Campus impresso - ano 43 número 389

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Ananda Borges

Campus

Brasília, 08 a 14 de janeiro de 2013 | Número 389 Ano 43

Quarenta anos de asfalto Velha guarda do skate relembra histórias da chegada da modalidade ao DF. Hoje, veteranos compartilham experiências do esporte com a nova geração Crime e castigo

Números da educação

Arte em papel

Abortos são recorrentes mas condenações recaem sobre mulheres de baixa renda (pág. 3)

Projeto propõe dobrar verba para educação e causa debate entre especialistas (pág. 7)

Saber dobrar e ter paixão por origami são requisitos para ser um Origamigo (pág. 6)


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Campus | Brasília, 08 a 14 de janeiro de 2013

Carta do Editor Ramilla Rodrigues A capa da edição 389 do Campus acompanha a febre do skate em Brasília e mergulha fundo na história de um dos esportes mais praticados do mundo. Pode parecer, à primeira vista, um tema leve, mas a história de pioneiros do skate revela uma das nuances do estilo de vida da juventude brasiliense. Jorge Ma-

cedo e Rogerio Verçoza viram de perto o berço do skate em Brasília, hoje um local abandonado. O Campus inicia 2013 trazendo tsurus, pássaro da felicidade e prosperidade, segundo a tradição japonesa. Em Amizade desdobrada em papel, a repórter Gabriela Alcuri viu que dobraduras podem ser mais difíceis do que parecem e que o origami é mais que um hobby.

Em Punição desigual, o tema do aborto aparece no Campus sob uma ótica diferente. Repórter e editora encararam o desafio de tratar de um tema cheio de tabus ético-morais. A dificuldade de encontrar personagens foi compensada pela extensa pesquisa de dados e pela preocupação em não julgar moralmente. A reflexão é outra: o aborto ocorre em todas as classes sociais. Mas são

Ombudskvinna* Paloma Suertegaray A variedade e relevância dos assuntos trazidos pela edição 388 do Campus resultam em um jornal atraente, que dá vontade de ler. A matéria de capa, Desconfiança dos quilombolas, tem texto bem conduzido e fácil de acompanhar. Porém, faltaram personagens que ilustrassem melhor o problema abordado. Os quilombolas comentam sobre gente que ficou doente,

mulheres negras, pardas e de baixa escolaridade que recebem mais condenações da justiça. Já 10% é o bastante? discute a implantação de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil para a educação. O repórter João Bosco procurou de onde sai o valor de 10% que, em tese, seria suficiente para dar um salto na qualidade da educação. O tema mobiliza especialistas em

educação, políticos e autoridades em geral. Embora os 10% sejam pedidos por vários setores da sociedade, não há embasamento para esta meta. Por fim, caro leitor, não se assuste com baratas saindo da Página 8 e Franz Kafka rabiscado de caneta bic. É apenas uma pequena reflexão sobre o processo de apuração de uma reportagem. Uma metamorfose em jornalista.

* Feminino do termo sueco ombudsman, que significa “provedor de justiça”, discute a produção do jornal a partir da perspectiva do leitor.

mas ninguém que tenha de fato sofrido alguma enfermidade foi entrevistado. Como a matéria não trata de um caso de poluição comprovado, mas de uma possibilidade, a ausência dessas fontes pesa ainda mais e deixa a matéria desproporcional: uma página é dedicada ao tema prometido na chamada e duas a informações de contexto, menos impactantes. Pesquisas e dados concisos sobre a gravidade da situação ficam

faltando (provavelmente porque ainda não existem), o que pode diminuir a magnitude da denúncia. Apesar disso, a matéria se sustenta e as repórteres fizeram bem em ser honestas e deixar claro que se trata apenas de uma suspeita de contaminação. Por outro lado, há alguns problemas de precisão que não se justificam. Expressões como “de tempos em tempos”, “há muitos casos” e “recentemente” sempre pedem apurar mais. Com que fre-

2007, ainda constaram polêmicas envolvendo o tema, como no debate entre pré-candidatos republicanos à presidência dos Estados Unidos e o bate-boca político aqui no Brasil, que colocou frente a frente grupos pró-escolha da mulher e a Frente Parlamentar em Defesa da Vida – Contra o Aborto. Recentemente, a legislação mudou. O STF decidiu mais uma exceção para casos de aborto. Atualmente a gravidez

pode ser interrompida em caso de estupro, risco de vida para a mãe e agora em caso de fetos diagnosticados com anencefalia. No Uruguai, foi aprovada lei considerada progressista pelo movimento pró-escolha. Nesta edição, o Campus levanta novamente a questão do aborto, mas sob a ótica da criminalização e as punições previstas em lei. Ao contrário do que se imagina, as condenações acontecem e mesmo os homens podem ser condenados.

quência exatamente? Quantos casos? Em que mês ou ano? As reportagens A casa como sala de aula e O rap contra o racismo são bem-fechadas e cumprem o que se propõem. Na primeira, a rotina de crianças educadas em casa poderia ter ganhado mais destaque, talvez no início do texto. A outra matéria teria ficado melhor estruturada com intertítulos, para não ficar indo e voltando entre a questão do aumento das ocorrências de

racismo e a dos movimentos negros de rap. Além disso, a foto é pouco informativa e não diz nada sobre o personagem retratado. A Página 8 é a mais problemática do jornal. Não dá para entender se o perfil é sobre Cida Carvalho ou sobre o Sarau Psicodélico. A história da criadora da iniciativa é mal explorada e a explicação do projeto está confusa. Além disso, há diversos erros de pontuação que os revisores passaram por alto.

