativa

Se não fosse a Fale, estaria sem moradia e sem alimentação” André Gomes, morador da Fraternidade

Laila Leite

Fellipe Bernardino Lorena Soares Maicon da Costa tem 29 anos e é portador de HIV há dez. Doenças oportunistas o fizeram perder fala e movimento das pernas. Os pais, de idade avançada, não podem dar assistência ao filho e o único irmão vive na Irlanda. Fora eles, não tem mais ninguém. Da Costa procurou instituições em São Paulo, mas não se adaptou. Foi então que, mesmo distante dos pais, veio em busca de apoio na Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista (Fale), localizada em Recanto das Emas. André Gomes, 33 anos, também vive sem família. Veio de Santos (SP) para Brasília procurar emprego e foi na capital que soube que era portador do HIV. Há pouco mais de dois meses na Fale, tenta normalizar a vida. “Se não fosse a Fale, estaria sem moradia e sem alimentação.” Gomes e Da Costa correm novo risco. No dia 19 de novembro, a Fale recebeu notificação judicial do Governo do Distrito Federal (GDF) e pode sofrer ação de despejo. Segundo Jussara Santos Meguerian, presidente da Fale, mais da metade dos 183 moradores ficarão sem abrigo se isso ocorrer. “Muitos não têm família, não têm para onde ir”, diz. “Literalmente.” O terreno que a instituição ocupa foi concedido na penúltima gestão do ex-governador Joaquim Roriz, mas a decisão foi revogada e o contrato julgado inconstitucional pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) em 2007.

Tiago dos Santos morou nas ruas até encontrar abrigo em uma casa de apoio no Recanto das Emas, a Fale

Baseada nessa decisão, a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis) entregou à Fale a intimação de demolição do local, com prazo máximo de 15 dias para desocupação. Outros 23 ocupantes de chácaras vizinhas também foram intimados. A Secretaria de Estado de Habitação, Regularização e Desenvolvimento Urbano (Sedhab) pretende construir um conjunto habitacional na área. A região vai abrigar 20 mil moradias destinadas a famílias com renda de até R$ 5 mil mensais, por meio de linhas de financiamento do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal.

Segundo nota oficial divulgada pela Sedhab, o GDF buscará realocação para organizações da área desapropriada que prestem serviços sociais e educacionais. O documento informa que a Terracap fará análise de cada caso. Procurada pelo Campus, a Terracap informou por meio da assessoria de comunicação não ter nenhuma responsabilidade nesse tipo de questão. Sua atribuição seria apenas a venda do terreno, enquanto a parte de interesse social recairia sobre a própria Sedhab. Procurada mais uma vez, a secretaria reafirmou que a responsabilidade é da Terracap.

Jussara afirma que, até o momento, não recebeu nenhuma proposta do governo para realocação da entidade.

A instituição A primeira unidade da Fale foi fundada por Jussara, em Uberlândia (MG), em 1991. O objetivo era acolher soropositivos que não tinham condições de se manter com o tratamento sem assistência. A Fale passou a atuar também no Distrito Federal em 1994. Atualmente, abriga 183 pessoas, em 39 casas, no Recanto das Emas. Além das moradias,

Edição: Elis Tanajura

o local conta com bazar, padaria e sala de informática, que ainda está fora de funcionamento por falta de monitores. Ao fundo, escondidas por uma pequena ladeira, ficam as pequenas casas coloridas dos habitantes do local, bem próximas umas das outras. Em cada uma vive pelo menos um soropositivo, alguns já em estado terminal. Próximo às casas há um pequeno pavilhão onde são servidas quatro refeições diárias para os moradores. Uma vez na Fale, os moradores criam laços na instituição, principalmente os órfãos de pais soropositivos. É o caso de Tiago dos Santos, que não é portador do vírus HIV. A história do adolescente de 16 anos parece ter deixado marcas nas expressões faciais de quem, muito cedo, aprendeu a sofrer sozinho. O garoto de olhar distante e ar contemplativo foi abandonado pela mãe, portadora do HIV, nas ruas de Vitória da Conquista, na Bahia. Dos dez aos 11 anos, Tiago passou por ruas de vários estados, sem qualquer companhia. Quando retornou a Vitória da Conquista, soube, por assistentes sociais que o acompanhavam, que a mãe havia morrido em Brasília. Um ano depois chegou à Fale, onde vive até hoje. O irmão, que nasceu com alguns problemas de fala, já morava com a mãe enquanto Tiago habitava as ruas do país e permanece na instituição. Tiago vive hoje com outros três adolescentes numa das casas da entidade. Quando os pais soropositivos morrem, muitos órfãos não têm outro lugar para viver a não ser a Fale.