Memória Em 2007, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidia sobre a utilização de células-tronco embrionárias para fins científicos, trazendo à tona o tema aborto e a discussão que envolve o tema. Quando começa a vida, reportagem de capa da edição 315 do Campus, assinada por Diogo Alcântara, ouviu pontos de vista diferentes sobre a questão, inclusive sobre a tramitação da descriminalização do aborto. Na reportagem publicada em maio de

Expediente: Campus Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília

Editora chefe: Ramilla Rodrigues; Secretária de redação: Talita Amorim; Editores: Isabela Bonfim, Luana Luizy, Monique Rodrigues; Repóteres: Gabriela Alcuri, João Bosco, Jorge Macedo e Rogerio Verçoza; Diretora de arte e foto: Rafaela Lima; Fotógrafos: Ananda Borges, Dayana Hashim e Rafaella Felix; Diagramadores: Guilherme Alves, Pedro Menezes, Vanessa Arcoverde; Projeto gráfico: Celina Guerra, Ivan Sasha Stemler, Lorena Soares, Rafaela Lima, Ramilla Rodrigues e Vanessa Arcoverde; Professores: Sérgio de Sá e Solano Nascimento; Monitores: Patrick Cassimiro, Paulo Pimenta; Jornalista: José Luiz Silva Gráfica: Palavra Comunicação Tiragem: 4 mil exemplares

Acesse www.fac.unb.br/campusonline e conheça o jornal laboratório virtual da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.

Campus Darcy Ribeiro, Faculdade de Comunicação, ICC Ala Norte. Contato: 61 3107-6498/6501 CEP: 70.910.900 E-mail: campus@unb.br Diagramação: Rafaela Lima


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Punição desigual

A maioria dos abortos foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas”

Mulheres pobres, pardas, negras e com baixa escolaridade são as principais condenadas por aborto no Brasil

Aos 22 anos, A. S. fez um aborto. Solteira, engravidou de um homem casado, que não desejava aquela gestação. Tomou medicamento abortivo comprado por ele e interrompeu a gravidez. Até aí seria uma história comum: no Brasil ocorrem cerca de um milhão de abortos induzidos por ano (1.054.242 em 2005, segundo levantamento do Ministério da Saúde), uma das maiores causas de mortalidade materna no país. O que torna o caso de A. S. raro é que ela foi denunciada, julgada e condenada à prisão por aborto. Em novembro de 2012, foi submetida a júri popular no Tribunal de Taguatinga, no DF, e condenada a um ano de cadeia. Aborto é crime, previsto pelos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal brasileiro. Dados sobre condenações não estão sistematizados, mas, segundo Ana Paula Sciamarella, advogada que pesquisa o perfil de mulheres condenadas no Rio de Janeiro, prisões “são quase nulas”. Na maioria dos casos denunciados, o que ocorre é a suspensão do processo com realização de trabalhos comunitários e apresentação periódica à justiça. Para Ana Paula, mesmo a suspensão do processo traz impactos importantes para a vida das condenadas. Segundo Ana Paula, comparecer ao judiciário em horário comercial é um compromisso difícil de ser cumprido por quem trabalha fora: “Causa constrangimento ter que dizer ao patrão que ela precisa ir lá porque está respondendo a processo judicial”. Antes de ser levada a júri popular, A. S. teve o processo suspen-

so em 2007. A condição era a de que trabalhasse oito horas por semana no Hospital Regional de Taguatinga, local onde foi atendida por complicações no processo de aborto e onde trabalham duas médicas que testemunharam contra ela. O juiz também estabeleceu que A. S. estava proibida de frequentar “boates, inferninhos e congêneres”. De acordo com a cientista política Kauara Rodrigues, este tipo de percepção é frequente no discurso de juízes em processos sobre aborto e “está associada a uma cultura de que a mulher que aborta é promíscua”. Segundo Kauara, que também é consultora do Centro Feminista

de Estudos e Assessoria (Cefemea) muitas vezes o serviço comunitário tem perfil de “punição pedagógica”. Trabalhos em hospitais, maternidades, creches e escolas são os mais comuns. Para ela, estes serviços que buscam aproximar a indiciada de atividades relacionadas com o imaginário da maternidade, “se assemelham a uma condenação moral, submetendo-as a uma verdadeira tortura”, diz. A. S. não cumpriu o acordo que estabelecia a suspensão do processo e parou de se reportar à Justiça. Por causa disso, o caso foi levado a júri popular e ela foi condenada a um ano de prisão, o processo correu à revelia. Segundo os especialistas, o sumiço dos réus está relacionado ao motivo do processo e exposição pública dos dados pessoais. Nome, telefone, endereço e nome dos pais de A. S. ficaram disponíveis no site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Segundo Kauara, é comum haver perseguição das acusadas e, por isso, qualquer indiciada pode pedir o sigilo dos dados. “Grupos conservadores religiosos fazem verdadeiras ofensivas e estão inclusive organizados no Congresso Nacional. A gente pode imaginar o tipo de pressão que essas mulheres enfrentam”, avalia. Morgana Boeschenstein

Marina Baldoni

Direitos

Pesquisa Nacional de Aborto

Quem aborta A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), lançada em 2010 pela Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), revela que o aborto não está relacionado a estereótipos de condutas morais nem a caracNão comparecimento de uma das partes aos termos do processo. Para o réu, a revelia faz com que tudo o que foi dito a seu respeito seja considerado verdade.

terísticas sociais ou identitárias. O estudo aponta que, “ao final de sua vida reprodutiva, mais de um quinto das mulheres no Brasil urbano fez aborto”. Este número reflete a composição religiosa do país: “A maioria dos abortos foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas e, finalmente, por mulheres de outras religiões ou sem religião”.

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anos de cadeia é a pena máxima para a mulher que aborta ou consente o aborto Já o levantamento feito no estado do Rio de Janeiro (Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Ações Afirmativas em Direitos e Saúde - Ipas Brasil) aponta que o perfil das mulheres indiciadas e condenadas por aborto é mais restrito do que o daquelas que realizam o aborto. A maioria das mulheres indiciadas pelo crime não trabalham

ou têm baixa renda, possuem baixa escolaridade, são pardas e negras e todas elas moram na periferia. Segundo a presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, Lenise Garcia, o argumento não é suficiente para defender a descriminalização. “Este não é um problema relativo ao crime de aborto, é um problema do nosso sistema penal, que não pune de forma igualitária”, diz.

Quem denuncia Os processos por aborto costumam ser instaurados por meio de denúncias feitas por pessoas próximas às indiciadas, funcionários de hospitais ou quando a polícia identifica clínicas que realizam aborto de forma clandestina. Em 2004, o Ministério da Saúde lançou a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento Inseguro, que proíbe a denúncia do aborto por parte da equipe médica, já que são situações de emergência e que envolvem risco de vida. Apesar disso, hospitais ainda são a origem de grande parte das denúncias, como no caso de A. S. Segundo a PNA, cerca de metade das mulheres que abortaram tiveram que procurar o sistema de saúde e foram internadas por complicações. Juliano Lopes, advogado e consultor do Cefemea, examinou processos relacionados a aborto no Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo ele, existem relatos de policiais que se disfarçam de médicos para usar os depoimentos das pacientes como forma de incriminá-las. “Nestas situações a autoridade policial se impõe sobre a questão de saúde”, analisa.

Edição: Isabela Bonfim Diagramação: Guilherme Alves


Campus | Brasília, 08 a 14 de janeiro de 2013

Estilo de vida

Surfe no carrinho Dentinho, Goiaba, Mário Márcio e outros pioneiros do skate relembram o início do esporte em Brasília, que cresceu e hoje se espalha por todo o Distrito Federal Jorge Macedo e Rogério Verçoza

“Como andávamos descalços, segurávamos o carrinho com os dedos do pé e pulávamos. Era muito engraçado”, se diverte Helvécio Mafra, 52, funcionário da Agência Nacional das Águas, ao explicar a manobra “gorilla grip”. Outros movimentos comuns no esporte: “360°” – volta completa sobre o próprio eixo em cima do skate – e “tubo” – passagem por dentro de obstáculo que simulava uma onda do mar. Mais para o final dos anos 1970 surgiu o “radical”: rampa curvada que posteriormente daria origem ao half-pipe ou vertical.

Ananda Borges

Os jovens que agora usam uma das 25 pistas de skate do Distrito Federal possivelmente desconhecem a origem do esporte na cidade. “Diz a lenda que o primeiro skatista de Brasília foi o norte-americano Terry Lee, funcionário da Embaixada dos Estados Unidos”, relembra Luiz Carlos Ramos, praticante do esporte desde criança e conhecido como Dentinho. O que se sabe, de fato, é que os primeiros adeptos surgiram com seus “carrinhos” no início dos anos 1970, influenciados pelas manobras que vinham do Rio de Janeiro. Edmir Silveira, o Carneirinho, levou a novidade para a 115 Sul, quando se mudou com a família no início dos anos 70. Sua ideia era realizar nas calçadas ou no asfalto mo-

vimentos semelhantes aos do surfe, esporte que praticava na capital fluminense. Marcos Gorayeb, 50, o Goiaba, produtor rural e instrutor de stand up paddle, lembra a surpresa e a dúvida que lhe surgiram ao ver os primeiros skatistas na cidade: “Legal, mas onde encontro um desses?”. Não se encontrava. Diferentemente de hoje, em que marcas de skate surgem na capital, naquela época nem sequer fabricantes existiam no Brasil. A saída era improvisar. “Desmontava um par de patins para utilizar os eixos e rodinhas pregados a uma tábua de passar roupa”, conta Goiaba, que começou no esporte em 1972. Depois que os praticantes conseguiam o skate, construído artesanalmente ou encomendado junto a lojas importadoras, o passo seguinte era buscar uma ladeira em que os movimentos dos surfistas pudessem ser imitados.