Diagramação: Paulo Figueiredo Junior


Campus | Brasília, 4 a 10 de dezembro de 2012

Página 8 Artigo

Discriminação no armário Além da orientação sexual, fatores como machismo, cultura, situação econômica e padrões de beleza levam homossexuais a serem excluídos entre os próprios gays Lucas Vidigal Frente a mais de 50 mil fãs no estádio do Morumbi no dia 11 de novembro, a norteamericana Lady Gaga entoa palavras de autoestima enquanto toca no piano a canção Hair (cabelo, em português), composição que fala sobre “ser livre como o cabelo”. A cantora nova-iorquina é reconhecida por fãs e ativistas como símbolo dos direitos de homossexuais, assim como Madonna o foi na década de 1980, época em que havia ainda mais tabus em relação aos gays – o que reforça a comparação entre as duas cantoras pela imprensa especializada. Conhecidos como little monsters, ou monstrinhos, em português, os fãs mais afoitos da artista geralmente não se encaixam nos padrões tradicionais da sociedade. Difícil precisar quantos, mas é seguro que mais da metade desses admiradores intensos de Lady Gaga é composta por jovens homossexuais. Geralmente, os monstrinhos também são rotulados por não fazerem o tipo físico mais vendido pelo padrão de beleza atual: é possível ver nas filas dos shows de Gaga uma quantidade considerável de magricelas e gordinhos alvos de piadas constantes pelo porte e pelas fantasias que utilizam em shows e encontros de fãs.

Se o estereótipo dos monstrinhos fosse personagem de novela, seria retratado como o gay caricato. O do núcleo de humor. O que se ajoelha aos pés de uma “diva”. O que é apenas homossexual, jamais protagonista. Em compensação, a dramaturgia – não só por aqui, mas nos filmes hollywoodianos também – faz merchandising social com homossexuais ao mostrar o casal “não afetado”. “Nem parecem gays”, diriam alguns telespectadores. Aquela mesma sociedade que recriminava homossexuais pelo fato de preferirem pessoas do mesmo sexo agora recrimina os que parecem aquelas personagens dos filmes, séries e novelas. O curioso é que há até gays e lésbicas que se colocam em um pedestal por não estarem dentro desses estereótipos. O homossexual masculino fora de forma, de origem mais humilde e mais afeminado recebe apelidos como “bicha poc” e “pão com ovo” entre aqueles que também preferem pessoas do mesmo sexo e são de classes mais abastadas, com melhor forma física e “masculinidade”. É a “bicha poc”que sempre é o coadjuvante humorístico do filme, nunca o herói ou personagem de merchandising social. É o “pão com ovo” que não consegue emprego pelo chefe julgá-lo afeminado demais para a vaga. O little monster é a metáfora da maior vítima da homofobia que não discrimina pela orientação sexual por si só, mas também pelas condições físicas e sociais. É

com eles que podemos ver que a luta contra o preconceito, muito mais complexo que questões relativas apenas à sexualidade, ainda está bem longe do fim. Em 2012, o preconceito ainda existe. A homofobia não é crime no Brasil e homossexuais ainda são alvos de discriminações e estigmas morais e físicos. Mas não há como negar que avanços foram feitos. Já se aceita, pelo menos juridicamente, a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Não é casamento civil, mas é alguma coisa. O que é chamado de “patrulha do politicamente correto” por quem reforça preconceitos já bate de frente quando se depara com piadas homofóbicas ou comentários discriminatórios. Isso mostra que alguns direitos foram conquistados. Tem “politicamente incorreto” por aí que diz até que “os homossexuais já têm mais direitos do que héteros” e, portanto, podiam parar de lutar por igualdade. Há quem diga que “vivemos num mundo que já os aceita e respeita”. Por isso, quando Lady Gaga canta – assim como outros artistas engajados – palavras de ordem para mais de 50 mil pessoas contra o preconceito, não é simplesmente uma ode à aceitação do amor entre pessoas do mesmo sexo. A discriminação só vai terminar quando todos, independente do rótulo que se coloque, sejam vistos como humanos por inteiro, não apenas como estereótipo.

Ilustração: Taís Koshino

Edição: Elis Tanajura Diagramação: Celina Guerra


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