Pioneiros no skate brasiliense, Helvécio, Dentinho e Mário Márcio ainda praticam o esporte

A proximidade com o surfe não se limitava às manobras, se estendia também à estética. A partir do contato com revistas internacionais, os jovens skatistas da cidade adotavam o estilo de surfistas estrangeiros. “A referência para o skate era o surfe, então andávamos de short e descalços, sem camisa”, explica Dentinho, publicitário, funcionário público e músico nas horas vagas. Mário Márcio, 49, funcionário da Câmara dos Deputados, explica que muitos começaram a andar de skate por influência da mídia. “Vi uma reportagem no Correio Braziliense, de 1975, com o ‘Patinho’ na capa, um típico surfista, loiro e cabeludo. Aquilo me chamou a atenção”, conta. Os primeiros carrinhos eram feitos a partir da separação dos eixos de patins e fixação com pregos nas tábuas, mas ninguém tinha um na época. As inúmeras praias vistas nas páginas estrangeiras estimularam a busca por novos locais para a prática, iniciada na calçada entre os blocos B e C da 115 Sul. “Começamos a andar no antigo Defer (atual Secretaria de Esportes do Governo do Distrito Federal), 107 Sul, Setor Comercial Sul, Cine Brasília, estacionamento da 509 Sul e na descida do Cine Drive-in. Como os locais na cidade não tinham estrutura, os próprios praticantes começaram a construir rampas”, recorda Dentinho. “Uma das primeiras que fizemos foi na AABB, e depois no Colégio Objetivo, ambas de madeira.” Como reivindicação por melhores locais para a prática, quando o Parque da Cidade foi inaugurado em 1978, os jovens conseguiram marcar audiência com o então secretário de Esportes, Nilson Nelson. Mário Márcio relembra que as pessoas sequer sabiam o que era o esporte. “Desde então lutamos para que uma pista fosse

construída na cidade. Tivemos uma área exclusiva, o Tribal Park, dentro do Parque Sarah Kubitschek, dedicada aos praticantes. Cheguei a ouvir de alguns dos principais skatistas do país hoje, como Lincoln Uêda e Sandro Mineirinho, que era uma das melhores do mundo.” Entretanto, o negócio não deu certo e a pista foi fechada pouco tempo depois. “Até hoje o Parque não conta com uma pista específica para nós”, lamenta. Por volta de 1978, a modalidade speed começou a ser praticada. Os skatistas brasilienses passaram a frequentar ladeiras mais acentuadas em busca de velocidade, o que exigia carrinhos com rodas e shapes maiores. “O nosso ponto de encontro era a Casa do Candango, na L2 Sul. De lá, descíamos em direção à ponte Costa e Silva e quando não tinha muito vento, chegávamos à frente do Pontão do Lago Sul”, conta o fotógrafo Rafael Mendes, 50, que começou no esporte com 12 anos em 1974.

O formato dos shapes, tábuas de madeira, varia de acordo com a modalidade executada. O speed, praticado em ladeiras, exige pranchas mais compridas e sem curvatura, que propiciam maior velocidade. No skate downhill, também típico de descidas, os shapes, longos e largos, possuem curvaturas nas extremidades para permitir manobras semelhantes a surfe e saltos. O street skate, comum em pistas e ruas, necessita de pranchas com curvas menores e mais leves, o que possibilita movimentos complexos, como por exemplo, o giro sob os pés do praticante.


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O skate mudou nossas vidas” Marcos Gorayeb, 50, o Goiaba

Campeonatos e rebeldia

Nova Geração Para os pioneiros da capital, o skate evoluiu muito e os novos praticantes conseguem fazer manobras bastante arrojadas. “A molecada hoje voa quase cinco metros além do limite da rampa, é muito alto e também muito arriscado”, comenta Dentinho. Franklin Barbosa, 26, administrador de empresas que pratica o esporte desde a infância, ressalta a importância dos skatistas mais experientes. “É bacana ir até ao Eixão no domingo e ver gente de diversas idades em cima do carrinho. O pessoal mais antigo serve como fonte de inspiração e motivação para os mais jovens.” O grupo Longbrothers, criado para unir os amantes do esporte, se reúne todos os fins de semana na altura da 115 Norte. Mário Márcio reconhece o carinho dos skatistas da nova geração, e se sente um privilegiado por ajudar a divulgar o esporte na capital federal. “Nós fomos o começo deste ciclo, isto é motivo de orgulho para todos nós. Servimos de motivação para nossos filhos e netos. É importante que todos saibam que o skate é um estilo de vida, e que o esporte está presente nas nossas vidas e nos faz muito bem”.

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Imagem: arquivo pessoal

A pequena ladeira da 115 Sul, que abrigou os skatistas pioneiros da cidade, foi palco das competições iniciais. O 1º Festival Brasiliense de Skate, assim chamado em reportagem assinada pelo jornalista Irlam Rocha Lima, foi organizado pelos praticantes mais antigos em 1975, responsáveis também pelo julgamento dos atletas. “Esses caras, dois ou três anos mais velhos que nós, fizeram o primeiro campeonato só para eles. Algum tempo depois houve uma competição em que os caras mais novos puderam participar e acabei em terceiro lugar”, informa Rafael Mendes. Na época, os participantes tinham direito a três voltas na ladeira, cada uma com três minutos de duração. De acordo com estilo e maior número de manobras bem executadas, mais alta era a nota do competidor, que poderia descartar a volta com pontuação menor. Goiaba relembra, entre risos, de um skatista que tentou passar pelo “tubo” construído com papelão para o torneio, mas que acabou destruído quando foi arrastado ladeira abaixo. Durante três anos consecutivos os campeonatos aconteceram na 115 sul, até que em 1978 houve uma pausa, momento em que surgiram as primeiras disputas na rampa. Segundo Mário, a inspiração dos skatistas da capital vinha de fora, ao ler revistas especializadas. “Sempre fomos fãs da Skateboarder. Quando ela chegava por aqui a gente lia e, a partir das fotografias, tentava fazer os mesmos movimentos. O que não tínhamos eram os mesmos lugares em que eles, na Califórnia, executavam as manobras”, conta. Coincidência ou não, o esporte associado à rebeldia conquistou adeptos na cidade durante a ditadura e dentro de uma superquadra destinada a militares (115 Sul). O Campus teve acesso a imagens do terceiro campeonato, realizado por lá em 1976, que mostram a presença de muitas pessoas em volta da ladeira para acompanhar o novo esporte. “A gente era moleque e crescia no meio dessa repressão toda. Sem perceber di-

reito, mas revoltados”, afirma Goiaba. Para Irlam Rocha LIma, a presença do público na competição se justifica pelo fato de que não existiam muitas atrações para a juventude de Brasília naquela época. “Quando acontecia algo, reunia muita gente”, explica.

é o número de profissionais filiados à Federação de Skate do DF apesar da grande quantidade de amadores Manchetes registram início do skate em Brasília. Na foto, Mário Márcio, em 1976, na 115 Sul

Edição: Monique Rodrigues

Diagramação: Vanessa Arcoverde


Campus | Brasília, 8 a 14 de janeiro de 2013

6 Fotos: Rafaella Felix

折り紙

Ana, Magali, Ed, Lus, Yuri, Josefa, Falk (agachado): Origamigos de Brasília trocam presentes em dobradura no amigo oculto de Natal

Amizade desdobrada em papel Falar de origami em Brasília é falar dos Origamigos. O grupo se encontra duas vezes ao mês para discutir e por em prática a arte de dobrar Gabriela Alcuri No centro da sala, uma mesa com papéis de várias cores, tamanhos, espessuras. Há também estiletes específicos para cortes mais finos ou mais grossos, além de tesouras e pinças. As pessoas em volta do cenário têm mais de 30 anos, reunidas ali com um único objetivo: dobrar. Essa cena faz parte da reunião do grupo Origamigos de Brasília, que acontece duas vezes ao mês na Escola Parque da 508 sul. Ser origamigo significa, segundo eles, se encontrar para discutir, trocar experiências, estudar, aprender e, claro, dobrar origamis. Fundadora do grupo, a engenheira civil Lus de Pessoa chegou a Brasília em 2004. Viajava mensalmente ao Rio de Janeiro para os encontros do grupo Dobras, cujos integrantes a incentivaram a criar os Origamigos de Brasília. No primeiro ano, trouxeram à capital a origamista Tomoko Fuse, especialista em peças modulares e autora de sete livros sobre o tema. Hoje com sete anos, os Origamigos já trouxeram outros artistas reconhecidos mundialmente, como os latinoamericanos Roman Diaz e Daniel Naranjo, além de realizarem exposições com o apoio da Embaixada do Japão. Sem fins lucrativos ou

promoção de oficinas para iniciantes nos encontros, os integrantes precisam, para participar, contribuir com mensalidade de R$ 10, além de ter conhecimento básico em origami. Lus é origamista há 16 anos e viajou, por conta da arte, a vários países, como Chile, Peru, Colômbia, Estados Unidos e França. Nesses lugares, percebeu ser o origami “mais abrangente que o braile. Nas convenções norte-americanas, por exemplo, tem vietnamita, chinês, japonês, alemão... E, todos juntos, sentam-se e começam a dobrar. Origami é comunicação”. Esse tipo de diálogo acontece também dentro dos Origamigos de Brasília, pois nele se integram diferentes perfis e, assim, proporcionam-se novas maneiras de enxergar o origami. Existem duas grandes categorias de origami: modulares e não-modulares. Os primeiros são compostos de vários módulos, cada parte construída com um papel diferente. Os mais famosos são os kusudamas, modelo normalmente criado pela junção de unidades idênticas formando uma esfera. Já o segundo conjunto é formado por origamis construídos por apenas uma folha de papel, como os de animais.

Ser criador de novos origamis configura um desses perfis, representado dentro do grupo por Yuri Sarudiansky. Origamista há mais de 20 anos, ele prefere peças não-modulares e com tema animal. Sarudiansky cunhou nove modelos e defende que qualquer pessoa com conhecimento mediano sobre a arte pode se tornar um criador. “Não é nada demais. É pegar o papel e experimentar até alcançar aquilo que se quer. Claro, você tem de ter uma certa prática prévia, de conhecimento de dobras, mas nada muito complexo dependendo da peça a ser criada. Qualquer um pode fazer isso.” Dobradora de kusudamas, Josefa Marques é outro perfil de origamiga. Graças à paixão por esse tipo de peça e por origamis em geral, Josefa ingressou no curso de artes plásticas e, no fim do ano passado, apresentou monografia sobre o uso do origami em obras de arte contemporâneas. Nesse trabalho, a origamista define intersecções entre os dois tipos de arte, como a apropriação de tradições, a efemeridade e o ritual. Josefa também explica na pesquisa como as dobraduras integram o cotidiano e a ciência: “Elas estão presentes, por exemplo, nos airbags de carros – que não caberiam em seu compartimento se dobrados de outra maneira. O telescópio Hubble é outro exemplo: só chegou ao espaço por conta do conhecimento em origami”.

Economia Sarudiansky costumava dobrar pequenas estrelas de origami dentro de seu carro, enquanto esperava o semáforo ficar verde. Fazia isso com papel de panfletos de propaganda. Lus leva para a cafeteria papéis adquiridos em São Paulo, fabricados em formato quadrado, com espessura pouco superior à de uma cartolina. Isso prova que qualquer papel pode ser dobrado, mas o resultado é bem diferente dependendo do escolhido. Origamistas iniciantes costumam fazer uso de papel japonês. Em Brasília, só se encontra o material nas frutarias La Palma e Mikami, com custo médio de R$ 0,35 a folha de 15cm x 15cm. Para efeitos de comparação, uma folha A4 de papel sulfite custa em média dez vezes menos e tem uma área 2,8 vezes maior. Dobradores com O telescópio tem o tamanho da ilha de Manhattan e é o maior telescópio óptico atualmente no espaço. Ele só pôde chegar até lá graças ao trabalho do físico e origamista Robert J. Lang, que pensou, por meio do conhecimento em dobras, uma maneira para que os espelhos se encaixassem corretamente.

mais experiência procuram experimentar novos papéis e outros materiais, como tecidos ou acrílico. E isso é ainda mais caro. Encomendas de origamis refletem o alto preço do material: em Brasília, tsurus prontos para pendurar custam em média R$ 2 a unidade. Esse preço varia principalmente de acordo com o papel escolhido e o tempo gasto nas dobras. Outros pedidos comuns são lembranças com temática infantil e buquês de flores para casamentos. Apesar do valor elevado do produto, ainda não é possível viver de origami na capital. Em São Paulo, há origamistas que dobram como profissão e sustentam-se somente com isso. Verônica Jamkojian, especialista em arranjos florais, apaixonou-se pela arte aprendendo técnicas para animação cinematográfica e, no ano passado, fez “bodas de prata com o origami”. A artista, no entanto, lamenta a percepção do público: “Ainda há muito a ideia de que o origami, por ser feito de papel, é algo de criança, ou muito barato. Mas isso é uma grande mentira! Primeiro, porque o origami é uma verdadeira arte. E, depois, porque existem atualmente papéis maravilhosos, duradouros, cheios de brilho, que proporcionam efeitos visuais muito bonitos e não são, de maneira alguma, algo descartável”.

Edição: Monique Rodrigues Diagramação: Pedro Menezes


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Campus | Brasília, 08 a 14 de janeiro de 2013

Políticas públicas

10% é o bastante? Plano Nacional prevê mais de R$ 200 bilhões para educação. Brasil seria o país que mais investe no setor em relação ao PIB

Dayana Hashim

“Passamos por uma inundação enorme, as crianças choraram e perdemos material.” É assim que Rodrigo Soares, supervisor pedagógico da Escola Classe 59 da Ceilândia, descreve o alagamento no dia 26 de novembro de 2012. De acordo com levantamento do Tribunal de Contas do Distrito Federal, o centro educacional apresenta a pior infraestrutura do DF. “Quem sabe, se tivéssemos mais verba para educação, este problema já não teria sido resolvido”, questiona. Para resolver questões como essas, está em tramitação no Senado Federal um novo Plano Nacional de Educação (PNE). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1996, determina que, a cada dez anos, seja criado um novo PNE, com metas para o desenvolvi-

mento do ensino brasileiro. O novo plano é composto por 20 metas. A última delas, que tem gerado maior debate, estabelece que, em um período de até dez anos após sua aprovação, o Brasil terá que investir no setor educacional 10% de seu Produto Interno Bruto (PIB), renda total gerada no país em um ano. Especialistas questionam o valor de 10% do PIB. “Eu tenho a impressão de que ninguém discutiu os 10 %. Por que não é 8%? Ou 12%? Ninguém explicou”, indaga o senador Cristovam Buarque (PDT). Para Carmenísia Jacobina, diretora da Faculdade de Educação da UnB, a meta se justifica como forma de elevar o piso salarial dos professores, hoje estipulado em R$ 1.451. “Levar o piso a um patamar de regularidade com outras classes causaria grande impacto no orçamento”, aponta. O relator do PNE, deputado federal Angelo Vanhoni (PT), usou como base o indicador Custo Aluno-Qualidade inicial (CAQi), índice que

“O dinheiro não resolve tudo, mas vai ajudar bastante”, diz Rodrigo Soares

determina o investimento mínimo para que se tenha uma educação de qualidade. “De acordo com o CAQi, o valor inicial de 7,5% presente em meu relatório já atendia a maioria das metas do PNE em relação à educação básica. Porém, para oferecer creches de qualidade é necessário um investimento maior”, declarou Vanhoni à Agência Câmara. A meta, apesar de ambiciosa, não é inédita. A Coreia do Sul alcançou níveis semelhantes de investimento no setor entre as décadas de 1970 e 1990, período em que sua economia alcançou patamares de nações desenvolvidas. No entanto, entre os países que oferecem dados para análise da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), não há nenhum que destine um valor tão alto à educação em relação ao PIB (veja a tabela ao lado). “O problema é que as economias que mais investem em educação e melhor avaliadas no Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa) já têm estruturas educacionais de muita qualidade, que não se comparam à realidade brasileira”, explica Vander Mendes, professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB). “As metas do PNE são uma tentativa de tirar esse atraso”, conclui. O Brasil investe atualmente 5,3% de seu PIB em educação, quantia que gira em torno de R$ 200 bilhões. Uma das alternativas para aumentar o investimento é a canalização de verbas dos royalties de petróleo do pré-sal. A presidente Dilma Rousseff publicou, em dezembro de 2012, Medida Provisória (MP) que garante a aplicação no setor educacional de 50% do Fundo Social do Pré-Sal e 100% dos recursos municipais oriundos também do pré-sal a partir de 2013. A previsão do

Eu tenho a impressão de que ninguém discutiu. Por que não é 8%? Ou 12%? Ninguém explicou” Cristovam Buarque, senador

Vanessa Arcoverde

João Bosco Lacerda

Ministério de Minas e Energia é de que as receitas dos royalties cheguem a um valor de R$ 60 bilhões até 2020. Esses recursos representariam cerca de um quarto do investimento necessário para atingir as metas estipuladas pelo novo PNE. Porém, Mendes alerta que nem estes valores são garantidos: “Vai depender do sucesso do programa de extração no pré-sal. Esse processo tem custos muito elevados que podem inviabilizar o aproveitamento do recurso”. Além disso, a MP ainda entrará em debate no Congresso Nacional, e corre risco de ser derrubada, pois os estados que não possuem poços de petróleo querem que os campos explorados antes das novas regras de partilha também entrem no regime atual de distribuição. A solução, de acordo com Mendes, seria uma reforma estrutural na O Fundo Social é composto por recursos da União formados por parte do valor arrecadado nas licitações, parte dos royalties dos contratos de partilha e parte das vendas de petróleo e gás.

economia do país para adequar o novo aporte de recursos para a educação. “A união gasta metade de seus recursos com pagamentos de juros e amortizações da dívida pública. A diminuição na taxa básica de juros feita em 2012 ajuda, mas iniciativas como a reforma tributária e da previdência e a revisão da legislação trabalhista são urgentes para aumentar a capacidade de investimento.” Mesmo que as metas de investimento sejam atingidas, é necessário que haja um planejamento de modo a transferir os ganhos na educação para a sociedade, como lembra o senador Cristovam Buarque: “Não basta ter uma boa educação. É possível fazer com que a educação de base chegue ao ensino superior, que o ensino superior se traduza em ciência e tecnologia, que estes fatores cheguem ao setor produtivo e que a sociedade esteja de acordo para colaborar com todo o processo”. O supervisor Rodrigo Soares lembra que não basta aumentar a verba, “é preciso que os recursos cheguem de fato”, antes de afirmar que a reforma da Escola Classe 59 só deve ser concluída em 2014. Com ou sem 10%.

Edição: Luana Luizy

Diagramação: Pedro Menezes


Campus | Brasília, 08 a 14 de janeiro de 2013

Página 8 Conto

O processo de apuração Pedro Menezes

Morgana Boeschenstein

Alguém certamente havia desinformado Josef K., pois uma manhã lhe foi pedido que esperasse sem justificativa alguma. Deixaramno sentado na sala do editor-chefe por uma hora, sem por que e sem café. Isso nunca tinha acontecido antes. K. esperou mais um pouquinho, olhou de

sua cadeira o velho repórter que tinha a mesa ali perto e que o observava com uma curiosidade nele inteiramente incomum, mas depois, sentindo estranheza e sono ao mesmo tempo, levantou-se. Imediatamente bateram à porta e entrou um homem que ele nunca tinha visto na redação. Era esbelto e no entanto de constituição sólida; um cigarro que não lhe despregava à boca e uma mão nervosa. – Quem é o senhor? – perguntou K., e logo voltou a sentar-se. Mas o homem passou por cima da

pergunta, como se fosse preciso aceitar a sua aparição, e por sua vez simplesmente disse: – Pauta, aqui – empurrando sobre a mesa um papel, para depois afundar-se em fumaça, jornais e canetas bic azuis. – Mas que pauta? – perguntou K., surpreso, tentando, a princípio em silêncio, verificar pela atenção e pelo raciocínio quem era realmente aquele homem. Este, no entanto, não se submeteu por muito tempo aos olhares de K., foi até a porta, abriu-a apenas por uma brecha e disse: – Ele perguntou “mas que pauta?”. Seguiu-se uma pequena gargalhada na redação; pelo som não era possível ter certeza se se tratava ou não de várias pessoas. O homem disse então a K. no tom de quem transmite uma informação: – Perfeitamente possível. Vá. Desconcertado, K. fitou-o longamente. Sem resposta, saiu da sala, pauta em punho, rumo a sua mesa. Todos os telefones da redação pareciam tocar; ele sentia os olhares sobre si; sua cabeça latejava. No papel, apenas um número de telefone; discou; atenderam: – Bom dia, Assessoria de Imprensa da SIGLA. Em caso de jornalista, por favor envie um email com sua pauta para assessoriadeimprensa@sigla. com.br. Obrigado e tenha uma boa tarde. K., atônito, ainda segurava o telefone quando seu celular toca; ele se assusta; treme; respira fundo; atende.

– K.? Aqui é João, desculpe tão tarde a ligação. Podemos ir adiantando a nossa entrevista? Foi surgindo outro compromisso de forma totalmente imprevista. – ... – João Leitão, da Comissão de Repartição de Construção. Escute, no dia há pouca hora, que tal irmos conversando agora? Estou aqui perto, logo na esquina, o nome do lugar é Cantina Baratinha – e desligou. O bom senso negava-lhe todos os acontecimentos desde que chegara à redação; chovia; e, se dentro de dois minutos ele se encontrava sentado em uma das cadeiras da tal Cantina Baratinha, foi alguma força que o levou que não a da razão. Procurou entre os rostos alguém com cara de João Leitão; achou por bem conferir seus instrumentos jornalísticos: Gravador: encharcado. Caneta: estourada. Bloquinho: pintado de azul. – K.!, ei, K.!– disse-lhe um homem, puxando a mão de K. para si e apertando-a com vigor – Escute, vamos rápido; o que precisar saber, eu falo. K. olhou-o, descompassado. O homem o fitava insistentemente, como que a esperar uma mínima reação para respondê-la em mínimo tempo. Com dificuldade, K. perguntou: – João, o senhor é João, João Leitão? – Pois não, João Leitão! Ora, se não?! – E o senhor... que entrevista é essa que o senhor tem comigo? – Ora, K., piada! Não é para sua pauta? – A... pauta?

João Leitão sorria; incontáveis dentes branquíssimos surgiam à medida que escancarava mais e mais a boca; as narinas pareciam crescer indefinidamente; os olhos abertos; pupilas imensas; os olhos abertos e ele não piscava. K. teve de fechar os seus ao intenso flash que se seguiu. Quando os abriu, a visão recuperada, João Leitão já estava longe, a sorrir-lhe; acenar-lhe; e desaparecer ao dobrar a esquina. Uma mão repentina em seu ombro o fez quase desmaiar; olhou ofegante o homem ao seu lado, que disse: – Você já terminou por aqui? Tenho de fotografar outras pautas, vamos logo, K. K. apertava os braços com força, pressionando-os contra o próprio corpo; sentia-se febril; encontrou o caminho da redação nos passos do fotógrafo, que olhava para trás repetidamente a fim de apressá-lo. Perdeu-se nas escadarias do prédio; perdeuse do fotógrafo; quando estava a ponto de perder-se de si, encontrou o local de seu ofício. Ao abrir a porta: – Josef K.! Deadline! Pregaram-no na cadeira; à sua frente, uma tela em branco; às costas, pitacos: – Começa assim, K., meio jornalismo literário...! – Mais simples, o lead, o lead! E K., tecla a tecla em devaneios – os companheiros de profissão acenando as cabeças energicamente em concordância –, escreveu: “Quando certa manhã Josef K. acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em uma redação metamorfoseado em jornalista.”

Edição: Isabela Bonfim Diagramação: Guilherme Alves


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